28 de maio de 2007

A Capital do Olhar

De há muitos anos, havia-me habituado a pensar Brasília apenas como uma singular experiência urbana, fruto da teimosia de um presidente sonhador, Juscelino Kubitschek (JK para os brasileiros), somada à genialidade criativa de Oscar Niemeyer, um arquitecto que tinha sabido desenhar, num remoto deserto no centro do país, um museu vivo que causava a admiração do mundo.


Essa imagem, algo estática, que eu alimentava da capital brasileira evoluiu muito ao longo do tempo em que a habito, porque tive a oportunidade de colocar nela a paisagem humana que a cidade hoje tem. Aí se conjugam visitantes episódicos, migrantes internos mais ou menos adaptados e uma cada vez maior percentagem de brasilienses de raiz. Por essa complexidade, Brasília não é uma cidade óbvia para um estrangeiro e eu continuo à descoberta da chave de leitura que me permita decifrar os seus contrastes, que se prolongam quase desde a sua própria origem.


Às vezes dou por mim a pensar no que terá sido a aventura de transportar, para uma Brasília ainda pouco apelativa, a administração pública que se habituara ao conforto do Rio de Janeiro – em especial, da célebre qualidade de vida do Rio dos anos 60. Brasília era então, ao que se diz, um estaleiro que parecia eternizar-se, onde pairava um pó vermelho omnipresente, o qual, curiosamente, parece ser o segredo do famoso pôr-do-sol da cidade. Ser forçado a sair da mais bela cidade do mundo, perder Copacabana, as praias e a vida social de então, para vir aterrar nos apartamentos “funcionais” que haviam sido destinados à burocracia, deve ter tido, à época, foros de uma quase violência.


Talvez isso justifique que ainda possamos encontrar, por todo o Brasil, muitos cépticos quanto à bondade da opção tomada em favor da construção de uma nova capital e alguns críticos, e sobretudo alguns irónicos, quanto às virtualidades daquilo a que chamam a “cidade sem esquinas”.


E, do mesmo modo, compreende-se que haja hoje, em muitos dos habitantes da cidade, um vincado orgulho brasiliense, que se expressa numa espécie de culto a esta singular capital, sublinhando-lhe as belezas e a qualidade da sua vida – ímpar no Brasil contemporâneo. Há neles como que uma adesão sentimental ao espírito “candango”, nome dado aos que construíram a cidade, como se viver em Brasília e apreciá-la fosse uma espécie de identificação permanente com a aventura pioneira que a criou.


O sonho de uma nova capital para o Brasil tem uma história já antiga, como todas as lendas que precisam da sua dose de mistério para se dignificarem no imaginário colectivo. Na prática, a ideia da criação da nova cidade acabou por ser um gesto político voluntarista, assumido por um Presidente que pensava grande e que desejava apresentar, ainda no seu tempo, um empreendimento mobilizador que pudesse ser o símbolo da desejável aceleração do “país do futuro”.


A cidade da arquitectura


A Brasília planeada por Lúcio Costa, onde Niemeyer plantou os seus edifícios, está já muito distante da cidade actual, onde, nos últimos anos, a dualidade social do Brasil se projectou com grande intensidade. À volta do chamado “Plano Piloto”, nasceram diversas cidades-satélite, as quais, curiosamente, não aparecem muito visíveis no horizonte de Brasília, como que concordando em deixá-la salientar-se, isolada e preservada para o olhar.


Com excepção da zona situada na confluência do Eixo Monumental, onde estão os principais edifícios públicos, com as “asas” do pássaro virtual em que o traço de Lúcio Costa fez assentar muita da vida habitacional e comercial, a cidade é marcada por uma escala de construção relativamente baixa. Aí o arvoredo desenhado pelo paisagismo de Burle Marx convive bem com os prédios de apartamentos e abre-se para as zonas de comércio que os apoiam. Alguns poderão achar estas soluções de distribuição rigorosa de espaços algo “orwellianas”, mas essa é a matriz inescapável de uma cidade que foi tributária de um tempo urbanístico muito marcante.


A ausência de pressão arquitectónica, o aproveitamento generoso do espaço e a lógica de distribuição dos edifícios acabam por conferir uma leveza muito particular a todo o tecido urbano, o qual, fora das famosas “asas”, abandona a rigidez uniformizante e surge variado e diverso. O usufruto pleno das dimensões disponíveis e a presença do verde são a matriz visual mais patente em Brasília, dando terreno largo ao olhar e garantindo perspectiva às fórmulas arquitectónicas imaginadas por Niemeyer, hoje já complementadas por outras belas peças de modelos bem diversos.


Mas não deixa de ser notável constatar como a monumentalidade de uma área como a Esplanada dos Ministérios, tendo as torres gémeas e os módulos contrastantes do Congresso ao fundo, continua a sobreviver com grande dignidade e beleza, quase meio século passado sobre a sua construção. Descer a Esplanada à noite, sob a luz cuidada que sublinha o volume dos ministérios e dos palácios vizinhos, continua a ser uma experiência ímpar.

