31 de dezembro de 2005

Saudades de Kofi Annan

Dos tempos em que a trabalhei em instituições multilaterais retirei duas lições fundamentais.

A primeira foi a de que as pessoas que as titulam têm um peso muito importante na definição do perfil comportamental dessas mesmas instituições e, em casos muito particulares, podem converter-se mesmo num factor de mudança da sua cultura funcional. A lição mais evidente veio da União Europeia, onde uma personalidade como Jacques Delors provou ser possível, numa conjuntura histórica específica, converter-se num factor de uma dinâmica que mudou o rumo da Europa. Não é por acaso que os Estados membros escolheram, depois dele, os sucessores que a União teve.

A segunda lição, prende-se com com esta última constatação, isto é, com o facto da evolução das estruturas multilaterais depender, na maioria das vezes, da afirmação de orientações que conseguirem prevalecer no seu seio. Essa linha pode corresponder à prevalência de uma conjugação de vontades, traduzida num condomínio intergovernamental (como sucede com a UE de hoje) ou à preeminência desproporcionada de uma única potência, a que a conjuntura deu oportunidade de se tornar hegemónica no seu seio ou, não o conseguindo, a tornar inoperante esse mesmo mecanismo multilateral (como é o caso da ONU).

Vem isto a propósito da sucessão de titulares a que hoje assistimos na ONU.

O processo de descredibilização pelo qual a ONU passou nos últimos anos não foi inocente. E uma pessoa como Kofi Annan entendeu-o bem, sabendo embora que tinha meios limitados para o evitar e, em especial, que a eficácia mínima da sua acção estaria condenada se e quando passasse determinadas “red lines”. Annan foi tão longe quanto lhe seria humanamente exigível na salvaguarda da autonomia da organização, ciente de que não poderia contar nunca com uma coligação virtuosa e coerente de vontades, capaz de assegurar uma força alternativa às pressões insuportáveis que se exerciam sobre a ONU.

Sou testemunha, antes e depois do 11 de Setembro, do seu desesperado esforço no sentido de procurar garantir uma centralidade operativa à organização, no seu insubstituível papel de garante da regulação da sociedade internacional, em especial resistindo aos “powers that be” que a procuravam instrumentalizar. E, lamento constatá-lo, fui igualmente observador desiludido do modo como nunca pôde contar com uma unidade europeia para o apoiar. Julgo que só a História lhe fará a necessária justiça – e um país como Portugal não deixará de lhe prestar justo tributo, que o seu papel na questão de Timor Leste amplamente justifica.

1 de novembro de 2005

Portugal e a política externa brasileira


       A ideia central deste exercício é identificar alguns parâmetros característicos da actual política externa brasileira e procurar cruzá-los com as linhas centrais mais relevantes da afirmação de Portugal no quadro externo. A partir daí, tentar-se-á constatar apenas o que for óbvio: as coincidências, as eventuais dissonâncias ou os diferentes sublinhados.
       A observação da política externa brasileira, ao longo dos tempos, é um exercício fascinante, para o qual podemos contar hoje com uma óptima historiografia e uma análise teórica interna de grande valia. Servida por uma excelente escola de diplomacia, mundialmente reconhecida, a política externa brasileira configura um dos mais bem sucedidos modelos ditos “do Sul”. E os últimos anos mais não têm feito do que confirmar que estamos perante um modelo coerente e dinâmico.
       Embora seja sempre difícil, e mesmo caricatural, tentar tipificar um quadro de opções externas de um país, julgo poder dizer que o Brasil assenta hoje a sua afirmação internacional em alguns postulados-base. Vou tentar identificá-los:
     
       - a necessidade do reforço do tecido político-económico regional em que o Brasil está inserido, com vista a favorecer o desenvolvimento económico-social e a criação de condições para um futuro de paz e estabilidade de todos os Estados da região, bem como a servir de instrumento eficaz de interlocução a um nível mais global;
       - a preeminência do sistema multilateral, como instrumento regulador da sociedade internacional, ao qual, na sua perspectiva, importará introduzir mudanças que, simultaneamente, reforcem as suas democraticidade, representatividade, legitimidade e credibilidade;
       - uma política alargada de criação de acordos e entendimentos estratégicos globais “a Sul”, como forma de gerar uma dinâmica multipolar na ordem mundial e abrir espaço para novos e criativos modelos de articulação entre países emergentes e em desenvolvimento, com impactos na respectiva relevância à escala global;
       - a afirmação de uma nova liderança na gestão do posicionamento dos países em desenvolvimento na ordem económica internacional, em especial no quadro da Organização Mundial de Comércio (OMC) e nas negociações comerciais entre espaços de integração regional;
       - a titularização de uma agenda própria “do Sul” na ordem internacional, nomeadamente através da promoção de políticas multilaterais de combate à fome, à pobreza e à exclusão social, de mecanismos de protecção do desenvolvimento sustentável, bem como a transformação das instituições financeiras internacionais à luz de uma nova filosofia no apoio aos processos de desenvolvimento.

       Embora estes cinco tirets estejam longe de esgotar a ambiciosa e criativa agenda internacional do Brasil, eles representam, na minha perspectiva, os eixos que importa considerar para o modelo de abordagem a que me propus.
      Vou tentar analisar, perante cada um deles, o modo como Portugal se situa.
   
América do Sul versus América Latina

       Quanto ao primeiro ponto – reforço do sistema político-económico regional –, começaria por notar que foi sempre com grande entusiasmo que Portugal acompanhou a formação do Mercosul, a densificação do seu tecido de políticas e o seu carácter embrionário como elemento de integração regional. Desde o primeiro momento, o nosso país reconheceu as virtualidades deste projecto para o desenvolvimento económico-social dos países envolvidos, e dos que poderia vir a abranger no futuro, tanto mais que ele significava a vitória de uma ordem de valores de liberdade, democracia e justiça social que eram comuns ao próprio projecto europeu em que nos inserimos.
       Portugal tem notado que os projectos que envolvam a América do Sul têm representado, para o Brasil, uma prioridade nos modelos de entendimento que procura promover no âmbito do continente americano. Percebemos a racionalidade geopolítica desta opção, tanto mais que se torna evidente que há lógicas de vizinhança próxima que facilitam a identificação de interesses comuns, seja na coordenação estratégica em matérias de natureza política mais global, seja na abordagem de temas transnacionais com uma dimensão regional específica, como é o caso do ambiente, do combate ao narcotráfico e à criminalidade que lhe está associada.
       De facto, ao procurar reforçar a América do Sul com uma crescente identidade própria, de que o projecto da Comunidade Sul-Americana das Nações (agora chamada Unasul) é uma interessante evolução em termos de modelo de cooperação política à escala regional, o Brasil está a contribuir, de forma decisiva, para se afirmar, como grande país democrático que é, como uma potência de influência, susceptível de ser um eixo de articulação da sua vizinhança próxima. Isso permitirá favorecer a capacidade de prevenção de conflitos intra-regionais e contribuir também para a criação de plataformas colectivas de promoção de diálogo que facilitem a regularização de eventuais tensões internas nos Estados vizinhos.
       Neste quadro, e não sendo um país da região, compreender-se-á que Portugal não possa ser indiferente, por razões que são óbvias, à evolução das tensões políticas na Venezuela. Foi, aliás, o próprio Presidente Lula que revelou ter estimulado o nosso país a manter-se empenhado neste importante dossiê, onde se jogam interesses vários e, em especial, equilíbrios geopolíticos que excedem a sua dimensão nacional.
        Para Portugal, a criação de uma massa crítica própria que permita auxiliar à resolução dos conflitos regionais, bem como à promoção de soluções constitucionais para redução da conflitualidade dentro de alguns dos Estados, constitui sempre um interessante objectivo. Tem sido essa, aliás, a linha que defendemos para outros quadrantes geográficos.
       Todos temos de ter a consciência que outras alternativas a este modelo poderão vir a passar pela presença condicionante ou constrangente de poderes exógenos à sub-região, normalmente aproveitando a fragilidade ou a complacência de alguns parceiros, com consequências históricas que configurariam muito mais do que um simples recuo temporário.
       Mas também percebemos que a vocação regional do Brasil se não esgota a sul do continente, porque, como diz Marco Aurélio Garcia, “a ênfase sul-americana da política externa brasileira não significa abandonar uma perspectiva latino-americana e caribenha”. É o que fica evidente, por exemplo, no caso da liderança brasileira das forças multinacionais no Haiti e na sua política, muito específica, face a Cuba.
       No primeiro caso, a presença brasileira no Haiti configura uma tendência de responsabilização regional que, como antes referi, vai no sentido do que Portugal preconiza como desejável em matéria de operações de paz. 
       No segundo caso, o nosso país revê-se na leitura europeia que pugna pela necessidade do regime cubano dar concretos sinais de abertura em termos de respeito pelos Direitos Humanos e pelos princípios democráticos. Como o Brasil, discordamos da tentativa de aplicação extra-territorial de normas legais impostas num quadro nacional específico e entendemos, contra a opinião de outros, que as portas do diálogo político não se podem fechar nunca. Sem querer ir muito mais longe neste tema, diria que o Brasil tem, apesar de tudo, uma leitura mais flexível do que a União Europeia quanto à condicionalidade política que deverá ser apresentada a Cuba, no quadro da sua desejável inserção na comunidade internacional. Mas o Brasil partilha o essencial das nossas preocupações.   

