11 de fevereiro de 2010

A dívida, o Sul e as ideias feitas

Tradução do artigo publicado em “La Tribune” (11.02.10)


A dívida, o Sul e as ideias feitas

Francisco Seixas da Costa*

A crise financeira confirmou a teoria de que as ideias feitas resistem em ser desmentidas pelas evidências, procurando potenciar os argumentos que as permitam sustentar.

Os preconceitos contra a Europa do Sul são antigos. Quem tiver uma memória não muito distante deve lembrar-se das teses catastrofistas com que foi encarada a adesão de países como Portugal às instituições europeias. E no entanto…

Portugal veio a provar, não obstante as fragilidades de um tecido económico herdado de uma longa periferização, ser um país responsável, capaz de dar alguns “saltos no tempo”, como hoje é bem patente no seu panorama social e de infraestruturas. Comparar o Portugal dos anos 70 com o país de hoje devia constituir um ponto de partida para todas as análise prospectivas para observadores responsáveis.

A crise financeira de 2008 encontrou Portugal no meio de um percurso de consolidação orçamental sem precedentes: de 2005 a 2007, num contexto mundial de baixo crescimento, que afectou em particular as economias mais abertas e sem um grande mercado interno, o país reduziu o défice orçamental de 6,1% para 2,6% do PIB. Quantos conseguiram esse feito?

Com custos políticos e sociais, foram introduzidas pelo governo português profundas reformas estruturais destinadas a reforçar a sustentabilidade desse esforço de saneamento financeiro. Antecipando aquilo que alguns parceiros vão ter agora de fazer, sob pressão da crise, Portugal fez uma reforma do seu sistema de Segurança Social, que hoje constitui um benchmark internacional. Empreendeu também uma corajosa redução da sua Administração Pública, obtendo uma redução de 11% do peso dos salários da função pública no PIB. Quantos outros países europeus fizeram o mesmo, nesse mesmo tempo?

A crise surgiu nesse percurso de consolidação. Numa “zona euro” que teve, em 2008-2009, uma quebra média de crescimento de 4%, a retracção da economia portuguesa foi, mesmo assim, de apenas 2,6%. A sua taxa de desemprego situou-se dentro da média dessa mesma zona.

Um ponto ficou claro: Portugal foi sempre, sem excepção, um cumpridor escrupuloso dos seus compromissos externos. É pena que isto não seja sublinhado.

A persistência dos efeitos da crise fez-se sentir nos indicadores macroeconómicos. No caso do défice, que entre 2007 e 2009 subiu em média na zona euro de 5,8% (para 8,6% nos EUA), Portugal afastou-se menos de um ponto percentual para mais (6,7%).

Esses números devem ser lidos à luz de quebras das receitas fiscais, fruto da crise de crescimento da economia, bem como dos recursos afectados a programas públicos dedicados ao seu estímulo. É pelo sucesso destes que, já em 2009, Portugal saiu (simultaneamente com a França e a Alemanha) do estado de recessão técnica. Note-se que, nesse período, a dívida pública manteve-se próxima da média dos países euro (84,4% para 84%).

A vontade de fazer face a esta situação, com medidas realistas num quadro político interno reconhecidamente difícil, levou a um projecto de orçamento para 2010 onde, entre muitas outras medidas, se consagra:

- o não aumento de impostos;
- uma redução do peso da despesa pública no PIB;
- o congelamento dos salários da função pública, bem como outras medidas de contenção dentro da Administração Pública;
- a revisão selectiva dos estímulos económicos, direccionando-os para as áreas de efeito mais imediato sobre o crescimento.

O objectivo é uma redução do défice de 2010, no caminho para o recolocar, em 2013, no limite de 3% imposto pelo PEC.

Alguma surpresa foi ver este percurso de determinação e transparência posto de lado pelos responsáveis das agências de “rating”, que parecem determinados a colocar todo o “Sul” da zona euro num mesmo “clube”. Não se trata de um problema de justiça, trata-se de uma questão de rigor. Foi sob o efeito desta manifesta irresponsabilidade que se verificou na passada semana um movimento dos mercados, com efeitos negativos nos “spreads” que afectam a dívida pública portuguesa.

Portugal não tem qualquer dificuldade em ser julgado pelas suas performances, que aceita ver comparadas com as de outros parceiros da zona euro. Direi mesmo mais: agradecemos que isso seja feito. O que recusamos é que as ideias feitas estejam a ser um critério técnico.

*Embaixador de Portugal em França