11 de novembro de 2010

Portugal na primeira Grande Guerra

Nous sommes ici présents, aujourd’hui, pour rendre honneur à la mémoire. A la mémoire d’un conflit qui a divisé le monde mais, plus spécialement, à la mémoire des hommes qui ont perdu leur avenir pour assurer le nôtre.

Le XXème siècle a été une période tragique pendant laquelle deux guerres mondiales ont servi d’élément de reconstruction des pouvoirs à l’échelle globale, d’accommodation violente des ambitions et de définition de nouveaux équilibres.

Les guerres sont des phénomènes qui se sont prouvées impossibles d’éviter dans l’absolu et, par conséquent, les discours sur la paix éternelle ne sont rien d’autre que des exorcismes de bonne volonté. Cela vaut la peine de lutter pour la paix mais les deux dernières décennies nous ont démontré que ça ne vaut pas la peine de penser que l’Histoire est terminée. Au contraire, elle nous réserve des surprises, pas nécessairement toujours agréables.

C’est pour cette raison que des moments comme celui-ci sont revêtus de sens. Il faut recueillir les leçons de notre Histoire, non pas comme une sorte de projection vindicative sur ceux qui ont perdu les guerres, mais comme leçon  -  pour eux et pour nous – de ce qu’il nous faut faire pour éviter de nouvelles tragédies.

Cet armistice célèbre la fin de la Première Guerre Mondiale. Elle a été sanglante et porteuse de traumatismes que le futur ne manquera pas de faire revivre. Une nouvelle guerre, encore plus sanglante, aura lieu deux décennies plus tard.

Le Portugal a été l’un des pays qui ont participé à la Première Guerre Mondiale. Aux côtés des Alliés, l’armée portugaise s’est battue pour la liberté de l’Europe et des milliers de portugais ont déversé leur sang sur le sol français. Dans les cimetières de Richebourg, de Boulogne-sur-Mer, de Salomé et de Beauvin se trouvent les dépouilles mortelles de ces vaillants portugais. Beaucoup d’autres, blessés ou invalides, sont rentrés au Portugal. Je me souviens en avoir vu quelques uns, dans mon enfance, lors de cérémonies commémoratives réalisées dans ma ville natale.

Au moment où le Portugal a décidé d’entrer en guerre, son territoire n’était pas impliqué dans le conflit. La décision du gouvernement portugais a été déterminée par l’importance de garantir que l’agression qui avait été à l’origine de la guerre ne porte pas atteinte à des intérêts stratégiques qui, à l’époque, étaient considérés comme essentiels pour la souveraineté portugaise.

Ce sont les institutions de la République portugaise – qui, cette année, commémore son centenaire – qui ont décidé de notre participation à la guerre. Elle a eu un coût élevé, tant d’un point de vue humain qu’économique, mais aussi en ce qu’elle finit par aggraver la crise politique interne. Il résultera de cette crise, quelques années plus tard, la dictature qui s’abattra sur le Portugal pour des décennies.

Mais l’Histoire est un tout. Nous pouvons émettre des jugements de valeur sur ses différentes périodes, mais nous devons penser sereinement que tous font partie de notre héritage, de notre mémoire collective. Honorer les morts de nos guerres – de toutes nos guerres – est un devoir de citoyen de chaque pays. Celui qui est mort pour défendre notre drapeau doit toujours mériter notre respect.

Je conçois également cette cérémonie comme un hommage à l’amitié franco-portugaise.

Il y a exactement deux siècles de cela, à l’époque napoléonienne, le Portugal et la France ont été en guerre. Le Portugal a été envahi, au début du XIXème siècle,
à trois reprises, par les troupes françaises.

Mais le Portugal et la France ont su, depuis longtemps, surpasser ces périodes de conflit. Nos relations sont aujourd’hui excellentes. Des centaines de milliers de portugais et leurs descendants vivent en France, où ils font preuve d’honnêteté dans leur travail et de loyauté envers le pays qui les a accueillis. En tant qu’États, nous sommes aujourd’hui réunis et solidaires dans les alliances militaires, nous partageons l’unité européenne, nous portons un regard similaire vers les autres zones du monde – que ce soit vers l’Afrique, la Méditerranée ou l’Amérique Latine. Et, ce qui est le plus important, nous partageons les mêmes valeurs et les mêmes principes de civilisation.

Je terminerai avec un message de respect envers les victimes du premier grand conflit mondial, dont nous commémorons aujourd’hui l’armistice. C’est face au sacrifice de tous, qu’ils soient des civils ou des militaires, que je m’incline avec respect.

Merci beaucoup pour votre attention.


* Intervention de l’Ambassadeur du Portugal, Francisco Seixas da Costa, à la cérémonie d’hommage aux soldats portugais à la Première Guerre Mondiale, le 11 novembre 2010

30 de outubro de 2010

O Novo Capital

Gostava de dizer que fiquei muito satisfeito por este convite que me foi dirigido pelo Dr. Francisco Jaime Quesado para fazer, hoje e aqui, a apresentação do seu livro “O novo capital”.

Mal eu sabia – mal nós sabíamos – que esta apresentação teria lugar numa das semanas que talvez justifique, ainda mais, a atenção a conceder a este livro.

Eu explico. Francisco Jaime Quesado apresenta-nos um conjunto de textos onde se matura, com apoio de factos, de autores e de pistas documentais, uma reflexão prospetiva para o nosso país. Se eu tivesse de definir este livro numa frase, eu diria que ele é um manifesto para uma nova cultura estratégica para Portugal, assente no conhecimento e na inovação.

A semana que agora termina, na onda de inquietação que só agora começou e que a todos nós provocou, veio revelar que o problema português reside, precisamente, no nosso défice estrutural de competitividade, que limita a nossa capacidade de sucesso no mercado global, fruto de diversas disfunções, de muitos erros, de alguma cegueira. Mas, por detrás de tudo isto – ou melhor, provavelmente a motivar tudo isto – está a debilidade da nossa força relacional interna, está a não otimização dos nossos recursos, estão as chocantes deficiências da nossa qualificação, está o não aproveitamento tempestivo das oportunidades que os nossos atores, públicos e privados tiveram ao seu dispor e que, pelos vistos, não souberam agarrar em pleno. É claro que estou a falar dos quadros comunitários de apoio.

Este livro é um livro provocatório.

Em primeiro lugar pelo próprio título, que revisita ironicamente, com menção expressa, o do maior clássico do marxismo.

Em segundo lugar porque é um livro otimista. E ser otimista, nos dias de hoje, leva a que possamos ser acusados de parecer aquele ministro da Informação de Saddam Hussein, que iludia, com discursos fantásticos, a catástrofe iminente. Eu, que sou otimista, até por deformação profissional, senti-me bem ao ler este livro.

Mas o livro é também muito realista, em especial sobre os nossos defeitos comportamentais – os tais que nos conduziram à situação em que estamos. É que sem a superação desses mesmos defeitos, dificilmente sairemos dessa mesma situação. Quando chegarem às vossas casas, leiam, com abertura de espírito, a página 67 do livro, onde o autor nos desenha como, de facto, somos, em toda a nossa vulnerabilidade comportamental. A tendência natural, ao lermos esse drástico (embora elegante) elencar de defeitos quase identitários, será olhar para o lado, descobrir os outros como titulares dessas distorções que nos marcam como país. Mas – deixemo-nos de ilusões! – somos nós mesmos que estamos nesse retrato, a alto contraste.

Este livro tem em particular atenção aquele que foi um ponto de partida para uma nova abordagem do papel da Sociedade do Conhecimento, do impulso que isso poderia trazer para a competitividade da economia europeia – para o crescimento e para o emprego. Estou a referir-me à Estratégia de Lisboa, lançada em 2000, que pretendia ser a base orientadora de um conjunto de políticas integradas, suscetíveis de darem um novo impulso ao tecido económico-social europeu, que então estava em curso de redefinição como projeto. Estávamos então no tempo da conclusão do mercado interno, da entrada em vigor da moeda única e das primeiras grandes consequências palpáveis da globalização – na sua dupla dimensão de riscos e tensões, pelos contrastes dos modelos produtivos, e pelas grandes oportunidades que abria em termos de novos mercados e desafios de produtividade.

O percurso seguido pela Estratégia de Lisboa mostrou duas coisas:

- que o voluntarismo político europeu não é condição suficiente para o sucesso de projetos que envolvam entidades nacionais que mantenham entre si diversidades muito fortes,

e, em especial,

- há uma contradição, por ora insanável, entre a fixação de um espaço político-económico comum e a preservação de dinâmicas económico-sociais e ideários polarizados por experiências historicamente diferentes.

Isso não significa que a Estratégia de Lisboa – a Agenda de Lisboa - não tenha identificado pontos-chave que continuam a poder permitir o futuro sucesso competitivo, à escala global, das economias europeias. Em especial, a Estratégia serviu para sublinhar, de forma muito evidente, que a aposta nos elementos valorizadores da sociedade do conhecimento e da inovação continua a ser um eixo incontornável para qualquer solução para o nosso futuro.

Só que o mundo mudou e demo-nos conta que, numa década, alteraram-se de forma radical algumas das variáveis com base nas quais havia sido feito o desenho do modelo da Estratégia de Lisboa. O aprofundar de algumas assimetrias, nomeadamente as decorrentes da desigualdade de efeitos do processo de globalização, acabou por redundar num menor empenho, por parte de alguns Estados centrais no processo económico europeu, nos compromissos pelos mesmos assumidos em 2010. Por essa razão, aquando das revisões durante o percurso, as pressões sobre a Estratégia acabaram, de certo modo, por descaracterizá-la e, em especial, por criar dúvidas em relação ao seu caráter orientador.