A aposta multilateral

       Passaria ao segundo ponto, para sublinhar que, no tocante à preeminência do sistema multilateral, tem sido patente que há uma coincidência muito grande de pontos de vista entre Brasília e Lisboa.
       Portugal é um activo defensor do multilateralismo como instrumento privilegiado de regulação da ordem internacional e, tal como o Brasil, favorece uma reforma do sistema das Nações Unidas, nomeadamente o alargamento do Conselho de Segurança onde – como sempre dissemos – o Brasil deve ter direito a um lugar permanente, pela relevância do seu papel como actor regional, com expressão à escala global. Cabe lembrar, neste contexto, que o Brasil não tem armas nucleares nem conflitos externos pendentes, possui uma economia cada vez mais expressiva e uma forte e respeitada tradição diplomática. Tudo isto o qualifica para tal papel.
       Talvez não tenhamos, rigorosamente, a mesma leitura sobre as virtualidades e exequibilidade da transformação da Assembleia Geral numa espécie de contra-poder ao Conselho de Segurança, com vista a “assumir as suas responsabilidades na administração da paz e da segurança internacionais”, como foi proposto pelo Presidente Lula, mas somos muito favoráveis a um reforço deste órgão no quadro da divisão onusina de poderes.
       Encaramos também, com muita simpatia, a perspectiva brasileira de conferir uma utilidade mais efectiva ao Conselho Económico e Social (ECOSOC), que deve encontrar o seu ponto de articulação com o Conselho de Segurança, na prevenção dos conflitos e nos processos de reconstrução pós-conflito.
       Como o Brasil, Portugal coloca o seu pleno empenho na generalização da cobertura do Tribunal Penal Internacional e do Acordo de Quioto, bem como no completar do quadro normativo de combate ao terrorismo de natureza internacional. Neste particular, Portugal, tal como o Brasil, salienta a necessidade de serem tidas em atenção as raízes sociais, económicas e políticas do terrorismo, nomeadamente as de natureza regional, e defende que o seu combate deve sempre fazer-se no escrupuloso respeito pelos Direitos Humanos.
       Aqui chegados, convirá relevar que Portugal assume hoje, no seu desenho de evolução desejável da ordem multilateral, uma diplomacia de matriz marcadamente ética, como um dos factores identitários fundamentais da sua política externa. Assim, e na perspectiva portuguesa, os limites à não-ingerência deixam de ser válidos quando estiverem em causa valores maiores de natureza humanitária, da defesa da ordem democrática, do Estado de Direito e da protecção dos cidadãos e dos seus direitos fundamentais, nomeadamente o exercício pleno das liberdades políticas e de expressão. Uma análise comparada com a perspectiva brasileira quanto a esta temática específica está, contudo, por fazer.

As novas alianças

       Uma terceira ordem de prioridades do Brasil liga-se à sua recente vocação para o estabelecimento de acordos estratégicos com outros Estados do “Sul”.
       Nos últimos anos, e no prolongamento de uma política de diálogo que, desde há muito, soube construir e prolongar com outros actores internacionais, o Brasil revelou um interessante dinamismo que o conduziu a entendimentos de natureza bilateral ou plurinacional, de grande alcance potencial. O objectivo concreto é, nas palavras utilizadas pelo Presidente Lula no seu discurso de posse, “estimular os incipientes elementos de multi-polaridade da vida internacional contemporânea”.
       Algumas críticas surgiram no mercado dos comentadores face a esta opção brasileira por dar ênfase à sua relação com os países em desenvolvimento. Ora a verdade é que nada indica que esta opção tenha sido feita em aberto detrimento de outras dimensões externas. O que aconteceu é que esse movimento foi simultâneo com a ocorrência de alguns bloqueamentos na relação no Brasil com o “Norte”, de que são exemplo as dificuldades técnicas em torno da negociação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), os problemas negociais no estabelecimento do acordo Mercosul-União Europeia e os atrasos ocorridos no debate do dossiê agrícola no quadro da OMC, no âmbito do ciclo de Doha.
       Mas voltemos às escolhas externas de novos parceiros feitas pelo Brasil.  Destacaria cinco iniciativas nesse contexto.
    A primeira diz respeito à China. Com ousadia, o Brasil estabeleceu laços de natureza económica muito concretos com Pequim, concedendo à economia chinesa o seu reconhecimento como economia de mercado. Esta aposta está, a meu ver, ainda numa fase de teste, porquanto o modelo em vigor – exportação de matérias-primas do Brasil para a China e importação brasileira de produtos chineses manufacturados – não cessa de suscitar algumas reticências nos sectores industriais brasileiros concorrentes da produção chinesa, um pouco aturdidos com a invasão de muitas mercadorias baixo custo.
       No plano estratégico, porém, esta opção do Brasil só pode merecer encómios. Quaisquer que sejam os fantasmas de alguns, a realidade é que a China passa por um processo de transformação interna cuja evolução positiva só pode fazer-se se associada à sua progressiva consagração internacional como economia de mercado. A União Europeia, e com ela Portugal, assume esta opção como decisiva, a prazo, para o equilíbrio global, pelo que esta linha de orientação brasileira é vista por nós com grande simpatia.
       Ainda no campo estritamente bilateral, o Brasil encetou também uma aproximação à Rússia, havendo hoje perspectivas de um relacionamento comercial cada vez mais intenso. Também esta aproximação vai na linha que, no seio da União Europeia, temos preconizado, no sentido de garantir à Rússia um quadro crescente de articulação externa, por forma a fazer frutificar a sua economia e a reforçar a sua abertura, garantindo, por essa via, a solidificação da sua estabilidade, a qual, naturalmente, não é indiferente a uma União Europeia alargada até às suas fronteiras.
       Numa lógica “Sul-Sul”, que associa os equilíbrios geopolíticos com os interesses económicos, o Brasil tem ainda feito esforços de coordenação com a Índia e com a África do Sul, com a criação do IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), numa articulação que combina as legítimas ambições desses três Estados em verem assegurados lugares permanentes no Conselho de Segurança na ONU e, ao mesmo tempo, conjuga alguns interesses comuns no âmbito do comércio internacional.
       Nomeadamente em relação ao primeiro daqueles propósitos, Portugal tem, como já referi, grande simpatia pelas ambições do Brasil e da Índia e reconhece a importância da África estar representada futuramente, em permanência, no Conselho de Segurança da ONU, sendo Pretória um candidato perfeitamente qualificado para tal.
       Finalmente, é muito interessante a iniciativa, sob a liderança do Brasil, da promoção de uma reunião em Brasília entre os países árabes e os países da América do Sul. Este encontro consagra uma ofensiva diplomática de grande alcance levada a cabo pelo Brasil, nos últimos anos, junto dos Estados árabes, no sentido de tentar reforçar os laços económicos e promover um diálogo político mais substantivo entre os dois mundos. Os sinais deste exercício são positivos, embora naturalmente sempre tributários das agendas retóricas que as questões do Próximo e Médio Oriente determinam. O facto de haver terceiros países que não esconderam a sua incomodidade com o exercício acaba por ser, a meu ver, a prova provada da sua real importância. Dito isto, é óbvio que se trata de uma iniciativa muito interessante, que um país como Portugal não pode deixar de saudar e estimular, atentas as suas excelentes e crescentes relações com o mundo árabe.
       Ainda a África. Não tendo a intenção de abordar aqui a questão específica da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), diria que o Brasil regressou, mais recentemente, a um renovado interesse por África, com que só podemos congratular-nos. O Presidente Lula e o chanceler Celso Amorim têm desenvolvido uma ampla agenda de contactos com países africanos, com os quais mantêm constante diálogo político e estabelecem amplas redes de cooperação bilateral. O prestígio do Brasil em África é muito grande e só tem condições para crescer.
       Na perspectiva de Portugal, que tem procurado, no âmbito bilateral, manter uma grande atenção às dificuldades de desenvolvimento e de estabilização política em África, bem como pugnado, no quadro multilateral, por políticas realistas de ajuda aos países em desenvolvimento, esta relação “Sul-Sul”, que o Brasil tem titulado, é da maior importância e alcance.

