6 de janeiro de 2010

Apontamentos

colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA



Francisco Seixas da Costa

Apontamentos




Índice



Introdução...............................................................
Portugal e a política externa brasileira....................
A dimensão política do projecto europeu................
A negociação institucional..........................................
Um tratado para outra Europa.................................
A Europa, a cultura e o mundo................................
Segurança europeia................................................
Pensar Portugal no mundo.....................................
A independência de Portugal hoje..........................
A Europa não nos divide.........................................



INTRODUÇÃO



“Direi o que mais me ocorre,
não como quem ensina,
mas como quem lembra.”

D. Luiz da Cunha
“Carta de Instruções”

        Este volume reúne textos escritos entre 2005 e 2009. Parte deles foi destinada a públicos do Brasil, enquanto aí chefiei a representação diplomática portuguesa. Outra parte teve como alvo leitores ou auditores portugueses e, num dos casos, um público europeu alargado. Esta diversidade, aliada ao facto de peças escritas para publicação conviverem com transcrições de intervenções orais, acarreta inevitáveis consequências no tom e na linguagem de cada uma.
       Ao juntar os textos, dei-me conta que a questão europeia, de um modo ou de outro, acaba por ter neles uma presença dominante, quanto mais não seja porque essa dimensão, embora em termos nem sempre unívocos, sobredetermina hoje a minha perspectiva sobre o quadro geral das relações externas portuguesas. Mas notei, igualmente, que a preeminência desse prisma de observação me induziu, em alguns casos, a enveredar por um questionamento do papel de Portugal no mundo contemporâneo, bem como da acção dos agentes diplomáticos portugueses nesse contexto.
       Hesitei muito antes de publicar este volume, em particular numa colecção com o selo oficial do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Com efeito, reconheço que estes textos saem frequentemente fora do conceito da pura diplomacia e enveredam por áreas em que terrenos da política externa se cruzam com uma leitura algo pessoal e geracional das situações, frequentemente tributária das várias experiências que fui tendo ao longo do tempo. Porém, porque estas peças existiam já, em muitos casos divulgadas em suportes escritos menos acessíveis ao leitor português, acabei por tomar a decisão de as reunir aqui. Com isso, faço também um teste à eventual coerência que os textos podem revelar entre si, bem como à sua compatibilidade com o que já publiquei no passado. O eventual leitor julgará por si.
       Corro a imodéstia de pensar que este volume pode ter a virtualidade de estimular algum debate de ideias, em especial junto das novas gerações, a quem pertence o futuro do serviço diplomático português. Porque é na sua formação e crescente responsabilização que deve assentar muito do nosso trabalho, julgo que temos o dever de lhes transmitir o saldo da nossa diversa experiência, a fim de eles poderem continuar a assegurar, com eficácia e convicção, a defesa do conjunto de interesses que, como servidores públicos, compete à nossa diplomacia salvaguardar, sob as orientações de política externa decididas por quem tem a legitimidade democrática para as definir.


***

       Quero manifestar o meu reconhecimento ao embaixador Carlos Neves Ferreira pelo interesse que demonstrou em que eu publicasse este conjunto de textos na colecção editada pelo Instituto Diplomático, de que é presidente. Foi a sua amiga persistência que acabou com a minha resistência em divulgá-los.

***

       Dedico este livro à memória do meu Pai, que teria a idade da nossa República.


Paris, 5 de Outubro de 2009


PORTUGAL E A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA[1]


















   
       A ideia central deste exercício é identificar alguns parâmetros característicos da actual política externa brasileira e procurar cruzá-los com as linhas centrais mais relevantes da afirmação de Portugal no quadro externo. A partir daí, tentar-se-á constatar apenas o que for óbvio: as coincidências, as eventuais dissonâncias ou os diferentes sublinhados.
       A observação da política externa brasileira, ao longo dos tempos, é um exercício fascinante, para o qual podemos contar hoje com uma óptima historiografia e uma análise teórica interna de grande valia. Servida por uma excelente escola de diplomacia, mundialmente reconhecida, a política externa brasileira configura um dos mais bem sucedidos modelos ditos “do Sul”. E os últimos anos mais não têm feito do que confirmar que estamos perante um modelo coerente e dinâmico.
       Embora seja sempre difícil, e mesmo caricatural, tentar tipificar um quadro de opções externas de um país, julgo poder dizer que o Brasil assenta hoje a sua afirmação internacional em alguns postulados-base. Vou tentar identificá-los:
     
       - a necessidade do reforço do tecido político-económico regional em que o Brasil está inserido, com vista a favorecer o desenvolvimento económico-social e a criação de condições para um futuro de paz e estabilidade de todos os Estados da região, bem como a servir de instrumento eficaz de interlocução a um nível mais global;
       - a preeminência do sistema multilateral, como instrumento regulador da sociedade internacional, ao qual, na sua perspectiva, importará introduzir mudanças que, simultaneamente, reforcem as suas democraticidade, representatividade, legitimidade e credibilidade;
       - uma política alargada de criação de acordos e entendimentos estratégicos globais “a Sul”, como forma de gerar uma dinâmica multipolar na ordem mundial e abrir espaço para novos e criativos modelos de articulação entre países emergentes e em desenvolvimento, com impactos na respectiva relevância à escala global;
       - a afirmação de uma nova liderança na gestão do posicionamento dos países em desenvolvimento na ordem económica internacional, em especial no quadro da Organização Mundial de Comércio (OMC) e nas negociações comerciais entre espaços de integração regional;
       - a titularização de uma agenda própria “do Sul” na ordem internacional, nomeadamente através da promoção de políticas multilaterais de combate à fome, à pobreza e à exclusão social, de mecanismos de protecção do desenvolvimento sustentável, bem como a transformação das instituições financeiras internacionais à luz de uma nova filosofia no apoio aos processos de desenvolvimento.

       Embora estes cinco tirets estejam longe de esgotar a ambiciosa e criativa agenda internacional do Brasil, eles representam, na minha perspectiva, os eixos que importa considerar para o modelo de abordagem a que me propus.
      Vou tentar analisar, perante cada um deles, o modo como Portugal se situa.
    
América do Sul versus América Latina

       Quanto ao primeiro ponto – reforço do sistema político-económico regional –, começaria por notar que foi sempre com grande entusiasmo que Portugal acompanhou a formação do Mercosul, a densificação do seu tecido de políticas e o seu carácter embrionário como elemento de integração regional. Desde o primeiro momento, o nosso país reconheceu as virtualidades deste projecto para o desenvolvimento económico-social dos países envolvidos, e dos que poderia vir a abranger no futuro, tanto mais que ele significava a vitória de uma ordem de valores de liberdade, democracia e justiça social que eram comuns ao próprio projecto europeu em que nos inserimos.
       Portugal tem notado que os projectos que envolvam a América do Sul têm representado, para o Brasil, uma prioridade nos modelos de entendimento que procura promover no âmbito do continente americano. Percebemos a racionalidade geopolítica desta opção, tanto mais que se torna evidente que há lógicas de vizinhança próxima que facilitam a identificação de interesses comuns, seja na coordenação estratégica em matérias de natureza política mais global, seja na abordagem de temas transnacionais com uma dimensão regional específica, como é o caso do ambiente, do combate ao narcotráfico e à criminalidade que lhe está associada.
       De facto, ao procurar reforçar a América do Sul com uma crescente identidade própria, de que o projecto da Comunidade Sul-Americana das Nações (agora chamada Unasul) é uma interessante evolução em termos de modelo de cooperação política à escala regional, o Brasil está a contribuir, de forma decisiva, para se afirmar, como grande país democrático que é, como uma potência de influência, susceptível de ser um eixo de articulação da sua vizinhança próxima. Isso permitirá favorecer a capacidade de prevenção de conflitos intra-regionais e contribuir também para a criação de plataformas colectivas de promoção de diálogo que facilitem a regularização de eventuais tensões internas nos Estados vizinhos.
       Neste quadro, e não sendo um país da região, compreender-se-á que Portugal não possa ser indiferente, por razões que são óbvias, à evolução das tensões políticas na Venezuela. Foi, aliás, o próprio Presidente Lula que revelou ter estimulado o nosso país a manter-se empenhado neste importante dossiê, onde se jogam interesses vários e, em especial, equilíbrios geopolíticos que excedem a sua dimensão nacional.
        Para Portugal, a criação de uma massa crítica própria que permita auxiliar à resolução dos conflitos regionais, bem como à promoção de soluções constitucionais para redução da conflitualidade dentro de alguns dos Estados, constitui sempre um interessante objectivo. Tem sido essa, aliás, a linha que defendemos para outros quadrantes geográficos.
       Todos temos de ter a consciência que outras alternativas a este modelo poderão vir a passar pela presença condicionante ou constrangente de poderes exógenos à sub-região, normalmente aproveitando a fragilidade ou a complacência de alguns parceiros, com consequências históricas que configurariam muito mais do que um simples recuo temporário.
       Mas também percebemos que a vocação regional do Brasil se não esgota a sul do continente, porque, como diz Marco Aurélio Garcia, “a ênfase sul-americana da política externa brasileira não significa abandonar uma perspectiva latino-americana e caribenha”. É o que fica evidente, por exemplo, no caso da liderança brasileira das forças multinacionais no Haiti e na sua política, muito específica, face a Cuba.
       No primeiro caso, a presença brasileira no Haiti configura uma tendência de responsabilização regional que, como antes referi, vai no sentido do que Portugal preconiza como desejável em matéria de operações de paz. 
       No segundo caso, o nosso país revê-se na leitura europeia que pugna pela necessidade do regime cubano dar concretos sinais de abertura em termos de respeito pelos Direitos Humanos e pelos princípios democráticos. Como o Brasil, discordamos da tentativa de aplicação extra-territorial de normas legais impostas num quadro nacional específico e entendemos, contra a opinião de outros, que as portas do diálogo político não se podem fechar nunca. Sem querer ir muito mais longe neste tema, diria que o Brasil tem, apesar de tudo, uma leitura mais flexível do que a União Europeia quanto à condicionalidade política que deverá ser apresentada a Cuba, no quadro da sua desejável inserção na comunidade internacional. Mas o Brasil partilha o essencial das nossas preocupações.   

A aposta multilateral

       Passaria ao segundo ponto, para sublinhar que, no tocante à preeminência do sistema multilateral, tem sido patente que há uma coincidência muito grande de pontos de vista entre Brasília e Lisboa.
       Portugal é um activo defensor do multilateralismo como instrumento privilegiado de regulação da ordem internacional e, tal como o Brasil, favorece uma reforma do sistema das Nações Unidas, nomeadamente o alargamento do Conselho de Segurança onde – como sempre dissemos – o Brasil deve ter direito a um lugar permanente, pela relevância do seu papel como actor regional, com expressão à escala global. Cabe lembrar, neste contexto, que o Brasil não tem armas nucleares nem conflitos externos pendentes, possui uma economia cada vez mais expressiva e uma forte e respeitada tradição diplomática. Tudo isto o qualifica para tal papel.
       Talvez não tenhamos, rigorosamente, a mesma leitura sobre as virtualidades e exequibilidade da transformação da Assembleia Geral numa espécie de contra-poder ao Conselho de Segurança, com vista a “assumir as suas responsabilidades na administração da paz e da segurança internacionais”, como foi proposto pelo Presidente Lula, mas somos muito favoráveis a um reforço deste órgão no quadro da divisão onusina de poderes.
       Encaramos também, com muita simpatia, a perspectiva brasileira de conferir uma utilidade mais efectiva ao Conselho Económico e Social (ECOSOC), que deve encontrar o seu ponto de articulação com o Conselho de Segurança, na prevenção dos conflitos e nos processos de reconstrução pós-conflito.
       Como o Brasil, Portugal coloca o seu pleno empenho na generalização da cobertura do Tribunal Penal Internacional e do Acordo de Quioto, bem como no completar do quadro normativo de combate ao terrorismo de natureza internacional. Neste particular, Portugal, tal como o Brasil, salienta a necessidade de serem tidas em atenção as raízes sociais, económicas e políticas do terrorismo, nomeadamente as de natureza regional, e defende que o seu combate deve sempre fazer-se no escrupuloso respeito pelos Direitos Humanos.
       Aqui chegados, convirá relevar que Portugal assume hoje, no seu desenho de evolução desejável da ordem multilateral, uma diplomacia de matriz marcadamente ética, como um dos factores identitários fundamentais da sua política externa. Assim, e na perspectiva portuguesa, os limites à não-ingerência deixam de ser válidos quando estiverem em causa valores maiores de natureza humanitária, da defesa da ordem democrática, do Estado de Direito e da protecção dos cidadãos e dos seus direitos fundamentais, nomeadamente o exercício pleno das liberdades políticas e de expressão. Uma análise comparada com a perspectiva brasileira quanto a esta temática específica está, contudo, por fazer.

As novas alianças

       Uma terceira ordem de prioridades do Brasil liga-se à sua recente vocação para o estabelecimento de acordos estratégicos com outros Estados do “Sul”.
       Nos últimos anos, e no prolongamento de uma política de diálogo que, desde há muito, soube construir e prolongar com outros actores internacionais, o Brasil revelou um interessante dinamismo que o conduziu a entendimentos de natureza bilateral ou plurinacional, de grande alcance potencial. O objectivo concreto é, nas palavras utilizadas pelo Presidente Lula no seu discurso de posse, “estimular os incipientes elementos de multi-polaridade da vida internacional contemporânea”.
       Algumas críticas surgiram no mercado dos comentadores face a esta opção brasileira por dar ênfase à sua relação com os países em desenvolvimento. Ora a verdade é que nada indica que esta opção tenha sido feita em aberto detrimento de outras dimensões externas. O que aconteceu é que esse movimento foi simultâneo com a ocorrência de alguns bloqueamentos na relação no Brasil com o “Norte”, de que são exemplo as dificuldades técnicas em torno da negociação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), os problemas negociais no estabelecimento do acordo Mercosul-União Europeia e os atrasos ocorridos no debate do dossiê agrícola no quadro da OMC, no âmbito do ciclo de Doha.
       Mas voltemos às escolhas externas de novos parceiros feitas pelo Brasil.  Destacaria cinco iniciativas nesse contexto.
    A primeira diz respeito à China. Com ousadia, o Brasil estabeleceu laços de natureza económica muito concretos com Pequim, concedendo à economia chinesa o seu reconhecimento como economia de mercado. Esta aposta está, a meu ver, ainda numa fase de teste, porquanto o modelo em vigor – exportação de matérias-primas do Brasil para a China e importação brasileira de produtos chineses manufacturados – não cessa de suscitar algumas reticências nos sectores industriais brasileiros concorrentes da produção chinesa, um pouco aturdidos com a invasão de muitas mercadorias baixo custo.
       No plano estratégico, porém, esta opção do Brasil só pode merecer encómios. Quaisquer que sejam os fantasmas de alguns, a realidade é que a China passa por um processo de transformação interna cuja evolução positiva só pode fazer-se se associada à sua progressiva consagração internacional como economia de mercado. A União Europeia, e com ela Portugal, assume esta opção como decisiva, a prazo, para o equilíbrio global, pelo que esta linha de orientação brasileira é vista por nós com grande simpatia.
       Ainda no campo estritamente bilateral, o Brasil encetou também uma aproximação à Rússia, havendo hoje perspectivas de um relacionamento comercial cada vez mais intenso. Também esta aproximação vai na linha que, no seio da União Europeia, temos preconizado, no sentido de garantir à Rússia um quadro crescente de articulação externa, por forma a fazer frutificar a sua economia e a reforçar a sua abertura, garantindo, por essa via, a solidificação da sua estabilidade, a qual, naturalmente, não é indiferente a uma União Europeia alargada até às suas fronteiras.
       Numa lógica “Sul-Sul”, que associa os equilíbrios geopolíticos com os interesses económicos, o Brasil tem ainda feito esforços de coordenação com a Índia e com a África do Sul, com a criação do IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), numa articulação que combina as legítimas ambições desses três Estados em verem assegurados lugares permanentes no Conselho de Segurança na ONU e, ao mesmo tempo, conjuga alguns interesses comuns no âmbito do comércio internacional.
       Nomeadamente em relação ao primeiro daqueles propósitos, Portugal tem, como já referi, grande simpatia pelas ambições do Brasil e da Índia e reconhece a importância da África estar representada futuramente, em permanência, no Conselho de Segurança da ONU, sendo Pretória um candidato perfeitamente qualificado para tal.
       Finalmente, é muito interessante a iniciativa, sob a liderança do Brasil, da promoção de uma reunião em Brasília entre os países árabes e os países da América do Sul. Este encontro consagra uma ofensiva diplomática de grande alcance levada a cabo pelo Brasil, nos últimos anos, junto dos Estados árabes, no sentido de tentar reforçar os laços económicos e promover um diálogo político mais substantivo entre os dois mundos. Os sinais deste exercício são positivos, embora naturalmente sempre tributários das agendas retóricas que as questões do Próximo e Médio Oriente determinam. O facto de haver terceiros países que não esconderam a sua incomodidade com o exercício acaba por ser, a meu ver, a prova provada da sua real importância. Dito isto, é óbvio que se trata de uma iniciativa muito interessante, que um país como Portugal não pode deixar de saudar e estimular, atentas as suas excelentes e crescentes relações com o mundo árabe.
       Ainda a África. Não tendo a intenção de abordar aqui a questão específica da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), diria que o Brasil regressou, mais recentemente, a um renovado interesse por África, com que só podemos congratular-nos. O Presidente Lula e o chanceler Celso Amorim têm desenvolvido uma ampla agenda de contactos com países africanos, com os quais mantêm constante diálogo político e estabelecem amplas redes de cooperação bilateral. O prestígio do Brasil em África é muito grande e só tem condições para crescer.
       Na perspectiva de Portugal, que tem procurado, no âmbito bilateral, manter uma grande atenção às dificuldades de desenvolvimento e de estabilização política em África, bem como pugnado, no quadro multilateral, por políticas realistas de ajuda aos países em desenvolvimento, esta relação “Sul-Sul”, que o Brasil tem titulado, é da maior importância e alcance.

A liderança regional

       E passaria ao quarto ponto daquilo que defini como a agenda externa brasileira: a liderança regional nos processos negociais económicos internacionais, nos quadros da OMC e das relações com os EUA na ALCA e com a União Europeia no Mercosul.
       O presidente Lula costuma falar de uma “nova geografia económica e comercial” e, na realidade, o Brasil mostra-se muito empenhado em redesenhar esse novo mapa. Bem apoiado por um aparelho diplomático de primeira qualidade, que se treinou durante anos numa diplomacia comercial muito eficaz, o Brasil foi o grande promotor e líder do G-20, que tem tomado a dianteira nas negociações económicas multilaterais, de Cancún a Genebra. Embora tivesse de desistir da candidatura do embaixador Seixas Corrêa a director-geral da OMC – um nome que Portugal teria apoiado se o candidato da União Europeia não viesse a ser seleccionado –, o Brasil continua a ter um papel central nestes novos tempos da negociação.
       Menos produtivas têm sido as negociações relativas à ALCA e entre o Mercosul e a União Europeia.
       No primeiro caso, os sinais de evolução são ténues e, por vezes, algo contraditórios, talvez porque não esteja adquirida por todas as partes a bondade do saldo possível deste exercício. Menos que uma questão política, com contornos ideológicos, como alguns pretendem sublinhar, o processo ALCA é tributário de lógicas de interesses muito concretos, que são a linha da frente dos obstáculos com que se defronta.
       Quanto ao Mercosul, uma negociação que directamente nos afecta, gostava de deixar duas notas, não harmónicas entre si.
       A primeira para registar que, no quadro da negociação agrícola do Mercosul com a União Europeia, Portugal pode hoje considerar-se apenas um espectador atento. Com efeito, as grandes reivindicações agrícolas europeias dizem-nos muito pouco, isto é, apenas nos cumpre respeitar a nossa solidariedade formal com os parceiros da União Europeia. Como “contribuintes líquidos” da Política Agrícola Comum da União Europeia (isto é, de uma política para a qual pagamos mais do que recebemos), não temos interesses nacionais importantes a defender neste dossiê e, porventura, numa lógica de egoísmo nacional, que naturalmente não assumimos, teríamos mais vantagens, como importadores e consumidores de produtos agrícolas, se algumas das reivindicações do Mercosul acabassem por ser aceites sem dificuldade. É com este “entusiasmado” estado de alma que estamos a acompanhar o dossiê... Nem mais, nem menos.
       A segunda nota é de sentido bem contrário. Portugal é um país que, tal como outros parceiros da União Europeia, tem vindo a defrontar-se com sérias dificuldades, no domínio pautal, mas também ao nível dos obstáculos não pautais, no acesso do escasso leque se produtos que procura colocar no mercado brasileiro. Temos, assim, uma divergência com o Brasil no capítulo do acesso aos mercados e não vale a pena chamar à colação a retórica da excelência das relações bilaterais para tentar iludir uma realidade que é do pleno conhecimento de todos. Só podemos esperar do Brasil, no âmbito da sua negociação com a União Europeia, uma especial atenção a estes nossos problemas[2].
       E chegámos ao quinto e último vector das prioridades brasileiras – a promoção de uma agenda política “do Sul”.
       É neste terreno que o prestígio do Presidente Lula tem feito a diferença no cenário internacional. Com uma credibilidade que lhe advém do seu sucesso interno em matéria de políticas sociais, o Presidente brasileiro tem desenvolvido interessantes iniciativas tendentes a promover a tomada de consciência internacional quanto à necessidade de uma estratégia concertada na luta contra a fome, a pobreza e a exclusão social, tendo lançado a proposta da criação de um Fundo Mundial de Combate à Fome. Portugal apoia em pleno estes objectivos.
       Numa dimensão paralela, o Brasil tem advogado a necessidade da assunção de uma diferente filosofia nas práticas das instituições de Bretton Woods. Em particular no que toca ao Fundo Monetário Internacional (FMI), com a autoridade que lhe advém do facto de ter já dispensado o acordo de assistência daquela organização, o Brasil tem pugnado por uma alteração dos respectivos critérios contabilísticos, nomeadamente com vista a isentar os gastos em infra-estruturas nas despesas geradoras de défice, bem como a possibilidade de protecção rápida das economias de países em desenvolvimento que venham a ser objecto de ataques especulativos.
       Gostava de deixar claro que, em todas estas iniciativas, o Brasil pode contar com uma atitude favorável por parte de Portugal, cujo empenhamento activo em temas que envolvam apoio a países em desenvolvimento é conhecido.
       Abordámos cinco temáticas-chave no relacionamento externo do Brasil e procurámos, sobre cada uma delas, projectar o que poderia ser uma perspectiva portuguesa.