A Estratégia não tinha um caráter imperativo e muitos acusam-na disso mesmo. Ora ela não foi imperativa porque os Estados não quiseram que ela o fosse e, por isso, recorreu-se ao chamado “método aberto de coordenação”, que comparava as práticas e definia alguns “benchmarkings”.

A recente aprovação chamado projeto Europa 2020 foi a consequência desse novo repensar coletivo em torno da Estratégia de Lisboa. Veremos se esta iniciativa da Comissão europeia tem mais sucesso.

Um outro ponto importante abordado neste livro – e que se prende com aquilo que o Dr. Francisco Jaime Quesado nos vai falar a seguir – tem a ver com as questões do espaço a nível nacional, isto é, da imperatividade da agregação dos atores significativos, que estejam envolvidos no nosso processo de desenvolvimento, ter em conta os novos paradigmas que decorrem da implantação da Sociedade do Conhecimento. O reordenamento espacial desses atores – Estado, empresas, universidades e outros centros de investigação e desenvolvimento – configura uma mudança cultural difícil de assumir, mas que é essencial para o êxito do projeto coletivo.

De todo este livro, como aliás de outros artigos que já tinha lido, publicados pelo autor, decorrem algumas ideias que, podendo parecer radicais, acabam por ser apenas interessantes metas para aquilo que poderíamos designar um novo e ambicioso bom-senso. Esse bom-senso radica, no essencial, na continuidade da aposta na Educação, vista, porém, numa perspetiva menos individualizada e mais num modelo de permanente qualificação, orientada para uma estratégia de desenvolvimento coletivo. A indução de “valor” e de criatividade, num modelo em rede onde o saldo seja bem maior que a soma das partes, é visto como essencial à geração de uma “massa crítica” nacional de novo tipo, um novo “capital estratégico”.

Um dos aspetos que, a meu ver, tornam relativamente original a abordagem promovida neste livro – e que a mim, pessoalmente, me diz muito – é a permanente preocupação com a preservação das dimensões sociais. Muitas análises que tenho lido sobre estas temáticas colocam os modelos sociais como sub-produtos das ondas de modernização tecnológica, dando como adquirido, que haverá necessariamente um efeito positivo de arrastamento que acabará por redundar num saldo social aceitável, esquecendo os perdedores inevitáveis, desprezados ao longo do percurso. Ora o autor, curiosamente, sublinha no seu trabalho, em todos os momentos, a necessidade de enveredar por processos de inclusão e por práticas de integração dos desfavorecidos, dos imigrantes, de todos aqueles que têm défices operativos de participação. Isto é muito interessante e, devo dizê-lo, não é muito vulgar.

Nesta preocupação social há, contudo, um grande realismo. O autor é de opinião que “a dimensão social do paradigma europeu está esgotada”. Eu não seria tão drástico, mas também concordo – e alguns dados recentes vão nesse sentido – com o facto de ser necessário garantir que essa dimensão social assente “na sustentabilidade do mercado económico e não apenas em dinâmicas artificiais de política publica, meramente conjunturais”, na “capacidade dos atores sociais criarem aquilo que recebem, para que o sistema funcione de forma sustentada”.

Como regra, acho esta ideia de meridiana sensatez, embora me interrogue se não compete ao Estado, em especial em sociedades com o nosso nível de desenvolvimento, e sob pena de deixar cair a sociedade em modelos de maltusianismo social, (se não cabe ao Estado) obviar às disfunções que afetam as camadas mais vulneráveis. As pessoas vivem hoje porque, a longo prazo, como dizia Keynes estamos todos mortos.

Temos vindo a ter uns dias marcados pelo discurso em torno da nossas responsabilidades perante as gerações futuras. Mas é importante não esquecer que a nossa principal responsabilidade continua a ser perante as gerações presentes, perante o cidadão que, daí a momentos, vamos encontrar ao virar da esquina. O dever de não comprometer o futuro não nos deve fazer esquecer as responsabilidades de hoje. É no equilíbrio destas duas responsabilidades está o segredo da relação intergeracional.

Outro aspeto interessante que resulta das propostas feitas tem a ver, na linha do que atrás referi como a preocupação do tratamento espacial do conhecimento, com a valorização das cidades médias, voltadas para a qualidade, a criatividade e a sustentabilidade ecológica. Aquilo que o autor designa como “Programa Territorial para a Modernidade” é uma pista interessante a explorar, tanto mais que funciona em contraciclo com os atuais processos de desertificação que marcam o nosso país.

A estes dois eixos – papel de uma sociedade civil inclusiva e um novo paradigma territorial – o autor junta, quase como programa operacional para uma nova estratégia nacional, três outras vertentes: a aposta tecnológica, a aposta na dimensão cultural, em especial explorando as potencialidades do espaço da língua, da cultura mas também do “imaginário” histórico nacional que sobrevive pelo mundo e, finalmente, um compromisso de participação cívica, uma espécie de “cimento” de cidadania, sem o qual as sociedades não se congregam e geram sinergias.

Diversos outros aspetos poderiam ser citados, mas uma nota sobre um livro não substitui a sua leitura. E é essa leitura que recomendo.

Termino felicitando o Dr. Francisco Jaime Quesado por este seu esforço em refletir sobre o país que temos, sobre o que fazer para o mudar, preservando a sua identidade, num registo de modernidade, de maior dinamismo e de progresso. Este livro pode ajudar a dar ânimo a muitos que olham com inquietação para o presente, que abdicaram da esperança e que acabaram por concluir que, no passado, o futuro era bem melhor. 

Apresentação do livro “O Novo Capital”, de Francisco Jaime Quesado
Biblioteca Municipal de Vila Real, 30 de Outubro de 2010

26 de outubro de 2010

A Língua e as comunidades portuguesas

Antes do mais, quero agradecer este convite da União Latina e felicitar a organização desta iniciativa. Ao saudar o presidente desta sessão, queria saudar também todos os presente e, se me permitem uma palavra especial, dirijo-a à senhora doutora Dra. Maria Barroso.

Esta temática do papel da língua portuguesa no quadro global interessa-me bastante, porque faz parte do quadro de afirmação diplomática do nosso país, em que me empenho.

Penso que há um grande e nunca acabado caminho a fazer em torno deste tema e considero que este colóquio é um momento importante para tal. Como sou a única pessoa sem uma atividade de natureza académica nesta mesa, posso dar-me ao luxo de algum impressionismo, ditado apenas por aquilo que fui colhendo, em função da minha experiência pessoal. Achei irónico que o professor Eduardo Lourenço tivesse dito que ele próprio não era um especialista nesta temática. Ora o professor Eduardo Lourenço é talvez o maior especialista vivo na abordagem da questão da nossa identidade como país e ajuda-nos, todos os dias, a olhar para nós próprios de uma forma mais profunda.

A experiência que tenho como funcionário diplomático, com mais de 35 anos ação profissional, foi particularmente reforçada pelos meus dois últimos postos: o Brasil, onde estive cerca de quatro anos e a França, onde agora estou colocado, há menos de dois anos. 

São dois dos países do mundo onde existem grandes comunidades portuguesas, embora com uma génese e uma tipologia muito diversas, nomeadamente em matéria de integração, o que me proporcionou objetos de trabalho e estudo também diferentes, se bem que muito complementares e ambos bastante enriquecedores.

No nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros, as questões ligadas às comunidades portuguesas fazem parte – e perdoem-me a brutalidade, mas já tenho a idade profissional para poder dizer isto – de uma espécie de subsistema diplomático muito específico, às vezes pouco valorizado.

Nesse subsistema há um elemento que não depende de uma visão criada autonomamente no Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas que sobredetermina todo o seu funcionamento. Trata-se de uma espécie de “chantagem política” que se gerou, nas últimas décadas, e que acaba por tornar esse setor refém de uma certa ideologia comportamental da natureza funcional e até política.

Na democracia portuguesa, com a chegada do 25 de Abril, estabeleceu-se um generalizado e legítimo sentimento de culpa relativamente ao modo como o Estado olhava as comunidades expatriadas, que o anterior regime obrigara a emigrar e face às quais só se preocupava com as respetivas transferências financeiras. Essa “tragédia” que foi a nossa emigração – como o professor Eduardo Lourenço bem a qualificou – foi um processo que foi imposto a uma geração, que não emigrou por vontade própria. É-se emigrante porque o país no qual fomos criados não nos deu as condições para aí vivermos a nossa vida. Um país que obriga a emigrar é um país que, perante os outros, não se prestigia, porque é visto como incapaz de tratar dos seus. É importante ter isto sempre presente quando se aborda a questão da imagem de Portugal no mundo.

Os emigrantes portugueses são a expressão humana de uma grande aventura, mas de uma aventura trágica. É fundamental que nos lembremos disso na análise que fazemos a este conjunto vasto que é Portugal e o Portugal que vive no exterior.

A “chantagem” a que eu me referia tem a ver com o facto de, perante este complexo de culpa legitimamente criado face aos nossos emigrantes, eles terem sido colocados no seio de uma espécie de “apropriação” político-partidária, ligada à nossa luta política interna. A partir do momento em que os emigrantes votam, põe-se a questão sobre quem os representa melhor, quais as formas de repercutir internamente os interesses que as comunidades migrantes residentes no exterior projetam como sendo os seus, no seu compreensível desejo de maximizar a sua influência. Os partidos competem entre si, às vezes de forma demagógica, pelo potenciar desses direitos dos emigrantes. Tudo começou com a discussão constitucional sobre a representação dos emigrantes na Assembleia da República, depois foi a vez do voto para as eleições presidenciais, para além de outros processos subsequentes de representação institucional – alguns dos quais ainda em curso de discussão. E isso, com naturalidade, projetou-se também em certas políticas públicas que dizem respeito às comunidades. 

Para o que nos importa neste colóquio, eu gostaria de lembrar o problema, que diariamente se coloca, sobre o tipo de ensino da língua portuguesa a ministrar às crianças das comunidades no estrangeiro. Não vale a pena esconder que existe aqui uma verdadeira questão a resolver, que não deixa de estar ligada ao modo como lemos as virtualidades da integração dessas comunidades nos países onde estão instaladas.