A liderança regional

       E passaria ao quarto ponto daquilo que defini como a agenda externa brasileira: a liderança regional nos processos negociais económicos internacionais, nos quadros da OMC e das relações com os EUA na ALCA e com a União Europeia no Mercosul.
       O presidente Lula costuma falar de uma “nova geografia económica e comercial” e, na realidade, o Brasil mostra-se muito empenhado em redesenhar esse novo mapa. Bem apoiado por um aparelho diplomático de primeira qualidade, que se treinou durante anos numa diplomacia comercial muito eficaz, o Brasil foi o grande promotor e líder do G-20, que tem tomado a dianteira nas negociações económicas multilaterais, de Cancún a Genebra. Embora tivesse de desistir da candidatura do embaixador Seixas Corrêa a director-geral da OMC – um nome que Portugal teria apoiado se o candidato da União Europeia não viesse a ser seleccionado –, o Brasil continua a ter um papel central nestes novos tempos da negociação.
       Menos produtivas têm sido as negociações relativas à ALCA e entre o Mercosul e a União Europeia.
       No primeiro caso, os sinais de evolução são ténues e, por vezes, algo contraditórios, talvez porque não esteja adquirida por todas as partes a bondade do saldo possível deste exercício. Menos que uma questão política, com contornos ideológicos, como alguns pretendem sublinhar, o processo ALCA é tributário de lógicas de interesses muito concretos, que são a linha da frente dos obstáculos com que se defronta.
       Quanto ao Mercosul, uma negociação que directamente nos afecta, gostava de deixar duas notas, não harmónicas entre si.
       A primeira para registar que, no quadro da negociação agrícola do Mercosul com a União Europeia, Portugal pode hoje considerar-se apenas um espectador atento. Com efeito, as grandes reivindicações agrícolas europeias dizem-nos muito pouco, isto é, apenas nos cumpre respeitar a nossa solidariedade formal com os parceiros da União Europeia. Como “contribuintes líquidos” da Política Agrícola Comum da União Europeia (isto é, de uma política para a qual pagamos mais do que recebemos), não temos interesses nacionais importantes a defender neste dossiê e, porventura, numa lógica de egoísmo nacional, que naturalmente não assumimos, teríamos mais vantagens, como importadores e consumidores de produtos agrícolas, se algumas das reivindicações do Mercosul acabassem por ser aceites sem dificuldade. É com este “entusiasmado” estado de alma que estamos a acompanhar o dossiê... Nem mais, nem menos.
       A segunda nota é de sentido bem contrário. Portugal é um país que, tal como outros parceiros da União Europeia, tem vindo a defrontar-se com sérias dificuldades, no domínio pautal, mas também ao nível dos obstáculos não pautais, no acesso do escasso leque se produtos que procura colocar no mercado brasileiro. Temos, assim, uma divergência com o Brasil no capítulo do acesso aos mercados e não vale a pena chamar à colação a retórica da excelência das relações bilaterais para tentar iludir uma realidade que é do pleno conhecimento de todos. Só podemos esperar do Brasil, no âmbito da sua negociação com a União Europeia, uma especial atenção a estes nossos problemas[1].
       E chegámos ao quinto e último vector das prioridades brasileiras – a promoção de uma agenda política “do Sul”.
       É neste terreno que o prestígio do Presidente Lula tem feito a diferença no cenário internacional. Com uma credibilidade que lhe advém do seu sucesso interno em matéria de políticas sociais, o Presidente brasileiro tem desenvolvido interessantes iniciativas tendentes a promover a tomada de consciência internacional quanto à necessidade de uma estratégia concertada na luta contra a fome, a pobreza e a exclusão social, tendo lançado a proposta da criação de um Fundo Mundial de Combate à Fome. Portugal apoia em pleno estes objectivos.
       Numa dimensão paralela, o Brasil tem advogado a necessidade da assunção de uma diferente filosofia nas práticas das instituições de Bretton Woods. Em particular no que toca ao Fundo Monetário Internacional (FMI), com a autoridade que lhe advém do facto de ter já dispensado o acordo de assistência daquela organização, o Brasil tem pugnado por uma alteração dos respectivos critérios contabilísticos, nomeadamente com vista a isentar os gastos em infra-estruturas nas despesas geradoras de défice, bem como a possibilidade de protecção rápida das economias de países em desenvolvimento que venham a ser objecto de ataques especulativos.
       Gostava de deixar claro que, em todas estas iniciativas, o Brasil pode contar com uma atitude favorável por parte de Portugal, cujo empenhamento activo em temas que envolvam apoio a países em desenvolvimento é conhecido.
       Abordámos cinco temáticas-chave no relacionamento externo do Brasil e procurámos, sobre cada uma delas, projectar o que poderia ser uma perspectiva portuguesa.

O grande vizinho do Norte

       Mas nenhuma análise da política externa brasileira ficaria completa de não abordássemos explicitamente a sua relação com os Estados Unidos da América.
       Qualquer leitura impressionista da opinião pública latino-americana registará, seguramente, a relação simultânea de atracção e de hostilidade face à potência hegemónica do continente. O Brasil não escapa a esta realidade e não é possível desenhar a sua história sem fazer esse contraponto constante. Os Estados Unidos tanto são vistos como o eldorado que marca os sonhos, como prefiguram a ameaça, a pressão ilegítima, um ambiente de desconfiança.
        A nosso ver, a actual política externa brasileira assume uma relação de grande maturidade na definição da sua relação com os Estados Unidos. Outra coisa não seria de esperar de um país que, sendo uma prestigiada potência regional, tem óbvias ambições como global player, denotando interesses que, medida a respectiva escala, hoje se intercruzam com os de Washington – de que são prova evidente, por exemplo, as iniciativas face ao mundo árabe, bem como a sua política para a China, a Índia ou mesmo no âmbito africano.
        Washington olha hoje para Brasília como um incontornável parceiro numa América do Sul onde já entendeu não terem desaparecido os germes da instabilidade. É óbvio que aos EUA não agradam as reticências brasileiras à ALCA, como não agradaram as fortes críticas feitas à sua política para o Iraque ou a agressividade das posições brasileiras nas guerras do comércio internacional. Além disso, uma certa “compreensão” com a situação cubana ou uma proximidade tida por exagerada como regime venezuelano também podem não cair bem em Washington. Mas, à la limite, Washington também percebe que lhe é muito útil manter uma relação privilegiada com uma grande força democrática do sul do continente, que tem contactos e acessos que a tradicional desconfiança face a uma grande potência não deixa nunca criar.
       Para o Brasil, esta special relationship crítica revela-se como altamente vantajosa: confere-lhe o estatuto de parceiro privilegiado de diálogo, de interlocutor perante situações de crise regionais e, ao mesmo tempo, dá-lhe a possibilidade de manter os EUA à distância física, evitando as tentações endémicas do eterno vírus da “doutrina Monroe”, que marca o código genético americano. É caso para perguntar se os vizinhos do Brasil já se aperceberam verdadeiramente das virtualidades desta realidade face à sua própria autonomia decisória.
       Pela nossa parte, pela parte de Portugal, é evidente que consideramos importante a constatação desta estabilidade de relações entre o Brasil e os EUA. Ela enquadra-se perfeitamente no nosso próprio quadro de entendimento com os EUA, que é um elemento estruturante do nosso espectro de relacionamento bilateral, que não pode nunca ser dissociado da nossa própria agenda de inserção multilateral, em termos de segurança e defesa.
       Vale a pena lembrar que, no nosso país, a estabilidade das relações com os EUA, que reputamos de essencial no nosso quadro externo, esteve sempre ameaçada por dois desvios de sentido contrário, ambos promotores de riscos graves de ruptura no consenso interno: a doença infantil do anti-americanismo e zelo patético dos hiper-seguidistas.
       Curiosamente, na história da política externa brasileira, encontramos também estas duas síndromas a marcar tempos da relação com Washington. Porém, como antes referi, a actual política externa brasileira teve sabedoria para ultrapassar essa polarização e tem hoje um quadro estável de diálogo com os EUA, que não exclui a saudável afirmação de divergências. Também aqui nos encontramos.

