22 de fevereiro de 2024

Segurança

Apresentação do livro de Nelson Lourenço, "Sociedade Global e Segurança - Modernidade, Complexidade e Incerteza", no dia 21 de fevereiro de 2024

Quero começar por agradecer ao Nelson Lourenço a amabilidade que teve em convidar-me para colaborar na apresentação do seu novo livro.

Eu e o Nelson somos amigos, como também o sou da Ema, desde há mais de 55 anos, das salas e dos belos jardins do ISCSPU - então com um "U" no fim. O país, em 1974, também acabaria por perder o seu "U"... E nós perdemos, para sempre, aquelas bibliotecas, as aulas de Ronga, de Quimbundo, de Tetum, mas também a serenidade da Sala Verde para a conversa, o sossego das mesas de leitura do Centro de Estudos Missionários, os "xes" beirões do padre Silva Rego, a dona Irene da secretaria, o Zé Augusto da portaria e, last but not least, o professor Adriano Moreira. 

E, já que falamos de segurança, também perdemos - eu guardo sempre isso no avesso da minha memória afetiva - também perdemos o capitão Maltez, a entrar um dia por ali dentro, à frente da polícia de choque e saquear a Associação de Estudantes. Perdemos já tanta coisa, boa e má.

Com o tempo e as andanças de ambos, eu e o Nelson também nos fomos perdendo de vista um do outro. Sabíamos onde cada um andava - ele numa brilhante carreira académica, eu pela itinerância diplomática - mas víamo-nos pouco. 

Um dia, o Nelson desafiou-me para integrar uma aventura chamada GRES - Grupo de Reflexão Estratégica sobre Segurança. Ele era, e continua até hoje a ser, a alma do GRES, onde temos como figura tutelar o Dr. António Figueiredo Lopes e onde o José Conde Rodrigues participa ativamente com o seu conhecimento académico e político. 

O GRES fez entretanto coisas muito estimáveis, para quem não saiba. E vai fazer mais, em breve, para quem estiver interessado. A minha colaboração no Grupo, devo confessar, foi sempre modesta, como modestas são as minhas competências em alguns dos domínios em que o GRES declina a sua ação, em particular em muito do que excede as dimensões de segurança internacional, domínio onde a vida profissional me rotinou a refletir.

Serve isto para alertar que foi de uma imensa irresponsabilidade ter acedido a participar na apresentação desde livro, correspondendo à também imensa generosidade que foi convite do Nelson. Mas, porque a audácia ainda não paga imposto, vamos então a isso. Serei breve e, para sê-lo, decidi escrever o que estou a dizer.

Cheguei ao fim deste livro com um sentimento duplo. 

Desde logo com a ideia de que há realidades que atravessam o nosso quotidiano sem que nós, no afã desse mesmo dia a dia, cuidemos em sistematizá-las. E que é necessário surgir alguém, munido de ferramentas académicas, para pôr todas essas perceções em ordem. Através do trabalho que resultou neste livro passamos a entender melhor certas coisas que, por fazerem parte do nosso cenário comum de vida, não tínhamos isolado e organizado. 

Lembro-me bem de que, quando comecei a estudar sociologia, nos alertavam para a dificuldade que essa ciência começou por ter, para se afirmar, pelo facto de tratar de coisas comuns, que faziam parte quase inconsciente da nossa rotina, mas que, até ali, não tinham encontrado a dignidade de um tratamento científico. Ao ler este estudo lembrei-me bastante disso. As questões de segurança, para o cidadão comum, estão muito nesse plano.

O segundo sentimento é de alguma preocupação. Embora o Nelson, no seu esforço para não perder o otimismo, caia sempre, no texto, no "dever ser", na possibilidade de se organizarem soluções para os problemas encontrados, como contraponto às disfunções que vai alinhando, na radiografia crítica que faz da evolução das várias dimensões da segurança, devo confessar que, em regra, cheguei ao fim dos vários capítulos, das "lições" em que o livro se divide, com o sentimento de uma acrescida inquietação. É que algumas das derivas detetadas no estudo, para quem for minimamente realista, não auguram nada de bom.