No olhar político sobre este tema, prevalece uma forte timidez em querer abrir o debate. Não vale a pena esconder que prevalece hoje, nas comunidades portuguesas, uma perspetiva dominantemente conservadora e estática quanto ao modo como o ensino do português deve ser ministrado. Eu não sei – porque não sou um especialista – se essa perspetiva tem razão de ser. O que sinto é que o mundo oficial português – na administração como na política – parece temeroso de abrir uma discussão, por exemplo, sobre se se deve privilegiar o português como língua materna ou se se deve avançar para a consideração preferencial do português como língua estrangeira. Esta é a razão pela qual entendo que uma questão, que é essencial para a definição definitiva de uma linha estratégica para a afirmação da língua portuguesa no mundo, está atualmente refém do receio de estimular um debate, que se sabe que pode ser politicamente polarizado no seio das comunidades. Com toda a franqueza, quero dizer que acho que não tem havido coragem, em qualquer dos lados do espectro político, para forçar este debate, com frontalidade, com argumentação técnica, séria e elaborada.

Só através desse confronto aberto de perspetivas serás possível ter uma ideia mais clara sobre se o esforço que estamos a fazer para o ensino do português em países estrangeiros, particularmente no ensino primário, tem algum sentido de utilidade e de sustentação, se os meios que estamos a utilizar e a forma como os utilizamos são aqueles que melhor ajudam ao futuro e à progressão da língua portuguesa nesses países.

Desde que cheguei a França pressenti, de imediato, que esta é uma discussão muito complexa, porque atravessa perspetivas e interesses dentro do movimento associativo e da comunicação social das comunidades. É uma questão que senti que não é cómoda para ser abordada pelos diplomatas portugueses, como aliás o não foi quando a senhora presidente do Instituto Camões suscitou o tema, no início do seu mandato: caiu logo “o Carmo e a Trindade”! Ora esta é uma das questões que, a meu ver, tem uma caráter essencial para a nossa estratégia da língua. 

Temos de perceber, de uma vez por todas, o que queremos fazer com o ensino da língua portuguesa, com a importante contribuição dada pelo Estado português para o ensino da língua portuguesa no estrangeiro, em especial ao nível do ensino primário. Porque isto, convém que se saiba, tem depois consequências nos níveis superiores de ensino. Em França, há hoje cerca de 130 professores de português, através de todo o país, coordenados por um serviço em Paris, dependente da Embaixada. Confesso que sinto essa rede de ensino um pouco “solta”, com modelos de avaliação de desempenho que me suscitam algumas dúvidas, as mesmas dúvidas que alimento quanto à capacidade de controlo pedagógico, nomeadamente em matéria de formação e atualização, de muitos desses professores, que atuam em lugares distantes, com escasso contacto personalizado com o serviço coordenador. 

Esse trabalho de coordenação, que era feito pelo Ministério da Educação e que agora compete ao Instituto Camões, merece, a meu ver, ser profundamente revisitado e avaliado – e eu presumo no que me estou a meter, ao falar de avaliação de professores...

Exemplos muito interessantes a nível do ensino do português em França são as “secções internacionais” existentes em alguns liceus franceses. Infelizmente são poucas e o universo de alunos é limitado, o que condiciona, por extensão, a progressão suficiente de alunos de português para o nível seguinte, o nível universitário.

No âmbito das universidades francesas, eu diria que o panorama não é muito brilhante, para além de alguns casos pontuais de sucesso. Temos hoje situações muito variadas, às vezes dependentes da capacidade e prestígio das pessoas que estão a titular os estudos, outras vezes relevando da abertura concedida pelas próprias universidades. Seria muito importante se fosse possível mobilizar os eleitos locais de origem portuguesa, em ligação aos pais, ao movimento associativo e aos “lóbis” que eles conseguissem gerar localmente, forçando o apoio dos “maires”, dos deputados e dos senadores. Mas, para isso, era importante que a comunidade portuguesa funcionasse de forma conjugada, que os portugueses e luso-descendentes se inscrevessem nos cadernos eleitorais, por forma a poderem ter um peso político que conseguisse forçar a abertura de maior espaço para a língua portuguesa, junto de instituições que hoje têm muita autonomia local e regional, pelo que não são suscetíveis de pressão política governo-a-governo. Até no plano “semântico” seria necessário fazer mudanças, por forma a autonomizar os estudos portugueses e do português das dimensões organizacionais marcadas, por exemplo, pela matriz hispânica. Reconheço que é um processo muito complicado, pelo que não consigo estar muito otimista relativamente ao futuro daquilo que é o ensino do português nas universidades de França.

No entanto, e a outro nível mais comercial, tenho visto uma interessante progressão do interesse pelo ensino do português para adultos franceses, nomeadamente no quadro do Instituto Camões, em Paris. Isso tem menos a ver com Portugal e mais com os interesses de formação linguística com vista aos laços com o Brasil e até com Angola. Este é igualmente um dos caminhos para a afirmação da língua portuguesa no exterior.

Uma das ideias que criei quando estive no Brasil e que se reforçou em mim agora em França é de que temos, cada vez mais, de tratar a questão da língua portuguesa como a questão das expressões linguísticas em português. E, em particular, temos de saber tratar em conjunto a questão das literaturas que se expressam em português. É preciso colocar a trabalhar em conjunto das Embaixadas da CPLP, temos de assumir que essa é uma tarefa colectiva, que só a sinergia do trabalho articulado dos países que se expressam em português conseguirá dar expressão à língua à escala global. Só dessa forma conjugada será possível garantir que a língua portuguesa virá a ocupar um espaço de natureza cultural, que lhe garanta um suporte institucional sustentado, nomeadamente a nível das universidades e dos centros de estudos.

Sem esse trabalho oficial conjugado, tudo se perde. Vale a pena dizer que, em França, vemos um esforço  magnifico que é desenvolvido por algumas editoras, no apoio e na promoção das literaturas de expressão portuguesa, muitas vezes com o apoio do Instituto Camões ou da Fundação Calouste Gulbenkian. Esta Fundação, numa excelente cooperação e articulação conosco, que quero aqui sublinhar, tem feito um notável trabalho em prol da cultura portuguesa e de língua portuguesa, que a todos nos prestigia. Quero dizer isto de forma clara porque sendo nós um país que parece que faz gala em dividir-se e conflituar, ao menos que, quando, por uma vez, as coisas correm bem, deve congratular-se por isso. Para que sirva de exemplo.

Mas eu diria, e para terminar, que tenho a sensação de que falta a tudo isto um grande “empurrão”. E esse grande empurrão tem de se chamar Brasil. O embaixador Alberto Costa e Silva, que está ali na primeira fila, tal como o “embaixador” José Carlos de Vasconcelos – a quem eu teimo em chamar embaixador pelo extraordinário trabalho que tem feito pela lusofonia - sabem bem que, sem o Brasil, sem um forte empenhamento do Brasil no quadro internacional, a promoção da língua portuguesa não dará passos concretos e fortes. Durante anos, e pela minha experiência, o Brasil não teve em grande atenção a expressão internacional do português, como um elemento prioritário para a sua afirmação externa. O facto de o Brasil ter agora nascido para uma visibilidade exterior completamente diferente daquela que tinha no passado começa a dar-lhe uma nova consciência quanto ao modo como deve utilizar a língua.

E como, como eu costumo dizer, não há nenhuma afirmação externa no Brasil, nomeadamente no aspecto estratégico como potência, que seja contraditória com a afirmação externa de qualquer dos outros países de expressão portuguesa, nomeadamente Portugal, parecem reunidas as condições ideais para trabalharmos em conjunto. E não nos podemos atrasar mais: a luta de afirmação cultural e linguística a nível global está aí, por exemplo na ocupação do espaço da Internet. Isso implica que devamos juntar todos os esforços no sentido de garantir que as expressões culturais em língua portuguesa possam trabalhar de uma forma mais organizada. Às vezes, nem sequer é preciso gastar muito mais dinheiro, é preciso é ter vontade politica para actuar conjugadamente nos fóruns multilaterais, é preciso ter vontade para não sublinharmos excessivamente aquilo que nos pode dividir, em especial as “bizantinas” questões em torno do acordo ortográfico. Esta parafernália de discussão sobre as maneiras diferentes de escrever a língua portuguesa é um debate inútil.

E, repito, seria muito importante que as embaixadas dos países de língua portuguesa recebessem instruções concretas para trabalharem em conjunto, para estabelecerem programas de promoção cultural conjugados, que pudessem pôr em evidência os seus romancistas e os seus poetas, que se exprimem nas diversas formas que pelo mundo a nossa língua toma.

Era isto que pretendia dizer-lhes, em função da minha prática como embaixador. Em síntese, que devemos, cada vez mais, jogar com verdade nas questões da promoção e ensino da língua e não nos deixarmos aprisionar por lógicas de natureza política, por comodismo e por falta de frontalidade.

Muito obrigado pela vossa atenção.


* Intervenção de improviso no painel "Diáspora e Emigração", no Encontro Internacional "Língua portuguesa e culturas lusófonas num universo globalizado", organizado pela União Latina e pela Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, em 25 e 26 de outubro de 2010.

3 de outubro de 2010

República e liberdade


Há já algumas semanas, o Presidente da Câmara de Vila Real teve a amabilidade de me convidar para intervir, falando da nossa República, por ocasião do descerramento de uma lápide junto à casa em que os republicanos de Vila Real se reuniam, faz agora 100 anos. 

No momento, eu não tinha a menor ideia onde essa casa se situava. Vim depois a saber que era na rua Avelino Patena, a velha “rua da Travessa”. Perguntei, então, qual era o número da porta. Hesitava-se entre o 44 e o 46. Dias depois, confirmou-se: era o número 44.