Portugal e Brasil

       Mas, afinal, em que se distingue o olhar português sobre o Brasil do dos restantes parceiros europeus?
       A Europa parece olhar para o Brasil como uma potência emergente dotada de um enorme capacidade para se poder consagrar como uma entidade promotora dos valores da democracia e da liberdade, com um salutar efeito contagioso na sua vizinhança. Vê igualmente o país como um mercado muito interessante, dotado de uma estrutura económica pujante, que dispõe já de alguns elementos de segurança macroeconómica que, em larga medida, parecem pô-lo a relativo cobro de desequilíbrios muito pronunciados, por efeito da flutuação da conjuntura política[2].
       Mas a generalidade da Europa vê igualmente o Brasil apenas como um poder sub-regional, pelo que parte dela tem leituras diferenciadas quanto à respectiva vocação enquanto um poder global. Isso tem consequências, por exemplo, no modo como os vários países europeus olham uma possível presença brasileira no Conselho de Segurança da ONU.
       Ora Portugal vê esta questão em moldes algo diferentes. A matriz de afirmação brasileira no quadro internacional configura um poder amigo e próximo, que se exprime em português e que tem os países que falam a mesma língua na sua proximidade política, com uma mútua interpenetração humana que marca o quotidiano das nossas relações, que cria um espaço de automática familiaridade com permanentes consequências no desenvolvimento das mesmas.
       Temos valores de afirmação externa comuns, temos interesses coincidentes em muitos domínios e, o que é mais importante, nenhuma das dinâmicas de afirmação externa do Brasil no mundo é minimamente conflitual com qualquer vector estratégico em que assentamos a nossa política externa. Este quadro favorável é, além do mais, potenciado por uma relação de intimidade que é única e atípica.
       Alguns dirão que não se deve assentar uma dimensão de política externa apenas na afectividade. E têm razão: é por isso que, desde 1998, temos vindo a dar substância e suporte políticos ao movimento de capitais que se associou à recuperação da economia brasileira; e, por essa mesma razão, há hoje um acordo – que é único no nosso quadro de relações externas, mesmo com países de língua portuguesa, vale a pena lembrar – para a regularização de todos os brasileiros que chegaram a Portugal até 2003.
       É porque a relação entre nós tem um carácter diferente que as coisas se passam de maneira diferente do que sucede com outros países, mesmo com aqueles com os quais temos entendimentos formalmente privilegiados. Alguns não percebem isto e nós, Portugal e Brasil, percebemos que eles não percebam.




[1] A esmagadora maioria das questões de contencioso económico sectorial entre Portugal e o Brasil puderam entretanto encontrar uma resolução satisfatória. A entrada em vigor de um acordo entre a União Europeia e o Mercosul iria permitir, contudo, uma maior segurança jurídica futura para os operadores e facilitaria a rápida discussão técnica de eventuais novos casos, cuja remissão para um diálogo político bilateral se torna sempre inconveniente.
[2] Por iniciativa portuguesa, e durante a sua presidência da União Europeia, em 2007, o Brasil passou a beneficiar do estatuto de “parceiro estratégico” da União. Sobre este assunto, ver Francisco Seixas da Costa, “Tanto Mar? – Portugal, o Brasil e a Europa”, Brasília, 2008.


(Texto baseado no artigo homónimo publicado na revista “Política Internacional”, Lisboa, nº 29, Novembro de 2005)









30 de setembro de 2005

As novas ameaças à segurança

Os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 e o conjunto das suas decorrências, que são hoje objecto de grande exposição mediática diária, deram origem à criação de um sentimento generalizado de insegurança à escala mundial. Com variações de continente para continente, e de país para país, todos temos hoje a sensação de que estamos potencialmente mais expostos a ameaças imprevisíveis, de uma natureza difusa. Este sentimento é ainda mais vivo porque está também criada a ideia de que não dispomos de um antídoto ou de uma defesa minimamente eficaz para contrariar tais riscos.

Os Estados, tradicionais protectores da segurança dos cidadãos, confessam-se incapazes, por si só, de darem resposta efectiva às ameaças que impendem sobre quantos deles dependem. Estas ameaças aparecem hoje como de natureza global e transnacional, mas as opiniões públicas dos diversos países mantêm uma evidente desconfiança quanto à capacidade das estruturas internacionais existentes em garantir a sua adequada defesa.

A segurança converteu-se, assim, numa obsessão à escala internacional e, como seria de esperar, arrastou consigo outras consequências de natureza política, até na vida interna de vários Estados. O resultado das últimas eleições legislativas em Espanha ou o ambiente em que decorreu a campanha eleitoral americana são a prova evidente dessa realidade.

O impacto deste conjunto de problemas foi de tal ordem que, pela primeira vez desde há mais de meio século, foram criadas sombras muito sérias sobre a estabilidade do relacionamento transatlântico, em moldes que afectaram mesmo a integridade dos automatismos de resposta da NATO. Por essa via, suscitaram-se dificuldades no seio da própria União Europeia, precisamente no momento em que se pretendia assegurar o reforço da sua dimensão de segurança colectiva, com a inclusão de 10 novos países que cobrem um cenário estratégico da maior importância.

Estamos, portanto, numa crise de segurança de elevadas proporções, embora nem todos tenhamos necessariamente a mesma percepção do conjunto das ameaças e dos riscos. Se essa percepção varia de país para país, há, contudo, uma constatação a que todos temos a obrigação de chegar: é que o mundo pós-Guerra Fria é muito menos previsível e controlável do que à partida se supunha e, principalmente, que esta é uma realidade que veio para ficar.

O fim ou a atenuação das fronteiras, a globalização da economia e dos circuitos de informação, trouxe algumas dimensões novas a riscos que já eram conhecidos, trouxe mais prosperidade e democracia a alguns, mas trouxe também maior insegurança a outros. E trouxe – e esta é talvez a novidade mais marcante – um papel novo, à escala internacional, para os “actores não-estatais”, os grupos mais ou menos organizados da sociedade civil que escapam ao controlo directo dos Estados e que começam a revelar-se cada vez mais relevantes na esfera internacional. Tais grupos tanto podem fazer-se notar pelo carácter positivo da suas intervenções transnacionais como pela natureza altamente perversa dos seus objectivos.

Voltando ao tempo que decorreu desde o termo da Guerra Fria, vale a pena constatar que, desde então, o mundo revela sinais muito preocupantes. Por exemplo, estatísticas da União Europeia indicam que, nos últimos 15 anos, morreram já cerca de 4 milhões de pessoas em guerras, 90% das quais cidadãos civis. Em todo o mundo, estima-se que cerca de 18 milhões de pessoas foram obrigadas, no mesmo período, a abandonar as suas casas por motivo de conflitos armados.

No plano económico, quase 3 biliões de pessoas, o que representa quase metade da população mundial, vivem com menos de 2 euros por dia. A África ao Sul do Saara está mais pobre agora do que estava há dez anos, fruto conjugado de estratégias erradas de desenvolvimento, de problemas políticos e de conflitos violentos. 45 milhões de pessoas (4 vezes e meia a população de Portugal), morrem todos os anos de fome ou de má nutrição.

O SIDA[1] converteu-se numa das mais devastadoras pandemias de todos os tempos, ameaçando países de extinção e a facilidade de circulação das pessoas revela-se hoje um factor potenciador de novas doenças, como se é o caso do SARS[2] e suas derivantes.

Estes elementos estatísticos têm como objectivo sublinhar que existe uma ligação íntima entre segurança e desenvolvimento. Os conflitos político-militares não destroem apenas as infraestruturas materiais (campos, fábricas, circuitos de comercialização, estruturas de transportes, etc.) ou as infraestruturas sociais e humanas. Eles encorajam a criminalidade, travam o investimento e obrigam os países a cair no ciclo infernal conflito - insegurança - pobreza. 


As dimensões da segurança

As ameaças que hoje afectam a nossa segurança colectiva não são novas. Mas há hoje um conjunto de circunstâncias que faz com que algumas delas tenham emergido de forma muito mais intensa nos últimos anos, aparecendo englobadas num novo pacote potenciado de riscos.

Nesta lógica, há que ter a frieza para reconhecer que o 11 de Setembro foi apenas uma manifestação, embora muito dolorosa, de uma realidade que preexistia. Todas as tensões que deram origem ao 11 de Setembro estavam já connosco.

O mundo, provavelmente, é que necessitou daquele choque para poder reflectir na resposta a dar à manifestação dessas tensões. Resta, contudo, saber se o está a fazer com a necessária profundidade.

Para se perceber melhor o que está em causa, tentar-se-á inventariar as várias dimensões em que é possível dividir a segurança internacional e as ameaças que sobre ela impendem, embora sem uma qualquer preocupação de hirarquização ou prioridade temática.


Segurança democrática

Um primeiro grande grupo de ameaças situa-se naquilo que poderíamos designar como os atentados à segurança democrática dos Estados.

A democracia, no estado puro, é uma realidade que abrange apenas uma minoria de países do mundo, muito embora tenha vindo a ganhar terreno nas últimas décadas – e este é um dado positivo que deve reforçar o nosso optimismo. A experiência prova que a existência de países com instituições democráticas sólidas é um factor indutor de estabilidade interna e contribui fortemente para limitar as tentações de provocação de tensões no âmbito regional ou internacional.

Quer isto dizer que duas democracias ou países com sólidas economias de mercado, embora não sendo sinónimos, não podem entrar em conflito uma com a outra? Não, mas é hoje evidente que a existência de regimes democráticos, respeitadores dos princípios da ordem internacional, constitui um elemento de dissuasão muito importante para a promoção e propagação de conflitos. O que não significa que não haja regimes que praticam a democracia para si próprios e que acabam por ter um comportamento na ordem externa frequentemente muito condenável.