O grande vizinho do Norte

       Mas nenhuma análise da política externa brasileira ficaria completa de não abordássemos explicitamente a sua relação com os Estados Unidos da América.
       Qualquer leitura impressionista da opinião pública latino-americana registará, seguramente, a relação simultânea de atracção e de hostilidade face à potência hegemónica do continente. O Brasil não escapa a esta realidade e não é possível desenhar a sua história sem fazer esse contraponto constante. Os Estados Unidos tanto são vistos como o eldorado que marca os sonhos, como prefiguram a ameaça, a pressão ilegítima, um ambiente de desconfiança.
        A nosso ver, a actual política externa brasileira assume uma relação de grande maturidade na definição da sua relação com os Estados Unidos. Outra coisa não seria de esperar de um país que, sendo uma prestigiada potência regional, tem óbvias ambições como global player, denotando interesses que, medida a respectiva escala, hoje se intercruzam com os de Washington – de que são prova evidente, por exemplo, as iniciativas face ao mundo árabe, bem como a sua política para a China, a Índia ou mesmo no âmbito africano.
        Washington olha hoje para Brasília como um incontornável parceiro numa América do Sul onde já entendeu não terem desaparecido os germes da instabilidade. É óbvio que aos EUA não agradam as reticências brasileiras à ALCA, como não agradaram as fortes críticas feitas à sua política para o Iraque ou a agressividade das posições brasileiras nas guerras do comércio internacional. Além disso, uma certa “compreensão” com a situação cubana ou uma proximidade tida por exagerada como regime venezuelano também podem não cair bem em Washington. Mas, à la limite, Washington também percebe que lhe é muito útil manter uma relação privilegiada com uma grande força democrática do sul do continente, que tem contactos e acessos que a tradicional desconfiança face a uma grande potência não deixa nunca criar.
       Para o Brasil, esta special relationship crítica revela-se como altamente vantajosa: confere-lhe o estatuto de parceiro privilegiado de diálogo, de interlocutor perante situações de crise regionais e, ao mesmo tempo, dá-lhe a possibilidade de manter os EUA à distância física, evitando as tentações endémicas do eterno vírus da “doutrina Monroe”, que marca o código genético americano. É caso para perguntar se os vizinhos do Brasil já se aperceberam verdadeiramente das virtualidades desta realidade face à sua própria autonomia decisória.
       Pela nossa parte, pela parte de Portugal, é evidente que consideramos importante a constatação desta estabilidade de relações entre o Brasil e os EUA. Ela enquadra-se perfeitamente no nosso próprio quadro de entendimento com os EUA, que é um elemento estruturante do nosso espectro de relacionamento bilateral, que não pode nunca ser dissociado da nossa própria agenda de inserção multilateral, em termos de segurança e defesa.
       Vale a pena lembrar que, no nosso país, a estabilidade das relações com os EUA, que reputamos de essencial no nosso quadro externo, esteve sempre ameaçada por dois desvios de sentido contrário, ambos promotores de riscos graves de ruptura no consenso interno: a doença infantil do anti-americanismo e zelo patético dos hiper-seguidistas.
       Curiosamente, na história da política externa brasileira, encontramos também estas duas síndromas a marcar tempos da relação com Washington. Porém, como antes referi, a actual política externa brasileira teve sabedoria para ultrapassar essa polarização e tem hoje um quadro estável de diálogo com os EUA, que não exclui a saudável afirmação de divergências. Também aqui nos encontramos.

Portugal e Brasil

       Mas, afinal, em que se distingue o olhar português sobre o Brasil do dos restantes parceiros europeus?
       A Europa parece olhar para o Brasil como uma potência emergente dotada de um enorme capacidade para se poder consagrar como uma entidade promotora dos valores da democracia e da liberdade, com um salutar efeito contagioso na sua vizinhança. Vê igualmente o país como um mercado muito interessante, dotado de uma estrutura económica pujante, que dispõe já de alguns elementos de segurança macroeconómica que, em larga medida, parecem pô-lo a relativo cobro de desequilíbrios muito pronunciados, por efeito da flutuação da conjuntura política[3].
       Mas a generalidade da Europa vê igualmente o Brasil apenas como um poder sub-regional, pelo que parte dela tem leituras diferenciadas quanto à respectiva vocação enquanto um poder global. Isso tem consequências, por exemplo, no modo como os vários países europeus olham uma possível presença brasileira no Conselho de Segurança da ONU.
       Ora Portugal vê esta questão em moldes algo diferentes. A matriz de afirmação brasileira no quadro internacional configura um poder amigo e próximo, que se exprime em português e que tem os países que falam a mesma língua na sua proximidade política, com uma mútua interpenetração humana que marca o quotidiano das nossas relações, que cria um espaço de automática familiaridade com permanentes consequências no desenvolvimento das mesmas.
       Temos valores de afirmação externa comuns, temos interesses coincidentes em muitos domínios e, o que é mais importante, nenhuma das dinâmicas de afirmação externa do Brasil no mundo é minimamente conflitual com qualquer vector estratégico em que assentamos a nossa política externa. Este quadro favorável é, além do mais, potenciado por uma relação de intimidade que é única e atípica.
       Alguns dirão que não se deve assentar uma dimensão de política externa apenas na afectividade. E têm razão: é por isso que, desde 1998, temos vindo a dar substância e suporte políticos ao movimento de capitais que se associou à recuperação da economia brasileira; e, por essa mesma razão, há hoje um acordo – que é único no nosso quadro de relações externas, mesmo com países de língua portuguesa, vale a pena lembrar – para a regularização de todos os brasileiros que chegaram a Portugal até 2003.
       É porque a relação entre nós tem um carácter diferente que as coisas se passam de maneira diferente do que sucede com outros países, mesmo com aqueles com os quais temos entendimentos formalmente privilegiados. Alguns não percebem isto e nós, Portugal e Brasil, percebemos que eles não percebam.

A DIMENSÃO POLÍTICA DO PROJECTO EUROPEU[4]




















       O Dia de Europa é um óptimo pretexto para reflectirmos sobre o modelo de integração que o continente adoptou e que tem vindo a desenhar à luz da experiência proporcionada por esse caminho, bem como dos desafios que, entretanto, se lhe atravessaram no percurso.
       Os termos históricos de referência em que assenta a experiência da actual União Europeia são sabidos. Todos conhecemos a situação que se viveu imediatamente após a 2ª Guerra Mundial, o esforço desenvolvido por alguns Estados no sentido de encontrarem um mecanismo de articulação económica que funcionasse como fermento gerador de condições para a preservação da desejada paz. De facto, foi o medo da guerra, mais até do que o desejo de prosperidade colectiva, que lançou as bases da integração europeia.
       Esta é a primeira conclusão que me parece importante deixar clara: o esforço que se consubstanciou no lançamento das primeiras Comunidades Europeias foi, basicamente, uma opção voluntarista de natureza política. Uma opção que, à época, não foi mais longe, nomeadamente através da criação da Comunidade Europeia de Defesa, porque ainda não estavam maduras as condições de aceitação colectiva que permitisse acomodar esse ambicioso projecto. Foi, assim, de natureza política a opção de criar a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, como foi política a opção de juntar vencedores e vencidos da 2ª Guerra Mundial neste projecto.
       E refiro isto com algum ênfase para transportar, para muito mais tarde, este mesmo voluntarismo: foi sempre também de natureza essencialmente política a decisão de efectuar os sucessivos alargamentos, concretizados independentemente dos seus respectivos e até algo previsíveis efeitos no tecido económico-social comunitário.
       Sem perder de vista a ambição colectiva da indução de processos de desenvolvimento, temos de reconhecer que foram também políticas as razões que estiveram na base da apetência de novos Estados europeus para aderirem à União. Foi esse o caso do alargamento que envolveu Portugal, como aconteceu, com um mix diferente de motivações, com os alargamentos que se sucederam.
       Quando se olha para o sucesso económico da actual União Europeia, do Mercado Interno à União Económica e Monetária, há por vezes a tentação de pensar que, na sua base, esteve e está sempre a intenção de reforçar economicamente o espaço desse mercado, através da junção dos países que, sucessivamente, integraram o projecto. De facto, o desenvolvimento e a prosperidade acabaram por ser condições que facilitaram o sucesso do empreendimento político. Mas, como referi, a unidade europeia começou por assentar no receio de uma nova guerra entre a Alemanha e a França e foi-se sedimentando, no plano das opções políticas, no caldo de cultura confrontacional provocado pela Guerra Fria. Pode ser irónico dizê-lo, mas a verdade é que foi graças à Guerra Fria que foi possível desenvolver e aprofundar, no lado ocidental da Europa, a múltiplica cultura de liberdades que viria a desembocar no projecto político comum que hoje conhecemos. Como alguns já disseram, talvez seja justo acrescentar o nome de José Estaline aos dos grandes promotores da unidade europeia...
       Se reflectirmos bem, notaremos que os projectos políticos nacionais envolvidos nas Comunidades Europeias originais tinham, e ainda hoje têm, peculiaridades constitucionais muito diversas e marcas nacionais muito distintas. No plano da formação dos Estados, as diferenças são abissais, por exemplo, entre o sistema francês, com cariz fortemente presidencial e de matriz histórica centralista, e o sistema alemão, com uma estrutura predominantemente parlamentar, numa dimensão afirmadamente federal.
       No entanto, estes e os restantes modelos políticos presentes na formação europeia têm de comum - com algumas leituras distintas no início, mas com total identidade nos dias de hoje – a partilha de valores de respeito pelos direitos democráticos, pela preservação dos Direitos Humanos, pelos fundamentos do Estado de Direito, com separação rigorosa de poderes, pela protecção das minorias, etc.
       É interessante observar que esta evolução para valores e princípios tendencialmente comuns, não era, necessariamente, uma coisa óbvia: muito poucos anos antes, os países europeus estavam divididos na leitura que faziam desses mesmos valores, entendiam-nos de forma muito diferente e até os teorizavam de modo contrastante.
       Estamos, assim, perante um processo de aculturação, ou de decantação conjunta, de um modelo europeu de valores, que tem hoje características próprias, mas que, à época – e é importante sublinhá-lo – tinha também muito a ver com o laço transatlântico, com a leitura muito positiva que então se fazia das virtualidades do modelo dos Estados Unidos. Vencedores da guerra e, por essa via, benévolos impositores dos princípios que estavam por detrás dessa vitória, os Estados Unidos surgiram, aos olhos de grande parte da Europa que era ocidental e que já era livre, como um farol e um modelo que permitia retomar as tradições democráticas e humanistas que o período nazi-fascista procurara obliterar.
       E, no pólo oposto, a brutalidade da tutela soviética, sob o chapéu ideológico da Guerra Fria, funcionava como reforço, a contrario, desse mesmo acervo de princípios.
       A Europa foi, assim, ajudada a gerar a sua cultura comum de valores por dois termos de referência: pela positiva, pela sua história e pelo modelo americano; pela negativa, pela evolução da experiência soviética e das suas zonas de influência.
       Mas alguma explicação há-de haver para o facto da Europa ter evoluído de modo algo diferente do seu parceiro do outro lado do Atlântico, também em matéria de valores. Não quero adiantar muito sobre este tema, mas sempre diria que o modelo social europeu, essa bête noir do neo-liberalismo, que durante décadas proporcionou bem-estar a milhões de cidadãos, e deu direitos de cidadania a muitos que os não tinham, tem, ele próprio, raízes europeias muito fortes. São raízes que vão da democracia cristã às diversas correntes do socialismo democrático europeu, às experiências do sindicalismo livre e, essencialmente, ao equilíbrio regulado entre as pulsões do mercado e as tentações de controlo estatal. Entre a ditadura da “mão invisível” do capitalismo selvagem e a ditadura de Estado do outro lado do muro de Berlim, a Europa comunitária teve a sabedoria de evoluir para um modelo próprio. Esse modelo pode ter hoje limitações no seu processo de crescimento e de afirmação económica perante outros blocos, mas tem uma raiz humanista que não nos envergonha.
       A reflexão que estamos a fazer, no quadro da revisitação regular da chamada “Agenda de Lisboa”, sobre o modo como dinamizar, sem a descaracterizar, a estrutura sócio-económica europeia - por um conjunto de novas políticas de inovação e formação – é o reconhecimento de que é preciso fazer algo para fazer sustentar o modelo social europeu, no actual contexto da globalização. Sublinho: para adaptar o modelo, não para o desmantelar, pelo menos de acordo com a que tem sido a perspectiva portuguesa.
       Este conjunto de valores de comportamento que a Europa foi criando no seio de si própria, para além dos reflexos que tem no seu funcionamento interno, como cenário de fundo perante o qual desenvolve todo o seu tecido de políticas, acarreta consequências interessantes no plano externo. Com algumas nuances, a Europa tem uma visão do mundo aberta e respeitadora de alguns quadros formais que entende por essenciais para uma regulação harmoniosa da sociedade internacional. A Europa afirma-se, com grande regularidade e persistência, em favor da preeminência do multilateralismo como elemento estruturante da vida internacional e adere, com convicção, a modelos acordados nesse marco regulador, em especial nas Nações Unidas. Dois exemplos são disso mostra clara: a adesão colectiva e a promoção do Acordo de Quioto e do Tribunal Penal Internacional.
       Alguns poderão dizer que as clivagens criadas pela questão iraquiana demonstraram que a unidade política europeia, face ao quadro internacional, está longe de ser uma realidade com uma solidez suficiente para se confrontar com grandes crises. Nós, na Europa, não temos a tentação, nem o hábito, de esconder as nossas fragilidades e diferenças. Pelo contrário, somos até muito auto-flageladores. Assim, assumimos que a divisão que se detectou perante a questão do Iraque demonstra, muito simplesmente, que no tocante ao quadro internacional de alianças, subsistem entre nós algumas divergências sobre o modo como devemos reagir face a determinados comportamentos da potência americana. E aqui, de facto, divergimos. Mas vale a pena ver que essas divergências atravessam transversalmente alguns países europeus. Gostava apenas de relembrar que, após a crise da “carta dos oito”, subiram ao poder na Europa alguns governos que se opõem às orientações que os seus antecessores tomaram na ocasião[5]. Isto significa que essa questão não é um tema fechado na política europeia e, a meu ver, mostra a importância que a Europa, no seu todo, sempre atribui ao laço transatlântico.
       Este tema daria, por si só, para uma longa dissertação, mas gostava de aproveitar esta ocasião para referir a minha convicção de que qualquer afirmação consequente da Europa no plano mundial, com garantias mínimas de eficácia sustentada de resultados, só tem condições de sucesso se contar com uma articulação estratégica com os Estados Unidos. Mas aqui coloca-se, naturalmente, a questão de saber de que Estados Unidos estamos a falar. Não é só a Europa que está dividida transversalmente. Por isso, devemos relativizar a imagem de uns Estados Unidos voltados para a expressão unilateral do seu poder, com um recurso às Nações Unidas apenas quando ela lhes interessa para a legitimação das suas acções, numa espécie de adesão multilateral à la carte.
       Nesse contexto, gostava de dizer que me parece uma evidência que a Europa é hoje, no mundo, o “grande amigo” das Nações Unidas[6]. Não apenas por uma questão de princípio, por entender a ONU como repositório de valores essenciais para enquadrar uma ordem internacional regulada e justa, mas por razões, eu diria, “egoístas”. A União Europeia dispõe, no seio do Conselho de Segurança da ONU, com estatuto de membros permanentes, de dois países membros, para além de pelo menos outros dois com estatuto de membros não permanentes. A União Europeia necessita das Nações Unidas como instância para legitimar internacionalmente as suas próprias opções no plano externo, num conceito alargado de políticas, como espaço de diálogo com Estados ou grupos regionais com os quais se relaciona, tendo particularmente em conta a projecção tradicional que hoje tem, através de alguns países membros, em regiões como a África, a Ásia e a América Latina.
       Mas dá-se o caso curioso da França e do Reino Unido, precisamente os dois países que, quase caricaturalmente, titulam em geral a polarização europeia de posições face a Washington, serem os dois Estados europeus com estatuto permanente no Conselho de Segurança da ONU. Esses dois países necessitam das Nações Unidas para sustentarem o estatuto que ganharam após a 2ª Guerra Mundial, pelo que, a meu ver, são os melhores garantes de que a União Europeia, aconteça o que acontecer, estará sempre na primeira linha de defesa da ONU… Neste caso, mesmo contra os EUA, porque, como em tempos disse um político britânico, “a Inglaterra não tem amigos, tem interesses”. Porém, muitas vezes, e como a História provou, tem interesse em ter amigos.
       Retomando o tema da relação transatlântica, chamaria agora a atenção para outra questão, que tem sido pouco desenvolvida, creio que por algum pudor político: o efeito do alargamento na política externa da União.
       Quando, no passado, se avaliavam no seio da União Europeia a “quinze” os efeitos potenciais daquilo que viria a ser o último alargamento, todos falávamos de fundos estruturais, da livre circulação de pessoas, da adaptação ao acervo legislativo, etc. Ninguém falava da PESC – da Política Externa e de Segurança Comum. Na maioria dos “quinze”, havia como que a cândida convicção que o alargamento iria ser neutral para os equilíbrios então existentes na política exterior da União. Ora veio a verificar-se que isso era uma ilusão. Os novos países transportaram para o seio da União, com toda a naturalidade, aquilo que eram as linhas essenciais que marcavam as suas opções externas, às vezes com uma crueza que surpreendeu alguns. E isso verificou-se em dois sentido essenciais.
       O primeiro, no seu tropismo face aos EUA, por uma espécie de gratidão histórica face à sua própria libertação da tutela soviética, para além da leitura, muito fria, de que a sua segurança depende essencialmente da NATO e não da União Europeia e que, no fim de contas, para eles, o acrónimo NATO é apenas um sinónimo de Estados Unidos da América.
       O segundo sentido teve a ver com a Rússia. Muitos dos novos Estados membros têm uma relação traumática recente no seu relacionamento com o poder de Moscovo e, dentre eles, alguns mantêm ainda contenciosos importantes a resolver com a Federação Russa.
       E como a PESC se decide, no essencial, por unanimidade, naturalmente que a União fica refém da posição de qualquer país para definir a sua posição colectiva. Digo isto sem qualquer sentido de crítica, até porque Portugal seria o último país a poder reclamar deste princípio: durante anos, tornámos a União Europeia refém da nossa “teimosia” em não deixar assinar o acordo de cooperação com os países da ASEAN, por virtude da questão de Timor-Leste.
       Neste bosquejo sobre a dimensão política da União Europeia, gostava de fazer referência a uma questão, cada vez mais actual, que se prende com a temática da Justiça e dos Assuntos Internos.
       Este tema começou a ser trabalhado dentro da União na sequência da abertura do espaço de livre circulação criado pelo Acordo de Schengen, mas igualmente pela necessidade de regular uma das chamadas “quatro liberdades” do mercado interno. Tornou-se essencial tentar passar da mera cooperação judicial em matéria civil e em matéria penal para modelos mais integrados e, sempre que possível, comunitarizados, que pudessem facilitar a regulação da circulação de pessoas. É um esforço que ainda está num estado incipiente, porque são muitas as resistências das culturas jurídicas nacionais, algumas relevando de respeitáveis e muito diversas tradições. O esforço foi iniciado na cimeira de Tampere, em 1999, e acabou por sofrer um impulso considerável após o 11 de Setembro, por razões que são óbvias. Mas, também aqui, a identidade europeia se afirmou e contrastou, de forma muito clara, com o modo como o parceiro do outro lado do Atlântico actuou. A Europa soube provar que o combate ao terrorismo se pode fazer com escrupuloso respeito pelas liberdades individuais, com a preservação das garantias constitucionais para todos os cidadãos – e não apenas para os seus nacionais.
       E não se diga que o 11 de Setembro não foi na Europa. Países como o Reino Unido ou a Espanha mantêm, há anos, uma guerra contra o terrorismo interno, não afectando com isso as garantias de cidadania. E esses mesmos países, mais recentemente, foram alvos de sangrentos ataques terroristas de outra natureza, ligados às mesmas motivações do 11 de Setembro. Além disso, num passado não muito distante, Itália, Alemanha, França, Bélgica e até Portugal tiveram mortos provocados por actos terroristas e, nem por isso, abrandaram a sua vigilância perante a necessidade da preservação das liberdades públicas.
       Mas, para a União Europeia, o teste político de coerência não acabou. A Europa tem à sua frente novas tarefas nesta área, pois tem necessidade de provar que é capaz de sustentar uma articulação coordenada das suas políticas migratórias nacionais, que hoje não são uma competência comunitária, com a observância de padrões comuns de reacção articulados. E a União terá também de provar que o seu chamado “espaço de liberdade e segurança” é capaz de se definir em torno de valores que, sem prejudicarem os equilíbrios centrais das sociedades, saibam preservar, em absoluto, os direitos das minorias, a expressão das várias dimensões culturais e étnicas, bem como os direitos básicos de quem procura o espaço comunitário em busca da solidariedade que sempre foi a marca da Europa. Este é um desafio novo, muito difícil e que nos projecta para o futuro.
       E é falando um pouco sobre esse futuro que eu gostaria de terminar.
       A Europa política tem hoje a sua dinâmica de desenvolvimento “entre parêntesis”. Há 10 países da União que ainda não ratificaram a Constituição Europeia[7], tendo-se registado, em dois dentre eles, uma sonora rejeição de tal avanço institucional. Contudo, a Europa funciona com base no Tratado de Nice – e eu, confesso, não faço parte dos detractores desse Tratado, provavelmente por ter sido o principal responsável português na sua negociação. O Tratado de Nice, quaisquer que sejam as suas limitações, é um quadro muito mais ágil do que os teóricos julgam, até porque a realidade do processo de decisão europeia é uma coisa muito mais simples do que os cenários catastróficos desenhados por alguns iluminados. A prova mais evidente é que ninguém se queixou, até hoje, que o Tratado de Nice esteja a conduzir a bloqueamento do normal funcionamento do processo europeu. A mim, não me parece que seja trágico que a Constituição não tenha entrado em vigor, embora seja de opinião que seria positivo se tal tivesse acontecido. O que já me parece menos saudável é que a Europa política se arraste numa espécie de malaise por virtude desta crise institucional, como se a Europa que temos fosse menos boa pelo facto de não termos uma Europa melhor.
       Diga-se que os cidadãos europeus só por equívoco acusam a Europa dos seus infortúnios do quotidiano. As sociedades europeias parecem não ter percebido que a esmagadora maioria das políticas contra as quais os seus cidadãos protestam não relevam da competência da União Europeia: a saúde, a educação, a segurança pública, o emprego, os impostos, a segurança social, etc. Nada disto é competência comunitária, tudo isto releva ainda hoje da competência dos governos nacionais e, no entanto, a Europa é o bode espiatório do descontentamento das opiniões públicas. Não é por acaso que a “Agenda de Lisboa”, que procura ter impactos positivos na política de emprego e crescimento, não tem um carácter constrangente. Isso acontece porque há um largo leque de políticas que alguns Estados pretendem manter fora do tratamento comunitário, tutelado pelo direito de iniciativa da Comissão Europeia. Porém, quando as coisas não funcionam, a culpa é de Bruxelas...
       Escrevi atrás “opiniões públicas” porque hoje não há uma opinião pública europeia, há tantas opiniões públicas como o número de Estados dentro da União Europeia, cada uma delas mobilizada por agendas de preocupação próprias, com realidades político-partidárias internas diferentes, com calendários eleitorais diferenciados. Os governos europeus, na sua impotência para resolverem os problemas do dia-a-dia, “passam a bola” frequentemente para Bruxelas, como que transferindo responsabilidades para uma entidade abstracta que tomaria as decisões impopulares, escondendo que, em Bruxelas, quem decide são os Estados membros, que são eles quem aprova a legislação. Depois, os governos desses mesmos Estados membros queixam-se que as suas opiniões públicas reagem contra Bruxelas, na esperança de que não reajam contra si próprios. Ao explorarem, às vezes de forma obscena, esta dualidade entre o seu país e União Europeia, alguns governos são objectivos cúmplices e promotores do euro-cepticismo.
       A meu ver, a grande tarefa dos responsáveis europeus deve consistir um procurar, cada vez mais, coordenar as suas agendas, trabalhar de forma intergovernamental – por aproximação legislativa – nas áreas em que não for possível avançar para políticas comuns – por harmonização legislativa – e, no essencial, empenhar-se em sublinhar publicamente as vantagens da Europa que já temos. A grande lição que as dificuldades de aprovação dos Tratados nos deram é que os cidadãos europeus só estão dispostos a aceitar ter “mais Europa”, mais políticas comuns, quando ficarem convencidos da utilidade efectiva para as suas vidas da Europa que hoje já têm.
       Como Timothy Garton Ash disse, nós já construímos a Europa, agora temos de criar os europeus.