Fiquei satisfeito, porque essa foi, precisamente, a casa onde eu nasci. Quando o convite me foi formulado, ninguém tinha consciência desta espantosa coincidência. E, por esta razão, o convite deixou-me, como é natural, ainda mais feliz.

Celebramos agora o facto de, há 100 anos, a República, em Vila Real, ter também – se assim se pode dizer – nascido nesse lugar. A cidade junta-se, assim, a um conjunto alargado de celebrações que, um pouco por todo o país, marcam o centenário da revolta republicana de 1910.

Nessas comemorações, e talvez não por acaso, tem sido dada uma ênfase muito especial às caraterísticas do regime parlamentar que, depois de 1910, foi instalado em Portugal, por cerca de 16 anos.

É natural que a sociedade que emerge do ato revolucionário seja a primeira a ser identificada com esse mesmo ato. Mas o que já acho menos natural é que se procure colar, quase exclusivamente, a imagem da República às dificuldades e peripécias que ela viveu nesses 16 anos, não olhando, com o mesmo cuidado, para o percurso futuro dos ideais republicanos no seio da sociedade portuguesa, nos 84 anos que se seguiram a essa experiência.

Ao deixarmos que as coisas assim se processem, não estamos a fazer nada mais do que aquilo que o Estado Novo, e outros inimigos da República, não tenham teimado em fazer, ao longo dos tempos, com uma pedagogia negativa, de diabolização das ideias republicanas e de ataque às forças partidárias, que teve êxito na mentalidade de algumas gerações.

É um facto que a I República portuguesa criou um regime que veio a revelar-se instável – embora convenha dizer, desde já, que muita dessa mesma instabilidade acabou por ser provocada pelos inimigos da República, pelos derrotados do 5 de Outubro, e que, igualmente, nela se refletiu a caótica herança deixada pelo regime que nesse dia foi derrubado.

Há ainda que lembrar, porque alguns o procuram deliberadamente esquecer, que Portugal vinha de quase um século de objetivo declínio, enquanto país. A independência do Brasil, em 1822, que foi durante muito tempo a nossa verdadeira grande colónia, consagrou um momento de rutura, sem recuo, para os interesses económicos de Portugal. A morte do dom João VI marcou o fim do Antigo Regime, abrindo caminho a uma guerra civil muito sangrenta – a última que teve lugar em Portugal.

A vitória do liberalismo, no fim desse combate de alguns anos, representou a tentativa de implantar uma primeira gestão democrática, com escrutínio parlamentar. Esse foi um momento muito importante de colagem do país à modernidade política. Mas o liberalismo acabou por não representar a salvação automática da Pátria.

Todo o resto do século XIX, bem como a primeira década do século XX, correspondeu a um período de forte conflitualidade político-partidária, de grande instabilidade governativa, de emergência de novos atores económicos e sociais, todos com ambições de representação no seio do sistema. Os vícios dessa primeira grande experiência parlamentar foram descritos, de forma insuperável, por Eça de Queirós, que ganharia agora em ser revisitado.

Mas os políticos e os seus partidos não foram os únicos intérpretes da representação e da coreografia prevalecente no regime de então. A benevolência histórica dos portugueses tende, quase sempre, a absolver os monarcas de responsabilidades nos episódios mais negros que ocorreram nesse período.

Mas convém sermos claros, de uma vez por todas: a memória dos reis que alicerçaram a nossa magnífica História, e que ao país prestaram serviços extraordinários desde a nossa existência como nação, foi muito mal servida pelas figuras que o final da dinastia de Bragança proporcionou ao país, enquanto monarcas.

Nestes últimos anos, temos vindo a assistir em Portugal à emergência de uma certa historiografia revisionista e saudosista, que tem procurado branquear as responsabilidades dos últimos monarcas portugueses, atenuando as acusações à sua falta de liderança, explorando um certo “glamour” que, no imaginário popular, se associa às cortes, às princesas e aos reis. Essa escola de fabricação de memória, que tem estado particularmente ativa neste último ano – em livros, jornais e blogues –, esquece deliberadamente o triste alheamento de alguns desses monarcas perante a degradação do país, o seu diletantismo e desinteresse face aos principais problemas que então atravessavam a sociedade, os escândalos dos adiantamentos financeiros feitos pelo erário à família real, a cumplicidade de monarcas com golpes autoritários, bem como a sua anuência com medidas repressivas já pouco comuns na Europa constitucional da época.

Foi nesse ambiente, onde se refletia a crescente incapacidade da nossa Monarquia para representar os interesses coletivos da sociedade e para sustentar soluções políticas capazes de superar as suas divisões, que se foram criando as condições para o florescimento das ideias republicanas.

Antes de ser um sistema político, a República era e é um corpo de princípios. Em Portugal, o republicanismo foi uma linha de pensamento que assentou, originariamente, na afirmação de uma espécie de ética nova de cidadania – numa sublimação, muitas vezes um pouco caricatural e radical, de princípios de organização social e de representação popular que se pretendiam regeneradores da visível situação de declínio que o país atravessava. E essas ideias foram tendo um crescente sucesso na opinião pública porque a Monarquia – aquela Monarquia – se mostrava já claramente incapaz de pilotar uma saída política para a crise portuguesa.

Por isso, é importante que situemos o projeto republicano português no mundo desse tempo, marcado pela prevalência simplista de algumas ideias da Revolução Francesa, pela crescente popularidade dos ideários de libertação social, que faziam caminho fácil num novo operariado e em classes urbanas, que tentavam consagrar a sua emancipação política. O radicalismo, alguma crispação e muita agressividade, levados aos extremos e potenciados pela rigidez do sistema, passaram a fazer parte integrante dessa doutrina, com que se procurava consagrar uma nova legitimidade, que pretendia devolver a sociedade aos seus cidadãos.

Acresceu ainda, no caso português, a revolta pela humilhação provocada pelo imperialismo britânico em África – o “mapa cor-de-rosa” -, que deixara claros os limites da fraternidade que o Tratado de Windsor proclamava.

Por toda a Europa – e Portugal não escapou a isso – uma cultura de violência ligou-se, assim, à ação política. No nosso caso, o regicídio de 1908 foi o tempo mais trágico na expressão concreta dessa conflitualidade.

Quero com isto dizer que o regime que sai do 5 de Outubro é um sistema político marcado por uma matriz radical que havia sido aculturada nas últimas décadas de um modelo decadente e já sem saída. A prova provada de que o problema residia, então, na própria Monarquia portuguesa é o facto da República portuguesa, ao ser implantada, ter acabado por ser apenas o terceiro regime de matriz republicana existente em toda a Europa, depois da França, em 1789, e do caso muito particular da Suíça.

A chefia do Estado, em todo o resto da Europa, permanecia ainda titulada por reis. E esse ponto também é muito importante para se entender a dificuldade da nova administração republicana de conseguir a sua aceitação e reconhecimento internacional. A classe dirigente de uma nova República, surgida num país pobre da Europa, tinha grandes dificuldades em falar, de igual para igual, com Monarquias ligadas por regulares alianças familiares.

Com exceções a confirmar a regra, podemos dizer que os regimes monárquicos sobreviveram em países onde os respetivos titulares, em momentos decisivos da sua história, souberam colocar-se do lado certo, representando os interesses profundos das populações e as opções corretas para a estabilidade das sociedades. Se olharmos bem para a História, verificaremos que cada uma das Monarquias existentes na Europa se justifica pelo facto dos seus titulares conjunturais terem sabido, no momento certo, afirmar com dignidade os interesses do seu país e do seu povo. E, a contrario, verificaremos que a imensidão de países que deixaram de ser Monarquias adquiriram o estatuto de Repúblicas muitas vezes pelo facto do seus monarcas, em épocas decisivas, não terem estado à altura de situações com que foram confrontados. Esse foi, claramente, o caso de Portugal.   

Mas voltemos ao 5 de Outubro.

O novo regime republicano que dele sai identifica-se numa ideologia burguesa e urbana que eleva elementos tido como caraterizadores de emancipação popular – de que o laicismo e a aposta na instrução pública eram os vetores centrais – a uma espécie de dogmas de uma nova cidadania, para além do culto e promoção de valores de solidariedade e de responsabilidade.

Essa marca da República, expressa na tentativa de impor um choque cultural a uma sociedade fechada, predominantemente rural, com grande influência clerical e muito presa a um Portugal tradicional, acabou por ser a fonte de muitos dos erros cometidos pelo novo regime, que atropelou frequentemente, nesse caminho vanguardista, valores como a tolerância e o respeito.

A ele se opuseram, contribuindo também para a sua rigidificação, não só algumas expressões mais reacionárias da sociedade portuguesa – de que o fenómeno proto-fascista de Sidónio Paes é o exemplo mais flagrante – mas, igualmente, os radicalismos esquerdistas, nas suas expressões anarquistas ou tributárias da nova ilusão soviética.

Se a tudo isto somarmos uma entrada mal preparada na I Guerra Mundial, com o louvável objetivo de salvar o que restava do império e da partilha da conferência de Berlim, mas que acabou por potenciar a acrimónia nas Forças Armadas, veremos que estava a ser criado, crescentemente, um ambiente para colocar Portugal pela hora da onda autoritária que então já ia atravessando muito da Europa.

O golpe de 28 de Maio de 1926 é apenas o corolário da mudança na relação de forças interna e na crença da regeneração por via autoritária – é sempre mais simples governar quando se calam violentamente os adversários. E até reduzir o défice!

Mas há uma coisa que devemos ter bem claro: os 100 anos da República portuguesa, ou da República em Portugal, não se esgotam nem se identificam exclusivamente com a experiência parlamentarista iniciada em 1910, esmagada autoritariamente em 1926. A nossa República está muito para além desses seus 16 primeiros anos.