No plano interno dos Estados, é importante notar que todos os factores que afectem os Direitos Humanos e as liberdades fundamentais, os valores da Democracia ou os princípios do Estado de direito, são sempre elementos que afectam a segurança dos cidadãos e podem contribuir para a disrupção da estabilidade política e social.

A questão do respeito pelo Direitos Humanos é hoje central na avaliação dos Estados. Com efeito, é a violência do próprio Estado que, em muitos países, provoca tensões e afecta a segurança dos cidadãos. A violência policial, as torturas, as deficientes condições prisionais, os atentados à liberdade de informação, as irregularidades nos processos eleitorais, a não isenção dos tribunais - tudo isto são factores que afectam a legitimidade da autoridade do Estado.

A experiência prova que os sistemas políticos que não são capazes de dar voz a todas as expressões da sociedade civil criam as condições naturais para a emergência de forças que se situam no exterior desses sistemas. Assim se abrem frequentemente caminhos para a afirmação de formas violentas de expressão política e social, como as acções de guerrilha, os golpes de Estado ou as acções de natureza revolucionária.

Mas a História prova que temos também o inverso: Estados onde existem instrumentos de expressão democrática ao dispor dos cidadãos e grupos que recorrem a meios violentos que não aceitam o sistema.

Noutros casos, como em alguns Estados de construção mais recentes - em África, em alguns países saídos da implosão da União Soviética, mas igualmente em certos Estados árabes -, verifica-se que as instituições criadas para o jogo político acabam por ser meramente formais. Essas estruturas parecem organizadas apenas para legitimar a preservação no poder das elites que a ele ascenderam e que tendem a evitar a regra da alternância política.

Vala e pena notar que, com escassas excepções, todos os Estados do mundo se dizem hoje democráticos e querem dar de si próprios, para consumo externo, a imagem de solidez do seu respeito pelos Direitos Humanos. Ora o que se verifica é que, em muitos desses Estados, o respeito pela minorias étnicas ou religiosas é ínfimo, a situação da mulher na sociedade é calamitosa, as estruturas parlamentares, a comunicação social e a liberdade de organização da sociedade civil são apenas um factor de promoção da sua imagem externa. Em muitos casos, estamos perante meras ditaduras ou regimes fortemente autoritários, mas sempre travestidos de contornos democráticos.

Perguntar-se-á por que razão a sociedade internacional não isola esses Estados e não cria condições de pressão para a sua mudança política. A resposta é relativamente fácil: porque muitos desses regimes “dão jeito” às ambições estratégicas de algumas potências, não apenas porque essas ditaduras ou regimes autoritários podem servir de tampão a situações tidas como relativamente mais graves, mas igualmente porque, muitas vezes, tais Estados são óptimos parceiros estratégicos ou económicos e, em outros casos, a estabilidade forçada desses regimes sustenta-os como fornecedores seguros de matérias primas, em especial o petróleo.

Mas convém dizer-se que os países ditos democráticos também não estão isentos de tensões potenciais em matéria de Direitos Humanos, que são ameaçadoras da sua estabilidade interna, por vezes com implicações externas. De facto, a intolerância e a discriminação, que começa a emergir em sólidas democracias ocidentais, constitui hoje um crescente factor de risco em sociedades tidas por mais estabilizadas. Queremos com isto referir-nos ao racismo (onde se incluem o anti-semitismo e a islamofobia), à xenofobia, o isolamento e a falta de respeito pelos direitos das minorias étnicas, religiosas ou de outras nacionalidades.

Este último aspecto é, por exemplo, cada vez mais relevante na sociedade europeia, onde hoje verificamos que a liberdade de circulação de pessoas deu uma maior dimensão à questão da integração das comunidades estrangeiras, à questão dos direitos dos trabalhadores migrantes, à problemática do direito de asilo.

Em alguns países – e bastará lembrar a França ou o Reino Unido -, começa a ser relevantíssimo o problema da acomodação de cidadãos com o mesmo estatuto nacional mas que reivindicam a afirmação dos direitos de preservação de culturas minoritárias, nomeadamente de raiz religiosa ou mesmo linguística. Os graves acontecimentos em França, no final de 2005, devem ser um alerta para todas as sociedades em que tipo similar de tensões subsiste.  

Ainda neste domínio, há problemas transnacionais muito difíceis para resolver, como seja o problema dos ciganos, que hoje se põe com grande acuidade em países do Centro e Leste europeus, mesmo no quadro da União Europeia.

E há hoje riscos muito claros, evidentes na promoção do chamado hate speech (discurso de ódio) através da Internet, onde hoje podemos encontrar sites racistas e xenófobos, apelando à violência e disseminando teorias de discriminação racial e étnica.

Valerá a pena sublinhar este tipo de questões, porque elas não estão, normalmente, muito presentes numa sociedade bastante homogénea como é a sociedade portuguesa, a qual, talvez por isso, não esteja suficientemente alerta para este tipo de preocupações. Mas os sinais de perigo, goste-se ou não, estão já aí.

A resposta a todas estas questões que se prendem com os Direitos Humanos só pode ser encontrada pela vigilância dos modelos democráticos, pela exploração das suas virtualidades e pela aberta denúncia dos casos negativos. E essa resposta passa, cada vez mais, por aquilo que em jargão internacional se chama a Educação em Direitos Humanos, que tem que começar nas escolas e nas novas gerações, e que hoje é tida como um factor essencial para o futuro da segurança internacional.

Nesta luta por sociedades mais tolerantes, em que cada caso é um caso, o papel da União Europeia é cada vez mais importante, por forçar a adopção de legislação e formas de comportamento transeuropeias, na adopção de uma espécie de ideologia anti-discriminatória.

Interessante é também o papel da chamada sociedade civil, nomeadamente através das Organizações Não-Governamentais e da mobilização da comunicação social, criando sistemas de “alerta precoce” que denunciem os casos de intolerância, que se mobilizem no apoio às vítimas dessa mesma intolerância.

Uma última nota para os efeitos perversos da deriva securitária e da criação de crescentes reflexos públicos contra a imigração na questão da aceitação dos refugiados. A cultura de aceitação dos refugiados, que durante muito tempo foi a pedra de toque das sociedades tolerantes, está a caminho de uma grave erosão e pode, se a consciência internacional se não mobilizar, vir a sofrer recuos.


Segurança económica, social e ambiental

Um segundo grupo de questões que afectam a segurança internacional prende-se com os factores económicos, sociais e ambientais. Os primeiros parecem óbvios, os segundos nem tanto.

Parece uma evidência que a falta de acesso aos bens essenciais de natureza económica, as situações de subdesenvolvimento, os estados extremos de pobreza e de exclusão social constituem um terreno fértil para a expressão de formas de violência e de criminalidade, como o caso francês demonstrou. Mas essas condições potenciam também outras variáveis – como sejam o extremismo religioso, as teorias nacionalistas ou de expressão étnica radical, que muitas vezes derivam no terrorismo. Assim, falar do factor económico como elemento de agravamento dos riscos para a segurança internacional é falar apenas de uma coisa óbvia.

Todos aceitamos que os efeitos positivos da globalização, da liberalização e da mundialização do comércio e do investimento internacionais, não se reflectem de forma equilibrada no plano mundial. Pelo contrário, parece hoje evidente que as consequências positivas da globalização no desenvolvimento global, a virem a revelar-se, só o serão a longo prazo. Ora as pessoas vivem a curto prazo, porque a longo prazo, como dizia Keynes, estaremos todos mortos.

A disparidade entre os Estados é assim um facto da vida actual, agravada hoje pela mudança tecnológica acelerada e pelo acesso diferenciado às vantagens da chamada “nova economia”, criando o digital divide (a distância entre os que possuem e os que não possuem o acesso aos meios informáticos) que hoje é um elemento que marca a diferença nos ritmos de desenvolvimento.

Ora estas disparidades, que estão na origem de tensões muito grandes a nível interno dos Estados, com formas de exclusão e discriminação, com elevadas taxas de desemprego, indutoras da marginalidade e do crime, têm naturalmente uma repercussão em termos de segurança. Basta pensar que essas desigualdades são o factor essencial por detrás das pressões migratórias, feitas quase sempre em moldes geradores de grandes privações, de dependências de redes de tráfico, facilmente aproveitáveis para operações criminosas. Além disso, mesmo que o factor crime não esteja presente, como muitas vezes acontece, é óbvio que essas situações humanas de extrema tensão, por vezes potenciadas por situações políticas regionais de grande injustiça, são terreno muito fértil para a propagação de doutrinas radicais, que assentam discursos de violência extremista.

Esta é a razão pela qual todos temos de entender que a desigualdade económica, as flagrantes injustiças sociais e os ambientes de pobreza e exclusão são factores da maior importância na criação potencial de riscos para a segurança internacional.