A NEGOCIAÇÃO INSTITUCIONAL[8]




















       Marcada durante décadas por uma cultura de comportamento assente na gestão prudente de uma posição internacional de grande isolamento, fruto de um padrão autoritário de governo que lhe não dava razões nem espaço para se sentir tentada a um tropismo multilateralista, a política externa portuguesa foi, até ao 25 de Abril de 1974, forjada numa visão eminentemente soberanista.
       Porém, o mundo contemporâneo conduzia Portugal, de forma lenta mas crescente, ao imperativo de adesão às estruturas de coordenação internacional. A pertença à NATO não colocava essa postura reticente em causa e os terrenos da OCDE e da EFTA, onde a inevitabilidade dos tempos conduzira a sua diplomacia, foram sempre espaços controláveis para uma estratégia decisória que Lisboa não dispensava gerir casuisticamente.
       A Revolução de 1974 teve o efeito de aproximar o mundo exterior do Portugal democrático, tornando-lhe subitamente amigáveis os areópagos internacionais e abrindo-lhe novas janelas de potencial intervenção externa. De uma ONU e suas agências onde as representações portuguesas haviam sido tratadas, por muito tempo, quase como párias, chegavam, de um momento para o outro, sinais de acolhimento simpático e compreensivo. Há que reconhecer que a diplomacia portuguesa teve gentes e jeitos para aproveitar o ensejo que lhe era oferecido nesse mundo multilateral que subitamente se lhe abria. Mas, uma vez mais, na atitude e na postura, mantinha-se acantonada na defesa da intergovernamentalidade que tanto acarinhava.
       A posterior aproximação à Europa comunitária, passo hábil de quem entendeu, no tempo certo, que o nosso futuro por aí iria passar necessariamente, obrigou a um esforço que já era de diferente natureza, embora com consequências, a prazo, que talvez não tivessem sido entendidas por todos, pelo menos durante alguns anos.
       Com efeito, não se tratava apenas de aderir a uma organização internacional, onde cada país tinha o seu voto e onde o consenso funcionava como a regra deliberativa, mas era já uma opção pela inserção num espaço que, por definição, era feito de alguma partilha de áreas de soberania. Porém, as áreas de gestão intergovernamental, nessa então CEE, eram ainda altamente predominantes e, como salvaguarda que ao tempo parecia suficiente às cautelas soberanistas, iria ser sempre necessário o recurso à decisão unânime para definir, caso a caso, os momentos e os casos em que se passaria a políticas de gestão comum por maioria, através de mecanismos de representação decisória desigual – embora a desiguadade de então fosse bem menor do que aquela que o futuro se encarregaria de trazer. Os soberanistas sentiam-se, assim, confortavelmente defendidos por esta exigência formal.
       Só que a dinâmica das coisas traz sempre muito mais surpresas do que a imaginação dos homens pode supor. E o voluntarismo prestigiado de Jacques Delors, apoiado numa conjugação pontual de vontade do eixo franco-alemão, fez o resto, promovendo os saltos qualitativos de Maastricht. A periferia geográfica do eixo Paris-Bona seguiu por arrasto, com a Itália e a Espanha a procurarem encontrar no tabuleiro europeu os factores de atenuação para as suas próprias tensões regionais internas. O mundo europeu mudou e Portugal foi obrigado a recolocar-se e a responder a essa rápida deriva, a qual, manifestamente, se situava muito longe dos seus propósitos oficais.
       No nosso país, as vozes abertamente europeístas não eram muitas, embora se encontrassem espalhadas por todos os partidos com representação parlamentar significativa, com excepção do PCP – o qual, tal como alguma direita, optou por uma via nacionalista, tíbia face ao que aí pressentia vir, por ter percebido que o “novo internacionalismo” europeu iria significar a prevalência de uma forte economia de mercado num espaço alargado.
       Algumas dessas vozes tinham sensibilidade para perceber que, se o futuro da Europa se podia fazer sem Portugal, o contrário estava longe de ser verdade. O fim da ilusão imperial e a persistência das tensões pós-coloniais, a diluição da uma relação luso-brasileira que também já então passava por modos diferentes de relação com África, a relativa perda de importância estratégica do país no quadro político-militar transatlântico, tudo isso apontava para a imperatividade de um esforço centrípeto europeu por parte de Lisboa - que ia desde um mero oportunismo de captação financeira até um convicto empenhamento num projecto federalista.
       Diga-se, em abono da verdade a que todos temos hoje direito, que a diplomacia portuguesa não ganhou, com a integração na CEE, uma automática mentalidade europeísta. Durante muito tempo, a integração europeia do país foi vista, pela grande maioria dos quadros das Necessidades, como uma mera opção utilitária, fruto de uma inevitabilidade conjuntural, que aliava o respeitável interesse em favorecer a sedimentação dos factores democráticos nas nossas instituições com a possibilidade de acesso a algumas vantagens que pudessem provocar uma aceleração mais rápida do processo de desenvolvimento do país.
       Outros, porém, também é justo afirmá-lo, numa escola de pensamento que, contudo, era francamente minoritária no Ministério dos Negócios Estrangeiros, e que tem as suas origens numa cultura diplomática europeísta que nasce com Ruy Teixeira Guerra e vai amadurecer em homens como Calvet de Magalhães ou Siqueira Freire, tinham a ideia europeia como um desígnio dentro do qual vislumbravam a possibilidade do país poder vir a alicerçar um novo posicionamento internacional. Lido hoje com atenção, esse empenhamento tinha algo de “impressionista” e, muitas vezes, estava longe de sublinhar as temáticas centrais que constituiam o paradigma do pensamento integracionista europeu mais relevante. Porém, o efeito era praticamente o mesmo: deslocava a atenção de uma diplomacia fechada em si mesma, voltada para o culto quase obsessivo de certos vectores tradicionais, para uma nova realidade que esses escassos europeístas caseiros pressentiam como impossível de deixar de vir a fazer parte do nosso destino.   

Na Europa

Os primeiros tempos da presença de Portugal nas instituições europeias, precedida pelos momentos da negociação da adesão, não dava espaço a grandes profissões de fé em valores ou opções de filosofia. O peso dos dossiês técnico-económicos era francamente predominante nas preocupações nacionais e só em círculos pensantes ligados a certos think tanks era cultivada uma reflexão paralela sobre a ideia europeia e o papel que Portugal poderia e deveria ter para ajudar a cultivá-la e difundi-la. O discurso público sobre as “vantagens” da Europa também não ajudava: eram sublinhados à exaustão os factores “egoístas”, centrados na captação de fundos, tendo apenas no outro prato da balança, como elemento imaterial positivo, o reconhecimento da ajuda que a “normalidade” do modelo europeu prestava à consolidação democrática no país. Assim, Portugal continuava a não ter uma filosofia europeia e, mais do que isso, não contribuia para o debate alargado sobre a mesma que atravessava o continente.
       Se hoje olharmos, com alguma atenção, para o background das pessoas que estiveram envolvidas nessa fase do processo europeu – desde a pré-adesão aos primeiros anos de presença efectiva no seio das instituições comunitárias – verificamos isso mesmo: predominam personalidades ligadas a uma visão economicista, com a simultânea presença de alguns juristas, estes frequentemente vocacionados para uma espécie de micro-reflexão com uma tonalidade académica especulativa. Poucos pensadores, como Eduardo Lourenço, ousaram ir mais longe e olhar para além das pautas aduaneiras e das directivas. E, curiosamente, alguns políticos que tentaram entrar por uma via menos pragmática, e trabalhar terrenos mais teóricos, viriam a ser acusados disso mesmo...
       Mas o dia-a-dia europeu tinha a sua dinâmica própria e, naturalmente, não se compadecia, sendo-lhe mesmo perfeitamente irrelevante, com o lento ritmo de evolução do europeísmo lusitano. Portugal era, assim, chamado a responder, com regularidade, a novos desafios para os quais não estava manifestamente preparado, até pela ausência de uma massa crítica teórica minimamente trabalhada em torno da especificidade do seu caso.
       No Ministério dos Negócios Estrangeiros, os “pensadores” da coisa europeia raramente se arriscavam fora da contabilidade dos fundos comunitários e da medida dos efeitos dos regulamentos e das directivas. Depois do Acto Único Europeu, em que a sua voz não tivera ainda peso institucional, Maastricht foi, talvez, o primeiro grande momento em que a diplomacia portuguesa foi sujeita a um choque forte com a nova realidade: começava a ser necessário fazer opções em temas que tocavam de perto com elementos já próximos do core da soberania dos Estados e com os efeitos de partilha desta num contexto europeu, mesmo na respectiva ordem constitucional interna.
       No debate em torno do Tratado de Maastricht, a diplomacia portuguesa mostrou o seu melhor, em termos de qualidade técnica, e o seu pior, em termos de falta de afirmação de uma vontade integracionista europeia oficialmente assumida. A pobreza teórica neste domínio, vista à distância, é estarrecedora e a “ideia” portuguesa para a Europa praticamente se resumiu a uma estratégia defensiva, no sentido de evitar a mudança, titulada por um nacionalismo serôdio, alcandorado à dignidade de política.
       Nos debates em torno da União Política, os fantasmas atlanticistas mais primários colocaram-se na primeira linha do argumentário e revelaram aquela que viria a ser, praticamente, a linha orientadora predominante, que iria ainda marcar a década seguinte. Portugal colocou-se no debate entrincheirado numa defesa do statu quo e numa relutância manifesta em abdicar dele. Quando o fazia era sempre a contragosto e arrastado pela inevitabilidade pressentida dos ventos maioritários. Tratava-se de uma espécie de europeísmo selectivo, isto é, estar com a Europa em tudo quanto isso pudesse significar vantagens imediatas de natureza material para o país e, simultaneamente, resistir à Europa e ao seu aprofundamento como projecto sempre que isso pudesse ser visto como a perda da capacidade portuguesa autónoma de decisão. Nenhuma ideia ressoava comom interesse nacionalna partilha do projecto europeu, na sua sinergia de valore e objectivos de que Portugal poderia beneficiar e para a qual poderia contribuir.
       Interessante foi verificar que, no caso da União Económica e Monetária, alguma modernidade ligada ao pensamento liberal acabou por ter efeitos algo diferentes. A percepção de que o caminho para a moeda única poderia induzir efeitos automáticos de estabilidade sobre o tecido financeiro, que iria dar ao país defesas interessantes para contrariar algumas das suas debilidades crónicas, levou a uma atitude mais aberta e concessionista. Atitude certa mas que, como hoje se vê, não deixou de sobrevalorizar os méritos do modelo e não cuidou em alertar para a necessidade de esforços contínuos para a sustentabilidade da posição nacional dentro dele.
       É muito curioso observar a relativa contraposição destas duas escolas de pensamento, com a segunda a mostrar-se mais “progressista” que a primeira, apesar de ser tributária de um pensamento neo-liberal que, em Portugal, era titulado por sectores do centro-direita, apenas com a adesão discreta de alguma esquerda moderada, que se mostrou disposta a correr o risco de ser com eles identificada.
  
O efeito de Maastricht
 
       É hoje um lugar-comum dizer-se que Maastricht foi, um pouco por toda a parte, um turning point no processo de construção europeia. Com efeito, na generalidade dos países europeus, onde já existiam opiniões públicas atentas e actuantes, o reforço integrador que aquele tratado significou foi visto, de imediato, como tendo alterado, de forma muito significativa, o posicionamento relativo dos Estados face às instituições europeias. Daí decorreu como que um alerta geral sobre a necessidade de retirar consequências, em termos de discussão e avaliação colectiva de efeitos, sobre esse novo tempo. Os referendos, as crises políticas que lhes estiveram ligadas e a nova visibilidade de um “eurocepticismo” que sempre fora larvar, e que cada vez apareceu mais teorizado, inauguraram um período de contínua atenção sobre a coisa europeia, que já não iria ter retorno.
       A constatação era relativamente simples: a Europa evoluíra, até então, através de processos negociais intergovernamentais relativamente tradicionais, de tipo gradualista, que haviam levado, ao longo dos anos, a modelos acrescidos de cooperação entre os Estados. Algumas políticas que se haviam instituído como comuns, entretanto já consagradas e estabilizadas, situavam-se em áreas económicas relativamente incontroversas na bondade dos seus efeitos, razão pela qual a sua anterior adopção não suscitara dificuldades de maior.
       Porém, o facto de, nesta nova fase, se criarem mecanismos que colocavam num espaço comum de decisão europeia certas políticas ligadas ao conceito tradicional de soberania, as quais, no passado, sempre relevavam de claras competências nacionais, tornava necessário criar novas fórmulas para o controlo da respectiva gestão. Ora a verdade é que as instituições europeias não davam ainda as garantias mínimas de solidez e representatividade para assegurarem esse controlo, em termos de fiscalização e de aferição democrática; e, por outro lado, as instituições nacionais haviam entretanto perdido já a capacidade de assegurar pr completo tais funções. Estava aberto o importante debate em torno do “défice democrático”, até hoje não concluído, e para o qual a posterior tentativa da Constituição Europeia veio a aparecer como uma resposta possível. 

Amesterdão à vista 

       Alguma coisa mudara, entretanto, de forma algo dramática, nos equilíbrios geopolíticos europeus. O império soviético dava mostras de ter um elevado potencial de implosão, os países que politicamente renasciam autonomamente à sua volta denunciavam a vontade de criar condições para virem a beneficiar, no futuro, da adesão ao modelo de sucesso que a Europa mais ocidental criara quatro décadas antes, que tão vantajoso se mostrara na ajuda a Estados saídos de patamares de desenvolvimento muito abaixo da média europeia, como era o caso de Portugal. Esse era, porém, um pano de fundo à época ainda difuso, um debate que se sabia inevitável, mas cujo prazo de efectivação era ainda imponderável.
       Em 1995, um “grupo de reflexão”[9] foi criado na União Europeia para reflectir em alguns aspectos ligados à evolução decorrente dos avanços de Maastricht. De certo modo, começava a desenhar-se a teoria da “bicicleta” que Jacques Delors popularizara: tal como num percurso ciclístico, se acaso se parasse a dinâmica da viagem, o veículo tombaria. Daí a necessidade de todos continuarmos a pedalar, isto é, de continuarmos a criar novos mecanismos para enquadrar as novas realidades e a gerar políticas de acompanhamento para garantir o sucesso daquelas que já estavam no terreno. Com efeito, embora num plano ainda um pouco difuso, começava a perceber-se que algumas políticas novas teriam de ser instituídas, a fim de dar suporte aos avanços para que Maastricht apontara.
       Os trabalhos do Grupo serviram de base para a Conferência Intergovernamental que veio a desembocar no Tratado de Amesterdão. Sem surpresas, no caminho para este tratado, viriam a transparecer, de forma quase mecânica, as divisões suscitadas nos debates do grupo. Correndo o risco de todas as simplificações, pode dizer-se que houve duas linhas divisórias fundamentais na discussão do Tratado[10]. Porém, porque baseadas em pressupostos diferentes, essas linhas nem sempre coincidiram na sua titularidade.
       De um lado, mostraram-se alguns países mais integracionistas, disponíveis, em especial, para definir um conjunto mais alargado de matérias a serem decididas por maioria qualificada e, em muitos casos, abertos a uma intervenção maior do Parlamento Europeu nesse mesmo processo decisório.
       Sem surpresas, alguns dos fundadores da União revelaram-se apoiantes claros desta linha, com a Bélgica e a Itália com uma posição mais entusiática. Num pólo oposto, o Reino Unido reafirmava a sua relutância em avançar para modelos mais integradores e, em particular, mostrava a sua consabida precaução em evitar a perda do poder decisório das suas próprias instituições parlamentares.
       Além disso, e num outro terreno de debate, Londres procurava suster tentações de evolução para uma Política Externa e de Segurança Comum que pudesse, mesmo que a prazo, funcionar como podendo afectar os laços da sua special relationship com os EUA, que tinham e têm como axial para a sustentação da sua própria posição no mundo. A evolução nesta área externa era também travada, curiosamente, pelo pólo “neutralista” dentro da União, antigamente centrado na Irlanda, mas que a adesão recente de países como a Áustria, a Finlândia e a Suécia viria a reforçar.
       Uma segunda linha divisória, não coincidente com a primeira, expressava-se a nível do processo decisório e da preocupação de que este evoluísse em termos que pudessem consagrar um peso desproporcionado aos países de maior dimensão, tornando irrelevantes os Estados menos populosos. Porém, alguns países de menor dimensão não partilhavam esta preocupação. Porquê? Porque o seu padrão de interesses coincidia, no essencial, com o dos seus parceiros mais populosos, por assentar em níveis de desenvolvimento similares.
       Estas foram, de forma muito caricatural, algumas das linhas posicionais detectáveis no debate intraeuropeu.

