1 de novembro de 2013

A Europa possível?

Se acaso fosse necessária uma prova indireta do êxito do processo europeu, ela estaria no facto de ser evidente que é à escala da Europa que hoje problematizamos o essencial do nosso destino como país. No entanto, isso não deixa de estar em relativa contradição com a circunstância de ser a nível nacional que as principais respostas políticas para a resolução desses problemas têm de ser assumidas. E essa eventual contradição afeta hoje, também entre nós, a imagem da Europa.
Poder-se-á argumentar que estamos num período de transição, em que a maturação europeia das soluções só lentamente começa a fixar-se. Pode ser que assim seja, mas isso não atenua o evidente desconforto que atravessa as nossas sociedades, incapazes, pelo menos por ora, de encontrarem um ponto confortável de coerência entre uma macro-estrutura europeia que se impõe como inescapável “template” e, por outro lado, a disfunção provocada por uma diversidade, muito pouco harmónica, de modelos institucionais de natureza nacional, hoje agravada pela diferente exposição dos países aos efeitos da crise económico-social à escala global.
No essencial, fica crescentemente patente que a Europa parece estar a pagar um preço elevado pela recente aceleração da História – por muito que este conceito seja, em si mesmo, contestável. Nas suas décadas de existência, o modelo europeu sempre constatou a necessidade de completar plenamente as suas sucessivas etapas de construção, utilizando-as como base de assentamento para os passos seguintes de integração sectorial, alguns dos quais só se impuseram, como necessidade mais ou menos imperativa, após a plena consciência do sucesso e relativo completamento dos anteriores.
O fator “tempo” veio assim a revelar-se um elemento essencial para a construção da aceitabilidade pública dos sucessivos processos integradores, só atenuado por urgências geopolíticas (como foram os alargamentos) ou por surtos de conjuntural euro-entusiasmo (como o mercado único ou a construção do euro). Quando Jacques Delors falava da “bicicleta europeia” (a qual, se parasse de prosseguir, cairia para o lado), estava a tentar forçar essa realidade, a provocar as consciências, tentando fazê-las entender que o ritmo a que o processo de integração se tinha desenvolvido no passado começava a ser menos compatível com as exigências que se colocavam à Europa. Isso tanto era válido face aos problemas tido como internos ao continente, como o era perante a iminência do surto de globalização que se aproximava no horizonte, sendo que ambos os movimentos rapidamente se revelaram interdependentes.
Esta desconformidade temporal, entre a urgência forçada pelas circunstâncias e a muito diversa disponibilidade das várias opiniões públicas para aceitarem novos passos integradores, veio trazer à discussão aquilo que hoje se converteu numa questão central, que está claramente por detrás de muitas das perplexidades que atravessam o processo europeu: a questão da legitimidade das decisões políticas à escala europeia.

A representatividade na Europa

As instituições europeias são vistas, pela generalidade dos cidadãos, como não dispondo ainda de um grau de representatividade que possa justificar a sua preeminência sobre os sistemas políticos nacionais. Por essa razão, vive-se num limbo de poder, em que os parlamentos nacionais reivindicam a última palavra, ancorados na legitimidade dos seus eleitos e na necessária “accountability” destes perante os seus eleitores. Por muito que o politicamente correto europeu tente consagrar a importância crescente do Parlamento europeu no processo de decisão, conferindo-lhe novos poderes, a verdade é que, não havendo uma opinião pública europeia – mas 27 opiniões públicas nacionais, mobilizadas por diferentes agendas de interesses e preocupações -, é à escala nacional que as respostas políticas essenciais têm ainda de ser dadas.
Ora a tomada de decisões europeias, com impacto sobre todo o tecido da União, em especial nos dias subsequentes ao Tratado de Lisboa, faz-se sob um peso muito diferenciado dos países que se sentam à mesa dos Conselhos europeus de ministros. Um ministro português e um ministro alemão não têm a mesma capacidade para fazer valer os seus interesses. No entanto, um eleitor português e um eleitor alemão, ao colocarem o seu voto na urna, estariam, na aparência, a escolher titulares com um idêntico mandato. É perante a progressiva consciência dos eleitores de que, ao selecionaram os seus representantes, estão a mandatar figuras com uma abissal diferença no poder de influência sobre decisões que a todos importam que, subliminarmente, começa a minar-se a legitimidade dos agentes políticos que representam os Estados menos poderosos.  
Esta crise de legitimidade de alguns agentes políticos nacionais perante os seus cidadãos converte-se num fator altamente preocupante para o funcionamento dos sistemas políticos nacionais. Com efeito, em muitos casos, os eleitores começam a perceber que estão a escolher mandatários cujas mãos estão “atadas” à partida, cuja capacidade de influência nas decisões que lhes importam é cada vez mais limitada. E isto põe claramente em causa a autoridade democrática à escala nacional.
Dir-se-á que, atenta a bondade intrínseca do processo europeu, os cidadãos podem tender a dispensar essa expetativa de um efeito direto da representação nacional nas decisões tomadas em Bruxelas, confiando que uma progressiva integração acabe por resolver os seus problemas, “europeizando” cada vez mais os processos de legitimação dessas decisões. Talvez isso devesse ser assim, mas não é. Os cidadãos europeus só se mostram abertos a aceitar “mais Europa” quando se sentem confortáveis com a Europa que já têm ou quando pressentem que é a via da integração aquela que melhor protege o seu futuro ou, em tempos de maior crença, onde melhor conseguem ancorar as suas esperanças políticas. Ora os tempos não parecem ir por aí. E enquanto assim não for, a resistência à mudança continuará, agravada pelo conhecido facto de muitas das vantagens trazidas pela Europa serem vistas como “taken for granted” e não colocadas a crédito do processo integrador. Esta “ingratidão” funciona contra a Europa, mas parece hoje inevitável, num ambiente político onde os dirigentes não favorecem um proselitismo otimista em favor do processo integrador, antes utilizam frequentemente Bruxelas como bode espiatório para a insatisfação dos seus eleitorados.