A República está bem presente em todos quantos lutaram nas trincheiras do 3 a 7 de Setembro de 1927, está nos combatentes exilados da Liga de Paris, está nas revoltas da Madeira, da Marinha Grande, da Mealhada, da Sé, de Beja, no assalto ao Santa Maria, nas audácias de Henrique Galvão ou Palma Inácio.

Está também na coragem dos que assinaram as listas do MUD e que, por isso, sofreram consequências em toda a sua vida futura.

A República está na vontade cívica que lançou as candidaturas de Norton de Matos, de Quintão Meireles e de Ruy Luís Gomes.

Foi a República que trouxe Humberto Delgado ali, à estátua de Carvalho Araújo – ele próprio um homem da República –, no final de uma manhã de 1958, de que fui jovem testemunha, pela mão do meu Pai.

Foi o espírito da República que sobreviveu e alimentou as lutas clandestinas que atravessaram o país durante as décadas da repressão do Estado Novo, nas prisões e nas deportações, de Peniche ao Tarrafal, nos exílios em França, no Brasil ou na Argélia.

Foram os ideais republicanos que mobilizaram jornalistas e escritores contra a censura, que estimularam as lutas estudantis e souberam criar uma espécie de contra-cultura que serviu de magma à mudança das mentalidades que foi fazendo o seu caminho nas novas gerações.

Foram os ideais republicanos que primeiro souberam evoluir, entre nós, na perceção da questão colonial, entendendo que os antigos paradigmas não tinham já espaço histórico e que era necessário respeitar o acesso dos outros aos direitos que para nós reclamávamos.

Aqui, em Vila Real, foram os ideais republicanos que, ciclicamente, mobilizaram, em condições de alguma perseguição e pretendido temor, algumas figuras de notável recorte cívico, aproveitando brechas que o Estado Novo por vezes se via obrigado a conceder. Quero lembrar, nesta ocasião, como símbolos dessa luta, os nomes de Otílio de Figueiredo e de António Cabral, que tive o privilégio de cruzar num desses exaltantes tempos da vida que valeram a pena.

E foram – uma vez mais – os ideais republicanos que animaram quantos, finalmente, se envolveram nessa aventura, magnífica e sem par, que foi o 25 de Abril.

De lá para cá, mais de 36 anos passados, continuam a ser os princípios republicanos a marcarem a nossa Constituição, a servirem de referente às liberdades que usufruímos, as quais estruturam o nosso sistema político, no qual se procuram, e serão encontradas, as soluções para a crises do nosso quotidiano.

A República, com todos os seus sobressaltos e problemas, continua a ser, entre nós, o outro nome da Liberdade.

*Transcrição da intervenção proferida em 3 de outubro de 2010, por ocasião do descerramento de uma placa alusiva à casa onde se reuniram os conspiradores republicanos, antes da Revolução de 5 de outubro de 1910

1 de setembro de 2010

Porquê o Português?

Se olharmos para as últimas duas décadas da diplomacia dos países lusófonos, facilmente verificaremos que a promoção da língua portuguesa começou a definir-se como um dos eixos comuns da respetiva ação externa. Muitos poderão ver nisso uma reação afetiva face ao próprio idioma, fruto do fim dos traumas coloniais e da recuperação de uma matriz cultural que liga esses países. Não deixa de ser verdade que esse é um elemento a ter em conta, mas não é o único.

A criação da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) não nasceu apenas pela necessidade de institucionalizar um qualquer laço afetivo entre os que se comunicam à volta do Português. Cada vez mais, os países dão-se conta que, para terem peso à escala global, têm de estruturar novos modelos de articulação político-diplomática. Para tal, têm de os fazer assentar em terrenos que afirmem uma identidade específica, que possa ser valorada como tal. A língua e a cultura são uma área de excelência para a afirmação dessa identidade.

Se fosse necessária uma prova para o “poder da língua”, bastaria lembrar que o Brasil, que durante muitas décadas não se preocupou excessivamente com a promoção do Português, aparece hoje – num momento em que as suas legítimas ambições de potência se afirmam com vigor – como um dos principais divulgadores da nossa língua comum, insistindo, por exemplo, na sua consagração nas organizações multilaterais e no seu ensino nos países vizinhos.

Com isto quero dizer que o conhecimento da língua portuguesa é hoje, para além de um registo importante de memória e de culto de identidade, um instrumento que permite, a quem o possui, aceder a um espaço muito interessante no quadro das grandes línguas internacionais de cultura. Há no mundo línguas que são muito mais faladas do que o português – como o chinês, as línguas hindustânicas, o árabe ou o russo – mas nenhuma delas tem uma expressão cultural universal à escala do português. A este só se comparam o inglês, o espanhol e o francês, sendo que, desta última língua, há muito menos falantes nativos que do Português.

Falar Português é um valor acrescentado na sociedade moderna, tanto mais que a nossa língua permite um acesso relativamente fácil ao espanhol. Se hoje olharmos para o mundo económico internacional, facilmente deduziremos das vantagens que derivam, para um qualquer cidadão, de saber falar português.

Os luso-descendentes têm assim todo o interesse em garantir, lado a lado com o francês e com a língua franca universal que é hoje o inglês, conhecimentos básicos da língua portuguesa. Se devem aprender a língua como materna ou como idioma estrangeiro, essa já é uma questão técnica que haverá que discutir.

* Publicado na revista "CAPMAG", nº 192, Setembro de 2010

1 de julho de 2010

A diplomacia portuguesa e a Europa

Será interessante fazer-se, um dia, um estudo cuidado sobre o percurso da ideia europeia no seio da Administração Pública portuguesa e, muito em particular, no pensamento em matéria de política externa gerado no Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE). Enquanto tal não tem lugar, teremos de nos contentar com leituras algo impressionistas, muito tributárias de experiências pessoais, com todos os riscos inerentes à limitação que esse tipo de visões tem. É o que aqui hoje faço.

Entrei para a carreira diplomática portuguesa imediatamente após o 25 de Abril, num tempo em que o lema “A Europa está conosco” andava pelas paredes e em que o Portugal democrático se mobilizou, com empenhamento, para vir a ser aceite na então CEE. Nesse tempo, trabalhei na Noruega, onde o tema europeu, depois do referendo de rejeição da adesão, era altamente polémico. Mais tarde, tive a oportunidade de fazer parte da primeira estrutura que, no âmbito do MNE, foi criada para acompanhar a presença efetiva de Portugal nas instituições europeias. Nos anos seguintes, noutras funções, envolvi-me, de muito perto, nas políticas comunitárias de ajuda ao desenvolvimento, passando a ser um visitante frequente das instituições europeias. Em Londres, no Estado membro com uma posição idiossincrática mais marcada face à Europa, segui a primeira presidência europeia de Portugal e o intenso debate interno que culminou com o afastamento de Margareth Thatcher. Foi o interesse pela Europa que me fez depois regressar a Lisboa, para passar a assumir responsabilidades dirigentes na área dos assuntos europeus, inicialmente como diplomata, depois em funções políticas por mais de 5 anos. Desde então, a Europa “persegue-me”, de que é prova o que tenho publicado. No termo deste percurso, confesso-me hoje um convicto europeu.

Mas sê-lo-ia, no início da minha carreira? E era-o a diplomacia portuguesa, em geral?

A ditadura e a Europa

A ditadura portuguesa havia ficado à porta do processo integrador que, nos anos 50, se começou a desenhar no continente, no quadro da Guerra Fria e do renascimento sócio-económico subsequente à tragédia que devastara a Europa, mas que não afetara diretamente Portugal. As instituições europeias, para além de trazerem consigo um modelo atípico de relacionamento entre os Estados, tinham, para o poder político do Portugal de então, o “defeito” de exigirem a adoção de um padrão democrático. A NATO, por um pragmatismo tributário da realpolitik, não tivera esses rebuços e deixara conviver o autoritarismo salazarista com regimes de liberdade. Mas, para o que realmente contava em termos da progressiva integração do continente, Portugal e Espanha permaneciam como uma espécie de grande “aldeia de Asterix”, na periferia europeia.

A rigidez da política colonial portuguesa, que é, ao mesmo tempo, uma consequência da ditadura e um fator protetor da mesma, fez com que a nossa diplomacia tivesse de se adaptar àquilo que lhe era então pedido: defender e promover uma política internacionalmente impopular e inexequível a prazo. Os executores práticos da nossa política externa levaram a cabo essa função com uma qualidade técnica indesmentível, com um profissionalismo notável. Toda a carreira diplomática portuguesa soube colocar-se ao serviço da execução dessa política oficial. Mas nem todos os diplomatas pensavam dela exatamente o mesmo.

Dentro da diplomacia portuguesa, sem que tal correspondesse necessariamente a fronteiras ideológicas bem definidas, cedo ficou patente a emergência de um grupo de funcionários que começou a ver para além da cegueira ultramarinista e a perceber que, logo que diluído pela História o resto do sonho imperial, o terreno europeu seria aquele em que o futuro natural do país iria ser jogado.

Esse é o tempo em que emergem, no MNE, mas igualmente no Ministério das Finanças e outros departamento económicos, também ligados à Presidência do Conselho de Ministros, alguns técnicos que olham já as coisas europeias como fazendo parte do nosso inevitável destino. A adesão e participação na EFTA é o movimento que impulsiona essa nova cultura, no seio da qual alguns sonham com uma vinculação, mais cedo ou mais tarde, às políticas de integração.

A “escola europeia” dentro do MNE foi, até 1974, ultraminoritária e, por vezes, vista com alguma desconfiança pelos setores tradicionais da “carreira” – muito marcados, como referi, pelo modelo de defesa da política colonial, então preponderante. Mas a verdade é que não houve nunca um confronto aberto entre estas duas tendências, que conviveram de forma relativamente pacífica, sempre com os europeístas a encontrar conforto em personalidades, de raíz política ou técnica, que emergiam em alguns ministérios sectoriais, mais reforçados no tempo “marcelista” da ditadura.