A agenda portuguesa

       Onde ficava Portugal em tudo isto? Inicialmente, numa posição defensiva, na linha de uma escola de comportamento que já vinha de Maastricht.Tendo tido um papel central na definição da posição portuguesa para esta Conferência Intergovernamental, bem como responsabilidades directas na gestão da respectiva negociação, julgo estar bem colocado para poder ter hoje alguma perspectiva distanciada, que ajuda a perceber melhor o porquê da nossa atitude de então.
       Como se disse, no cenário geral estava a preeminência da nossa cultura intergovernamental, eixo referencial da velha escola das Necessidades. Depois, no que toca à PESC, existia também a difusa preocupação (partilhada com o Reino Unido e, à época, também com os Países Baixos) de que uma eventual deriva europeia em matéria de segurança e defesa pudesse vir a comprometer ou debilitar o papel da NATO na Europa – linha sempre tida por estruturante na nossa afirmação externa. Tenho por convicção – mas, sublinho, esta é uma perspectiva meramente pessoal – que estamos perante uma ilusória questão a qual mereceria uma reflexão mais profunda, por forma a ponderar com maior rigor onde se situam hoje, verdadeiramente, os interesses estratégicos do nosso país.
       Façamos aqui um parêntesis para afirmar que não se me oferece a menor dúvida que o laço transatlântico continua a ser um elemento estruturante, não apenas para Portugal, mas para a Europa comunitária em geral. Independentemente das crises conjunturais que, ciclicamente, afectam o relacionamento de alguma Europa com os EUA, particularmente em tempos de um certo “autismo” sobranceiro de Washington, não conseguimos perspectivar uma qualquer capacidade de afirmação mundial dos valores constituintes do nosso modelo civilizacional sem uma aliança operativa com a grande democracia americana. Dirão alguns: e Guantanamo? E o Iraque? E, antes disso, o Vietname e outras concessões à realpolitik, em especial na Guerra Fria? Tudo isso é verdade, como foram verdade as torturas na Argélia, os massacres coloniais nas várias Áfricas (inclusivamente a “portuguesa”) e outras barbaridades de génese europeia, de que a omissão cobarde face ao conflito israelo-palestiniano continua a ser, ainda hoje, o mais deprimento exemplo. 
       Dito isto, não vejo a menor desvantagem em que a Europa procure criar e aculturar-se a uma capacidade de segurança autónoma, que não tem de ser contraditória com a NATO. Se essa capacidade pode ou não vir a evoluir para uma defesa comum, essa é já uma outra questão. Mas, em tese, porque não? Só que essa evolução teria, a montante, de ser compatível com uma política exterior também comum e aí confesso ainda não ver razões para se ser muito optimista quanto ao futuro da PESC. E, neste caso, e para simplificar, diga-se que a culpa assenta, essencialmente, nas potências europeias (que regionalmente fazem o papel de “grandes”), incapazes de fugirem aos seus reflexos de “directório”. 
       Uma segunda linha de preocupações portuguesas resultava da aparente evidência saída de mais de uma década de trabalho na União: a percepção de que Portugal se começava a situar à margem dos interesses médios que se projectavam no processo legislativo em Bruxelas, circunstância agravada com a entrada dos três novos países que haviam acedido em 1994, portadores de uma cultura de desenvolvimento afastada da nossa, o que reforçava um grau de exigência em termos normativos cada vez mais difícil de sustentar. Essa constatação levava, assim, a uma grande relutância em perder uma razoável capacidade decisória, o que funcionava contra a abertura para o alargamento de decisões por maioria qualificada e, no caso das que exigissem co-decisão, contra a atribuição de maiores poderes ao Parlamento Europeu, onde o peso dos países mais populosos era ainda maior do que no Conselho de Ministros.
       A tudo isto acrescia o nosso interesse em evitar o favorecimento de modelos de “cooperações reforçadas” ou de “integração diferenciada”, vistos como podendo funcionar como escapatória para alguns países virem a criar “núcleos duros” em torno do desenvolvimento de algumas políticas sectoriais, deixando para trás quem os não pudesse ou quisesse acompanhar.
       Em suma, Portugal apostava num discurso assente no privilégio do “gradualismo” tradicional, de forma a tentar obrigar a União a marchar ao seu próprio passo. Era isto sensato? Confesso que, em perspectiva, tenho hoje sentimentos ambivalentes nesta matéria.
       Por um lado, continuo convicto de que continua a haver um gap de desenvolvimento que coloca Portugal fora do mainstream da União e que isso se reflecte na dificuldade de adaptação do país a certas exigências legislativas, particularmente num tempo em que começam a rarear os apoios comunitários para colmatar tais problemas, bem como as limitações surgidas na nossa própria capacidade orçamental para co-financiar os projectos necessários para enfrentar esssas mesmas exigências.
       Mas, por outro lado, pergunto-me se esta perspectiva não peca por ser um tanto estática e esquecer que há factores dinâmicos e de “arrastamento” que, embora aqui ou ali com consequências traumáticas a nível pontual, acabam por constituir-se em elementos indutores de modernidade, com efeitos no progresso global do país.
       Ainda assim, também me interrogo: se esta questão do posicionamento relativo no processo decisório é tão irrelevante e a sua reiteração é um anacronismo – como uma escola “avançada” hoje defende em Portugal, com tanto despreendimento –, qual será a razão que leva os países mais populosos a não se cansarem em procurar reforçar o seu próprio papel na tomada das decisões? Apenas um juízo de eficácia? Ou o que é importante para eles deve ser irrelevante para nós?

O saldo de Amesterdão

       Para muitos, o que se conseguiu na Conferência Intergovernamental que se concluiu em Amesterdão foi curto e esteve longe de ajudar a União a adaptar-se para os desafios que já despontavam no seu horizonte.
       A perspectiva portuguesa nunca foi tão negativa quanto ao seu juízo sobre o novo tratado. Reconheço que, face à sua agenda original, o obtido em Amesterdão ficou àquem do que muitos esperariam. Mas temos que ser realistas: qualquer Conferência Intergovernamental é um compromisso que não pode deixar de ter em consideração o facto de ser necessário responder, simultaneamente, às diversas agendas de preocupação que as diferentes opiniões públicas nacionais mantêm. Na Europa, por muitos e bons tempos, não haverá um espaço público uniforme, porque os factores de diferenciação permanecem muito fortes e os decisores políticos não deixam de ser sensíveis a essa circunstância. 
       Como antes foi dito, Amesterdão situou-se depois de Maastricht, isto é, foi a primeira negociação europeia que teve de se confrontar com o facto de estar já criada uma muito maior atenção pública face às temáticas integracionistas, um cuidado muito maior perante aquilo que se pode consensualizar nos fóruns de entendimento diplomático. Assim, Amesterdão foi claramente um tratado de transição, que tentou compatibilizar vontades integracionistas tradicionais com precauções compreensíveis de novos aderentes, num difícil exercício de adaptação e aproximação de culturas. 
       Para Portugal, esta negociação foi um teste muito importante e um grande desafio. Sem prejuízo da nossa postura inicial se ter subordinado ainda muito a uma linha de prudência, onde se projectava bastante a sombra de algum soberanismo, foi patente que este tempo negocial representou já a evolução para uma atitude diferente em muitas áreas, uma visão mais europeia de certas temáticas – enfim, o início de uma nova filosofia de intervenção no debate europeu.
       Pela primeira vez, Portugal preparou um completo documento de estratégia[11], definiu publicamente muitas das opções que iria transportar para o terreno da negociação, inaugurando assim um modelo de diplomacia pública e de transparência diplomática que se alargou de forma inédita ao envolvimento das estruturas parlamentares nacionais. A preparação desse “paper” teve duas consequências: forçou a definição de uma visão global mais coerente sobre todos os temas que potencialmente poderiam ser abordados e, no final do exercício, deu oportunidade de aferição sobre o que realmente se havia conseguido, tendo em atenção aquilo que havíamos proposto. E esse resultado, visto em perspectiva, é-nos muito favorável.
       Recordaria, a título de exemplo, toda a abertura que mostrámos quanto ao alargamento de competências na área da Justiça e dos Assuntos Internos, a assunção de um novo discurso sobre a evolução da União da Europa Ocidental (UEO) no quadro da Segurança Europeia, a linguagem inovadora e precursora que adiantámos em matéria de Direitos (direitos fundamentais, direitos económicos e sociais, protecção de minorias, igualdade de géneros, não-discriminação) e as nossas propostas, infelizmente não acolhidas, sobre uma Carta, a ser inserida no preâmbulo do Tratado, relativa às conquistas dos cidadãos europeus nesse âmbito, como pilar de uma nova Cidadania Europeia.
       Também interessante, e revelador de um trabalho de evolução sectorial em várias áreas da Administração, foi a nossa muito maior abertura no que toca à passagem de certos domínios à decisão por maioria e a disponibilidade para extensão de algumas novas áreas temáticas a um tratamento comunitário. Notaríamos, também, a ênfase dada à temática do Emprego e do combate à exclusão social, onde nos colocámos na primeira linha do debate, a nossa vontade em colocar o Comité das Regiões e o Comité Económico e Social num patamar de intervenção mais efectivo no debate intracomunitário, o cuidado posto na questão da protecção dos Serviços Públicos, etc. Num tema de interesse nacional directo, Portugal obteve um ganho de causa muito relevante: a criação de uma nova base jurídica para a facilitação do apoio às Regiões Ultraperiféricas da União, onde se inseriam os Açores e a Madeira.
       Por todas estas razões e, volto a afirmá-lo, pelo facto de esse tempo ter coincidido com a criação de uma nova atitude e com a definição de uma nova filosofia de intervenção no debate europeu, o Governo português fez uma avaliação positiva desse exercício e não alinhou numa atitude denegridora, a qual, no essencial, se apoiou na frustração de alguns sobre a alegada falta de evolução em termos de reforma dos equilíbrios institucionais. Foi dessa atitude  que se alimentou a criação do conceito dos reliquats ou leftovers de Amesterdão, que iriam lançar o caminho para o futuro Tratado de Nice.

Nice – um tratado para o Alargamento

       Por uma coincidência temporal, competiu a Portugal presidir à primeira metade das negociações que conduziram ao Tratado de Nice. O facto da Conferência Intergovernamental ter sido lançada pela Presidência portuguesa da União Europeia, em inícios de 2000, fez com que coubesse ao autor deste texto a titularidade da chefia do respectivo grupo negocial, até ao final do primeiro semestre de 2000[12].
       Antes disso, porém, foi necesssário “negociar” laboriosamente com o Parlamento Europeu a “luz verde” para permitir o arranque do processo negocial, tarefa nada fácil e que permitiu, desde logo, abandonar a limitação da agenda aos reliquats/leftovers de Amesterdão e criar um modelo de análise para o tema das “cooperações reforçadas”, tido à época como um elemento essencial para desbloquear potenciais impasses na futura evolução das políticas europeias.
       Poupar-se-á o leitor sobre os pormenores desta negociação[13], mas convém deixar claro, desde já, que ela se assumiu, de forma quase despudorada, como a tentativa de certos países de conseguirem, através do reforço da sua posição no processo decisório, para criar um modelo que permitisse tornar “neutral” o papel dos Estados que viriam a ser incluídos no processo de alargamento que já se anunciava. Alguns poderão ver nesta afirmação uma espécie de teoria conspiratória. Com a eventual autoridade de quem esteve presente em mais de três centenas de horas de negociação e de ter sido responsável pela gestão de metade desse exercício, não me resta hoje a menor dúvida que foi isso que aconteceu.
       O debate que veio a desembocar em Nice foi, aliás, dos mais duros e ácidos da história já longa da União. E isso não se passou apenas a nível de negociadores técnico-políticos. Mesmo a nível de chefes de Estado e governo a tensão subiu por vezes a pontos inimagináveis e, em alguns momentos, chegou a estar em perigo a própria unidade da Europa.
       Para muitos, os resultados de Nice falam por si: um sistema decisório complexo, que permitiu satisfazer o desejo comum a todos os Estados de manterem um elemento na Comissão Europeia, por troca com um reforço da posição relativa no processo decisório dos países com maior expressão demográfica. Com todas as suas fórmulas matemáticas cumulativas, esse mecanismo pareceu, a alguns, atar as mãos à Europa e ter um potencial de conflitualidade muito elevado. Nunca pensei dessa forma. O que a maioria das pessoas desconhece é que a Europa, na sua rotina diária, tem um funcionamento leve e automático, fruto de uma experiência de décadas, feita de mecanismos muito operativos e de uma vontade de compromisso que, quase sempre, é a chave do sucesso e da tomada de decisões. Perante a complexidade matemática do modelo de Nice, poder-se-ia prever que o quotidiano de Bruxelas viria a ser um inferno negocial. Ora nada disso se passou. Com a entrada em vigor do Tratado de Nice, manteve-se o ambiente de normalidade nos modelos de formatação da vontade da União, nomeadamente no âmbito do cada vez mais exigente processo legislativo.
       Reconheço que o Tratado de Nice prevê, de facto, alguns mecanismos e fórmulas com uma certa sofisticação, para acorrer a momentos mais complexos, perante temáticas delicadas em que os Estados membros possam dar mostras de divisões sérias. Mas não será isso normal? Não será natural que, perante questões importantes, se recorra a modelos decisórios que possam ter alguma complexidade mas que, ao mesmo tempo, garantam a democraticidade do resultado final e uma representatividade forte e incontestada?
       O melhor elogio ao Tratado de Nice é o facto de ele ser ainda hoje a base na qual assenta uma União Europeia com 27 Estados e não haver conhecimento de que seja a ele que possam assacar-se responsabilidades por quaisquer dificuldades do funcionamento das instituições comunitárias.
       Recordo que, quando os dirigentes políticos saíram das longas noites negociais de Nice, para as suas conferências de imprensa e para a apresentação do Tratado aos seus parlamentos, foram tão convincentes sobre as qualidades do compromisso então obtido que a posterior ratificação a “quinze” acabou por ser unânime. Nice foi apresentado como o texto regulador da União que permitia criar as condições para os futuros alargamentos, tinha no seu seio os mecanismos susceptíveis de enquadrar as diferentes sensibilidades que essa nova Europa iria trazer e que permitiam gerir o modo como as diferentes políticas se comportariam perante esse contexto de uma heterogeneidade sem precedentes.
       Porém, ainda antes dessa ratificação estar totalmente concluída, a Europa política viria a entender, por razões que conviria explicar algum dia, que, afinal, era necessário um outro tratado, a que talvez fosse sábio ter a ambição de chamar Constituição Europeia[14]. Os resultados desse passo – “a treaty too far”? – estão aí à vista de todos. Mas a análise disso não era, nem será, o objectivo deste texto.  






















UM TRATADO PARA OUTRA EUROPA[15]
















       A assinatura do Tratado de Lisboa, em 13 de Dezembro de 2007, foi vista em toda a União Europeia como o prelúdio de um período de pacificação institucional, após o fracasso do Tratado Constitucional, que havia feito pairar um ambiente de crise sobre o processo integrador do continente. A expectativa de que virá a ser possível fazer aprovar o novo tratado em todos os 27 actuais Estados membros trouxe consigo a ideia de que a Europa comunitária poderá, finalmente, ultrapassar, pelo menos por algum tempo, a querela institucional e dedicar-se ao desenvolvimento das suas políticas e à afirmação plena do seu projecto.
       Eça de Queiroz dizia que “a crise é a condição quase regular da Europa”. De facto, se atentarmos nos últimos anos, verificamos ter havido uma forte instabilidade no desenho do projecto europeu, com a multiplicação de interrogações sobre os caminhos a seguir. A Europa comunitária pareceu mesmo incapaz de consensualizar um modelo firme de percurso, vogando ao sabor das conjunturas. Mais do que a demonstração de flexibilidade estratégica, a Europa pareceu dar sinais de estar ainda à procura de si própria.
       Será esta imagem a verdadeira face da Europa? Ou existe uma promissora floresta por detrás desta confusa árvore? A resposta é complexa e, como é da natureza das coisas, não é unívoca. A Europa é tudo isso, vai para além de tudo isso e é em tudo isso que assentam, paradoxalmente, a sua fraqueza e a sua força.

A pressão da História

       Talvez não haja uma consciência plena de que o continente europeu terá sido a área geográfica onde, nos últimos 20 anos, se produziram mudanças históricas com maior impacto nos equilíbrios mundiais. O fim da União Soviética e o termo da bipolaridade que se projectava sobre a Europa resultaram num novo equilíbrio que obrigou o projecto integrador que era alimentado na sua área ocidental a um esforço de rápida redefinição.
       Por detrás dessa redefinição estiveram uma ambição e um imperativo.
       De um lado, a União Europeia pressentiu que poderiam estar criadas as condições para se afirmar como um poder autónomo, com um papel político à escala global, que correspondesse ao seu peso económico. Embora a diferença interna de perspectivas sobre o modo como compatibilizar essa ambição com o laço transatlântico nunca tivesse abandonado o bloco, houve um claro esforço no sentido de tentar projectar um rumo próprio, tendo em atenção, em particular, a necessidade de dar atenção e resposta às situações de instabilidade que afectavam a sua vizinhança próxima.
       O Tratado de Maastricht, em 1991, foi a resultante mais clara desse esforço. A definição de um quadro para a fixação progressiva de uma política exterior comum, com a sugestão de um caminho para uma política europeia de segurança, foram então de paralelo com um esforço de muito maior integração económica – com a moeda única a vir a dar suporte a um mercado interno que se revelou pujante, embora com alguns claros limites ditados pela ausência de uma vontade política comum.
       Por outro lado, a Europa comunitária viu-se obrigada a assumir a responsabilidade de dar resposta às expectativas das novas democracias emergentes do Centro e Leste do continente. O projecto de liberdade e desenvolvimento alimentado durante décadas a Oeste, que se mostrara como destino possível a quantos haviam sofrido décadas de opressão e dependência, teria então o seu teste definitivo.
       A Europa comunitária passou bem nesse teste de coerência. Verdade seja que a “pressa” em fazer os alargamentos da União Europeia teve então muito a ver com a oportunidade criada pela fragilidade conjuntural da Rússia. A Europa compreendeu isso, tal como a NATO. A posterior evolução na Rússia provou, aliás, o bom fundamento dessa decisão.
       Vale a pena também recordar que, nesse contexto histórico, a Europa comunitária debateu internamente a questão de saber se o binómio alargamento/aprofundamento tinha condições de funcionar, isto é, se seria possível manter e desenvolver o tecido de políticas, ao mesmo tempo que se integravam novos membros. Por óbvias razões, este era um debate incómodo, porque pressupunha, como alternativa teórica, uma visão “egoísta” das vantagens para quem já estava dentro do clube. O saldo desta reflexão sobre o desafio dos alargamentos acabou, como se sabe, por ser favorável à adesão maciça de 10 países, seguidos de mais dois, poucos anos mais tarde. Mas essa reflexão não iludiu, antes reavivou, uma questão nascente em torno do modelo das instituições europeias e da necessidade do seu redesenho perante a nova conjuntura.

O debate institucional

       O Tratado de Maastricht foi talvez o primeiro momento em que o debate em torno das instituições comunitárias se afirmou como central nas preocupações europeias. De facto, Maastricht marcou o tempo em que a Europa comunitária abriu decisivamente o caminho para a partilha em comum de poderes que, no passado, sempre haviam repousado nas soberanias nacionais.
       Por essa razão, Maastricht foi também o início de um maior escrutínio público às reformas políticas europeias, até aí confinadas à negociação diplomática, com discreta intervenção parlamentar posterior. O alargamento da área de intervenção do Parlamento Europeu – uma instituição mal-amada por muitos governos – trouxe, de igual modo, uma atenção acrescida por parte dos Parlamentos nacionais, preocupados com o deslizar de poderes das suas mãos para o espaço europeu.
       A iminência dos futuros alargamentos e a ambição de garantir um leque mais alargado de tratamento comunitário a certas políticas, acabou por conduzir a uma pressão para uma reanálise do Tratado de Maastricht. Um “grupo de reflexão” reuniu em 1995 e produziu uma série de conclusões que uma Conferência Intergovernamental abordou, em 1996/97, e da qual resultou o Tratado de Amesterdão.
       Amesterdão não introduziu mudanças radicais, mas avançou no tratamento comunitário de várias temáticas, melhorando os instrumentos desenhados em Maastricht e redefinindo melhor alguns poderes e mecanismos entre as diversas instituições. O consenso de Amesterdão ficou, porém, muito aquém daquilo que certos Estados consideravam indispensável como a base mínima para a União Europeia poder enfrentar os desafios provocados pelos alargamentos que se anunciavam. E, ainda mal o tratado tinha entrado em vigor, logo se avançou para o debate em torno de um novo tratado.
       Em Amesterdão havia ficado muito claro que a força relativa dos Estados no processo decisório interno era já objecto de contestação por parte de alguns. A nova Conferência Intergovernamental, iniciada em Janeiro de 2000 e finalizada em Dezembro desse mesmo ano com o Tratado de Nice, tornou essa percepção muito patente e gerou uma séria e inédita conflitualidade entre países de diferente dimensão.
       Os Estados mais populosos procuraram então um reforço considerável do seu poder, desfazendo de vez os equilíbrios que sobreviviam desde o Tratado de Roma, e que os anteriores alargamentos haviam confirmado, que ia no sentido de conferir aos países menos populosos uma sobrerepresentação nas votações, em nome do equilíbrio entre o princípio da igualdade entre os Estados e o princípio da representação democrática.
       A resultante deste inédito confronto institucional foi o Tratado de Nice, inicialmente apresentado como o texto que, finalmente, permitiria à União Europeia comportar os efeitos dos futuros alargamentos. Nice consagrou a obtenção de um maior poder por parte dos “grandes” Estados, embora a sua complexa maquinaria institucional ainda conferisse importantes salvaguardas aos “pequenos”, ao garantir determinados limiares percentuais de população nas votações e um número mínimo de países para legitimar as decisões. Apesar deste desequilíbrio, pode dizer-se que o Tratado de Nice veio a revelar-se a última trincheira de resistência dos Estados de menor dimensão para evitarem a consagração da sua irrelevância no processo decisório. Assim, Nice acabou por não ser uma vitória dos maiores Estados. Talvez tenha sido essa a razão pela qual foi rapidamente posto em causa.