Um leitor comum decantará deste livro uma banalidade que, nem por o ser, deixa de ser uma constatação, uma grande verdade: a segurança, nos dias de hoje, já não é o que era. 

Ao percorrer o texto, o leitor será levado a concluir o óbvio: que, nas sociedades contemporâneas, aquelas que eram algumas das baias que, no passado, sustentavam os mecanismos da segurança coletiva têm vindo a ser corroídas e é cada vez mais problemática, eu diria mesmo improvável, a possibilidade de se vir a restaurar o contrato social que garanta a sua eficácia, aceitação e, mais do que isso, a perceção da sua legitimidade.

Deste livro ressalta a ideia de que a diluição de algumas fronteiras, físicas e outras, que, no passado, isolavam e protegiam de contágio algumas realidades sociais, no seu nível nacional ou outro, ao desaparecerem ou atenuarem-se, geraram dinâmicas que obrigam ao desenho de novos modelos de governança nos domínios da segurança. E que, nesse domínio, estamos a viver um tempo de transição que parece muito longe de resolvido.

Gostava, naquilo que é a minha experiência, na área da segurança internacional, de partilhar agora algo de pessoal. E que vai no mesmo sentido daquilo para que este livro aponta.

Na última década, tenho sido chamado, no âmbito de várias empresas e instituições com ação internacional, a preparar pareceres sobre os riscos seus investimentos externos. Nessa atividade, confronto-me com uma crescente dificuldade, ao procurar identificar a importância relativa das várias variáveis de segurança, a que os responsáveis dessas mesmas empresas devem atentar nas suas opções. Não sou pago para espalhar alarmismos fáceis, mas também não me posso eximir a ser claro nas áreas onde me parece que existem riscos reais. 

As variáveis que costumo utilizar têm uma dupla natureza. 

Por um lado, as questões internacionais que provocam desequilíbrios na segurança política e institucional desses mercados e, por outro, as dinâmicas políticas internas dos vários países, onde às vezes tenho de travar derivas imaginativas que quase relevariam da futurologia. Se lhes disser que os mercados de África e da América Latina fazem parte essencial dessas minhas preocupações profissionais, perceberão melhor a minha inquietação. Noto, aliás, que o Nelson, no seu livro, refere precisamente essas duas geografias, como estando no centro de problemas muito específicos em matéria de segurança que ele desenvolve.

Mas se eu acrescentar que a outro tipo de investimentos pode também não ser indiferente o facto de Trump estar ou não na Casa Branca, acho que isso também ajuda a perceber aquilo que hoje interroga alguns operadores económicos.

Falei da América Latina, da África, dos Estados Unidos. E na Europa? 70 anos sem guerra tinham adormecido a nossa precaução coletiva. E, agora, com a Rússia no estado em que está, como é que vai ser? E o futuro será com a NATO ou vai ter de ser vivido sem as suas teóricas garantias de segurança? E os surtos de terrorismo? E as tensões migratórias, religiosas, identitárias? E os populismos? E a China? E as suas relações cada vez mais tensas com os EUA? E a Europa, vai de arrasto da sinofobia de Washington?

Está tudo mais indefinido. Pensar a prazo é um imenso salto no escuro. Julgo que todos temos um pouco a sensação de que, no passado, tudo era mais facilmente enquadrável, que havia mais constantes em que nos podíamos apoiar, que as linhas tendenciais de evolução de riscos eram mais rapidamente definíveis. Acho que todos temos a tentação de pensar assim apenas porque o passado já lá vai. Mas se metermos uma mão na nossa memória dificilmente encontraremos um tempo em que, nesse tal "bom" passado, alguma vez se viveu o sentimento de não estar em crise.

Mas é verdade: sentimo-nos, nos dias de hoje, um tanto perdidos e menos capazes de entender as dinâmicas de um mundo onde à debilidade do poder enquadrador dos Estados se soma a perda de alguns padrões comuns, de aceitação mais ou menos implícita, que nos davam algum conforto. 