Depois de abril

É o 25 de abril que altera radicalmente a relação de forças dentro do MNE. Anulada que ficou, pelo peso dos factos, a “escola ultramarinista”, a Europa surge como o espaço óbvio de afirmação externa do novo regime democrático, onde foram buscados os principais apoios práticos para a sua solidificação e muitos dos princípios que estruturavam o seu discurso. Como é óbvio, isso trouxe um alento novo a quantos, dentro do MNE, consideravam importante garantir condições para, a prazo, conseguir consagrar a nossa futura adesão às instituições europeias. Por essa razão, é perfeitamente natural que esse núcleo de funcionários tenha adquido uma preponderância no quadro de chefias em que o novo poder político se passou a apoiar preferencialmente. De um momento para o outro, a “Europa” passou a ser vista, dentro da carreira, como um dos espaços profissionais de futuro.

Nesse novo contexto, tem lugar um fenómeno de cooptação que pode ajudar a explicar muito do que acabou por ser a nossa presença inicial nas instituições comunitárias, bem como a primeira formulação doutrinária europeia dentro do MNE. Os “euroentusiastas”, cuja formação técnica era então muito voluntarista e algo impressionista, alcandorados na hierarquia, iniciaram um processo de seleção de colaboradores que, naturalmente, privilegiou jovens e qualificados diplomatas, seduzidos pela nova área diplomática que se desenhava como prioritária. Também estes, porém, na sua esmagadora maioria, eram tributários de uma ideia da Europa de raiz apenas intelectual, em que o pensamento soberanista prevalecia, em absoluto, sobre qualquer filosofia integradora de natureza federalista ou outra. Seriam alguns desses diplomatas que viriam a assumir posições hierárquicas de responsabilidades na nossa política europeia nas duas décadas seguintes. E isso não deixaria de ter algumas consequências, nem sempre as melhores.

Durante muito tempo, em especial durante o longo processo de adesão, a política europeia mantinha ainda os seus “dois pés” tradicionais na Administração Pública portuguesa: o MNE e o Ministério das Finanças. O processo de adesão foi negociado sob essa tutela dual, embora de uma forma nem sempre harmónica, por vezes arbitrada na instância governamental superior. Esses dois mundos só se vêm a conjugar institucionalmente na nova estrutura criada em finais de 1985, que viria a comportar também quadros técnicos oriundos de outros ministérios que haviam estado envolvidos nas negociações da adesão. Essa nova estrutura – a então Secretaria de Estado da Integração Europeia (SEIE) -, que deu ao MNE um forte papel coordenador, seria a primeira instância de convivência de todas as valências que iriam ser relevantes na política europeia do país.

Diplomatas e técnicos

Para o que aqui nos importa – os diplomatas e a política europeia – vale a pena dizer, em abono da verdade, que os funcionários oriundos da carreira diplomática se mantiveram quase sempre “acantonados”, no seio dessa SEIE, em departamentos mais próximos daquilo que era a matriz tradicional da sua ação – questões institucionais e relações bilaterais intraeuropeias.

A SEIE foi, contudo, o grande espaço de aculturação do trabalho comum de técnicos de diversas extrações com diplomatas com diferentes formações. Ao olhar para trás, tenho hoje o sentimento de que esse processo de ação conjunta não foi conduzido da melhor forma e, em especial, não se conseguiu que ele tivesse sido um fator de aperfeiçoamento funcional de que todos pudessem beneficiar e em que o MNE pudesse ganhar uma escala e sinergia à altura do desafio com que estava confrontado. Concedo, contudo, que essa possa não ser a visão de muitos.

Na cultura tradicional do MNE, a “política” – tida esta pela elaboração teórica em temas internacionais mais tradicionais – teve sempre uma prevalência óbvia na hierarquia temática interna, onde as áreas ligadas às questões económicas padeceram sempre de uma certa desvalorização na psicologia coletiva. Não obstante uma recorrente retórica no sentido da promoção da “diplomacia económica”, que passou a integrar o “politicamente correto” dos diversos governos, a verdade é que foi sempre muito difícil convencer a maioria dos diplomatas a interessarem-se pela negociação de posições pautais agrícolas ou pelo Mercado Interno, em detrimento de temas “nobres”, como o Kosovo ou a questão timorense. Em perspetiva, entendo hoje que foi essa atitude, para além doutros fatores conjunturais, que contribuiu para a progressiva perca de importância do MNE no trabalho interministerial de coordenação dos temas europeus.

A formação dos diplomatas

Com a nossa adesão à então CEE, os assuntos europeus passaram a estar no centro dos requisitos dos novos diplomatas admitidos no MNE. Isso foi facilitado pelo facto do ensino universitário, embora muitas vezes numa perspetiva excessivamente teórica, ter enveredado por uma maior atenção às questões da Europa. Também no quotidiano do trabalho do MNE, a “decifração” das questões europeias tornou-se essencial e facilitou progressivamente a generalização de um conhecimento global sobre os principais dossiês, em especial os de matriz política mais acentuada.

Uma observação empírica reforça-me, contudo, a convicção de que a aculturação dos diplomatas portugueses à matriz europeia se fez, essencialmente, pela via da Política Externa e de Segurança Comum, através da partilha de uma espécie de “jurisprudência” diplomática que conduziu as Necessidades a um olhar sobre temas e áreas geográficas que, durante muito tempo, não faziam parte das linhas de interesse prioritário da política externa portuguesa. Assim, o facto de muitas das grandes questões de política internacional passarem por um debate em Bruxelas fez com que os nossos diplomatas começassem, com naturalidade, a sentir a necessidade de incorporar a dimensão comunitária sempre que tais temas eram abordados, o que chegou mesmo a ser válido para alguns assuntos que, anteriormente, estavam sujeitos, prioritariamente, à pura lógica bilateral – de que o caso das relações luso-espanholas é talvez o mais evidente.

Também a necessidade da “coordenação comunitária”, em todas as instâncias multilaterais onde a diplomacia portuguesa passou a atuar, acabou por criar, não apenas um modelo de trabalho diverso, mas igualmente uma tendencial cultura comum de comportamento e reação. Aos diplomatas portugueses não passou, necessariamente, a aplicar-se uma espécie de “template” europeu, mas passou a ser sempre exigível uma visão europeia dos temas abordados no seu quotidiano. E isso, queiramos ou não, alterou o olhar português sobre muitas questões, para além de o despertar para outras.

Deixo uma nota final para sublinhar o papel extremamente positivo que representa a presença conjunta de técnicos e diplomatas na Representação Permanente (Reper) que Portugal mantém em Bruxelas. Foi nela que muitos diplomatas ganharam um conhecimento prático das grandes questões técnicas europeias, que enriqueceu a sua formação e que tem sido de extrema utilidade para o desempenho do MNE neste domínio.

(A pedido do autor, este artigo segue as regras do novo Acordo Ortográfico)

16 de abril de 2010

A Europa e a política externa da Administração Obama

Intervenção do embaixador Francisco Seixas da Costa,
no Fórum Franklin D. Roosevelt, organizado pela Fundação Luso-Americana,
Ilha Terceira, Açores

Desejo começar por agradecer a gentileza deste convite da Fundação Luso-Americana e dizer que é com imenso prazer que participo nesta iniciativa. Há dias, dei por mim a pensar que os Açores, pela sua singularidade e importância estratégica, são talvez a única região portuguesa que verdadeiramente justifica que desenvolva uma análise própria e individualizada em termos geopolíticos, se descontarmos as especulações em torno do potencial, nem sempre confortável, de uma eventual relação africana da Madeira. Por essa razão, julgo que uma cada vez mais regular convocação, aqui nos Açores, de fóruns de reflexão estratégica se justificaria e deveria ser oficialmente incentivada. E essa é mais uma razão para felicitar a FLAD por esta iniciativa.

Estou aqui a título pessoal. O que vou dizer vincula-me apenas a mim. Mas, naturalmente, não esqueço o meu estatuto profissional e, na liberdade do que exprimo, tenho em devida conta as orientações oficiais da política externa portuguesa a que estou subordinado.

Durante estes dias, temos refletido sobre as relações transatlânticas e procurado projetá-las na dinâmica de uma ordem mundial em mutação acelerada. Este é um exercício com um elevado coeficiente de risco, porque os factos são sempre muito mais imaginativos que os homens e porque, como se sabe, é uma ilusão vã pretender retirar, do passado, ilações mecânicas para o futuro. Verdade seja que, se assim não procedêssemos, estaríamos a dar razão àquele conhecido visionário que dizia que só fazia prognósticos depois do jogo…

Se há uma temática que, ao longo dos anos, se tornou numa espécie de “policamente correto” para o trabalho dos “think tanks” portugueses essa tem sido a relação transatlântica e o papel de Portugal nesse contexto. Isto tem a ver com as Lajes, com os Açores, com a NATO e com a necessidade, quase obsessiva, que o nosso país tem de afirmar, ao longo dos anos, a especificidade das suas relações com os EUA – quer os EUA tomem disso conhecimento ou não…

Porque o desequilíbrio de interesses das duas partes é imenso, há que constatar, com realismo, que essa reflexão resultou, quase sempre, num mero olhar unilateral, num simples olhar português. Nada disto é espantar, se atendermos ao facto de que o outro lado do Atlântico, no plano oficial, sempre viu este tema, não sei se com indiferença, pelo menos com uma relativização de interesse muito forte. Talvez por isso, esse lado, o lado americano, pouco tem carreado de novo, de útil ou de imaginativo, para esse debate. Esta é a minha opinião.