A lógica dos conflitos

       Vale a pena atentar, com alguma frontalidade, nos que está verdadeiramente em causa nas posições relativas dentro do processo europeu – uma análise que, sabemos bem, desagrada a quantos pretendem continuar a viver com a langue de bois do politicamente correcto.
       Todos os Estados partilham, naturalmente, a preocupação de garantir eficácia nos procedimentos funcionais da União Europeia. Essa busca de eficácia tem, porém, como óbvio limite alguns critérios de legitimidade, que são interpretados diferentemente pelos vários membros, de acordo com as respectivas tradições constitucionais e com as suas idiossincrasias nacionais. O tecido político interno de todos os Estados não está preparado, a partir de determinado limiar, para aceitar que o primado da funcionalidade europeia se sobreponha ao interesse nacional que a sua soberania lhe impõe salvaguardar. É claro que a definição desse limiar varia muito de Estado para Estado e, do mesmo modo, depende da questão concreta que pode forçar ou violentar essa mesma soberania.
       Como antes se referiu, o processo decisório instaurado desde o Tratado de Roma foi marcado por uma sobrerepresentação dos Estados de menor dimensão, que lhes dava garantias de não serem esmagados pelos Estados mais populosos e, de certo modo, lhes permitia, como último recurso, recorrer à formação de minorias de bloqueio que pudessem preservar os seus interesses. O modelo como que procurava respeitar a igualdade do Estados, ponderada esta por factores de mero realismo, mais ou menos aceites por todos.
       Vale a pena sublinhar que as grandes linhas divisórias no funcionamento dentro da União Europeia nunca passaram por um confronto entre “grandes” e “pequenos” Estados. O que principalmente divide os países dentro da União Europeia é a sua riqueza e o seu grau de desenvolvimento, que define o seu padrão de interesses. Mas esta realidade, curiosamente, só se tornou mais evidente nos últimos anos. Durante décadas, a União Europeia foi um “clube de ricos”, composto por Estados com um grau de desenvolvimento relativamente similar. Esses países, “grandes” ou “pequenos”, tinham interesses basicamente próximos, em especial na formatação da legislação que elaboravam em conjunto. Há que ter em conta que as áreas de integração eram então muito menos numerosas e, no essencial, estavam centradas na facilitação do funcionamento de um mercado comum que a todos beneficiava.
       O acesso dos primeiro “pobres” ao “clube” (Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha), não foi de molde a colocar em causa a predominância dos “ricos” ou a afectar a própria riqueza do conjunto. Um importante esforço, aliás, acabou por ser pedido aos países menos desenvolvidos, obrigados a terem de confrontar-se com crescentes exigências em matéria legislativa, desenhadas para países com um grau médio de desenvolvimento muito superior. A entrada de novos aderentes, também eles “ricos” (Áustria, Finlândia e Suécia), veio agravar, aliás, o grau de exigência legislativa, como bem se notou em áreas como o ambiente e de protecção de consumidores.
       Diga-se, desde já, que este rigor não foi, de forma nenhuma, negativo: ele redundou num interessante choque de modernidade para os Estados mais “pobres”, tanto mais que a União Europeia disponibilizou importantes meios financeiros para os ajudar a fazer face às exigências legislativas e, simultaneamente, para potenciar o seu desenvolvimento e fazer florescer os seus mercados, no interesse de todos.
       No mundo acima descrito, o controlo do processo decisório pelo países mais desenvolvidos – com reflexo, em especial, na legislação e no orçamento – estava assegurado, sem necessidade de introdução de especiais mudanças no modelo de votação, isto é, de gestão do poder.
       A perspectiva dos novos alargamentos ao Centro e Leste europeus veio alterar radicalmente esta percepção. A iminência da súbita entrada de um conjunto de países com um grau de desenvolvimento inferior, marcados por uma potencial atitude afastada da cultura europeia tradicional, que se temia viesse a desencadear alianças bloqueadoras do processo decisório (minorias de bloqueio), levou a uma acção por parte de alguns dos Estados da União a “quinze” no sentido de procurar tornar neutral ou irrelevante o efeito dos futuros alargamentos no processo decisório dentro da União Europeia.
       Este preemptive strike teve a sua primeira expressão concreta na discussão daquilo que viria a ser o Tratado de Nice, em que, como se disse, os Estados mais populosos procuraram obter uma maior ligação entre o seu peso demográfico e o seu peso relativo no processo decisório. É que o único critério apresentável, com alguma legitimidade, para “separar as águas” na nova União Europeia que se avizinhava era, de facto, a diferenciação demográfica – afastado que estava, por razões políticas, o critério mais “duro” de um voto ligado ao volume nacional das contribuições para o orçamento.
       O interessante nessa negociação foi ver Estados menos populosos, mas “ricos”, a reagirem à consagração da sua própria irrelevância, muito embora o padrão médio de interesses que se reflectiria no processo decisório em Bruxelas, mesmo que viesse a ser comandado pelos “grandes” e “ricos”, os protegesse em pleno. É que a fixação institucional desse seu estatuto menorizado iria ser sempre difícil de explicar aos seus parlamentos e opiniões públicas, por maiores que fossem os argumentos de racionalidade prática – o tal princípio da eficácia.
       No caminho para Nice, os dois modelos possíveis para satisfazer as ambições de poder de alguns estiveram sobre a mesa: o modelo da dupla maioria (população e países, com limiares diversos) ou a simples reponderação do poder de voto (com ou sem introdução do critério de um mínimo de Estados em qualquer decisão). Como se sabe, o novo tratado acabou por dar mais votos aos países mais populosos, os quais, nessa negociação, perderam, em troca, o segundo comissário que desde sempre haviam tido a possibilidade de indicar para a Comissão Europeia.
       Por que razão o sistema da dupla maioria, que o Tratado de Lisboa hoje consagra, não foi acordado já em Nice? Pela simples razão de que a França não queria, à época, perder a paridade de poder de voto que tinha com a Alemanha desde o início do Tratado de Roma. A reacção a esta potencial “décrochage” levou Paris – que tinha então a Presidência da União Europeia – a insistir até ao fim no modelo do voto ponderado. E para o obter, teve de fazer cedências que acabaram por colocar o resultado final do exercício bem longe das suas ambições iniciais.
       Os ganhos obtidos com o Tratado de Nice não foram, porém, suficientes para aquietarem quem se habituara a dominar o processo decisório da União Europeia e temia que o futuro grande alargamento viesse a colocar em causa esse seu estatuto. O recurso a um método em que o peso demográfico – que tem uma simbologia democrática muito forte – fosse a principal expressão continuava, assim, a ser o caminho natural.
       Muitos duvidavam então que a abertura de uma nova Conferência Intergovernamental fosse o método ideal para se poder ir mais longe do que se fora Nice. Tornava-se necessário encontrar uma nova fonte de legitimidade para as mudanças institucionais a introduzir, que fosse desenhada a montante da decisão que os governos iriam tomar.

A Convenção e a “Constituição”

       A ideia de um modelo de debate alargado que antecedesse uma futura Conferência Intergovernamental circulava já em alguns meios europeus. Juntar governos, parlamentos nacionais, representantes do Parlamento Europeu e outras instituições ou órgãos comunitários, num processo com acompanhamento e escrutínio de meios organizados da sociedade civil, era uma proposta sedutora, porque introduzia uma dinâmica colectiva diferente[16]. O exercício da “Convenção para o Futuro da Europa” veio a revelar-se um interessante campo de debate sobre a coisa europeia mas, ao mesmo tempo, mostrou ser um instrumento excessivamente vanguardista, impulsionado por um voluntarismo que, dia após dia, se pressentiu ir ficando distante do sentimento das opiniões públicas.
       O modo muito discutível como o antigo Presidente francês, Valéry Giscard d’Estaing, dirigiu o processo da Convenção redundou num resultado cuja legitimidade foi posta em causa por muitos observadores. As vozes discordantes pareceram, no entanto, como que aturdidas pelo peso dos parceiros envolvidos no exercício e, com algumas excepções, quase se abstiveram a expressar publicamente fortes objecções. A certa altura, aparecer publicamente contra o resultado da Convenção – que decantara um audacioso projecto de “Constituição” – surgia como uma atitude de anti-europeísmo primário. Alguma mídia embedded ajudou a firmar este cenário.
       Do notar que, no caminho da Convenção, a França acabou por prescindir da paridade face à Alemanha e deixou-se conquistar pela tese da dupla maioria, onde o factor populacional era predominante. Esta foi, talvez, a grande novidade consagrada pela Convenção[17]. De qualquer modo, a França, por virtude da “Constituição” (e também do Tratado de Lisboa) aumenta em mais de um terço os seu peso de voto no Conselho de Ministros, tendo como referência o sistema de Nice.
       Vale a pena notar aqui, como parêntesis, o que nos parece ser a grande ilusão que foi induzida no mundo europeu, ao tempo da Convenção: a ideia de que a União não poderia funcionar com as instituições que tinha e que novas estruturas eram, em absoluto, essenciais para suportar a ambição de uma Europa do futuro. Nada nem ninguém provou ainda que essa ideia tivesse real fundamento, mas o que importa é que ela se tornou numa verdade sacralizada a partir de então. A nosso ver, o que a experiência demonstra à saciedade é que não eram as instituições existentes que verdadeiramente condicionavam e condicionam o funcionamento da União, mas sim a falta de vontade política para agir em conjunto que era demonstrada pelos Estados membros.
       Como é sabido, o projecto “constitucional” saído da Convenção veio a ter um tratamento muito expedito a nível dos líderes europeus, que organizaram uma rápida Conferência Intergovernamental, vista por alguns como um forma de se limitar, ao máximo, a expressão de reticências nacionais que pudessem colocar em causa os equilíbrios obtidos. Os alertas de prudência então avançados por certos observadores, nomeadamente quanto ao carácter temerário da designação de “Constituição” ou “Tratado Constitucional”, não foram ouvidos. O resultado foi o que se viu: França e Holanda submeteram o projecto a referendo e o voto popular foi negativo. Isso praticamente travou as restantes ratificações por toda a Europa, muito embora mais de metade dos países já tivesse dado seu acordo ao texto do Tratado Constitucional.
       Nas objecções ao Tratado juntaram-se, curiosamente, preocupações contraditórias, desde quantos consideravam que ele apontava o caminho para uma Europa federal, debilitadora das soberanias nacionais, até quantos entendiam que ele consagrava a Europa do “directório” dos grandes países. No plano substantivo, foi interessante ver o confronto entre os que liam o novo Tratado como criador de um “super-Estado” regulador até aos que intuíam, da sua leitura, uma deriva liberal, que colocava em causa o modelo social que a Europa havia laboriosamente criado. O que um saldo realista desta rejeição demonstra é, simplesmente, um mal-estar genérico das opiniões públicas face ao processo europeu, cumulado com motivações contra os respectivos governos nacionais.
       Com a rejeição do Tratado Constitucional, um ambiente de crise perpassou pela União Europeia. Reiterou-se a impressão de que a Europa estava paralisada, incapaz de decidir por falta de novas estruturas.

A caminho de Lisboa

       O ar de “crise” que soprava pela Europa facilitava a tarefa a quem queria salvar o que entendia ser o essencial do Tratado. Alguns líderes europeus – uns mais do que os outros, valha a verdade – reforçavam, com declarações sonoras e graves, o trágico momento que o projecto europeu atravessava e desdobravam-se em arranjos políticos. Como se referiu, esta “verdade” acabou por ser aceite por muitos observadores e por grande parte da mídia. E, como dizia alguém, “em política, o que parece é”.
       Depois de meses de angústia, um trabalho de redrafting político bem pilotado pela Alemanha consensualizou algumas alterações ao texto do Tratado Constitucional e expurgou-o de algumas marcas institucionais ou semânticas mais contestadas: morria o Tratado Constitucional e nascia o Tratado Reformador, conhecido por Tratado de Lisboa[18]. Pelo caminho ficaram certos ajustes de pormenor, destinados a satisfazer alguns interesses nacionais específicos, hábeis álibis para certos governos poderem argumentar em casa como vantagens ou vitórias negociais obtidas.
       A Presidência portuguesa da União Europeia fez, com grande rigor, muito profissionalismo e sentido de compromisso, as últimas negociações, colocando o nome da capital portuguesa na História europeia.
       Resta agora proceder às ratificações nacionais, as quais, na esmagadora maioria dos casos, se farão por via parlamentar, como óbvia tentativa de evitar que os referendos se tornem armas de arremesso político, em que o que está em causa, para grande parte dos votantes, é menos a substância do que se vota e muito mais a sua atitude perante que faz a proposta – isto é, os respectivos governos. Se tudo correr como está previsto, o Tratado de Lisboa poderá mesmo entrar em vigor em Janeiro de 2009[19].

Decifrar Lisboa

       Mas, afinal, que nos traz o novo tratado?
       Para além de algumas melhorias nos mecanismos legislativos internos (simplificação do processo legislativo, mais decisões por maioria, mais poderes para o Parlamento Europeu, maior intervenção dos parlamentos nacionais), numa linha de evolução que vinha a prolongar os anteriores tratados, as grandes mudanças que o Tratado Constitucional propunha e que foram recuperadas para o Tratado de Lisboa podem resumir-se a sete pontos:

       - criação da figura do Presidente do Conselho Europeu, eleito pelos chefes de Estado ou governo, por um período de dois anos e meio, com possibilidade de uma renovação de mandato, tendo a seu cargo funções de representação externa da União Europeia.
       - criação do cargo de Alto Representante da União para a Política Externa e de Segurança (o nome “simples” que evoluiu do de “Ministro dos Negócios Estrangeiros” da União Europeia, que o Tratado Constitucional previa), que passa a chefiar as reuniões dos chefes das diplomacias dos Estados membros e que, simultaneamente, será vice-presidente da Comissão Europeia, dispondo de um Serviço de Acção Externa Europeu.
       - a Comissão Europeia passará, a partir de 2014, a contar com um número de comissários igual a dois terços do número de Estados membros, que passam a indicar um comissário na base de uma rotação igualitária, o que significa que cada Estado ficará sem a possibilidade de nomear um comissário uma vez em cada três mandatos de cinco anos.
       - alteração do regime de presidências rotativas, a ser exercidas por grupo de três Estados por um período de 18 meses, com diversos equilíbrios observados na composição desses mesmos grupos.
       - novo processo decisório, baseado num sistema de dupla maioria, para aprovação de qualquer decisão (55% dos Estados membros que representem 65% da população total da União). A entrada em vigor deste mecanismo só se fará, contudo, em 2014 ou mesmo até 2017, se um Estado membro tal solicitar, mantendo-se até lá o sistema ponderado de Nice.
       - comunitarização de certos procedimentos relacionados com as áreas da justiça e assuntos internos, bem como na área das relações económicas externas, com o Parlamento Europeu a ter direito de co-decisão em todas as temáticas em que a maioria qualificada se aplique. O Reino Unido e a Irlanda obtêm um direito de opt-out em áreas de justiça e assuntos internos.
       - o presidente da Comissão Europeia passa a ser eleito pelo Parlamento Europeu, sob proposta do Conselho Europeu (chefes de Estado e governo).

Por detrás do Tratado de Lisboa

       Vale a pena atentar nalguns novos equilíbrios que o Tratado de Lisboa consagra.
       O texto fixa, em vários pontos, o sedimentar de políticas que os anteriores tratados haviam desenvolvido, reforça outras de forma muito interessante e sinaliza áreas periféricas cujo desenvolvimento, em termos comunitários, dependerá da vontade colectiva que, em cada momento, for possível conjugar. Esse foi um trabalho meritório que importa ser sublinhado, até porque sabemos a dificuldade imensa que significou evoluir em certos domínios.
       No tocante às instituições, parece desenhar um papel preponderante das instâncias comuns, o que criou, no imaginário de alguns, a falsa percepção de estarmos perante uma deriva federal, ideia que foi sublinhada pela maior extensão das áreas de votação por maioria qualificada e no aumento automático dos poderes do Parlamento Europeu – o que não deixou de facilitar a obtenção da boa vontade desta caprichosa instituição face ao novo tratado.
       Mas serão as coisas, de facto, assim? Porque razão países e governos tão avessos à ideia federal europeia se mostraram abertos, e até entusiastas, deste tratado?  Por inevitabilidade? Para não ficarem mal na foto? Pode haver algo de verdade em tudo isso, mas inclinamo-nos a pensar que houve, declaradamente, a percepção dos maiores Estados de que, através deste tratado, estavam a ganhar, uma vez mais, uma substancial fatia de poder. É que os mecanismos de gestão da União, previstos no novo tratado, colocam na mão de um núcleo muito restrito de países, por via da determinante demográfica, o poder de facto dentro da União Europeia.
       Poderá ser argumentado que, ao optar-se pelo sublinhar do peso populacional, está-se apenas a cumprir a evolução natural para qualquer entidade federal – no sentido da legitimidade democrática. Só que, nessa mesma lógica federal, a prevalência dessa legitimidade populacional teria sempre de se cruzar com uma outra, essa derivada da legitimidade nacional, através de uma câmara de representação equitativa, de um “senado” de Estados. Ora ele não está presente no Tratado e ninguém acredita que os países que agora asseguraram o seu desmesurado poder, sem terem de se sujeitar a uma instância onde estariam equiparados a todos os outros de menor dimensão, venham a aceitar, no futuro, um qualquer recuo institucional em detrimento da sua força actual. Ao não existir este factor de equilíbrio, o futuro da União, no plano institucional, fica claramente nas mãos de um “condomínio” constituído pelos Estados mais populosos, os quais, na esmagadora maioria dos casos, são também dos mais ricos e desenvolvidos da União.
       A objectivação, no dia-a-dia, do poder conjugado dos maiores países dependerá, contudo, da nem sempre fácil harmonização das respectivas agendas. O actor dessa conjugação eventual de vontades acabará por ser a figura inovadora de toda esta nova construção institucional – o novo presidente do Conselho Europeu. O aparecimento desta nova figura constitui a prova mais flagrante de que estamos perante um formato que mais não é senão um modelo tendencialmente intergovernamental, com o centro do poder bem identificado. De facto, o complexo institucional criado funciona, na prática, em objectivo detrimento da instituição cujo reforço significaria a evolução para um modelo federal – a Comissão Europeia. A potencial perversidade do novo sistema institucional centra-se na possibilidade de vir a criar-se uma conflitualidade entre os papéis do presidente do Conselho Europeu e do presidente da Comissão, nomeadamente retirando a este muita da representatividade externa que tinha vindo a obter e que funcionava em favor de um reforço objectivo do seu papel. Estas duas instâncias permanentes têm ainda de encontrar “espaço” para a actuação do chefe de Estado ou governo das presidências rotativas semestrais, o que sempre será mais complexo quando essa figura provier de um grande Estado europeu.
       Para além disso, o Tratado designa como vice-presidente da Comissão (mas não dando ao respectivo presidente o direito a nomeá-lo) o Alto Representante, cuja acção no domínio externo é flagrantemente concorrencial com a do presidente do Conselho Europeu e, de certo modo, com a do seu “chefe”, o Presidente da Comissão. Além disso, ao colocar-se uma figura que depende do Conselho de Ministros no seio da Comissão está-se a acabar com a separação de poderes que sempre constituiu a originalidade da União Europeia e que consagrava a Comissão como uma representante do “interesse comum”, face a um Conselho onde as pressões dos interesses diversos dos Estados tinha evidente expressão[20].
       Alguns meios europeus mais cínicos são de opinião de que este complexo e contraditório sistema foi criado precisamente para falhar, para provocar uma tensão interinstitucional, que os Estados acabarão por resolver da única forma possível: com a atribuição futura de mais poderes ao presidente do Conselho Europeu. O que, a verificar-se, significaria a perda progressiva da autonomia da Comissão, que o mesmo é dizer, do vector tendencialmente federalista central do sistema. E, por esta via, a vitória da intergovernamentalidade, o mesmo é dizer, a perda ou diluição progressiva do modelo integrador construído neste meio século e o regresso à Europa dos Estados que ele procurou superar.
       Terá razão quem assim pensa? Só o tempo dirá. Como se afirmou no início deste texto, a maior virtualidade que o Tratado de Lisboa nos traz é a introdução de um ambiente de alguma pacificação institucional dentro da União Europeia. Com ou sem fundamento real, a Europa vivia um ambiente de crise e o projecto europeu é demasiado importante para os povos que o integram para nos podermos dar ao luxo de ir sobrevivendo sob um malaise que estava a tornar-se endémico. Se o Tratado de Lisboa tiver a faculdade de descrispar a vida europeia, de conferir algum élan à Europa e de fazê-la readquirir alguma confiança em si mesma, terá já cumprido um papel histórico muito importante.



A EUROPA, A CULTURA E O MUNDO[21]




















       Uma parte da geração portuguesa contemporânea teve o trágico privilégio histórico de viver um tempo de transição; experimentou, já adulta, um ambiente de ditadura, cuja principal perfídia foi conseguir adiar decisivamente o futuro do país, e vive hoje numa democracia para cuja consolidação a Europa teve e continua a ter um papel decisivo.
       Para essa geração, antes de 1974, atravessar os Pirinéus significava “ir à Europa”. A Europa era então uma entidade algo mítica, situada para lá de uma Espanha que se era educado a desconhecer. Era um continente-ideia de que muitos se sentiam sentimentalmente próximos, onde parte de Portugal tinha já então ido à procura do seu futuro económico, mas que se pressentia fisicamente distante, pela imperatividade do condicionamento que era imposto ao dia-a-dia do país.
       Enquanto nação, Portugal era natural tributário das seculares culturas europeias, mas o persistente isolamento sofrido, ligado à prevalência no quotidiano de um mito ideológico que assentava num patético imperialismo tardio, projectava-se em toda a educação e tinha como objectivo deliberado manter o país afastado do continente a que pertencia pela geografia.
       A chamada “nação pluricontinental e pluriracial”, com que a ditadura portuguesa disfarçava o seu anacronismo histórico, tinha o projecto europeu como aberto inimigo. Um jornal do regime tinha mesmo como lema: “Portugal não é um país europeu e tende cada vez mais a sê-lo cada vez menos”. Há meses, a capa de um livro recém-publicado recuperava, com graça, um mapa dos anos 40 do século passado que projectava Angola, Moçambique e todas as restantes colónias portuguesas sobre uma carta da Europa, como que a sublinhar que, perante a importante dimensão conjugada desses territórios, na matriz do chamado “Portugal do Minho a Timor”, essa Europa, enquanto entidade referencial, deveria ter um peso muito relativo e, subliminarmente, ser vista como dispensável na construção do nosso futuro nacional, que era “ultramarino” por vocação.
       Nesse mundo irreal em que o país vivia “orgulhosamente só”, como dizia Salazar, a Europa era, assim, o perigo maior, porque trazia em si a sinistra matriz dos direitos fundamentais, da detestada democracia, a confusão dos partidos políticos e da panóplia de ideias subversivas que tudo isso parecia comportar. Para superar esse mundo de cinzenta fantasia, os sinais culturais da contemporaneidade eram a ponte de ligação ao continente, eram a via de saída da “Jangada de Pedra”, que Saramago viria a fantasiar muitos anos mais tarde.
       Serve isto para sublinhar que uma parte significativa do Portugal contemporâneo não foi naturalmente europeia. Sendo europeus na sua raiz histórica, muitos portugueses acabaram por ser europeus contemporâneos pela vontade e, muito em especial, através da cultura. É que, ao contrário de um cidadão alemão, luxemburguês ou italiano, ou de um jovem português de hoje, uma parte significativa dessa geração ainda foi obrigada a olhar a Europa de fora para dentro. E é irónico notar que nem mesmo a democracia deixou de ser tocada por este dualismo: o slogan de promoção do apoio que Portugal recebia para entrar nas Comunidades Europeias era “a Europa está connosco”. Portugal continuava a ver-se fora da Europa, mas agora já com vontade afirmada de lhe pertencer.
       Para essa geração de transição, foi a cultura que trouxe a Europa ou melhor, que a ajudou a não a perder de vista: foram as livrarias da rive gauche, os romances torturados da Alemanha do pós-guerra, as músicas dos Beatles e dos Stones nas ondas piratas da “Radio Caroline”, as vozes românticas, de Brel e Bécaud até à Eurovisão ou ao festivais de San Remo, a imagem desencantada das paisagens áridas do realismo italiano e a produção mágica da geração dos “Cahiers du Cinema”. Além disso, o Maio de 68 trouxe consigo um inesperado remake de uma certa Europa mítica das revoluções na rua, vivia-se a miragem das bolsas de estudo, em Lovaina ou na Suécia, para evitar as guerras coloniais, quase sentindo como domésticos os debates acesos no “Nouvel Observateur” e no “Temps Modernes”. Mas arrastava-se já, saído das ruas de Praga, um pressentimento, ainda difuso, das tragédias que estavam por detrás do chamado socialismo real, de Djilas a Arthur London, de Soljenitzin a Sakharov.
       Muitos outros portugueses, da mesma geração, seguiram caminhos diversos, uns mais radicais, outros mais serenos – e, nestes últimos, alguns tocados já pelas angustias do cristianismo crítico. Mas, lá no fundo, uma grande e significativa parte deles estava junta na vontade de colocar o país de acordo com a sua geografia. E muitos se acabaram por se encontrar, numa bela manhã de Abril de 1974, com alguns a ajudar a derrubar com alegria o muro construído à sua volta, bem antes da queda do de Berlim.
       Por tudo isso, essa geração de transição talvez tenha ficado mais equipada do que algumas mais recentes para entender, não melhor mas de forma diferente, o que a nova Europa política representava para quem estava fora dela, para quem ansiava juntar-se-lhe e para quem, no mundo, a via como parceiro. E porque a cultura havia sido um importante veículo do seu acesso ao projecto europeu, essa geração confronta-se hoje com duas importantes questões.