É uma evidência que a Guerra Fria constituía um terreno de serena previsibilidade. Os riscos eram imensos, existenciais, mas pareciam empatados. As tensões ideológicas desenhavam um mundo a preto e branco, onde era fácil saber onde cada um estava. As fronteiras protegiam as visões nacionais, as "nuances" eram muito relativas. O que saía fora dos carris parecia identificável e controlável. Com o ilusório fim dessa mesma Guerra Fria, até a paz eterna pareceu possível. Por um momento, os riscos pareceram atenuados, contidos, comportados num quadro em que o diálogo alargado aparecia como panaceia. O fim das fronteiras, físicas e virtuais, iriam, na visão mirífica desses novos "amanhãs que cantam", criar um éden de entendimento, nessa nova Sociedade Global que o livro do Nelson analisa.

Só que, depois, foi o que se viu. O livro do Nelson Lourenço tem a imensa virtude de nos explicar, às vezes não o dizendo explicitamente, que esse novo mundo maravilhoso foi, afinal, um "trompe l'oeil". E ao mostrar-nos, com a serenidade "rassurante" do "argot" académico, como as coisas, em lugar de se simplificarem, se tornaram afinal muito mais complexas. Ou "desafiantes", como está na moda dizer, quando se pretende disfarçar os riscos perante os acionistas e melhorar os bónus dos KPI. Mas, essencialmente, a meu ver, as sociedades podem estar a perder o fio à meada, o controlo de algumas dinâmicas, algumas já puxadas e conduzidas por pulsões extremistas.

Permitam-me agora que termine com a ligação de um dos capítulos interessantes do livro à nossa atualidade nacional próxima. É, aviso, uma questão polémica. Falo da polícia.

Nesse capítulo, o Nelson desenvolve o tema da relação dos cidadãos com a polícia. E fala da importância de afirmação da autoridade democrática, bem como da confiança que a instituição policial deve inspirar na sociedade. E explica também que, dentro dessa mesma sociedade, a leitura sobre a bondade da atitude e comportamento das polícias está hoje longe de ser uniforme. Por exemplo, numa sociedade multi-étnica, multicultural e com áreas de forte exclusão, há setores que perdem a confiança na polícia, porque entendem que esta os descrimina e os tem por alvos preferenciais na ação repressiva. É a sociedade que se divide perante a polícia.

Ao olhar o que passa entre nós com o comportamento recente dos elementos das forças policiais, pergunto-me qual irá ser o efeito na perceção de segurança dos nossos cidadãos que as atitudes de muitos elementos das forças policiais podem vir a provocar. Quando os polícias incumprem as leis das manifestações públicas, quando apresentam baixas médicas que parece serem falsas, quando ameaçam com o boicote das eleições, dando frequentemente de si próprios a imagem turbulenta, como a que agora estão a projetar, em que medida isto é ou não uma questão que afeta a segurança coletiva? Quando os sites e grupos de Whatsapp ligados a associações policiais refletem a sua adesão a ideologias extremistas, quando se acumulam sinais de praticas discriminatórias da polícia sobre setores étnicos, qual a confiança que essa mesma polícia pode despertar nos cidadãos? 

Faço parte de uma geração que, com orgulho, assistiu à transição e à mudança de qualidade das polícias, de órgãos repressivos ao serviço da ditadura até se tornarem forças prestigiadas de proteção da vida cívica democrática. Esperemos que não se esteja agora a estragar todo esse percurso positivo.

Por tudo isso, meu caro Nelson, embora sabendo que não vais seguir o meu conselho, eu deixar-te-ia, provocatoriamente, a sugestão de que, num próximo livro, possas vir a tratar o tema "Quando a polícia ameaça a nossa segurança".

Muito obrigado pela vossa atenção.