Efeitos institucionais da crise

A crise económico-financeira, e a necessidade de lhe dar resposta urgente através de decisões constrangentes e disciplinadoras sobre as vontades nacionais, veio introduzir novos fatores de tensão no modo como as opiniões públicas nacionais interpretam essa sucessão de gestos políticos, cuja coerência não é imediatamente percetível, até porque são interpretados, justa ou injustamente, como “remendos” de natureza conjuntural, cuja ausência de efeitos imediatos contribui para afetar a imagem da sua racionalidade. Daí decorre também a crescente dificuldade de aceitação dos processos de legitimação dessas mesmas mudanças no quadro político-constitucional de cada Estado.
Estamos assim, e uma vez mais, perante o eterno debate entre “eficácia” e “legitimidade”, que sempre esteve subjacente ao processo de construção europeia. Como é sabido, e por muito tempo, o caminho europeu foi sendo seguido num discreto movimento de aproximação/harmonização que privilegiava a primeira dessas ideias, justificando-a com a coerência indispensável ao desenvolvimento de algumas das dimensões económicas que iam estruturando o tecido integrador. Recorde-se, a propósito, que poucos foram os que então alertaram, nomeadamente aquando do entusiasmante projeto do “mercado interno”, para o facto de que ele dificilmente seria sustentável se não fosse complementado por um trabalho conjunto em terrenos que, habitualmente, se situavam perto do “core” das soberanias nacionais. E o avanço da União por esses terrenos revelou-se muito difícil de desbravar.
Pode dizer-se, com alguma simplicidade expressiva, que a Europa está a ser vítima do seu próprio sucesso. Sendo verdade que há muitas outras razões para explicar o “malaise” europeu, a verdade é que o fantástico êxito que rodeou o processo de integração foi criando expetativas que vieram a revelar-se menos conformes com a hesitação que tem vindo a ser demonstrada na descoberta de soluções atempadas para enfrentar as recentes crises. Uma vez mais, parece evidente que o ritmo de adaptação das instituições europeias está desfasado das exigências do quotidiano político-económico e que isso tem consequências muito negativas no modo e na competência da Europa para responder ao desafio das crises.
A história da União Europeia já demonstrou que, por muito que se tente edulcorar a racionalidade intrínseca ao projeto, este foi sendo construído num balanço, nem sempre muito harmónico, entre as condicionantes que o tempo ditou e a gestação da vontade comum interna de lhes fazer corresponder os necessários avanços institucionais, suscetíveis de enquadrarem as novas realidades emergentes. Goste-se ou não, a política da “navegação à vista” foi sempre a linha condutora do processo de integração. E nem por isso, reconheça-se, as coisas funcionaram menos bem.
Com os sucessivos alargamentos a introduzirem uma diversidade que foi muito para além daquilo que, há uns anos, era imaginável como gerível, a União comporta-se hoje como um organismo sob constante “stress”, com uma capacidade de reação às situações fortemente limitada por condicionantes nacionais que teimam em não desaparecer. Além disso, o seu discurso agregador, que durante muito tempo continha uma dose de idealismo que motivava setores nas suas diversas opiniões públicas, e no plano externo convertia a Europa num “soft power” de esperança, perdeu já muito do sentido solidário e vive hoje marcado pelo pragmatismo de uma mera gestão de egoísmos.