Ainda à noite, se olharmos a cidade à distância, sob o seu céu quase sempre límpido, a Brasília que surge reflectida no lago Paranoá é tomada por uma estranha e distinta serenidade de uma metrópole futurista.


A vida e a paisagem


Brasília está longe de ser uma cidade fácil para o pedestre. As distâncias são longas, os espaços abertos obrigam a uma incómoda exposição ao sol e, sintomaticamente, não há muitos passeios que permitam flanar com largueza – com excepção do Parque da Cidade e certas áreas residenciais nobres, como o Lago Sul. O automóvel é, assim, o “habitante” mais natural de uma cidade que, com excepção dos táxis, tem um sistema de transporte urbano algo confuso.

Em Brasília, as ruas e as praças não têm nomes – sendo a Praça Portugal, por detrás da respectiva embaixada, uma das muito poucas excepções, o que aliás muito nos honra. Por isso, o visitante não deve estranhar se ouvir dizer que o almoço está marcado para o restaurante X, que “fica na 408 Sul”, ou que é convidado para a casa de um amigo que mora no “SHIS, QL 20, Conjunto 1, casa número tal”. Parece confuso… e é, mas com o tempo habituamo-nos a perceber que este modelo, depois de apreendido o seu código, acaba por facilitar a procura de endereços. E não se apoquente se lhe disserem que a sua reunião terá lugar numa “superquadra” a norte do “eixão” e que, para lá chegar, terá de passar pelo “eixinho” ou pela “W3 Sul”, necessitando ainda de circular por algumas “tesourinhas”. O original léxico brasiliense é feito destas peculiaridades.


O visitante episódico de Brasília deve, assim, ter o cuidado de assegurar previamente transporte e condução automóvel que lhe permitam usufruir a cidade e alguns dos seus pontos interessantes.


Atrever-me-ia a aconselhar que o percurso pelas peças mais importantes da obra de Oscar Niemeyer se iniciasse pela residência oficial do Presidente da República, o Palácio da Alvorada. Foi na sua inauguração, em 30 de Junho de 1958, que o então embaixador de Portugal apresentou as suas credenciais, sendo o primeiro representante diplomático estrangeiro a fazê-lo em Brasília, num gesto de simpatia de JK para com Portugal.


Passando ao Eixo Monumental, a visita deve iniciar-se pela Praça dos Três Poderes, onde se situam peças arquitectónicas de relevo, desde os edifícios do Congresso Nacional ao Supremo Tribunal Federal, bem como o Palácio do Planalto, sede do Governo. Nessa praça, onde sobressai a famosa estátua dos “Guerreiros”, impõe-se uma visita à maquete da cidade, no Espaço Lúcio Costa, que funciona como uma introdução a Brasília e permite perceber melhor a sua evolução.


Logo de seguida, é interessante entrar no Palácio do Itamaraty, sede da diplomacia brasileira. Continuando a subir o Eixo Monumental, é imprescindível uma visita à majestosa Catedral, que agora tem a seu lado a “calota esférica” do novo Museu e o edifício da Biblioteca, ambos inaugurados em 2006. Do lado contrário do Eixo, surge o “egípcio” Teatro Nacional e, logo adiante, o complexo da Estação Rodoviária – um espaço cuja beleza é hoje limitada pela caótica intensidade da sua ocupação.


O visitante pode ainda aproveitar para subir à Torre da televisão para ter uma perspectiva geral da cidade, ver o Palácio do Buriti, fazer uma visita ao Memorial de JK e, finalmente, deslocar-se à zona militar, também com uma arquitectura muito curiosa.


Este olhar breve por Brasília não pode deixar de incluir o Santuário Dom Bosco, um passeio pela zona das Embaixadas (lá se encontra a Embaixada de Portugal, num edifício do arquitecto português Chorão Ramalho), um percurso pela prestigiada área habitacional do Lago Sul (com uma visita à ermida de Dom Bosco) e o regresso ao centro através da nova e bela Ponte JK, da qual se diz que Oscar Niemeyer não gostará muito.


Se tiver tempo, o visitante deveria ainda deslocar-se às “quadras” comerciais e habitacionais (aconselharia a 108 e a 308 Sul, junto da qual se situa a Igreja de Nossa Senhora de Fátima, que os brasilenses conhecem como a Igrejinha), para perceber melhor a lógica que prevaleceu no desenho original da cidade e que marca ainda muita da sua funcionalidade actual.

Se acaso lhe sobrar tempo, não deve perder o histórico Catetinho, alojamento e escritório de madeira construído para albergar Juscelino Kubitschek nas suas deslocações ao que viria a ser Brasília, o que lhe permitirá, simultaneamente, ter uma perspectiva da ampla área residencial de “Parkway”.


Brasília teria bastante mais para ver, mas estes conselhos sintetizam, na minha perspectiva, o essencial.


Texto publicado na revista “Atlantis”, da TAP, número de Julho/Agosto 2007

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