Cultura e imagem da Europa

        A primeira é quase existencial: será que os habitantes do continente europeu, que hoje tem a União Europeia como incontornável centro, têm, de facto, algo culturalmente em comum, identitário, que os una e que sintam que os marca como europeus?
       A segunda pergunta é apenas um corolário da primeira, mas prende-se mais directamente com uma perspectiva exterior: como é que a Europa é vista do exterior? Projecta uma imagem cultural própria e unívoca? Que expectativas e anseios cria nos outros?
       Como resposta à primeira pergunta – se os europeus se sentem culturalmente europeus – costuma dar-se o estafado exemplo de que os habitantes do continente se sentem sempre mais europeus quando estão na América, sem revelarem que a América dos últimos anos tem dado uma forte e involuntária ajuda a esse mesmo sentimento. Porém, muitos sentem-se bastante mais em casa num café de Buenos Aires ou numa livraria do West Side de Nova Iorque do que em algumas paragens da Europa geográfica, cujo nome, como dizia Cervantes para um certo lugar da Mancha, no parágrafo de abertura do Dom Quixote, é preferível não lembrar.
       O sentido de uma cultura comum é algo que se projecta na forma como partilhamos tradições, crenças, mitos, projecções e modos de vida, valores próprios, alguns até algo contraditórios entre si, mas com uma matriz que identificamos como muito próxima. É algo que decorre de uma sólida e contínua pertença a uma longa história colectiva, mais própria das nações, muitas vezes dos países ou das regiões, do que dos grandes espaços multinacionais.
       Ora o que na Europa se detecta, mas não fica delimitado nas suas fronteiras, e que faz com que os europeus se liguem a Nova Iorque ou a Buenos Aires, são as chamadas “esferas culturais”, são identidades culturais difundidas por camadas ou sectores, que têm menos a ver com a geografia e muito mais com níveis de percepção conjunta de certos sinais, onde quer que se encontre quem os partilha. Embora anterior à globalização, essa é uma realidade que ela potenciou e que, de certo modo, a internet tornou ainda mais evidente.
       E daqui decorre a resposta à segunda pergunta, à questão do tipo de olhar que quem não é europeu tem sobre a Europa. Correndo o grande risco de se estar a simplificar aquilo que é muito complexo, tudo indica que o mundo está hoje muito longe de percepcionar sinais de uma cultura europeia comum, mas começa seguramente a construir a imagem da progressiva existência de um modelo civilizacional europeu – onde as várias e diversas dimensões culturais do continente se projectam, influenciando-o e sobredeterminando-o.
       Tudo aponta para se poder concluir que o mundo começa hoje a ter uma certa ideia da Europa que é superior, em nitidez de desenho, àquela que a Europa já tem de si própria. Para utilizarmos uma categoria de um filósofo alemão que não está na moda citar, arriscaríamos dizer que poderá haver já hoje uma Europa civilizacional “em si”, mas ainda talvez não haja uma civilização europeia “para si”. Por isso, esse tal olhar exterior, embora detecte uma projecção civilizacional comum, distingue nela, de forma mais ou menos clara, as várias Europas culturais. E nota, em particular, as expressões dos países que mais se afirmam no mercado internacional da cultura, dos poderes de atracção dos seus produtos e conteúdos, bem como a força dos seus meios de suporte comunicacional.
       Mas esse estrangeiro não parece ligar a sua ideia de Europa – seja a Europa em geral, seja a União Europeia em particular – a uma projecção cultural determinada, definida e bem recortada nos seus contornos. E faz bem: se fosse por esse caminho, estaria a sustentar uma falsa caricatura da cultura europeia. Aliás, esse observador exterior tem cada vez mais razão para sustentar esse olhar multifacetado, por exemplo, quando lhe falam da União Europeia: à medida que a União Europeia se alargou, se legitimou como projecto, se reconciliou historicamente consigo mesma, a Europa tornou-se muito mais diversa culturalmente, muito mais pluralista e rica na variedade das respectivas expressões. A pressão da subsidiariedade, que hoje está politicamente protegida, tende mesmo a forçar a atenção para as comunidades locais, para as regiões, para as tradições minoritárias, para aquilo que se distingue e orgulhosamente resiste à força de um template comum. Basta um exemplo evidente: a Europa é hoje uma Babel saudavelmente incontrolável, por mais que alguns queiram espartilhá-la num quadro linguístico reduzido, feito das ambições de quem tem a ridícula tentação de impor, sob o alibi da eficácia, que a palavra demografia venha a ser sinónimo de democracia.
       Mas, como antes se referiu, há uma coisa que o estrangeiro começa a reconhecer, em especial depois que a Europa política passou a querer ser vista como um benigno soft power: esse estrangeiro vê a emergência no espaço europeu, centrada na União Europeia, de uma vontade comum em tentar afirmar, porventura sem ser capaz ainda de a construir por completo, uma matriz civilizacional específica, que vai já para além do padrão clássico da civilização europeia que as bibliotecas guardam, porque o prolonga em novas e actualizadas dimensões.

A matriz europeia

       Onde é que está essa nova matriz? Está, por exemplo, no modelo social europeu e na obstinação de alguns em tentar que ele se reconverta para conseguir sobreviver como um modelo de justiça social. Está na saudável teimosia de quantos defendem que o secularismo continua a ser a imagem de marca da modernidade europeia. Está nos esforços para afirmar o multilateralismo como único eixo legítimo de uma ordem internacional baseada na busca incessante da paz e da justiça, sob a tutela do Direito Internacional, tendo o recurso ao diálogo, à diplomacia e à solidariedade como instrumentos de trabalho. E o mundo vê também os europeus preocupados com as causas colectivas de progresso, como a defesa ambiental, a protecção da biodiversidade e a luta contra as alterações climáticas, pelo fim da pena de morte e pelo combate contra a exploração infantil e das mulheres, contra o tráfico de seres humanos, entre tantas e tantas outras causas que a consciência universal contemporânea elege como prioridades de uma nova ordem ética internacional. Vê também o esforço de muitos, na Europa, em procurar garantir que a necessária luta contra as ameaças radicais, como o terrorismo e outras formas de extremismo, se faça sempre sob a égide da preservação dos Direitos Humanos e dos direitos fundamentais, no respeito pelas minorias e pelas crenças, na preocupação de entender as causas desse radicalismo e algumas determinantes regionais que o potenciam.
       A agenda europeia de preocupações, como a que se expressa num fórum como são as Nações Unidas, comporta hoje um impressionante inventário de ideias que procuram responder aos anseios mais nobres da Humanidade, cada vez mais empenhada em alargar as “boas práticas” ao colectivo. Alguns dirão que ainda estamos no terreno declaratório do “politicamente correcto”, da mera rightousness ideológica e desculpabilizante, e que, no final de contas, tudo isso tem um sentido muito mais formal do que prático. Talvez possa ser assim em alguns casos, mas, pelo menos, a nova civilização europeia terá já escapado muito à hipocrisia dos cultores e admiradores da lógica de poder, que é hoje um desvio perverso da leitura de um filósofo como Hobbes. A maioria da Europa – infelizmente não toda, como se sabe – tem tido a decência de não se deixar alinhar pelo pragmatismo neoconservador, que esteve presente numa deriva oportunista própria de quem vive ao sabor dos ventos prevalecentes, e que tem como objectivo ajudar a conferir uma patine de respeitabilidade ideológica a uma mera e cínica realpolitik unilateralista. 
       Porque este somatório de preocupações humanistas da Europa contemporânea é fruto de um árduo e negociado processo de entendimento e não de qualquer iluminação nacionalista, a principal imagem que a nova civilização europeia hoje projecta, para além de um sentido de tolerância e de diálogo, é a de um apurado culto da liberdade. Talvez porque a perdeu durante muito tempo, de diversas formas e sob diversos terrores, a Europa apresenta-se hoje perante o mundo como o grande cultor e promotor dessa mesma liberdade.
       Os europeus têm a obrigação de sentir orgulho em pertencer a um continente que, por cima de todas as suas imensas contradições, tem hoje o culto da liberdade no centro da sua matriz identitária, que se preocupa com a sua preservação à outrance, que discute os seus necessários limites sempre sob um feroz juízo de ética, com opiniões públicas que controlam a deriva acrítica para as soluções assumidas pelos poderes políticos. Basta recordar o caso dos cartoons de Maomé para sublinhar como as sociedades europeias mostraram estar alerta, recusando, simultaneamente, o facilitismo da realpolitik e o temor reverencial face às tentativas de policiamento ideológico.
       Alguns, mais cépticos e talvez bastante realistas, devem perguntar-se se esta não será uma visão ingénua: onde está esse culto às liberdades nas ruas de uma cidade como Minsk? E nos embaraçantes silêncios face à Chechénia? Porque deixaram os europeus morrer esse culto às portas de Srebrenika? Onde é que ele fica, perante os atentados através dos quais alguns poderes políticos, no espaço geográfico europeu, continuam a condicionar os media e as expressões das sociedade civil, restringem a liberdade das Organizações Não-Governamentais, fecham os olhos à propagação dos ódios étnicos seculares, aceitam, com uma triste complacência, os ataques a minorias que não dispõem de back-up nacionalista, como é o caso dos ciganos? Afinal, quais são as fronteiras dessa Europa ética e a que geografia europeia correspondem? E que se pode dizer a quem vê por aí crescer partidos políticos xenófobos, os quais, discretamente, afloram ao poder em democracias que nos habituámos a ter como sólidas e respeitáveis, sob o álibi da pluralidade democrática e a ausência de memória histórica? É que essa é também a Europa para a qual o mundo exterior olha e cuja existência não pode deixar de abalar a sua crença na solidez e na coerência da primeira, daquela outra Europa dos princípios que se referiu.
       Mas há que perceber que a Europa é isso mesmo. Ela projectará sempre, de si própria, uma imagem confusa, frequentemente contraditória, uma ideia de permanente e endémica crise. Como disse Eça de Queirós, “a crise é a condição quase regular da Europa”. Talvez que essa dialéctica interna, saldo de sofrimentos e de êxitos, esse ar de “casa em obras” contínuas, seja porventura o segredo da vitalidade europeia que o mundo não deixa de apreciar na Europa e, em especial, de contrastar muito positivamente com outras expressões de poder que hoje se afirmam à escala mundial. A Europa contemporânea tem os seus “buracos negros” civilizacionais, mas o debate sobre essas expressões negativas faz-se hoje de forma aberta e sempre tutelada por um referencial ético que já marca as suas instituições.
       E, neste campo, vale a pena fazer um parêntesis para notar quanto teria sido desejável que a Europa comunitária pudesse ter, inserida no seu Tratado, uma Carta dos Direitos Fundamentais vinculativa para todos, sem que ninguém pudesse dar-se ao luxo de saltar para fora dela, por um critério negativo de subsidiariedade, furtando-se a ter o Tribunal Europeu como último juiz. Embora respeitando as idiossincrasias nacionais, que são, em si mesmas, uma prova da diversidade europeia, não pode deixar de considerar-se como lamentável que a Carta dos Direitos Fundamentais acabe por vir a ter, para uns, o mesmo carácter facultativo que o Tribunal Penal Internacional tem hoje para outros.
       Vale também a pena sublinhar que, para o seu exterior, a Europa não é apenas um objecto contemplativo: a Europa é um actor e um produtor de uma multiplicidade de sinais de cultura, que acabam por interagir com a própria realidade de quem está de fora dela. E a Europa sabe bem que, desde sempre, influencia, condiciona e até limita as expressões culturais dos outros. Daí a questão de saber o que devem os europeus fazer com a força da sua projecção e até onde, e em que medida, têm, ou não, legitimidade para actuar de forma pró-activa perante terceiros. Em especial, evitando que isso signifique ou seja lido, muito simplesmente, como um mero voluntarismo proselitista, uma espécie de recolonização pelos valores, à luz de um juízo, também assumido ou não, sobre a superioridade desses mesmos valores. É que o orgulho nos princípios pode ser, se levado ao extremo, uma deletéria forma de insuportável arrogância.
       Esta questão pode parecer deslocada e sem sentido, num mundo de intensas interacções culturais como aquele em que hoje vivemos. Mas não o é, especialmente tratando-se das culturas dos países da Europa. Embora para muitos não seja cómodo estar a recordar isto, e prestando-se esta temática a óbvias polémicas, não podemos deixar de notar que muitos países e regiões do mundo vivem ainda, no seu paradigma histórico-cultural, com uma memória algo traumática relativamente àquilo que foi a presença agressiva das culturas europeias, quer na sua imposição forçada, que muitas vezes passou pela anulação ou desprezo pelas expressões culturais locais, quer nas acções de pilhagem da sua memória patrimonial, que as vitrinas dos museus europeus evidenciam à saciedade. Sabemos que este é um debate que tem fóruns próprios para ser feito, mas vale a pena aflorá-lo porque, por razões várias, ele acaba por renascer sempre que os contrastes entre civilizações emergem no horizonte da polémica, como actualmente está a ocorrer.
       É nunca perdendo de vista este incontornável pano de fundo histórico que os europeus, sem complexos mas com respeito, devem situar a sua reflexão colectiva interna sobre o que fazer e como actuar culturalmente perante terceiros, seja no plano bilateral, seja através das instâncias europeias comuns.

Reflexões finais

       Finalmente, algumas curtas reflexões que, não sendo novidades, são constatações que se afiguram de mero bom-senso.
       A primeira prende-se com a necessidade de garantir que a dimensão cultural venha a estar presente em todos os quadros europeus de relações externas e de cooperação para o desenvolvimento, sejam eles multilaterais, sejam de natureza bilateral. É essencial que, a exemplo do que hoje se passa com as questões ambientais, que acabam por marcar quaisquer intervenções de natureza económica, a dimensão cultural atravesse todas as políticas europeias com repercussão externa. A cultura tem de ser a alma por detrás das políticas da Europa. Uma intervenção friamente tecnocrática, por mais bem intencionada que se apresente, tem uma capacidade de sobrevivência e uma eficácia no tempo e na memória colectiva muito limitada. Tal como acontece com as relações humanas, as relações externas são mecanismos criados com o objectivo de ajudar a tecer redes de solidariedades e de cumplicidades, uma forma de se identificarem pontos comuns, de se gizarem formas conjuntas de colaboração, com vista a potenciar a vontade de trabalhar futuramente também em conjunto. Ter a cultura no posto de comando das relações externas é apenas uma ideia da mais óbvia racionalidade. Se necessitássemos de um exemplo, pela negativa, bastaria olharmos para as lições a tirar do que se passa no Iraque.
       A segunda reflexão liga-se à necessidade de intensificação do intercâmbio cultural, ao potenciar do conhecimento mútuo, ao esforço – que deve ser quase obsessivo – pela promoção no próprio seio da Europa, da diversidade alheia, pelo trabalho incessante de compreensão do outro. Quanto mais a Europa se abrir a expressões culturais que, à partida, lhe sejam estranhas, mais enriquecidas passam a ficar as próprias culturas europeias, mais abertos ficam os espíritos dos seus cidadãos, menos eurocêntrico fica o seu olhar sobre o mundo. E talvez isso contribua para que a Europa fique também mais tolerante dentro de si própria, aceitando melhor as suas diferenças, as suas múltiplas religiões, os seus mitos e as suas diversas idiossincrasias.
       E, finalmente, uma última linha, que pode parecer algo radical, e talvez tenha de o ser: a Europa só pode prestigiar-se perante terceiros quando se revelar, aberta e radicalmente, intolerante contra a intolerância. Este conceito tem sido alvos de aproximações não tão lineares, e Norberto Bobbio tratou-o já com alguma atenção. Mas a experiência recente parece recomendar que a Europa – e a Europa política tem aqui um papel fundamental – deva demonstrar uma disposição inquebrantável perante todas as manifestações que, no seu seio e fora dele, relevem do desprezo ou da menorização por quaisquer expressões culturais, por mais minoritárias que elas sejam.
       Em especial, os europeus devem estar vigilantes quanto à acção dos “polícias do espírito” que avaliam os desvios do modelo-padrão que, no passado e para muitos, caracterizava uma certa imagem da civilização dita ocidental, que nos habituámos a ver no centro do mundo europeu e a impor no mundo dos outros. A Europa tem de derrotar os seus próprios fantasmas e algumas vestais que ainda os representam, como aqueles que afirmam a superioridade da Europa cristã e se obstinam na criação de uma fortaleza política em seu torno. Este é um combate em que está em causa a própria credibilidade europeia e a sua legitimidade como fonte de afirmação cultural e civilizacional. O combate para que a palavra Europa passe, definitivamente, aos olhos do mundo, a ser vista como sinónimo natural da palavra liberdade.



SEGURANÇA E DEFESA EUROPEIAS[22]




















       Falar de segurança e defesa na Europa é, provavelmente, entrar pelo terreno mais delicado e sensível do seu projecto de aproximação política. Ninguém pode, nesta matéria, falar definitivamente em nome da União Europeia, porque cada um de nós tem a sua perspectiva própria sobre a evolução do processo de integração do continente e dos reflexos disso no próprio posicionamento da União no cenário internacional.
       A União Europeia é hoje muito mais diversa, pelo que as perspectivas sobre o seu futuro são também bem mais variadas no seu seio. E são-no, em particular, em áreas como a segurança e a defesa, que estão muito próximas do cerne das soberanias nacionais.

Das Comunidades à União Europeia

       Começando por um breve bosquejo do passado, eu diria que o processo de integração, que se gerou na parte ocidental da Europa a partir da década de 50 do século passado, correspondeu à tentativa de evitar a repetição das contradições nacionalistas que haviam gerado as duas anteriores guerras mundiais. Foi o receio de um novo conflito que esteve na origem da criação das instituições comunitárias europeias. Tratava-se então de procurar aculturar a França e a Alemanha a uma convivência pacífica. A genialidade de quem iniciou as Comunidades Europeias esteve, precisamente, no facto de tentarem descortinar alguns interesses económicos comuns que pudessem federar esse novo tipo de convivência.
       A prova de que a Europa de então não estava preparada para ir muito mais longe terá sido o fracasso da tentativa de uma Comunidade Europeia de Defesa, que foi tentada ainda antes do Tratado de Roma.
       Por essa altura, a NATO – isto é, a consagração institucional da continuação da presença dos Estados Unidos da América como um “poder europeu” no pós-guerra – era o denominador comum aceite por um conjunto de países que, muito rapidamente, haviam percebido que, do lado Oriental do continente, se estava a criar um bloco hostil e estrategicamente ameaçador. Desta forma, a Guerra Fria acabou também por ser um dos factores agregadores e um dos cimentos do esforço de integração europeia, que começava a ser feito em torno de nações com perfil democrático e com economias de mercado.
       Porém, essa Europa que se ia integrando estava ainda longe de ser homogénea. Para além de uma preocupação estratégica comum face ao Leste, os vários países europeus mantinham leituras algo diferenciadas sobre a génese do projecto integrador em que se iniciavam. Nada disto é de surpreender: tratava-se, em geral, de nações antigas, marcadas por uma tradição de afirmação autónoma das respectivas soberanias e, à época, havia muito escassa experiência de modelos de cooperação internacional multinacional.
       Dos “seis” iniciais, a França era, manifestamente, o Estado que afirmava uma idiossincrasia mais pronunciada, por ter uma leitura muito própria do seu papel no mundo e, em especial, do seu papel na Europa. À época, essa leitura era talvez ainda mais saliente, porque estávamos num tempo em que a Alemanha vivia uma espécie de capitis diminutio, pelo trauma da guerra recente e da culpabilidade histórica que lhe estava associada.
       O que se torna muito interessante no processo integrador europeu, que nasce formalmente com o Tratado de Roma, em 1957, é o facto de, em cada sucessivo alargamento das instituições comunitárias a outros Estados, esse modelo ter sempre mudado de qualidade, com reflexos claros na evolução e na matriz do seu próprio projecto. Cada nova entrada correspondeu a um input novo, que foi transformando qualitativamente o projecto. Creio, aliás, que essa é como que uma prova indirecta da própria génese democrática do mesmo.
       A entrada do Reino Unido, por exemplo, foi um momento decisivo para a mudança do paradigma da Europa comunitária, porque, pela primeira vez, trouxe para dentro dela um país de cuja matriz estratégica era indissociável um forte laço transatlântico, sem paralelo em qualquer outro parceiro europeu de então.
       Estas diferenças de perspectiva quanto à finalidade última do projecto europeu, se bem que fossem sempre notórias, tornaram-se menos relevantes enquanto a Europa não se assumia como uma estrutura com ambições de unidade política, enquanto vivia um processo essencialmente centrado na integração económica. O debate, que sempre existiu, entre os mais soberanistas e aqueles que sonhavam com um modelo federal foi-se mantendo sem grandes sobressaltos – embora todos nos lembremos do episódio da “cadeira vazia” com que o Presidente De Gaulle quis mostrar que o conceito de “interesse vital” do seu país estaria sempre acima da rotina de qualquer processo decisório.