No plano interno português, tenho a sensação de que essa recorrente e quase obsessiva abordagem da especificidade portuguesa no quadro atlântico parece funcionar, muitas das vezes, como uma cómoda escapatória para evitar abordar essa relação bem mais próxima, muito mais complexa e muito menos óbvia – a nossa relação intraeuropeia.

É que, no primeiro caso, estamos no “safe side”: salvo alguns auto-excluídos por viés ideológico, o compreensível apreço pelo laço transatlântico é um dado comum a uma larga faixa da opinião portuguesa que se interessa por este tipo de coisas. Já no segundo caso – a Europa –, as sensibilidades internas são diversas, comportam nuances e estão mais sujeitas a variações de humores de conjuntura. Além disso, outros terrenos em que poderíamos especular sobre a nossa projeção de interesses – África, Brasil, Mediterrâneo – incorporam variáveis tão incontroláveis que, em geral, acabam apenas por ser objeto da repetição de uma “langue de bois” que conforta os espíritos para quem a política externa se resume à reiteração do discurso diplomático tradicional.

Vamos, então, ao que hoje e aqui nos interessa: a América e nós.

Há dois anos, em Abril de 2008, ao tempo das “primárias” nos EUA, recordo-me de ter dito, numa entrevista televisiva em Portugal, o seguinte: “Uma parte da Europa acabará por se desiludir, qualquer que seja a opção dos americanos na escolha do novo presidente. O futuro presidente continuará a ser o presidente dos americanos e a defender os interesses americanos, não será o presidente dos não-americanos.”

Ao afirmar isso, não tinha a pretensão de estar a “descobrir a pólvora”, estava apenas a relembrar um realidade que sempre se verificou no passado e que, naturalmente, iria também ocorrer desta vez. Devo dizer, porém, que. meses depois de ter dito o que disse, dei comigo a pensar que o fenómeno Obama poderia talvez infirmar, de uma forma inédita, a valia dessa experiência. É que o entusiasmo com que a nova administração e o seu titular foram recebidos, em particular na Europa, parecia ir muito para além do que era normal e ter condições para garantir a fixação de uma atitude muito diferente e com muito maior sustentação no tempo. A atitude diferente confirmou-se. A sustentação no tempo está para verificar, mas não é evidente.

O que julgo que é uma evidência – dentro e fora dos Estados Unidos – é que grande parte da força da mensagem inicial de Barack Obama teve muito a ver com a procurada imagem de contraste com o seu antecessor no cargo. Para muitos dos aliados europeus, a política seguida por George W. Bush havia representado um imenso trauma. Não obstante, por razões geoestratégicas óbvias e compreensíveis, grande parte da Europa manteve-se “amiga” da América, “malgré Bush”, esperando por melhores dias.

Por isso, foi com um imenso alívio que a Europa viu afastar-se qualquer hipótese de uma sua sucessão em moldes que pudessem reproduzir o modelo dos oito anos anteriores. Mesmo John McCain era, no campo republicano, um óbvio candidato anti-Bush.

Faço aqui um parêntesis para notar que o conceito de “Europa” que utilizo é um tanto arbitrário e só tem sentido se lido como uma perspetiva maioritária, daquilo que acaba por ter um impacto claro nas tomadas de posição comuns dentro da União Europeia. É que, como adiante veremos, uma parte dessa Europa esteve sempre relativamente confortável com George W. Bush. Às vezes esquece-se isto.

O fenómeno Obama, para além da sua importante dimensão intra-americana, foi um curioso espelho daquilo que, aparentemente, grande parte do mundo estava carente. A ideia parecia simples: se os EUA haviam agido por algum tempo como uma hiperpotência unilateralista, capaz de nos impor políticas de que abertamente não gostávamos, então, esse mesmo poder, se viesse a estar ao serviço de uma “política do bem”, acabaria por ir ser a “salvação” para os nossos problemas. Parte da Europa pensou assim. A inédita receção que Obama teve em Berlim pareceu a consagração disso mesmo.

A genialidade do discurso de Obama, a sua capacidade de renovar certas reservas de esperança que pareciam já esgotadas nas novas gerações europeias, constituiu um elemento interessantíssimo que permanecerá no “acquis” imaginário europeu, por muito tempo – qualquer que venha a ser o futuro efectivo do seu projeto. É que, com Obama, grande parte do mundo reconciliou-se, embora se não saiba por quanto tempo, com a América. E, nesse mundo, estava grande parte da Europa.

Permitam-me que volte um pouco atrás. Como poder europeu que também é – e há muita gente que não gosta da verdade segundo a qual a América é um poder europeu –, os Estados Unidos impõem-se, de há muito, no cenário estratégico do continente. Os Estados Unidos foram decisivos para a condução do continente durante todo o século XX e sabem bem que o seu peso, entre nós, vai muito para além do que alguns europeus gostariam que fosse.

Os EUA provaram já que podem contribuir, quando querem e sempre que podem, seja para a nossa união, seja para a nossa dissensão ou a nossa “balcanização” política. Ao estar a falar hoje aqui, precisamente ao lado da base das Lajes, julgo redundante estar a chamar a colação alguns exemplos históricos. Para exercer essa influência, os Estados Unidos contam com a curiosa circunstância de que, praticamente, cada país europeu olha para o “amigo americano”, para utilizar uma expressão do filme de Wim Wenders, de uma forma diversa, em função da sua história própria, do seu processo de relação passada e presente com a América, da sua agenda estratégica nacional, até, mais irracionalmente, dos seus afetos ou dos seus ódios.

Assim, e pelo efeito decisivo dos tempos que lhe eram imediatamente anteriores, a América de Obama trazia consigo um potencial de sedução muito forte. Num mundo marcado por uma grande angústia em relação ao seu futuro, julgo não ser de estranhar que uma mensagem de esperança e de confiança que era vista como genuína, alicerçada na maior potência mundial, tenha feito o seu caminho, com alguma facilidade.

A certa altura, o quase messianismo que se espalhou em torno de Barack Obama quase que me assustou. Não porque essa esperança não fosse um fator psicológico positivo, mobilizante, um saudável choque ético com repercussões à escala mundial, após anos marcados por imensas tensões e a predominância de algum cinismo e oportunismo. A minha preocupação, porém, tinha essencialmente a ver com a consciência de que a realidade acabaria por ser, sempre, muito menos simpática do que a ilusão que fora criada. Assim, porque essa mesma ilusão nunca está à altura das expectativas, o “regresso à terra” torna-se muito mais penoso.

Sem pretender, de forma alguma, desvalorizar o magnífico conjunto de iniciativas – em especial, na área internacional, que aqui me importa – que a administração Obama desencadeou, julgo que me acompanharão num juízo de razoabilidade que aponta para o facto de que a realidade está já, nos dias que correm, um tanto recuada face às expectativas da nova administração americana. A culpa – se, nestas coisas, se pode falar em “culpa” – reside na conjugação de uma multiplicidade de factores, que vão de elementos incontroláveis, em alguma “naiveté”, um excessivo voluntarismo e, muito provavelmente, numa auto-avaliação desproporcionada da própria capacidade operativa americana. Recuperar situações políticas e sócio-económicas, saber encontrar e pôr em prática com sustentabilidade soluções e modelos políticos duradouros, é uma tarefa muito mais difícil do que montar operações militares pontuais, atacar alvos, destruir inimigos. Os EUA estão habituados a ter notável sucesso nestas últimas mas, infelizmente, têm em “record” recente bem frágil nas primeiras. Julgo que seria penoso estar a elencar exemplos.

Para agravar este prelúdio de desilusão que, a meu ver, começa a tomar forma, existe um erro europeu de base. Em muitos setores europeus, há uma perceção equivocada sobre o modo como os EUA olham o continente e o mundo em geral.

Esse erro parte da ideia de que as diferenças entre um lado e o outro do Atlântico derivam apenas de agendas não coincidentes, de hierarquias de prioridade diferentes. Sem contestar que isso seja, por vezes, uma verdade, creio que o ponto essencial não está aí.

Os EUA olham a sua política externa sob um prisma moral, com uma dose de empenhamento nos seus objetivos que é quase religioso. Na sua perspetiva, os seus interesses, porque são interesses “do bem”, devem passar a ser lidos pelos seus aliados e amigos como interesses comuns. Tenho encontrado diplomatas de países europeus aliados dos EUA que ficam surpreendidos quando um interlocutor americano o pretende convencer de um caminho a seguir com o argumento de que esse é “o interesse americano”. Para um europeu, isso parece arrogância. Às vezes é, mas às vezes não. O interlocutor americano acha óbvio que, tratando-se de um interesse para o seu país, essa deve passar necessariamente a ser uma posição a ser defendida por um país aliado.

Para os europeus, todas as posições são mais relativas, mais matizadas, feitas de “realpolitik”, de acomodação, de uma mescla de interesses e princípios, frequentemente com assumida hipocrisia no tratamento destes últimos, com vista a acomodar os primeiros. Como a Europa não tem, necessariamente, a certeza messiânica de estar do lado “do bem”, acaba também por ter mais “jogo de cintura” para lidar com os que possam estar do outro lado. Às vezes, explicar isto a um americano é difícil.

É desse contraste de olhares que resulta, por vezes, a reação surpreendida da Europa face ao que considera poder ser alguma “naiveté” americana, cuja absolutização de finalidades traz frequentemente agregada uma matriz de imposição pela força dessa vontade, numa espécie de permanente “cruzada”.

Esta modulação de visões não abandonou a América, só porque Obama passou a ser presidente. A América não deixou de acreditar que, em princípio, tem razão nas opções que toma e procura impor, mas terá percebido que tem algum interesse em ter o mundo consigo.

Alguém me dizia ontem, numa conversa, que um dos maiores choques com que certos observadores internos da realidade americana se confrontaram foi com a noção de que, tendo os Estados quase todo o mundo a seu lado no dia seguinte ao 11 de Setembro, desperdiçaram, ingloriamente e em poucos anos, todo esse capital de simpatia e solidariedade, colocando contra si boa parte do mundo, graças ao modo arrogante como pretenderam condicionar tudo e todos. E essa atitude tem um nome: administração Bush.