15 de fevereiro de 2024

"Portugal e o Futuro"

Apresentação do livro "O general que começou o 25 de Abril dois meses antes dos capitães", de João Céu e Silva, no dia 15 de fevereiro de 2024

Começo por agradecer ao João Céu e Silva o convite que me fez para intervir na apresentação deste seu novo livro. Uma palavra de gratidão é também devida a Susana Santos, nossa anfitriã, e a Rui Couceiro, editor do livro.

Decidi colocar por escrito parte do que vou dizer, para ser mais sintético e poupar o vosso tempo.

Devo confessar que achei estranho quando recebi o contacto do João Céu e Silva. Não nos conhecíamos, não sou historiador, nem conheci pessoalmente António de Spínola. A verdade é que eu era oficial miliciano ao tempo do 25 de Abril e que andei envolvido em algumas "guerras" desse tempo. Mas fui um ator secundário, às vezes um mero figurante, mas sempre, assumo, um curioso "voyeur" de tudo aquilo.

Como toda a gente, tinha e tenho uma opinião sobre o que então se passou. Uma opinião que se alterou bastante, não necessariamente com o tempo, mas com os novos factos e revelações de que entretanto fui tendo conhecimento. E ainda hoje - por exemplo, com este livro - confesso que continuo a aprender.

Alguma dessa minha leitura dos acontecimentos deixei-a em textos que fui publicando, ao longo dos anos, no meu blogue. Ao que constatei, o João Céu e Silva leu-me e fez o favor de considerar digna do seu interesse essa minha perspetiva. Fico-lhe grato por isso.

De todo o modo, faço esta intervenção com a consciência de que estou a entrar em terrenos que não são os meus. Nesta sala estão pessoas que trabalharam diretamente com Spínola na Guiné - identifico João Diogo Nunes Barata, José Blanco, Carlos Matos Gomes e José Manuel Barroso - mas igualmente um historiador, como José Pedro Castanheira. Assumo, por isso, a minha talvez irresponsável ousadia em tratar este assunto. Mas vamos então a ela.

Começo por dizer onde estava, onde estávamos muitos de nós, há 50 anos. Para um civil fardado, que era o que eu era por esse tempo de 1973/1974, aquela tropa não era a minha guerra: era uma coisa deles, do regime, da ditadura, que nos era imposta. Mesmo em gente mais moderada ou complacente com o regime, não se via, à época, o menor entusiasmo em torno na guerra colonial. A guerra pode ter sido popular nos seus alvores, logo em 1961, mas já o não era mais. Por essa altura, a aventura colonial só era exaltante para alguns meios nacionalistas radicais.

No máximo, as pessoas assumiam a guerra como uma inevitabilidade, a que tinham de adaptar a sua vida. Mas vamos ser claros: a guerra colonial já não motivava praticamente ninguém. Eu diria mesmo que o patriotismo não passava por ali. Havia uma imensa indiferença face ao discurso gongórico do regime. 

Embora na perspetiva dos militares profissionais as coisas pudessem ter outra perspetiva, havia um outro pormenor: para nós, civis, a guerra colonial não tinha feito salientar grandes vedetas militares. O nome então mais conhecido, aliás, entre os generais, era mesmo Kaúlza de Arriaga, não Spínola. Tinha fama de "ultra" e tinha no seu currículo o facto de ter sido um dos operacionais que tinham desativado o golpe de Botelho Moniz, em abril de 1961. 

Spínola era um nome de que também se falava, mas não tinha minimamente a imagem de ser um democrata. Pelo contrário. Persistia mesmo a ideia de que tinha ido como observador na Divisão Azul, na companhia de fascistas ibéricos que tinham estado ao lado da Wermacht, à espera da queda militar a União Soviética. 

Para muita gente da minha geração política, e em termos muito simples, Spínola era um "fascista" como os outros. O seu perfil físico e coreográfico, aliás, confortava esse preconceito. Spínola parecia uma caricatura de si mesmo: o pingalim, as botas, o monóculo. Mas é verdade que, ao contrário de Kaulza, que projetava uma imagem de combatente encarniçado pelo regime, da Guiné chegavam alguns sinais da relativa heterodoxia de Spínola.