Há ainda um aspecto da esfera económica que se prende com aquilo a que os ingleses chamam governance – e que em Português passou oficialmente a chamar-se “governança”. É o problema do modo como as sociedades são geridas no plano económico, seja na esfera pública, seja na vida privada. Esta é uma questão que se liga também com os modelos políticos de de gestão pública, com a questão da corrupção que mina as administrações de muitos Estados, a gestão cleptocrática dos recursos colectivos e públicos, o nepotismo e a apropriação de bens do Estado, a incapacidade ou falta de vontade para pôr em prática modelos de gestão económica e financeira transparentes.

A comunidade internacional tem, cada vez mais, mecanismos de monitorização dessas situações e vemos hoje estruturas como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento (BERD) ou mesmo a Comissão Europeia a instituírem modelos de condicionalidade das ajudas, isto é, obrigando a certos comportamentos para a concessão de financiamentos. Embora frequentemente possamos ter legítimas dúvidas sobre se a racionalidade económica e os modelos ultraliberais que essas instituições promovem com grande afã são necessariamente sinónimos. Concordemos ou não, isso não diminui a importância de trazer essas sociedades para modelos mais abertos de accountability ou responsabilização, sem o que as tensões, com os inerentes riscos para a segurança, são necessariamente potenciadas.

Num outro domínio de dimensão social, importa atentar, neste quadro integrado de riscos para a segurança colectiva, na questão das grandes pandemias. Fala-se muito do SIDA, e com razão, porque a sua progressão, em certos países, está a ter repercussões demográficas dramáticas, com a debilitação e liquidação de estratos etários vitais para a sobrevivência e para o progresso das sociedades, colocando mesmo em risco a existência de alguns países, como acontece em África. Mas convém não esquecer que doenças como a malária ou a tuberculose continuam também a ser decisivos factores de risco a nível internacional. E que a “gripe das aves” prova a fragilidade das nossas fronteiras de protecção sanitária e introduzem interrogações na área da gestão dos riscos globais.

Finalmente, menos óbvios para alguns será a dimensão de segurança das condições ambientais. A verdade, porém, é que os problemas que se colocam no domínio económico estão, cada vez mais, indissoluvelmente ligados às questões do desenvolvimento sustentável. Basta lembrar que a poluição e o não tratamento dos lixos afecta decisivamente os sistemas ecológicos, com impactos negativos na saúde, no bem-estar e, naturalmente, no desenvolvimento económico.

Neste terreno, temos vindo a observar que há outros factores ligados, por exemplo, à degradação ambiental, à excessiva exploração e má gestão dos recursos naturais que, cada vez mais, têm implicações em matéria de segurança. Pensa-se, imediatamente, no petróleo, mas convém notar que há um outro recurso bem menos mediático – a água – que, tudo indica, cuja escassez virá a tornar-se cada vez mais importante no futuro de certas zonas do mundo. A luta pela posse e gestão da água, em certas regiões, é já a luta do presente e sê-lo-á cada vez mais no futuro, nomeadamente se o ligarmos à questão do aquecimento global do planeta. Basta atentar no caso de Israel, no caso da desaparição progressiva do mar Aral, na seca progressiva de uma imensidão de lagos na Ásia, vitais para a sobrevivência das populações. Com a escassez da água, sem políticas de aproveitamento regional integrado, que hoje são impossíveis pelas conflitualidades existentes, vamos continuar a assistir a transferências forçadas de populações, com consequências em tensões étnicas, com reordenamento de territórios e com lutas pela posse de melhores terras. Este é um problema de segurança muito importante e, por vezes, não se fala nele quanto é devido.

Ainda no domínio ambiental, importa relembrar um tema de que cada vez mais se fala e que se mantém como uma ameaça para a segurança colectiva. Refir-nos ao problema dos riscos nucleares – e não estamos ainda a abordar a questão da proliferação das armas nucleares.

O problema do estado de conservação de reactores nucleares na antiga União Soviética e em alguns países da Europa central e de Leste é um tema que, estando sob relativo controlo, não deixa de constituir uma preocupação constante. Chernobyl não foi há muito tempo, as suas sequelas estão aí e as dificuldades económicas que afectam os países proprietários de tais equipamentos continuam a configurar um risco para a segurança que não pode ser iludido. Ainda neste domínio, há que notar ainda o problema dos resíduos nucleares, muitos dos quais sem qualquer tratamento, espalhados pelos Estados em que se dividiu a União Soviética. Em algumas zonas da Ásia Central, esses detritos, por falta de adequada protecção, correm o risco de se transformar em catástrofes ambientais, se acaso houver grande pluviosidade e deslocação de terrenos. Todas essas situações estão inventariadas, mas há uma escassez de meios muito grande para intervir e, além disso, há uma falta de consciência pública local para a gravidade do problema.


Segurança político-militar

Um outro grupo de ameaças, prende-se com a persistência de factores de riscos de natureza político-militar.

Começaríamos pelas chamadas armas convencionais, havendo que subdividir esta realidade.

Uma coisa são as armas que ficam nas mãos dos Estados e dos respectivos exércitos e que estes se comprometem, quando comprometem, a sujeitar a processos de controlo.

É claro que aqui se coloca a questão da fiabilidade e do respeito pelos acordos internacionais de controlo de armamentos e de desarmamento, o que implica a transparência e a abertura de uns Estados ao escrutínio de outros, para acelerar a confiança mútua. E nem tudo corre bem neste âmbito: verificamos a ineficácia de diversos processos de recolha e destruição de excedentes de armas e um crescendo de preocupações quanto à protecção de depósitos e de arsenais de munições. Há ainda a notar a questão dos milhões de minas resultantes de conflitos, distribuídas por largas zonas do mundo - em especial, as chamadas minas anti-pessoal -, a qual constitui um elemento gerador de insegurança e inibidor do regresso de populações às suas terras no termo dos conflitos, com consequências trágicas para as pessoas e para a retoma da vida económica regular dos países.

Mas na questão dos armamentos convencionais, há um segundo tipo de problemas, que se liga com o seu acesso a mãos não-estatais, num processo que alguns já qualificaram como a “privatização da guerra”. Se os Estados podem, por princípio, ser responsabilizados pela posse e uso de armamentos, à luz das convenções internacionais, já o mesmo se não passa com os grupos não-estatais, sejam os que têm motivações políticas, sejam os que se situam em áreas do crime, sejam os que conjugam estas duas actividades. É a lei da selva que rege o funcionamento de tais grupos e essa é a razão pela qual existe hoje uma grande preocupação com o tema do tráfico ilícito de armas e pela falência de alguns processos de controlo de exportações de armamentos.

Ainda neste campo, há duas questões específicas que hoje preocupam a comunidade internacional.

A primeira diz respeito às as chamadas SALW[3], que são hoje objecto de uma campanha internacional para a respectiva recolha e controlo. Estas pequenas armas são uma dor de cabeça para as instituições internacionais e constituem risco imenso para a segurança dos cidadãos.

A segunda questão prende-se com a “democratização” do acesso aos chamados MANPADS[4]. Se estas tecnologias vierem a cair em mãos erradas, está criado um risco imenso, por exemplo, para a segurança aérea civil.

Abordada a questão das armas convencionais, importa agora referir as famosas armas de destruição em massa, que vão desde as armas químicas e biológicas ao armamento nuclear tradicional. Quando se fala nos riscos da proliferação deste tipo de armas pensa-se sempre em Estados cuja credibilidade internacional recomenda que tudo se faça para que as não possuam e, do mesmo modo, da necessidade de evitar que os tais “actores não-estatais” as adquiram e possam utilizar.

Mas há uma realidade que convém lembrar porque, por vezes, é esquecida: a esmagadora maioria das armas de destruição em massa existentes à face da terra, qualquer que seja a sua natureza, está hoje na posse de respeitáveis potências - como os EUA, a Rússia, a Grã-Bretanha, a China ou a França, não por acaso, os cinco países que têm direito de veto no Conselho de Segurança da ONU. Neste caso, só podemos esperar que o bom senso, o controlo democrático e a mútua contenção dos respectivos dirigentes os iniba de utilizar tais armas. Mas está isto garantido, em todos aqueles Estados ?

Mas, quando falamos de armas nucleares, convém notar que há hoje outros países, como a Coreia do Norte, Israel, Índia e Paquistão, que as possuem, além de outros que detêm ou estão prestes a deter tecnologia e meios para as produzir, de que o caso do Irão é o mais abordado.

O famoso Tratado de Não-Proliferação Nuclear, que tão zeloso se tem mostrado, e com razão, para evitar a difusão de tais tipos de armamentos, não só não cobre a redução e destruição de todos arsenais nucleares conhecidos, como tem, por vezes, dois pesos e duas medidas em relação a alguns casos nacionais.