A hipótese federal

Perante este impasse, na busca de um modelo funcional onde a eficácia dos mecanismos seja compatível com o sentimento de legitimidade das decisões, a ideia federal voltou a surgir, curiosamente sugerida agora através daquilo que era a improvável via da crescente harmonização na área financeira.
O modelo federal fez parte do imaginário europeu desde o início do processo integrador. Os grandes ideólogos da “Europa unida” mantiveram-no como referente último, como uma espécie de “amanhãs que cantam”, que surgiriam numa alvorada de racionalidade e de entusiasmo dos povos do continente. A ambiguidade permanente em torno desse modelo último é talvez a prova mais evidente de que o realismo os fazia hesitar em ir muito longe na explicitação do projeto.
Algumas figuras, hoje incensadas na hagiografia bruxelense, sonharam um dia com uns “Estados unidos da Europa”, eventualmente sob um formato atípico que conseguisse compatibilizar as idiossincrasias nacionalistas que haviam conduzido às tragédias passadas. Porém, há a sensação de que, salvo em alguns escassos países cuja própria existência pode depender do sucesso do processo europeu, a mitologia federal foi apenas mantida politicamente como um pano de fundo distante, como um apelo afetivo a um movimento no sentido de uma crescente aproximação/harmonização.
De facto, nunca pareceu que alguns importantes Estados europeus, em particular após os alargamentos que se seguiram ao tempo dos “seis” de Roma, revelassem uma disponibilidade para subsumir o seu poder de afirmação num modelo em que, mesmo que apenas num único setor do aparelho institucional, viessem a surgir equiparados a países de menor dimensão. Ou melhor, talvez estivessem dispostos a ir por uma via formalmente similar, mas apenas na condição do seu controlo do processo decisório ser garantido por um qualquer método que pudesse garantir a prevalência do modelo de “diretório”.
O “Tratado de Lisboa” configura, aliás, a expressão formal do equilíbrio de poderes que os Estados de maior dimensão e poder económico consideraram essencial para virem a aceitar uma União com a diversidade introduzida pelos últimos alargamentos. Um equilíbrio que, de uma vez por todas e de forma aparentemente irreversível, anulou o caráter proto-federal que o papel da Comissão europeia chegou a prenunciar e reconduziu ao Conselho, no seu modelo de desigualdade objetiva de forças, o essencial da expressão da vontade política.
Uma coisa é evidente: mesmo se o cenário parece hoje implausível, há que assumir que a adoção de modelos de natureza federalizante teria, com toda a certeza, a capacidade de representar, bem melhor que o atual sistema, uma partilha equilibrada de soberanias e daria muito mais garantias, em especial aos Estados com menor capacidade no processo de representação de poder.

Que fazer?

Perante o estado atual do projeto europeu, em face da diversidade das situações que o mesmo é obrigado a comportar e, muito em especial, como forma de fazer frente às dinâmicas financeiras que o ameaçam na sua estabilidade, os dirigentes europeus optaram por tentar um modelo de governança financeira que se exprimiu no “Tratado orçamental”, eventualmente a ser complementado por um conjunto de outras regras de governo coletivo (União bancária, entre outras), algumas das quais ainda por consensualizar por completo.
Esse tratado mais não foi do que uma tentativa, só parcialmente bem sucedida, de apaziguar os humores dos mercados e criar a expetativa de um tendencial cumprimento de regras comuns. O caráter radical de algumas das medidas nele previstas, associado ao tradicional tropismo europeu para uma flexibilização de regras, quando algum dos principais parceiros nele vier a sentir-se desconfortável, não augura a sua sobrevivência gloriosa e, muito menos, rigorosa.
A vida é o que é, e a da União Europeia também. Um juízo de meridiano bom-senso recomenda assim que procuremos, em prioridade, proteger o acervo do processo de integração já percorrido, muito em especial os fantásticos avanços conseguidos no mercado interno e, nesse âmbito, os ganhos das diversas liberdades introduzidas no espaço europeu. Por forma a tornar o processo europeu compatível com a inescapável diversidade dos seus componentes, a via de uma integração diferenciada, ou de “cooperações reforçadas”, é aquela que surge como a resposta mais evidente e mais prática.
Dir-se-á que, desta forma, se está a optar por um modesto “possibilismo” europeu, sem ambição e sem garra mobilizadora, perante as opiniões públicas. Talvez isso assim seja, mas o bom-senso aconselha, num tempo onde os grandes entusiasmos parecem colocados a recato, recolhidos nas gavetas da História, a que se aposte no essencial, no adquirido sem grandes contestações, à espera de melhores dias. A Europa é demasiado importante para que corramos riscos desnecessários.