O fim da Guerra Fria e a segurança europeia

       Acabou por ser o Tratado de Maastricht, em 1991, que abriu a porta a um debate bem mais profundo sobre uma Europa mais política, com dimensões de segurança tendencialmente comuns e, embora de forma ainda muito retórica e cuidadosa, com a afirmação de uma potencial vontade de caminhar para linhas, também comuns, em matéria de defesa.
       A razão por que isto aconteceu nessa altura é óbvia: a Guerra Fria tinha acabado, a União Soviética tinha implodido e os Estados europeus já integrados deram-se conta que, por cima das suas próprias diferenças, havia um interesse maior em poderem dar corpo, em termos de poder político, àquilo que era já o seu formidável potencial económico. A forma de que se revestiria esse poder político era ainda muito polémica no seio europeu e os mecanismos então criados, para o desenho de uma Política Externa e de Segurança Comum (PESC), tinham como óbvio objectivo ir estruturando como que uma “jurisprudência diplomática” de cariz tendencialmente uniformizador. Recorde-se que, por essa altura, também a NATO iniciava um tempo de interrogações sobre o seu próprio futuro, fruto da desaparição formal de certas ameaças tradicionais e de um juízo, que para muitos veio a revelar-se um tanto precipitado, de que o quadro de segurança europeia tinha sofrido uma mutação radical. Foi esse novo circunstancialismo que abriu caminho a uma nova reflexão intra-europeia sobre a temática da segurança e da defesa.
       Nessa reflexão, começaram a desenhar-se, notoriamente, duas escolas.
       Uma que considerava que, com o termo da Guerra Fria e das ameaças que ela criara, estavam finalmente criadas as condições para gerar uma autonomia formal, em matéria de segurança europeia, face aos Estados Unidos. Essa autonomia, que não poria em causa a manutenção de uma aliança assente numa cumplicidade estratégica assente em valores comuns, pretendia abrir espaço de afirmação a uma Europa cada vez mais integrada e que se pretendia afirmar como um poder político, embora de natureza singular, à escala global.
       Outra leitura, porém, ia no sentido de defender que, até pela ainda incipiente dimensão política das instituições da União Europeia de então, cujo processo de decisão interno era de uma complexidade que se afastava, em muito, do de um Estado tradicional, um movimento autonomizante podia vir a colocar em causa a solidez do laço transatlântico, que sempre se revelara essencial nos conflitos históricos anteriores.
       Sem qualquer surpresa, a primeira escola tinha a França como expoente e a segunda, obviamente, era titulada pelo Reino Unido, defensor à outrance da preeminência da sua special relationship com Washington.
       Este debate polarizado atravessou – e pode dizer-se que ainda atravessa, embora hoje em outros moldes – toda a União Europeia. Noutro quadro, e já com o papel dos Estados Unidos e do Canadá no processo, essa mesma dualidade de perspectivas acabou por ter reflexos na formatação das opções de mudança que vieram a ser tomadas dentro da própria Aliança Atlântica.
       Visto à distância, este debate assentava numa realidade que ninguém queria verdadeiramente enfrentar: o facto das instituições de segurança e defesa europeias estarem desfasadas da nova realidade que o fim da União Soviética e da Guerra Fria criara e que havia estado na génese da sua criação.
       Para alguns – e deve recordar-se a Alemanha e os seus esforços na ostpolitik – o novo cenário pós-URSS justificava que se definisse um modelo novo de poder europeu, que, sem pôr em causa a aliança com os Estados Unidos, conseguisse estruturar um modus vivendi com a nova Rússia, atenuando, em definitivo, as tensões a Leste e abrindo caminho para um novo tempo, no projecto europeu, para os antigos membros do Pacto de Varsóvia.
       Em alguns Estados europeus, que viam a emergência dos Estados Unidos como uma potência desproporcionadamente forte na nova relação global de forças, a resposta à nova conjuntura deveria justificar uma afirmação estratégica europeia própria, progressivamente mais sólida e, se possível, com meios autónomos que conseguissem transformar a Europa integrada, do soft power que já era, para um futuro hard power benigno, em condições de dialogar, em cooperação franca, com a nova ordem que parecia emergir em Moscovo. Porém, este sentimento não era dominante e alguns consideravam que era muito cedo para que tal tivesse lugar. Essa escola de pensamento ia ao ponto de pensar que uma deriva muito pronunciada para uma autonomização da segurança europeia e, a prazo, para a tentação de criar uma defesa europeia, podia vir a conduzir, no outro lado do Atlântico, a uma nova onda isolacionista, com consequências deletérias na solidez da aliança que se mostrara indispensável no passado.
       Neste ponto, talvez valha a pena interrogarmo-nos sobre se, por detrás de algumas dessas preocupações, não estariam ainda vestígios dos próprios fantasmas das contradições intra europeias, que tinham originado duas Guerras. Esta escola, que podemos qualificar de “euro-prudente”, acabou por ter uma ajuda imprevista. É que o facto de alguns países de tradição neutralista terem, entretanto, entrado para a União Europeia – a Áustria, a Finlândia e a Suécia – acabou por limitar as próprias ambições que o Tratado de Maastricht tinha indiciado. Esses países, que não haviam estado presentes no desenho desse Tratado, somavam-se à posição, até então isolada, de uma Irlanda que também alimentava preocupações de natureza similar.
       Nenhum desses novos países membros, tal como a Irlanda, era membro da NATO, pelo que não se sentiam tentados a alianças alternativas de defesa, particularmente num tempo em que as grandes linhas tradicionais de ameaça se afirmavam como mais ténues. Porém, tais Estados não deixavam de partilhar algumas preocupações de segurança que, entretanto, se vinham a gizar dentro da União Europeia. Por essa razão, quando Tratado de Maastricht foi revisto e se negociou o Tratado de Amesterdão, o salto qualitativo que foi possível fazer nos domínios de segurança e defesa foi ínfimo e, praticamente, acabou por se traduzir, em termos operacionais potenciais, no reconhecimento de uma vocação europeia para a execução das chamadas “tarefas de Petersberg”, isto é, operações de peace-keeping e de intervenções em matéria de criação de confidence and security building measures.

O impacto da crise jugoslava

       O cenário geopolítico europeu, contudo, não apresentava apenas sinais de acalmia e apaziguamento. Desde muito cedo, a desagregação da antiga Jugoslávia revelou que as ameaças à estabilidade do continente se situavam, não num qualquer not so near abroad, mas bem dentro da própria Europa geográfica.
       É no contexto desse trauma provocado pela convulsão jugoslava que a União Europeia terá percebido duas realidades nada confortáveis.
       A primeira é que, enquanto estrutura de representação de interesse colectivo, tinha à sua disposição mecanismos muito incipientes, mais económicos e diplomáticos do que outros, para poder ser relevante na diluição de uma crise que já atravessava as suas próprias fronteiras.
       E a segunda, politicamente bem desagradável, é que a sua unidade perante a crise não passava de uma ficção, quase se podendo dizer, com alguma ironia, que a União Europeia de então se revelou “balcanizada” face aos Balcãs.
       Hoje, vistas as coisas em perspectiva, pode afirmar-se que, a ter havido um acontecimento histórico que potenciou uma reflexão profunda dentro da União Europeia sobre a fragilidade dos seus meios para afrontar crises de segurança em cenários estratégicos de grande proximidade, esse foi, claramente, o caso da ex-Jugoslávia.
       Aliás, foi significativo observar como a crise do Kosovo, em 1999, marcada pelo seu carácter humanitário chocante e mediaticamente potenciado, acabou por forçar uma vontade muito forte para o tratamento da questão em moldes de peace-enforcing, em necessária articulação com a NATO. E não deve esquecer-se que isso conduziu, pela primeira vez na história da organização, à opção por uma solução de força, entendida como a única saída para enfrentar uma situação limite, a qual terá, de certo modo, ferido o respeito estrito pela preeminência do quadro multilateral, do qual a União sempre se mostrara respeitosamente tributária.  

A OSCE e os seus limites

       Esta abordagem do percurso de debate europeu em matéria de segurança e defesa não pode desligar-se de uma realidade paralela, num quadro mais alargado, que também não deixou de o influenciar. Referimo-nos à anterior constituição, na área transatlântica, e com origem no Acto Final de Helsínquia de 1975, de uma estrutura destinada a potenciar a détente e que acabou por ter um papel interessante no final da Guerra Fria – a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE).
       A OSCE constituiu-se como um singular palco de debate Leste-Oeste onde, laboriosamente, foi possível desenvolver certas práticas de diálogo, entre dois mundos muito polarizados, as quais que vieram a revelar-se bastante úteis, embora o tempo tenha provado não virem a ser muito duradouras.
       Com o fim da Guerra Fria, no início dos anos 90, a OSCE pareceu poder assumir o papel de um grande fórum de progressiva harmonização de culturas de segurança que, anteriormente, eram flagrantemente opostas. Em especial, as “medidas geradoras de confiança” acabaram por ter, no seio da OSCE, um terreno muito interessante de desenvolvimento, tanto mais que a organização – que veio a alargar-se a todas as antigas repúblicas da antiga União Soviética, mesmo no Cáucaso e na Ásia Central, com um impressionante membership de 55 países – parecia poder caminhar para a criação de um corpus doutrinário relativamente comum.
       A OSCE apontava então para duas vocações fundamentais.
       A primeira era a de um pólo de estruturação de mecanismos de monitorização do desarmamento mútuo, em matéria de forças convencionais. Neste domínio, a OSCE teve um papel reconhecidamente de relevo, tendo conseguido instituir estruturas de cooperação e monitorização que vieram a ter consequências práticas significativas. Recordo o Tratado CFE – sobre as Forças Convencionais na Europa – que permitiu enquadrar o desmantelamento ou o afastamento geográfico de armamento convencional.
       A segunda vocação da OSCE era a sua potencial capacidade para poder intervir a montante de conflitos, em zonas de tensão, ou de proporcionar instrumentos de atenuação de conflitos já emergentes, em alguns casos os frozen conflicts, embora sempre sem nunca concretizar uma aberta vocação para operações de peace-keeping e, muito menos, de peace-enforcing.
       Neste contexto, a OSCE criou um Centro de Prevenção de Conflitos – modelo que, com as devidas adaptações, pode ter condições para vir a ser reproduzido noutras áreas geopolíticas.
       A eficácia da OSCE, enquanto instituição, partia, contudo, de um pressuposto que o tempo viria a fragilizar. Esse pressuposto era o de que os Estados Unidos e Rússia, os major players da organização, conseguiriam manter uma linha comum de interesses, susceptível de prolongar no tempo vantagens que para ambos resultaram do início da OSCE. Isso não veio a verificar, como igualmente se detectaria que a União Europeia, enquanto tal, nunca se afirmou, dentro da OSCE, como uma unidade com capacidade decisiva de influência, em particular face aos dois principais parceiros.
       Esta referência feita ao quadro OSCE teve o objectivo de chamar a atenção para uma realidade que abordarei de seguida: a alteração, com o tempo e as novas circunstâncias, do quadro de relacionamento dentro do território europeu, em especial entre a União Europeia e a Rússia.

Os equilíbrios políticos na União alargada

       Voltemos, por isso, de novo, à União Europeia.
       Com o fim do muro de Berlim e com a emergência de regimes democráticos em várias repúblicas do centro e leste europeu, a União Europeia sentiu-se obrigada, por razões simultaneamente éticas e estratégicas, a facilitar a entrada desses países para o seu seio.
       As razões éticas eram óbvias: a Europa ocidental, por décadas sucessivas, apontara aos países do Pacto de Varsóvia as virtualidades do seu modelo de liberdade e progresso e, chegado que foi o momento em que estes Estados tiveram o ensejo de aderir a esse modelo, seria politicamente impossível negar-lhes o acesso.
       As razões estratégicas, embora também óbvias, foram sempre menos explícitas: tratava-se de aproveitar a fragilidade conjuntural da Rússia para poder trazer esses Estados para o campo democrático e da economia de mercado, como que formatando-os no template da União Europeia.
       Com este gesto – que, aliás, tinha tido precedentes, com a entrada de países como a Grécia, Portugal e a Espanha, também recém-saídos de ditaduras – a Europa comunitária cumpria a sua vocação natural de se tornar num grande espaço europeu de democracia e desenvolvimento. E, ao mesmo tempo, o que não era despiciendo, reforçava o seu próprio mercado interno, com efeitos positivos para todos.
       Esse grande alargamento, que comportou 12 países, trouxe algumas naturais consequências para a densidade do projecto europeu e, de certo modo, travou algum do seu aprofundamento económico. Mas esse seria sempre o preço a pagar pela vantagem que resultaria desse esforço.
       No plano político, curiosamente, houve em alguns sectores a ingenuidade de pensar que a entrada dos novos Estados seria como que “neutral” para os equilíbrios que subsistiam no formato anterior à sua adesão. Para alguns, o alargamento era visto como uma forma de “colonização democrática”, uma simples moldagem desses países ao modelo que tinha sido desenvolvido pelos anteriores membros da União.
       O tempo provou que as coisas não iriam ser assim. Contrariamente a algumas das adesões anteriores, em que o reforço da democracia interna e o impulso ao desenvolvimento fora o leitmotiv do pedido de adesão – como foi o caso da Irlanda, da Grécia, de Portugal e da Espanha –, na grande maioria dos Estados que agora viriam a aderir, recém-saídos da tutela, da ameaça ou da influência soviética, a dimensão “segurança” estava também muito presente à sua vontade de aderir à União Europeia. E, para surpresa de alguns, isso não deixou de influenciar, de forma muito patente, a expressão de alguns dos seus interesses políticos e estratégicos, logo que obtiveram a garantia de ingresso na União. Esses novos membros tinham clara consciência que a protecção que a União Europeia lhes podia dar era apenas a de um soft power, com poder económico diplomático, mas sem a menor dimensão constrangente no plano militar.
       Por essa razão. esses Estados iam desenvolvendo, em paralelo, uma forte pressão no sentido de se tornarem rapidamente membros da NATO. A Aliança Atlântica era, para a sua estratégia nacional, um objectivo central, por forma a garantirem uma espécie de firewall face àquilo que temiam pudesse vir a ser uma evolução futura da Rússia, eventualmente já não numa lógica necessariamente de agressão, mas quiçá num modelo de pressão constrangente que voltasse a limitar o exercício pleno da sua soberania, que tão recente e dolorosamente haviam recuperado. No fundo, esses países, sem o afirmarem explicitamente, temiam que uma possível evolução negativa do poder em Moscovo, conjugada com uma fraqueza da unidade europeia que viesse a ser ditada por razões de realpolitik, pudesse vir conduzi-los a uma espécie de nova “finlandização”.
       Com este desejo de dupla adesão – à União Europeia e à NATO – esses Estados davam sinais de, simultaneamente, confiarem no modelo político-económico da União Europeia, como factor de reforço do seu desenvolvimento e do seu modelo democrático, mas depositando o seu principal crédito de confiança, em termos da sua segurança e defesa, nas estruturas da NATO. E, ao pensarem em NATO, esses países estavam a pensar nos Estados Unidos da América, país que, não por acaso, havia sido, desde o primeiro momento, o grande promotor da sua adesão, quer à instituição transatlântica, quer mesmo à própria União Europeia.
       Convém ter claro que, sem excepção, embora com importantes nuances entre si, as novas classes dirigentes desses dez países (excluem-se Chipre e Malta deste raciocínio, por razões óbvias) tinham uma relação histórica traumática com Moscovo ou, como ainda é o caso dos países bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia), tensões mais ou menos complexas ainda a resolver com a Rússia.
       É assim importante que fique claro que, ao levar a cabo este seu último grande alargamento, a União Europeia trouxe para o seu seio um conjunto de Estados cujo padrão médio de relações com a Rússia estava muito distante do nível de cooperação estratégica que a anterior União Europeia havia conseguido com Moscovo. E esse facto não deixou de ter algumas implicações na qualidade do diálogo que, a partir daí, a União Europeia passou a ter com a Rússia. Por outro lado – e este também é um ponto fundamental no impacto político deste grande alargamento no seio da União Europeia –, o sentimento prevalecente nas opiniões públicas de muitos desses países é a de uma grande gratidão histórica face aos Estados Unidos, tidos como responsáveis maiores pela criação das condições exteriores que terão contribuído para o fim da União Soviética, isto é, para a obtenção das condições que favoreceram a sua liberdade.
       Se acaso fosse necessária uma prova mais concludente de que a entrada desses países esteve longe de ser neutral no relacionamento entre a União Europeia e os Estados Unidos, o que mais tarde viria a passar-se quando foi desencadeada a Guerra do Iraque foi bem expressivo: a grande maioria desses países tomou posição favorável à iniciativa americana, o que levou mesmo o secretário de Defesa americano a louvar a atitude dessa “nova Europa”.
       Convém, contudo, não simplificar excessivamente as questões de segurança e defesa europeias, ligando em excesso a sua evolução recente aos últimos alargamentos.

Respostas aos novos desafios

       Com efeito, emergiram entretanto dois novos factores, de natureza muito diferente, que tiveram sérias implicações na própria reflexão interna europeia neste domínio. O primeiro, como é óbvio, foi o 11 de Setembro de 2001. O segundo, de cariz diverso mas que não pode deixar de ser contabilizado, foi a evolução interna do regime russo, com consequências claras no seu comportamento em certos cenários geopolíticos pontuais. Embora de forma subtil, estes dois factores têm pontos comuns, como adiante se verá.
       Como ficou patente, o 11 de Setembro conduziu, num primeiro momento, a uma forte onda de solidariedade europeia para com os Estados Unidos, em face da bárbara acção de que haviam sido vítimas. Isso abriu caminho para o apoio à posterior acção interventiva no Afeganistão e, no plano imediato, favoreceu a formatação do conjunto de mecanismos criados no âmbito do Comité de Combate ao Terrorismo, no seio da ONU.
       Mas essa solidariedade, como sabemos, não sobreviveu ao facto dos Estados Unidos terem decidido, mais tarde, proceder à invasão do Iraque. Parte importante da União Europeia considerou então que o papel central das Nações Unidas não havia sido respeitado e acusou Washington de adoptar uma espécie de multilateralismo à la carte: respeitar as decisões da ONU apenas quando elas coincidissem com a perspectiva que tinham dos seus próprios interesses nacionais, que identificavam como os interesses do mundo que pretendiam representar.
       Outra parte dos países europeus, subscreveu as razões americanas e, com maior ou menor empenhamento operacional, seguiu Washington na sua acção no Iraque. Grande parte da chamada “nova Europa” alinhou também por esta última linha, como aliás seria de esperar, pelas razões antes apontadas.
       Mas se a Europa, como um todo, não subscreveu a atitude americana, a verdade é que o 11 de Setembro não deixou de ter impactos sérios na formulação de um novo pensamento estratégico dentro da União Europeia. O carácter difuso das novas ameaças, a gravidade dos impactos internos em matéria de segurança pública em alguns Estados europeus, com a ocorrência de actos terroristas ou o desmantelamento de redes que os pretendiam levar a cabo, o aprofundar de clivagens culturais e étnicas que ameaçam a coesão social em certos países – tudo isso contribuiu para uma reflexão muito profunda que não deixou de ter consequências claras na evolução desse debate intra-europeu sobre segurança e defesa.
       Neste ponto, será importante deixar uma precisão: todo o conjunto de medidas implantado e pensado em função desta nova e desafiante realidade, foi e está a ser feito na União Europeia sob a égide de um rigoroso respeito pelos Direito Humanos, pela preservação das liberdades fundamentais e pela manutenção de todo um corpo de garantias a que a comum noção de Estado de Direito obriga.

Impactos da evolução da Rússia

       Ao abordar o traumatismo provocado pelo 11 de Setembro, foi referido que a evolução da Rússia não deixou de ter um impacto na reflexão interna da União sobre segurança e defesa.
       O desenvolvimento do processo interno russo, que havia sido visto com grande simpatia e com a expectativa de fixação de um modelo democrático sólido no período iniciado por Gorbachov, iniciou, a partir de certa altura, um percurso que começou a criar interrogações no âmbito da União Europeia – não obstante o nível de diálogo institucional com Moscovo não ter sofrido qualquer interrupção. Ao modo como Moscovo se comportava face à Chechénia, à evolução do tratamento interno em termos de Direitos Humanos e de preservação de certas liberdades, vieram a somar-se atitudes no plano internacional que foram tidas como muito pouco construtivas em alguns cenários de tensão, para cuja resolução a atitude de Moscovo era essencial, mas que não se materializava na prática.
       Estavam neste caso, em especial, a questão da retirada das bases que a Rússia mantinha na Geórgia, o apoio dado ao secessionismo na Ossétia do Sul e na Abcásia, bem como a sua posição na questão da Transnístria, sector da Moldova que vive sob protecção prática de Moscovo, em detrimento da unidade do país. Acresce que o modo com a Rússia se comportou perante o regime da Bielorrússia e o posicionamento perante os assuntos internos da Ucrânia criaram, dentro da União Europeia, um sentimento de menor confiança quanto à possibilidade de poder vir a contar com Moscovo para um esforço conjugado de diluição de tensões. A sensação que certos sectores europeus alimentam é a de que a Rússia, sem o afirmar, joga com factores de instabilidade onde detém influência como forma de se compensar com o que considera estar a ser uma aproximação excessiva às suas fronteiras dos mecanismos institucionais de defesa ocidental.
       Para muitos observadores, Moscovo sempre aceitou muito mal a entrada dos países bálticos para a NATO e, como se verificou mais tarde, tem grande relutância em aceitar a possibilidade da Ucrânia e da Geórgia virem, a prazo, a ser admitidas como membros da organização. Da mesma forma, a Rússia também contestou, com veemência, a colocação de escudos de protecção anti-mísseis em países da Europa central, que interpretou como mecanismos de desconfiança contra a sua possível acção militar.
       Este sentimento de reacção às iniciativas ocidentais, muito potenciado por um surto de renascimento nacionalista, auxiliado por alguma disponibilidade financeira conjuntural, tem atrás de si outros factores exógenos que não deixam de ser agravantes deste estado de tensão. Estão neste caso a continuação das actividades americanas no Afeganistão e no Iraque, a sua influência no Paquistão e as ameaças ao Irão, as bases e facilidades obtidas por Washington no Uzbequistão e no Quirguistão, bem como a intensa proximidade dos Estados Unidos com o regime da Geórgia. Tudo isto, sem dúvida, contribui para reforçar um sentimento de “cerco” estratégico sentido por Moscovo.
       Se, durante algum tempo, a necessidade de se mostrar responsável na luta contra o terrorismo internacional atenuou quaisquer reacções às intervenções americanas nessas suas “águas territoriais” estratégicas, ao mesmo tempo que lhe deixava alguma liberdade para, com pretexto idêntico, exercer a sua acção repressiva na Chechénia, a tolerância russa ter-se-á esgotado. E, não tendo hoje condições políticas e até militares para se dar ao luxo de subir para um patamar de ameaça retaliatória, resta-lhe jogar com os factores de obstrução ao seu dispor. O anunciado abandono pela Rússia do Tratado sobre Forças Convencionais na Europa (Tratado CFE adaptado) é, neste domínio, mais uma das peças desse movimento. E teremos ainda de observar se, a prazo, o instrumento energético não poderá ter também algum papel neste jogo de tensões, como certos sinais deixam indiciar.
       Se se ligar toda este mal-estar demonstrado por Moscovo com a já referida desconfiança que certos novos Estados da União Europeia mantêm face à Rússia, facilmente se compreenderá que está criado um ambiente de tensão que hoje marca o panorama de diálogo estratégico no quadro europeu.