Mas uma realidade não pode ser iludida: o risco de armas de destruição em massa poderem cair nas mãos de agentes fora do controlo dos Estados constitui, talvez, a maior ameaça à segurança internacional dos nossos dias, o que justifica o carácter imperativo de um controlo internacional muito firme.


Conflitos regionais

Nesta listagem das ameaças à segurança internacional há que referir, pela sua real importância, os conflitos regionais que subsistem ou surgem pelo mundo. Tais conflitos constituem sérias ameaças à segurança das regiões onde se inserem e, muitas vezes -  como é o caso do conflito israelo-palestiniano -, têm um impacto em equilíbrios políticos algo distantes das suas fronteiras.

Alguns desses conflitos estão praticamente “congelados”, como é hoje o caso das tensões no Cáucaso ou do conflito entre as duas Coreias. Outros emergem quase ciclicamente, como na Cachemira ou nos Grandes Lagos, com maior ou menor níveis de violência.

Em qualquer dos casos, estamos perante fenómenos que destroem vidas humanas ou infraestruturas, que ameaçam minorias e direitos fundamentais, quase sempre colocando uma pressão política sobre as sociedades que acaba por afectar o seu comportamento e suas credencias democráticas.

Convém, além disso, notar que estes conflitos são originários ou potenciam facilmente o extremismo, a violência sectária e, muitas vezes, acabam por arruinar as limitadas capacidades dos novos Estados para se organizarem enquanto entidades internacionais, conduzindo, por vezes, ao fenómeno dos chamados “Estados falhados” – entidades internacionais incapazes de exercerem em pleno as suas funções de soberania. Neste caso, verificamos que os abusos de poder, a corrupção e a fraqueza das instituições conduziu ao seu colapso, como vimos nos exemplos da Libéria, da Somália e do Afeganistão.


Combate à criminalidade organizada

Muitas vezes associados aos conflitos, aproveitando-se deles ou estimulando-os, assistimos à sedimentação de uma ameaça outra muito importante nos nossos dias: o crime organizado.

As últimas décadas registarem um crescimento exponencial deste tipo de actividade, sendo o caso mais notório o tráfico de drogas, mas igualmente de diamantes e de outros produtos raros. Mais recentemente, e aproveitando os espaços de livre circulação, de pessoas, bens e capitais, bem como as oportunidades criadas pela desregulação em certos Estados, como foi o caso do desmembramento da União Soviética, o crime organizado tem vindo a alargar as suas áreas de actividade. Assim, explora de forma intensa o rentável mercado do armamento, havendo preocupantes sinais de que está já no comércio de materiais e tecnologias sensíveis, nomeadamente tecnologias militares sofisticadas, com eventual inclusão de materiais químicos e nucleares.

No caso europeu, verifica-se também uma intervenção muito activa do crime organizado no tráfico de seres humanos, em especial mulheres, bem como a exploração de redes de imigração ilegal.

Finalmente, há que notar que começam também já a emergir sinais de pirataria marítima estruturada à escala internacional.

A interligação deste tipo de crime, internacionalizado ou globalizado, aos conflitos regionais e a modelos de acção violenta, nomeadamente aos grupos terroristas, converte-os numa ameaça que lhes altera a qualidade: deixam de ser meros crimes comuns para configurarem ameaças globais à segurança, pelo que importa que sejam tratados como tal. Os métodos sofisticados que hoje utiliza, bem como o recurso a modelos de branqueamento de capitais apoiados em áreas de actividade económica muito diversificadas, com recurso a off-shores e a outros paraísos fiscais, está a conduzir, como reacção, a acelerados esforços de aperfeiçoamento e cooperação judicial e policial à escala regional, como é o caso da União Europeia, bem como à cooperação institucional à escala internacional.


Combate ao terrorismo

Deixámos para o fim aquela que é hoje considerada a mais importante causa de instabilidade a nível mundial: as acções terroristas.

Tal como as restantes ameaças, o terrorismo não aparece com o 11 de Setembro. À época dos atentados nos EUA, havia 11 Convenções Internacionais fixadas no quadro das Nações Unidas, cada uma delas destinada a garantir a adesão dos vários Estados à luta contra um aspecto do terrorismo de natureza internacional. E não deixa de ser significativo que, precisamente nessa altura, se estivesse a discutir em Nova Iorque o texto de uma Convenção Global para o combate ao Terrorismo de natureza internacional. Esse texto nunca foi concluído nem aprovado, nem sequer após o trauma político do 11 de Setembro.

A razão desta não aprovação é tragicamente simples: nunca foi possível haver acordo sobre a definição geral do conceito de Terrorismo. É que embora hoje seja relativamente fácil ver este ou aquele acto designado como terrorista, a verdade é que ainda não há um consenso internacional na sua definição. E uma certa extrapolação no uso da designação de “terrorista”, com algum oportunismo político à mistura, tem vindo mesmo a revelar-se nefasta para uma mobilização geral da comunidade internacional em torno do combate aos actos terroristas.

Se não é possível definir com exactidão os actos terroristas, a verdade é que eles se identificam a si próprios na maioria dos casos. E há que encontrar formas sérias de os combater. O seu carácter assimétrico é uma das grandes dificuldades neste combate: o terrorismo actua com uma desproporção de meios e sem regras e os Estados são, em princípio,obrigados a reagir de acordo com padrões legais.

De facto, se defendemos princípios e uma ordem civilizacional de que nos orgulhamos, temos a obrigação de medir as nossas acções e reacções tendo em conta os Direitos Humanos e os princípios do Direito Internacional. Assim, há que explorar com rigor toda a panóplia de instrumentos ao dispor da comunidade internacional, nomeadamente as já referidas Convenções e Protocolos da ONU, bem como as resoluções do Conselho de Segurança, tal como aquelas que legitimaram, por exemplo, a intervenção no Afeganistão.

Desde o 11 de Setembro foi possível ir muito longe no desmantelamento de muitas das facilidades que os grupos terroristas dispunham no plano internacional. A desaparição dos seus santuários, o ataque às suas redes de apoio financeiro, a melhor colaboração entre os serviços de intelligence foram apenas algumas das medidas em que se deram passos muito importantes. Na União Europeia, por exemplo, foi possível desenvolver nos últimos três anos um formidável trabalho de cooperação policial e de cooperação judicial em matéria penal, impensável sem o efeito do 11 de Setembro.

Muito do que atrás se referiu como sendo a luta contra outro tipo de ameaças vem precisamente juntar-se à luta anti-terrorista – no combate à proliferação de armamentos, na luta contra fluxos migratórios hostis, no combate à criminalidade organizada, etc.

Mas há uma outra questão que não pode deixar de referir-se: as chamadas raízes do terrorismo.

Quando se fala das raízes do terrorismo quer-se, a maioria das vezes, sublinhar a importância dos factores de conjuntura na criação de condições para o desenvolvimento desse modelo específico de violência. Neste texto já se falou neste texto do subdesenvolvimento, da pobreza, da exclusão social e do desemprego como factores de natureza económica que criam um campo fértil para as ideias extremistas, para aquilo que poderíamos designar como a “organização violenta do desespero”.

Mas há outras causas, para além das causas económicas: há situações sociais de discriminação, de abuso de poder, problemas políticos nacionais ou tensões regionais, situações de humilhação étnica, que facilitam o proselitismo ideológico que alimenta o recrutamento dos terroristas.

Os meios conservadores radicais internacionais, com seguidores zelosos em Portugal, criaram desde há muito uma espécie de discurso que reage, de forma quase policial, à simples invocação da noção das raízes do terrorismo, argumentando que isso funciona automaticamente como uma espécie de desculpa ou justificação para os actos terroristas. Nunca nos sentimos minimamente atemorizados por esse tipo de pressão psoicológica.
                                     
Não procurar trabalhar a montante da criação dos movimentos terroristas é, na perspectiva que Portugal sempre defendeu nos fora multilaterais, uma cegueira política com consequências desastrosas.

Assim, repete-se, para o sucesso e legitimidade moral da luta contra o flagelo do terrorismo há dois aspectos que importa nunca descurar: a necessidade de atacar as fontes de injustiça que servem de terreno fértil para o recrutamento para acções terroristas e a necessidade de respeitar sempre os Direitos Humanos, mesmo os daqueles que agem de firma desumana. Essa será sempre a nossa superioridade ética.


O papel das Organizações Internacionais

Perante todo este conjunto de ameaças, cuja conjugação criou um tempo verdadeiramente novo na segurança colectiva, é importante observarmos o papel das organizações de natureza internacional, sejam elas de voção universalista ou regional, sejam de natureza mais especializada ou tributárias de culturas estratégicas comuns.

Naturalmente que a primeira e natural reacção da comunidade internacional é olhar para as Nações Unidas, tidas como uma espécie de espelho institucional do mundo.