Ele fora mandado para lá ainda por Salazar e fora mantido por Caetano. Ao que constava, vinha a assumir algumas tomadas de posição um pouco ao lado do discurso oficial. Com a emergência do caetanismo, havia rumores de que Spínola chegou a estar próximo da linha da ala liberal, enquanto ela durou. E isso era interessante para quem, como era o meu caso, via com agrado o surgimento de fraturas na muralha política do regime.

Contudo, o discurso de Spínola parecia manter uma ambiguidade que dava para tudo. E, repito, ele não era visto como um democrata. Longe disso, tinha mesmo um perfil de recorte autoritário. Isto para dizer que, para quem andava então pelo Portugal europeu fardado à força, opositor ao regime embora sem atividade muito evidente, como era o meu caso, Spínola não tinha uma réstia de credibilidade acrescida face ao resto da hierarquia militar. 

Sabia-se que, na Guiné, ele tinha desenvolvido uma boa ação social, de captação das populações e das chefias tradicionais, mas via-se isso como algo de puramente tático, como a sua forma pessoal de levar a água ao moinho da aventura colonial, cujo estertor nos parecia cada vez mais evidente. Eu era então oficial de Ação Psicológica da minha unidade e, perante o que nos chegava da Guiné, aquilo parecia um "déjà vu". 

Sabia-se, no entanto, que o pessoal militar que tinha estado na Guiné criara, em muitos casos, uma forte admiração pelo homem, até pela coragem física que o general revelava. Mas, repito, daí a vê-lo como um democrata, suscetível de encarnar uma alternativa decente ao regime, ia uma imensa distância.

Quando Spínola regressou à Europa, o facto de ter sido para ele criado o cargo de vice-CEMGFA tinha sido um óbvio sinal revelador da sua força. O regime faz-lhe algum "rapapé", o que provava que a figura de Spínola se tornara incontornável. Saíra da Guiné com prestígio militar, era mesmo uma espécie de vedeta e tenho a sensação de que muitos se interrogavam já sobre o real papel de Costa Gomes nesse tandem. 

Volto a lembrar que esta era a perspetiva de quem não estava no segredo dos deuses das tricas e entendimentos entre o pessoal militar. De quem sabia vagamente das reivindicações corporativas mas desconhecia onde estava Spínola face a tudo aquilo. 

Quando surgiu o "Portugal e o Futuro", que foi um livro que me recordo de ter lido com algum enfado, devo ter dado comigo a pensar: se este homem, nesta posição, escreve e publica isto, é porque tem força para tal. Quando observei que, com a publicação do livro, ele entrou em conflito com o sistema, concluí que dali podia resultar alguma coisa séria.

Quem viveu essa época sabe que então se observavam, com muita atenção, todas as dissonâncias que pudessem emergir no seio do regime. 

Depois, Spínola e Costa Gomes são demitidos. E dá-se o episódio das Caldas. Recordo, na minha unidade militar, que o modo como os vários oficiais reagiram a esse evento foi visto como um "separar de águas": percebeu-se quem reagiu negativamente ao golpe e quem se "neutralizou" taticamente. 

Simultaneamente, nos contactos entre os oficiais do quadro e os milicianos, sentia-se que se estava a gerar uma aproximação a um momento que parecia cada vez mais iminente.

Mas, devo confessar, na minha perspetiva, que era a de quem estava um tanto distante da realidade da conspiração, as Caldas tinham sido um golpe falhado, inserido no contexto global da revolta que sabíamos estar em curso. Só mais tarde vim a entender a diferença entre as duas coisas.

E chegamos ao dia 25 de Abril, aos seus antecedentes imediatos e aos tempos que lhe sucederam.

Muitos de nós, como disse, acompanhámos todos esses tempos com muita atenção. Tínhamos assistido à chegada do "Portugal e o Futuro", tínhamos, com preconceitos e desconhecimentos à mistura, a tal ideia menos positiva de Spínola, não sendo para nós muito clara a sua relação com a agitação que sentíamos no pessoal do quadro. E posso presumir que, à época, misturássemos as duas coisas.