Nós na Europa

A atual posição de Portugal no contexto da União é de uma inédita debilidade. Por um lado, a sua fragilidade económico-financeira, sem possibilidade de ser invertida de forma significativa a médio prazo, induz-lhe hoje um afastamento face aos interesses médios que se projetam no processo decisório comunitário. Neste último, a irrelevância objetiva do país, substancialmente agravada pelo Tratado de Lisboa, e cumulada ainda com o irrecuperável esbatimento da função arbitral da Comissão, configura um quadro crescente de riscos para a capacidade do país conseguir assegurar uma proteção eficaz no âmbito do Conselho. Por essa razão, talvez mais do que no passado, importa a Portugal desenhar uma postura eficaz na coreografia europeia, procurando furtar-se a todos os fatores que apontem para a sua imersão num novo ciclo de periferização.
Para o nosso país, nenhum modelo plausível de enquadramento externo, alternativo ao da União Europeia, foi até agora apresentado com uma consistência que mereça um mínimo de credibilidade. Já um cenário fora do euro pode ser debatível, mas somos levados a considerar que todos os esforços que possam ser empreendidos para que o país se mantenha na moeda única, por maiores que eles possam ser, serão sempre inferiores ao custo que Portugal teria de suportar se acaso viesse a sair do euro ou a ser colocado num limbo monetário secundário.
Assumida assim esta opção integradora, as alternativas não são muitas. Assim, e para pôr as coisas muito claras, parece óbvio que Portugal terá que se conformar com a aceitação do conjunto de medidas de natureza económico-financeira que venham a ser definidas para a governabilidade da zona euro.
Mas não há uma única forma para o país se situar nesse debate. Portugal não tem, necessariamente, de interiorizar uma política seguidista de subserviência aos modelos que lhe sejam propostos. O grande mito incutido nos últimos anos foi o de que a situação devedora do país lhe limitava, quase em absoluto, a margem de manobra negocial externa. Não contestando que essa margem se estreitou, é tarefa de qualquer governo competente conseguir relevar, à escala da interlocução externa, os efeitos nefastos, no plano sócio-económico e político, do modelo de ajustamento que é favorecido pelos seus credores, sublinhando com firmeza as consequências concretas das medidas adotadas sobre o equilíbrio do seu tecido interno – que está longe de ser irrelevante para a Europa. Para isso, sem ficar preso a modelos ideológicos ou a “fezadas” doutrinárias de gabinete, compete a quem dirige o país o dever de gizar políticas de alianças que apontem para toda a inflexão que for possível conseguir, com vista a alterar as políticas de rigor em curso.
Para tal, Portugal tem de abandonar, muito rapidamente, o discurso de culpabilização em que se deixou enredar, do qual decorre a aceitação automática de um conjunto constrangente de medidas que já se provou que asfixiam o futuro do país, da sua economia, a legitimidade das suas instituições e, mais do que tudo, induzem um ambiente de desânimo e descrença sobre o qual não é possível reconstruir qualquer projeto nacional consensualizado.
No plano europeu e mundial, todos os compromissos estão sujeitos, em permanência, à aferição diacrónica das medidas com os termos de referência que estiveram na base do seu desenho original. Tudo se negoceia e renegoceia a todo o tempo, em especial se for patente, como é evidentemente o caso, que muitas das condicionantes que se impõem ao devedor relevam de fatores que este não pode controlar. Só o saldo final desse debate, que é técnico mas essencialmente é político, e no qual o bom senso e a ética cívica recomendam que nos coloquemos do lado que acarrete menos efeitos gravosos para o Portugal dos nossos dias, é que corresponde àquilo que nos devemos disponibilizar para aceitar.  
A vida europeia de qualquer país não se esgota, contudo, nestas dimensões económico-financeiras, embora, nos dias que correm, elas sobredeterminem como nunca o nosso quotidiano. Outras áreas existem em que o empenhamento de Portugal no projeto europeu pode e deve continuar a expressar-se com a possível visibilidade. No passado, o voluntarismo colocou-nos em todas as formas de integração diferenciada. No futuro, a simples determinação política pode revelar-se insuficiente para sustentar essa constante postura centrípeta. De toda a forma, a experiência demonstrou claramente que foi graças a um subliminar compromisso político, de natureza transversal no espetro partidário relevante, que se foi gerando a filosofia integradora que marcou a nossa atitude como país, desde a adesão às instituições europeias. Esse compromisso, para não dizer consenso, permitiu construir uma postura pró-ativa em todas as áreas de intervenção europeia, que contrasta, de forma chocante, com a atual posição reativa e tímida, que projeta uma imagem de resignada impotência e de dependência fatalista.  

* Texto publicado na revista "XXI - Ter Opinião", 2014