Porém, as Nações Unidas têm as suas limitações e essas limitações derivam do facto de, só muito escassamente, nelas ser possível encontrar um terreno consensual com verdadeira eficácia operativa, em especial perante casos que envolvam interesses das potências com poder decisivo na implementação das suas decisões.

Durante Guerra Fria, as Nações Unidas reflectiam quase caricaturalmente a tensão Estados Unidos – URSS e, por essa razão, eram o palco privilegiado da confrontação retórica internacional. No termo da tensão Leste-Oeste, verificou-se uma espécie de “lua de mel” que criou a ilusão de que, finalmente, estavam criadas as condições para que as Nações Unidas fossem o instrumento colectivo privilegiado em favor da paz e do progresso, recuperando um pouco a filosofia que dera origem à sua criação.

Esta ilusão acabou cedo. O facto dos EUA terem percebido, num momento único do seu poder a nível mundial, que as Nações Unidas não estavam disponíveis para serem uma mera câmara de eco da sua leitura da maneira de lidar com o mundo fez com que se desinteressassem regularmente da organização. Isso reflectiu-se na crise financeira no final da década de 90 e, de forma muito mais evidente, na forma como geriram o processo da segunda guerra contra o Iraque.

É importante realçar que as Nações Unidas estiveram, no essencial, em sintonia com os EUA na questão da mobilização internacional na luta contra o terrorismo, após o 11 de Setembro, e, posteriormente, na questão do ataque ao regime do Afeganistão, que acolhia os presumíveis responsáveis por tais atentados. Mas esta sintonia não se prolongou no caso iraquiano e aí, uma vez mais, os EUA optaram por se dissociar da ONU.

A experiência leva a concluir que, em especial nos últimos anos, o respeito americano pelas Nações Unidas varia na razão directa da utilidade que Washington dela consegue extrair para as suas finalidades. Estamos, assim, perante uma espécie de “multilateralismo utilitário” que se não deixa de se repercutir, de forma muito negativa, na credibilidade da organização.

Assim, parece-nos um evidência que todo o esforço da comunidade internacional deve ser concentrado na necessidade de levar o Estados Unidos a colaborarem mais estreitamente com as Nações Unidas. Isso não pode significar colocar a agenda da ONU a reboque da vontade de Washington mas deve, na medida do possível, fazer compreender aos EUA que a necessária legitimação da sua própria autoridade moral no campo das liberdades – que é historicamente indiscutível – só pode fazer-se num quadro multilateral. Se para este esforço de convicção parecem irrelevantes os adversários dos EUA, já menos compreensível se torna quando Washington não toma atenção àquilo que os seus aliados lhe dizem.

Talvez as recentes lições do Iraque possam ajudar a mudar a vontade americana e a União Europeia poderá ter aqui um papel essencial, desde que consiga encontrar uma linha de rumo própria e ultrapasse as clivagens que a fragilizaram. Isso também testará o sucesso ou o insucesso da construção de uma política exterior comum europeia.

Mas a atitude americana face ao concerto multilateral não se esgota, infelizmente, na questão das Nações Unidas. Para além do caso do Protocolo de Quioto, sobre as emissões poluentes relevantes para as alterações climáticas, é lamentável que a actual administração americana recuse a adesão dos EUA ao Estatuto do TPI (Tribunal Penal Internacional), destinado a punir os crimes contra a humanidade, pretendendo isentar os seus cidadãos dessa jurisdição internacional. Se o fizesse, como o fizeram toda a União Europeia e muitas outras dezenas de países, o TPI poderia vir a converter-se numa força efectiva de dissuasão dos crimes mais graves do foro internacional, nomeadamente os crimes de natureza terrorista. Ao não fazê-lo, os EUA dão a sensação de desconfiarem da ordem jurídica internacional e criam a impressão, porventura errónea, de que pretendem instituir regras diferentes para si e para os outros, no plano mundial.

Outras estruturas de natureza internacional, para além da ONU e do TPI, podem também contribuir para o combate aos novos modelos de ameaça que afectam a sociedade contemporânea: a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), o Conselho da Europa, a Organização dos Estados Americanos (OEA), a NATO, a União Europeia, a Comunidade dos Estados Independentes (CEI), a União Africana, a Liga Árabe, o ASEAN[5] e outras estruturas regionais ou sub-regionais são outras tantas organizações que é possível e desejável mobilizar para esta luta.

Mas, sejamos claros, sem umas Nações Unidas eficazes a acção dessas estruturas regionais não tem um mínimo de condições de sucesso. 


Breves conclusões

Gostaríamos de terminar com uma síntese que, podendo não ser pacífica, é o corolário daquilo que atrás se referiu.

Assim, a nosso ver, as principais ameaças que impendem sobre a segurança internacional derivam da acumulação de cinco factores essenciais:

- da continuação da incapacidade da comunidade internacional para sustentar processos de desenvolvimento que possam atenuar as diferenças de rendimento entre as várias regiões, países e sectores sociais. Estão neste caso a criação de um quadro de aproveitamento mais justo das oportunidades criadas pela globalização, gerando condições de emprego, de formação técnico-educativa e de melhoria global das condições sociais e individuais de vida;

- de um ambiente internacional onde continuam a prevalecer considerações de ordem puramente estratégica, económica ou política, que faz com que regimes baseados em sistemas autoritários, com escassa legitimidade ou propensos a acções internacionais agressivas, em lugar de serem isolados e pressionados a mudar, acabem por ser apoiados militar e politicamente. Assim se prolongam focos de injustiça, se agravam tensões e se fomentam radicalismos;

- das dificuldades de consensualização de um quadro constrangente internacionalmente aceite, enquanto se mantiverem tentações de recurso a acções unilaterais, com modelos de intervenção cuja legitimidade possa ser posta em causa. Essa legitimidade, ou a falta dela, resultará sempre do necessário equilíbrio entre a eficácia operativa e a defesa e preservação dos princípios éticos em que a mesma se apoia, nomeadamente em matéria de observância dos Direitos Humanos, liberdade de opinião e respeito por quadros legais transparentes.

- da evidente fragilização do tecido institucional internacional, através de regular desrespeito pelos princípios do Direito Internacional, que resultam na progressiva inoperância e descredibilização das instituições colectivas. Desta forma se dá espaço a que os chamados actores políticos não-estatais explorem as falhas e incoerências do sistema de segurança colectivo e afirmem as suas agendas radicais.

- da procurada confusão, até de natureza semântica, entre as motivações subjacentes aos diversos conflitos existentes no contexto internacional, identificando grosseiramente os seus efeitos numa amálgama sem qualquer sofisticação em termos de análise. Isso favorece a tentação por uma acção repressiva automática e generalizada, cuja aplicação simplista prolonga injustiças e aprofunda mesmo alguns agravos.

Assim, a segurança colectiva continuará a estar em sério risco enquanto a comunidade internacional responsável – os países democráticos, defensores da tolerância e das liberdades – não adoptarem uma “diplomacia de princípios”. Essa prática tem de assentar na denúncia dos jogos cínicos de realpolitik, dessa forma garantindo uma incontestada legitimidade para pôr em prática um modelo comum de combate ideológico, político e militar às manifestações de violência marginal e desregrada.

A nosso ver, a União Europeia pode e deve vir a ter um papel central nesta promoção de uma diplomacia ética, porque representa uma cultura de valores de liberdade e comporta, no seu seio, países cujo relacionamento fora do quadro europeu é tributário de experiências históricas muito diversas.

A vitória no combate pela liberdade e pela democracia no plano mundial só pode ser sustentada através da vitória na luta de ideias, retirando aos extremistas o monopólio da sua representatividade das situações de desespero. É importante favorecer, com medidas economico-sociais e fórmulas políticas de justiça, a influência e o acesso ao poder de sectores não radicais, dando-lhes oportunidade de alargar a sua representatividade.

A História prova que só o bem-estar e a liberdade, que não existem sem a educação e a formação cívica, têm condições para forjar sociedades seguras e estáveis. Precisamente porque não vale a pena pensar que é dentro das nossas fronteiras que a segurança se constrói - porque já não há verdadeiras fronteiras - é que há que entender que temos cada vez mais de viver com todos, lado a lado, num mundo aberto, onde as diferenças sejam aceites – na etnia, na religião, na cultura, na língua.

No mundo globalizado, a única guerra justa é a guerra à intolerância: temos o direito e o dever de ser intolerantes perante a intolerância. Mesmo a dos nossos amigos.



[1] Síndroma de Imuno-Deficiência Adquirida

[2] Severe Acute Respiratory Syndrome

[3] Small Arms and Light Weapons, armas ligeiras e de pequeno calibre

[4] Man-Portable Air Defense System,- Sistemas de defesa aérea transportáveis pelo homem – mísseis terra/ar.

[5] Association of South-East Asian Nations


(Publicado na "Revista Militar", nº 2441, 2005)