Apesar de nos julgarmos bem informados, não estávamos: só tínhamos a espuma visível. Mas, apesar de tudo, com todas essas limitações, éramos uns privilegiados. E digo isto porquê? Porque, no 25 de Abril, essa não era a situação do cidadão comum português, que não fazia a mínima ideia de que Spínola tivera de obter luz verde da Pontinha para poder ir apanhar o poder ao Carmo. 

Para o cidadão comum, naquele dia, Spínola foi visto como o "dono" da Revolução. Esse mesmo cidadão tinha uma vaga noção de que Spínola tinha escrito um livro que, no fundo, era contra a continuação da guerra, numa atitude que contrariava a vontade de Caetano, o qual, por essa razão, o tinha demitido. E ali estava agora ele, a sair vitorioso do Carmo, com o poder na mão. 

Horas depois, já pela madrugada, lá surgia ele de novo sentado no centro da Junta de Salvação Nacional, que a RTP nos dava a preto-e-branco. Sem um sorriso, lá estava o mesmo Spínola, mostrando um esgar de autoridade, que só assustou alguns mais atentos, a dizer ao que o novo poder vinha. 

Ninguém sabia do debate que, entretanto, tinha tido lugar na Pontinha, a propósito da linguagem a inserir na proclamação do MFA, nem ninguém fazia ideia de que aquilo que ele dizia era produto de um compromisso. Repito: aos olhos da esmagadora maioria dos portugueses, Spínola era o chefe incontestado da Revolução. Para muita gente, com a edição do seu livro, ele fora o responsável pelo golpe. 

A invisibilidade do MFA, da sua Comissão Coordenadora, que foi deliberada, como sabemos, ajudou muito nessa perceção. Com a preocupação de ter oficiais generais a dar a cara, para "inglês ver", para não dar ares latino-americanos ao golpe militar, os capitães de Abril fizeram o movimento correr esse risco.

Spínola percebeu isso e cavalgou essa mesma perceção enquanto pôde. Desde logo, tentando dividir o MFA, procurando dar força às dimensões militares mais recuadas - parte das quais, valha a verdade, só ficaram de alma e coração com o movimento enquanto ele não se afastou de Spínola. 

Depois, quando viu que a relação de forças dentro da tropa começava a não o favorecer, Spínola, aproveitando a tal perceção pública de que "o 25 de Abril era ele", optou pelo circuito dos discursos catastróficos, com um pouco subliminar anti-comunismo como linha doutrinária básica. Mas já era tarde e o 28 de setembro acabou por colocar um ponto final nessa estratégia.

É na análise de todo este este turbilhão, da Guiné até ao afastamento institucional de Spínola, que o livro de João Céu e Silva revela fortes méritos. 

Desde logo, através de vários testemunhos, traça-nos um retrato da figura de Spínola, do seu perfil militar mas, igualmente, das suas inegáveis ambições no terreno político. A discrição que dele vai sendo feita ajuda-nos a perceber melhor que, por detrás da imagem de um general poderoso e carismático, havia um político inábil, precipitado, algo naïf. Spínola nunca terá percebido que a sua aura militar estava muito longe de o poder conduzir a uma carreira política estável. Spínola era um autoritário. Nunca seria um líder democrático. Não é De Gaulle quem quer...

Um segundo retrato que o livro nos traz é o do spinolismo, desse deslumbre de grupo em torno de um militar corajoso e afirmativo, que arrastou atrás de si muita gente que com ele trabalhou. Mas que também deixou outra gente de fora, de que Vasco Lourenço é talvez a cara mais emblemática. O spinolismo pescou em áreas do Movimento dos Capitães, mas não consegue influenciá-lo de forma marcante. Foi o spinolismo que esteve no centro do golpe das Caldas, mas, até por isso, pela neutralização temporária do núcleo do spinolismo que o falhanço desse movimento representou, ele foi praticamente irrelevante para a execução do 25 de Abril. 