A administração Obama deu sinais claros de ter percebido esse erro e, desde o início, procurou alterar a rota da atitude americana. O seu discurso foi claro e foi muito bem acolhido. De uma forma talvez mais pronunciada do que em qualquer momento de um passado recente, Washington decidiu levar a cabo um repensar completo de toda a sua filosofia de acção externa, avaliando opções tomadas no antecedente, em matéria militar, diplomática e até de instrumentos do direito internacional. Foi um exercício solitário, bastante mais longo do que seria expectável, o que só prova a sua seriedade.

Durante semanas, teve graça falar com as chancelarias europeias: estavam todas “à espera” da América… Os diálogos com os americanos eram surrealistas: Médio Oriente? “Estamos a rever as políticas” – e o Quarteto parava de tocar. Afeganistão: “Estamos a avaliar” - e a NATO esperava para decidir…

Uma pergunta que, por humor, cheguei a colocar foi: “ E nós, União Europeia, também estamos incluídos nesse empreendimento revisionista?” Muitos acharam que isso não tinha sentido: nós somos aliados, quase “taken for granted” perante grande parte das políticas de Washington, as relações conosco não precisam de revisão. E, no entanto, explícita ou implicitamente, alguma coisa mudou também para nós e isso terá a ver, com certeza, com o modo como esta nova América olha hoje a realidade europeia.

Embora possa vir a ter perante a Europa uma atitude diferente, há que constatar que nada indica que esta América a veja de forma muito diversa da administração Bush. Por uma razão muito simples: porque a Europa que a América tem perante si é, basicamente, a mesma. Ora os EUA, se bem que tenham perfeita consciência de terem, no espaço europeu, alguns aliados seguros para a consecução de muitos dos seus principais objetivos à escala global, têm hoje uma aproximação muito realista do que esses aliados representam, na prática. Sabem, por exemplo, que salvo situações conjunturais muito específicas, a União Europeia, enquanto tal e por um prazo de tempo que está por determinar, ainda é uma estrutura predominantemente declaratória. As coisas sérias, as que exigem compromissos militares, essas coisas fazem-se através da NATO.

Não se peça, assim, que sejam os Estados Unidos a acreditar numa política externa europeia comum, quando são os próprios europeus que, ainda hoje, alimentam por todo o lado muito sérias reticências sobre a capacidade da máquina que a senhora Ashton tem em construção. Seria estultícia pedir aos outros para acreditarem em nós, quando ainda temos mais dúvidas que certezas.

Ora os Estados Unidos são tudo menos cegos: quando observam a Europa, sabem que os seus principais Estados, numa escala global, são meros poderes médios, mas que, deste lado do Atlântico, se esforçam por fazer o papel de “grandes”. E notam que esses Estados, na sua ânsia de afirmação e de estatuto, pretendem garantir ou obter a sua consagração, individualizada e autónoma, no quadro das instituições globais, contradizendo, na prática, qualquer vocação de expressão política coletiva, através de uma União Europeia que dizem querer reforçar. Esses Estado estão muito longe de se contentarem em ser meros parceiros de valor e peso idêntico aos restantes. Para utilizar uma frase histórica, os EUA já perceberam que na Europa, há quem queira “to punch above its weight”. E que esses parceiros desejam poder contar com a ajuda de Washington para perpetuar esse estatuto.

Mas os Estados Unidos sabem também que uma outra parte da União Europeia olha para a própria organização como ela é, de facto, por ora é: como um mero “soft power”. Há países, desde lado do Atlântico, que, estribados nas duras lições que aprenderam na Guerra Fria, têm consciência que, se acaso novas tensões emergirem do lado russo, o único poder com capacidade decisória – e que “means business” – a que, pelo menos teoricamente, será possível apelarem são os EUA, nomeadamente através da NATO.

Esta importância que a Europa se dá a si própria, e que deseja ver reconhecida pelo EUA, confronta-se com realidades muito concretas.

Washington não necessita hoje da União Europeia para lidar com a Rússia. Se, ao tempo da Guerra Fria, Washington podia contar, quase sempre, com a Europa comunitária para acomodar as tropas diplomáticas e legitimar as suas iniciativas autónomas no confronto Leste-Oeste, desta vez, há por este lado do Atlântico “várias Europas” na maneira de olhar a Rússia. E isso como que desvaloriza o papel da Europa.

Os Estados Unidos terão igualmente interiorizado que as tensões da Guerra Fria, se não desapareceram por completo, mudaram hoje de qualidade. E, por isso, perceberam que dar a mão a uma afirmação de prestígio da Rússia lhes pode trazer fortes dividendos e que pode ajudar a reduzir potenciais tensões. Mas, ao “resolver” bilateralmente o seu possível problema russo, os EUA desencadeiam duas consequências.

Por um lado, tornam dispensável um esforço de mobilização dos seus outrora principais parceiros europeus. A União Europeia, porque não constitui, em si, qualquer problema para os EUA e porque não tem hoje qualquer utilidade operativa no quadro relacionamento americano com Moscovo, sente-se assim “orfã” do interesse de Washington.

Neste quadro, a “special relationship” com o Reino Unido deixou de ser vista, pelo menos por ora, como o braço necessário de controlo americano do processo europeu. A sempre esforçada singularidade da posição francesa parece hoje tornar indiferente a América, ironicamente num tempo em que Paris tentou uma simbólica mudança de atitude, através do regresso à estrutura militar integrada da NATO. Finalmente, a Alemanha, fruto de toda esta conjuntura mas igualmente de uma sua recente e drástica evolução interna, deixou de ser um aliado com a importância tradicional que teve.

A outra consequência tem a ver com a “nova Europa”, para utilizar um conceito que nos coube da pesada herança do sr. Rumsfelt. Essa Europa, que tanto deve à persistência histórica da América a sua libertação da tutela de Moscovo, cuja entrada na União Europeia foi por si saudada, cuja entrada na NATO foi por si promovida – essa Europa sente-se hoje algo desiludida e perplexa. Essa é uma Europa que vive muito uma antiga e quase idiosincrátrica obsessão anti-russa, que assistiu ao que se passou na Geórgia, que viu Obama desistir facilmente do escudo anti-míssil que Bush lhe tinha prometido, que sentiu a diluição da pressão para um futuro alargamento da NATO à Geórgia e à Ucrânia. Como se lhe não bastasse estar a sofrer um escasso entusiasmo, e até irritação, por parte de muitos dos seus parceiros da UE, em face das sua preocupações de segurança e de afirmação identitária relativamente a Moscovo, essa Europa começa a sentir-se como que “traída” com a condescendência da nova administração americana para com os seus contrapartes russos.

Em todo este contexto, note-se que a Europa tem sempre presentes duas evidências.

A primeira é que não tem qualquer hipótese de, no âmbito da sua ação externa, poder impor internacionalmente, com um mínimo de eficácia, a sua agenda ética de valores, que se esforça por consensualizar laboriosamente no seu seio, se não puder contar, a seu lado, com uns Estados Unidos abertamente empenhados na promoção desse mesmo conjunto de valores.

A segunda, que é cumulativa com a anterior, é a constatação de que, para levar a cabo linhas consequentes de acção à escala global, nas condições de legitimidade operativa que a si própria se impõe, necessita de poder servir-se da utilização de instrumentos de natureza multilateral – leia-se, Nações Unidas, onde a boa-vontade americana se torna, em absoluto, essencial.

Quero com isto dizer que a Europa está, goste ou não se goste de assumi-lo, refém dos EUA na sua expressão no quadro global. E que, neste quadro, projeta uma imagem que talvez não seja a mais prestigiante. É que se a Europa, para utilizar a expressão de Hubert Védrine, olhava em tempos para os Estados Unidos como a “hiperpotência”, acho que Washington, de forma bem realista, olha para a União Europeia de hoje como uma verdadeira “hiper-impotência”. A sensação com que se fica é que, na perspetiva americana, a União Europeia, enquanto expressão externa de poder, mais não é senão a média aritmética, caso a caso, de uma eventual posição comum das principais diplomacias europeias, a que os restantes membros do clube, na maioria das vezes, não podem fugir, por tropismo grupal ou por ausência de interesses próprios que justifique um ato de dessolidarização.

Ora aquilo de que os EUA necessitam dos seus aliados europeus situa-se noutra escala de preocupações estratégicas: está na participação em operações à escalas global, com vista a afrontar os desafios de segurança que a sua cadeia nacional de valores impõe como prioritária, como é o caso do Afeganistão. E isso faz-se através da participação de cada Estado, no âmbito da NATO. Quero com isto dizer muito claramente, para Washington, a União Europeia não é, por ora, um parceiro operativo, credível e em cuja capacidade de decisão vislumbre um mínimo de eficácia.

Noto que, com exceção do caso russo e do Afeganistão, quase não referi outras temáticas de interesse internacional onde os interesses europeus e americanos podem cruzar-se ou separar-se: Irão, Turquia, Balcãs, Médio Oriente e, em áreas temáticas, a não-proliferação nuclear, as questões ambientais, o comércio internacional, etc. E alguns outros poderiam ser citados.

Com variações, constatamos que, nestas como em outras áreas há frequentemente sinais de divergências, formas diferenciadas de acentuação, prioridades não homólogas, modos de atuar menos homogéneos. Com toda a franqueza, devo dizer que não me parece, contudo, que estejamos perante dossiês que se constituam como perigosamente conflituantes. Os Estados Unidos são o mais velho amigo da Europa. Os seus valores e os seus princípio cruzam-se e, as mais das vezes, somam-se. Na minha perspectiva, a existência de uma Administração Obama é um fator positivo para que isso continue a acontecer.