Aliás, a tentativa de recuperação do 25 de Abril, levada a cabo por Spínola e pelos spinolistas, na Pontinha, na noite de 25 de Abril, falhou por isso mesmo. São dois mundos que se tocam, mas que, a partir dessa data, estarão em crescente divergência.

Este trabalho permite-nos também perceber que o objetivo de Spínola ao escrever o livro, para além de se colocar num pedestal, como um militar que queria dar voz aos seus camaradas cansados de dar tempo ao poder político para resolver o problema africano, não era fazer uma revolta: o seu objetivo era fazer evoluir o regime, numa perspetiva reformista. Democrática? Logo se veria. Para o "Portugal e o Futuro" essa não parecia ser a preocupação central. 

O João Céu e Silva fala bastante da ocultação do "Portugal e o Futuro", no pós 25 de Abril. Será deliberado ou será pela sua objetiva irrelevância da sua mensagem, como parece pensar Medeiros Ferreira? 

A importância do livro é o gesto conseguido com a sua publicação ou o seu conteúdo? As suas soluções ainda teriam um mínimo de exequibilidade no tempo internacional de então? Ao publicá-lo, Spínola pensaria que estava a dar uma oportunidade a Marcelo Caetano para, com um apoio militar, tentar uma hipótese de evolução do regime? 

Eu inclino-me para algo que Raul Rego, ao que recordo, disse: "O que Vossa Excelência disse não é novo. O que é novo é isso ter sido dito por Vossa Excelência".

Ninguém mais falou do "Portugal e o Futuro", depois do 25 de Abril? Claro que não. O programa do MFA, mesmo com todos os cuidados semânticos que Spínola lhe introduziu na Pontinha, era a-noite-e-o-dia face ao "Portugal e o Futuro". Por isso, porque a sua mensagem como manifesto para uma solução política está inapelavelmente datada, o livro morre nesse dia.

Sem querer entrar demasiado pela História contra-factual, gostava de terminar especulando um pouco. 

Imaginemos que, por uma qualquer razão, o livro de Spínola não tinha sido publicado até ao momento em que se dá a revolta militar dos capitães. 

E, que, sem livro, portanto, sem a demissão dos dois chefes militares, sem ter havido golpe das Caldas, sem a cena da "brigada do reumático" e - muito importante ! - sem o destaque relativo de Spínola face a Costa Gomes (que o livro proporcionou), o movimento fazia o seu golpe.

Um parêntesis para um ponto muito importante que João Céu e Silva não deixa de destacar: sem o "Portugal e o Futuro" publicado, haveria um setor significativo das Forças Armadas que talvez se tivesse sentido menos motivado para aderir ao Movimento dos Capitães. É que o livro de Spínola, independentemente do seu conteúdo não muito radical sobre a política colonial, acabou legitimar interrogações sobre o fim da guerra. E muita gente, nas Forças Armadas, só aderiu ao golpe porque estava motivada pelo dissídio de Spínola.

Mas imaginemos que, sem o livro, nesse dia do golpe, Costa Gomes era CEMGFA e Spínola vice-CEMGFA, isto é, eram eles a cúpula do poder militar na data do golpe. Como reagiria essa hierarquia militar face ao golpe? 

Sempre se poderia dizer que, de toda a forma, o capitães teriam ido buscar esses dois generais. Mas, nesse caso, sem o "Portugal e o Futuro" a destacar Spínola face a Costa Gomes, sem a cena da entrega do poder no Carmo, seria Spínola a personalidade escolhida para titular o novo regime?

Posso estar enganado mas, sem o "Portugal e o Futuro", estou em crer que Costa Gomes teria sido, muito mais facilmente, a escolha do MFA para chefiar a Junta de Salvação Nacional, como era patente.

Sem o "Portugal e o Futuro", Spínola teria sido Presidente da Junta de Salvação Nacional e, depois, Presidente da República? Acho que não.

Mas a história não se faz de ses, pelo que tudo acabou por acontecer como aconteceu. E, para nos ajudar a compreender o que aconteceu, este livro ajuda-nos muito.