O Tratado de Lisboa e a segurança e defesa europeias

       Diversas outras temáticas poderiam somar-se àquelas que já foram referidas. Estão neste caso, como mais prioritárias, o desafio da adesão turca à União Europeia e a evolução recente do processo político nos Balcãs, com as tensões provocadas pela declaração de independência do Kosovo. Mas também poderíamos falar da complexa questão dos equilíbrios geopolíticos na margem sul do Mediterrâneo, com impactos nos fluxos migratórios e no próprio posicionamento europeu perante o mundo islâmico, num tempo de tensões civilizacionais e religiosas que atravessam as próprias sociedades europeias.
       Perante este panorama, o debate que antecedeu o Tratado de Lisboa procurou conduzir o novo formato institucional que daí viria a resultar por caminhos passíveis de darem à União novos e mais eficazes instrumentos nos domínios da segurança e defesa. O Tratado de Lisboa introduziu algumas inovações importantes em matéria de Política Externa, de Segurança e Defesa, sendo de distinguir duas vertentes.
       Uma primeira, centrada nas alterações gerais relativas à acção externa da União Europeia, do ponto de vista institucional e do processo decisório e uma segunda, voltada para as alterações específicas no quadro da política de segurança e defesa. Porque não é este o objecto desta nossa abordagem, deixemos de parte agora as questões puramente de política externa, muito embora a política europeia de segurança e defesa se desenvolva no quadro mais geral da política externa e de segurança comum.
       No que diz respeito às alterações específicas no quadro da política de segurança e defesa, é de notar que são duas as formas como o Tratado de Lisboa influencia a Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD). Por um lado, as alterações no quadro institucional, em particular a criação do cargo de Alto Representante para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, tem como objectivo facilitar as relações entre o Conselho de Ministros e a Comissão Europeia, no que diz respeito às questões relativas à gestão de crises, com a finalidade de tentar tornar a União um actor mais coerente no campo comum da Política Externa e de Segurança Comum (PESC) e da Política Europeia de Defesa e Segurança (PESD). Por outro, tendo em vista consolidar o papel da Europa no quadro global, vários são os artigos do Tratado de Lisboa que visam, conjunta e directamente, um aprofundamento tanto da PESC como da PESD.
       E é neste quadro de aprofundamento das políticas referidas, enquanto actor na segurança internacional, que se desenvolvem algumas alterações específicas em matéria de segurança e defesa. Elas podem sintetizar-se em quatro aspectos principais:

       -  A alteração da designação de Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD) para Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD). É uma mudança que se pretende com significado político, pois traduz uma manifestação formal, clara, de que os Estados membros têm objectivos e interesses comuns em matéria de segurança e defesa e que estão dispostos a incrementá-los em conjunto.
       -  A introdução da cláusula de auxílio e assistência[23] em caso de agressão armada e da cláusula de solidariedade[24];
       - O alargamento do leque de missões, originariamente as conhecidas missões Petersberg, nas quais a União pode utilizar meios civis e militares, sendo pela primeira vez enumerado o tipo de missões que se inserem nesta categoria;
       - Com repercussão no planeamento estratégico de Defesa, é de salientar a introdução de dois mecanismos: a “cooperação reforçada” e a “cooperação estruturada permanente”. O primeiro mecanismo, a “cooperação reforçada”, mais não é do que a extensão da aplicação do mecanismo estabelecido pelos Tratados de Amesterdão e de Nice à Política Externa e de Segurança Comum, e que prevê a criação de grupos de Estados que queiram aprofundar a sua cooperação numa dada matéria, neste caso, às questões de segurança e defesa. O segundo mecanismo, a “cooperação estruturada permanente”, específica da política comum de segurança e defesa, prevê a possibilidade de existência de uma cooperação mais estreita entre os Estados membros que o desejem e tenham capacidade para realizar maiores esforços em matéria de capacidades militares. Sobre este mecanismo refere especificamente o Tratado de Lisboa: “Os Estados Membros cujas capacidades militares preencham critérios mais elevados e que tenham assumido compromissos mais vinculativos na matéria tendo em vista a realização das missões mais exigentes, estabelecem uma cooperação estruturada permanente no âmbito da União”. A “cooperação estruturada permanente” é, assim, um dos aspectos inovadores mais importantes, mas também mais exigentes, e um dos maiores desafios criados pelo Tratado de Lisboa.
       Procurou-se dar conta, em termos genéricos e com algum enquadramento factual e institucional, não apenas de alguns dos elementos que têm funcionado como factores envolventes ao intenso debate sobre segurança e defesa na Europa, mas igualmente dos mecanismos que, como resultante prática desse debate, acabaram por resultar consensualizados no compromisso institucional, em matéria de segurança e defesa, que foi possível obter, no quadro do Tratado de Lisboa.
       O Tratado de Lisboa, sendo o ponto de chegada de um intenso debate e esforço de compromisso é também, em si mesmo, apenas o ponto de partida para o desafio de um trabalho conjunto numa Europa desejavelmente mais integrada. É um mecanismo que se pretende venha a servir de matriz a um ambiente de segurança e defesa à altura dos novos desafios e ameaças que os últimos anos a todos nos desenharam no horizonte. Um ambiente onde se espera, em especial em situações de crise, que a adesão de um grande número de novos Estados, que gerou uma União Europeia com uma inédita diversidade, em torno de valores assumidos como comuns, corresponda, de facto, à vontade de uma efectiva partilha, também comum, de responsabilidades, se tal vier a revelar-se necessário.
       Embora não se deseja que ele venha a ter lugar, esse poderá vir a ser o teste definitivo à solidez política e de segurança do projecto de União Europeia que o Tratado de Lisboa redesenhou.


PENSAR PORTUGAL NO MUNDO[25]




















       Uma reflexão sobre o papel de Portugal no mundo, como a que hoje é feita neste contexto parlamentar, parece-me muito oportuna, porque, com raras e louváveis excepções, não há, entre nós, uma tradição de contínua análise sobre o papel do país no plano internacional. Fica-se com o sensação, que é completamente falsa, de que todos sabemos o que queremos e para onde vamos em matéria externa, como diria um clássico de alguns.
       Mesmo que isso fosse verdade, e não o é, o mundo à nossa volta está a mudar e nós não ponderamos, dia-a-dia, o modo como devemos adaptar o nosso projecto nacional a essa conjuntura em mudança. E, no meio de tudo isso, também esquecemos que o sentido do nosso próprio projecto nacional está, também ele, em rápida mutação, queiramos ou não assumi-lo, e que é forçoso reflectir constantemente sobre o modo como o devemos defender no quadro externo.
       Os partidos políticos portugueses também não têm por hábito fazer uma reflexão contínua sobre política externa, salvo sobre questões pontuais, ligada à actualidade ou a episódios de oportunidade. Basta olhar para os programas de Governo para se perceber isso. Além disso, os escassos think tanks que temos em Portugal, alguns dos quais são de grande qualidade, parecem, quase sempre, viver fascinados pela alta política de segurança internacional, em particular pela questão transatlântica, a qual, afinal, nos “passa por cima”, digamos o que dissermos por aqui.
       O meu Ministério – o Ministério dos Negócios Estrangeiros – vive tão concentrado nas pressões do quotidiano que dificilmente tem tempo para parar para pensar estrategicamente. Daí que o pouco que se reflecte sobre isto fique nas mãos de uns esforçados intelectuais que vão escrevendo aqui e acolá. Ora isso não chega.
       Esta é uma matéria muito ampla e delicada, em que um civil servant, como eu sou, corre alguns riscos de entrar por domínios reservados exclusivamente aos políticos ou aos comentadores. Ora como não sou político nem comentador, vou dar uma leitura, à luz da minha própria experiência profissional, feita de mais de três décadas ao serviço do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Para tal organizei este texto em três módulos, cada um deles assente num tempo dessa minha experiência: um primeiro dedicado à Europa, um segundo ao multilateralismo e um terceiro a questões da lusofonia. Nos dois primeiros módulos pretendo, no essencial, abordar a questão do modo como Portugal é visto do exterior.
       Sei que este é um terreno muito difuso, que se presta a interpretações bastante diversas, que tem algumas dimensões polémicas e que corre, aqui ou ali, o risco de ser visto como algo impressionista. Mas vou arriscar, até porque este é o tipo de questões em que eu próprio tenho necessidade, como diplomata e como português, de arrumar algumas ideias, mesmo que, no final, muita gente acabe por não concordar com elas.

Na Europa

       Vamos então à Europa.
       Como é que hoje a Europa, a União Europeia, nos olha, mais de duas décadas depois da nossa adesão? Que saldo deixou este quase quarto de século de presença nas instituições comunitárias, com duas presidências pelo meio e alguns protagonistas, com diferente qualidade e visibilidade, que andaram e andam pelos palcos de Bruxelas, de Estrasburgo ou do Luxemburgo ?
       Recuemos uns anos antes da adesão. A imagem que Portugal projectava há três décadas era a de um país que havia passado passou por um choque histórico algo traumático, provocado pelo esboroar de uma ditadura que acabou por ditar um fim trágico e quase patético a uma aventura colonial tardia – com guerras sem sentido, privações, tensões e um saldo de sacrifícios humanos muito pesado, que o país pagou, até pelas consequências no seu tecido económico. Esse era o Portugal que batia à porta da Europa: um país pobre, uma democracia recente, um tecido social e político convulso.
       E aqui começou a surpresa para a Europa e para o mundo: o modo muito próprio como Portugal fez a sua revolução e, em especial, como dela saiu para a democracia e desta para a integração europeia. Aos olhos externos, o nosso país conseguiu, com uma insuspeitada facilidade, instalar e aculturar um regime democrático que se provou funcional e que, sem se afastar da sua herança africana, soube simultaneamente voltar-se, com uma quase naturalidade, para um projecto integrador europeu a que só remotamente estivera ligado, embora já partilhasse a cultura de mercado que lhe estava na génese.
       Neste percurso, a Europa poderá ter ficado particularmente impressionada por dois factos.
       Em primeiro lugar, pela nossa fantástica capacidade de reconciliação interna, depois de um período revolucionário que, como sempre acontece, teve os seus custos e deixou as suas feridas. A absorção da população que retornou de África, no período pós-descolonização, continua a ser um feito que muitos não entendem bem, em especial alguns Estados, bastante mais ricos, que não souberam resolver o seu próprio problema da forma como os portugueses foram capazes.
       Em segundo lugar, terá sido uma surpresa a nossa reconversão rápida ao projecto integrador europeu e, já dentro deste, o modo, competente e dedicado, como nos empenhámos nas tarefas de que fomos incumbidos – de que o excelente exercício das presidências europeias é talvez um exemplo paradigmático.
       Sem pretender entrar no terreno da polémica, estou perfeitamente convicto que um cidadão português não poderia, quaisquer que fossem os seus méritos pessoais, ser hoje presidente da Comissão Europeia se o nosso país não tivesse demonstrado, nas quase duas décadas que antecederam esse momento, uma imagem de grande eficácia e empenhamento no processo europeu. Desde 1986, embora só algumas vezes com brilho excepcional, mas sempre com grande seriedade e apreciável sentido de responsabilidade, Portugal conseguiu fornecer pessoal, e até ideias, que contribuiram para lhe garantir uma participação de mérito no projecto integrador.

A imagem de Portugal

       Verdade seja que este inesperado europeísmo não deixou de ser visto como tendo muito a ver com as vantagens, na paisagem e nos bolsos, que os portugueses pressentiram, e bem, que o projecto europeu lhes podia proporcionar. A Europa percebeu isso muito bem e percebeu também que Portugal soube aproveitar, embora de modo apenas razoável, os benefícios que a pertença ao novo “clube” lhe trouxe. Aos olhos dessa Europa mais desenvolvida, o usufruto dessa dessa oportunidade não terá sido o melhor, porque não estavam superados no país alguns défices de cultura comportamental que eram, de há muito, a imagem de marca da nossa sociedade - compadrios, facilidades, falta de rigor, inconstância, improviso, escassa educação, vícios de gestão, etc.
       Estarão já criadas, nos dias de hoje, as condições para melhorar, de forma definitiva, essa imagem? Claro que não. Basta entrarem numa qualquer livraria, numa grande capital europeia, e ir à estante do business internacional e lerem o que se diz sobre como fazer negócios em Portugal. A imagem da ficha portuguesa é a de um país com “picos” e quedas no seu desenvolvimento recente, com uma burocracia apenas atenuada pelo “jeitinho”, uma justiça muito lenta embora não corrupta, uma classe empresarial convencida da sua própria importância mas mal qualificada em termos internacionais. A cordialidade e submissão dos portugueses torna-os, nos textos desses livros, fáceis no relacionamento, mas igualmente menos eficazes na constância temporal da sua atitude – e aí está a falta de pontualidade, de rigor, de precisão, os atrasos sistemáticos face aos compromissos assumidos, enfim, a ausência da reliability essencial no exigente mundo contemporâneo dos negócios.
       Neste ponto, alguns estarão a perguntar-se: mas, afinal, a imagem de Portugal mede-se apenas pelo critério do sucesso económico? Lamento ter de dizer que, a meu ver, o grande indicador para a aferição da performance de um país à escala internacional é, hoje em dia, a sua capacidade de geração de riqueza, de saber distribuí-la sem tensões e proporcionar bem-estar aos seus cidadãos, sempre em liberdade, claro. Talvez seja a conjuntural vitória dos mecanismos de mercado que criou esta percepção, mas não conheço nenhum país pobre que esteja prestigiado à escala global, embora conheça alguns países ricos que, por virtude dos seus sistemas políticos autoritários ou pelas grandes desigualdades sociais internas que mantêm, também não são respeitados, a não ser pelos cultores cínicos da realpolitik.
       Por isso, mais do que nunca, a imagem de um Estado perante o mundo – e perante a Europa, por maioria de razão – depende da eficácia e qualidade das suas políticas públicas, da coragem na execução de reformas essenciais à sua constante melhoria e adequação aos desafios. E o que é que a sociedade externa valoriza mais? Valoriza a preservação do equilíbro macroeconómico, a generalização com qualidade dos sistemas de ensino, saúde e justiça, as práticas de segurança interna com plena preservação de liberdades, os estímulos à afirmação da sociedade civil, o empenhamento oficial na luta contra as discriminações, a cultura ambiental e de promoção de um desenvolvimento sustentável, a protecção dos consumidores e dos utentes públicos – enfim, todo o vastíssimo conjunto de simbolos de modernidade na formação das sociedades modernas. Esse são alguns dos principais factores que qualificam, contemporaneamente, a imagem dos países.
       Neste ponto, alguns poderão estar a pensar: mas, afinal, Portugal tem uma cultura antiga, tem uma História, tem uma imagem com momentos gloriosos na sua muito longa existência como país. Ora isso deve fazer parte, com certeza, do seu reconhecimento exterior. Receio ter de dizer isto, mas um erro muito comum no imaginário português é o de pensar que o mundo continua a lembrar Portugal pela glória histórica das Descobertas, pelos períodos áureos de “quinhentos”. O facto de termos hiperbolizado, dentro de Portugal, e em especial durante o Estado Novo, essas imagens de grandeza não significa necessariamente que o mundo seja obrigado a medir-nos ainda à luz delas. Sei que não faz bem à nossa auto-estima lembrar isto, mas temos de assumir que essas glórias, embora constitutivas da nossa identidade como nação, são já longínquas no tempo.
       Ora os outros já terão notado que, depois de Sagres, passámos por um declínio muito grande como país, com o lento desfazer da aventura imperial, com quebras drásticas no nosso poder económico e na consequente perda de importância da nossa afirmação política à escala global. Além disso, o facto de não sermos hoje um país rico, tem-nos impedido de garantir, no imaginário cultural internacional, um tratamento cuidadoso e prestigiante desses períodos magníficos da nossa História, através de centros culturais, de exposições, de cátedras, de estudos, de filmes, para produção e estímulo académico para aprofundar esses tempos... Até o facto de não termos sabido descolonizar a tempo nos agravou uma imagem de perdedores na História, só atenuada pelo contraponto positivo das liberdades que o 25 de Abril, simultaneamente, nos trouxe.
       E não quero deixar de sublinhar ainda um ponto que aprendi na minha vida de diplomata: o valor fantástico do que Portugal fez pelo mundo, com as Descobertas, foi, no século XX, manchado muito negativamente, no imaginário cultural e político internacional, pela obstinação assumida contra a descolonização, pelo envolvimento do nome de Portugal em guerras coloniais e pela longa colagem da imagem do país ao autoritarismo entorpecente do Estado Novo. Goste-se ou não, a História que verdadeiramente conta, para a imagem dos países, é a História contemporânea ou, pelo menos, a versão contemporânea dessa História. E, nesse retrato, a nossa imagem não é globalmente positiva.
       Mas convém não sermos, em absoluto, pessimistas. A imagem dos países também se reverte, com uma maior facilidade do que julgamos. Há alguns bons exemplos europeus: a Irlanda e os países nórdicos.
       Recorde-se que a Irlanda renasceu, em poucos anos, depois de longos períodos de crise, com ciclos de fome, com constante saída de populações. E este é um ponto também importante: um país que não consiga garantir condições de vida aos seus cidadãos, que acabe por estimular a sua saída em termos maciços, não é um país prestigiado e respeitado no quadro internacional. Por mais orgulho que tenhamos na aventura de sacrifício que sempre foi a nossa emigração, é para mim hoje evidente que um país que condena a sua população a emigrar, por razões económicas. é um país que não se prestigia e que não sobe na consideração dos outros.
       Mas também os nórdicos, que hoje são prósperas democracias, provaram que, em escassas décadas, é possível criar sociedades assentes na educação e no conhecimento, em que o empreendedorismo não é incompatível com a solidariedade social, em que se estabeleceu uma cultura comportamental sólida, assente em valores consensualizados pela sociedade. Hoje, os países nórdicos estão no topo das estatísticas de qualidade de vida, de defesa dos direitos das suas populações, da preservação de valores de modernidade, como é o caso das metas ambientais.
       Para além dos grandes e mais ricos Estados europeus, que têm uma projecção própria que deriva de uma massa crítica, de múltipla projecção, que lhes dá esporas de poder, é hoje claro que um país de pequena ou média dimensão só pode afirmar-se, aos olhos de terceiros, se mostrar capacidade de gerar, sem grandes desigualdades e em total liberdade, um crescimento sustentado, com constante modernização e actualização do seu tecido produtivo, com pleno respeito pelos padrões de desenvolvimento humano. A prosperidade, em especial se for apoiada numa cultura empresarial sólida, gera auto-confiança nacional, cria uma imagem de independência e de capacidade de livre escolha do destino. E aí, sejamos claros, Portugal ainda está onde está.

No mundo multilateral

       Passo agora ao segundo dos três módulos desta minha abordagem, a uma análise do modo como Portugal é percebido, através da sua presença, espaço e actuação, nas organizações multilaterais de carácter intergovernamental – e já não nas dimensões comunitárias europeias. Faço-o, essencialmente, à luz da minha experiência como representante português na ONU, em Nova Iorque, do modo como dirigimos uma organização regional como a OSCE – a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa –, bem como das responsabilidades que tive, durante alguns anos, na chefia de delegações portuguesas junto da OCDE, do Conselho da Europa ou da Organização Mundial de Comércio, entre outras.
       Começo por notar que a diplomacia portuguesa, antes de 1974, tinha uma escassa apetência pelo mundo multilateral e a sua cultura era dominada pelo bilateralismo. Portugal converteu-se muito mais tardiamente ao multilateralismo que outros Estados. Adoptou-o em contextos políticos de oportunidade, como foi o caso da NATO durante a Guerra Fria, ou sem uma pressão excessivamente constrangente, como foi o caso da EFTA ou da OCDE. A ONU, para a qual Portugal entrou em 1955, representou, em especial a partir dos anos 60, um inevitável terreno de “massacre” diplomático para o nosso país, que acabaria por se repercutir, paralelamente, nas diversas agências, como a OIT, a OMS e outras. Valha a verdade que se diga: nada que a diplomacia portuguesa de então não tivesse tratado com grande profissionalismo, competência e sentido de Estado, não obstante a causa perdida que titulava.
       A partir de 1974, Portugal passou, quase de um dia para o outro, de mal-amado a benquisto membro do mundo multilateral, com a boa vontade e as portas abertas, quer como reconhecimento pela democracia conquistada no plano interno, quer, principalmente, como saudação à vontade descolonizadora afirmada pelo novo regime. Infelizmente, e contrariamente ao que seria desejável, Portugal não conseguiu aproveitar em pleno essa oportunidade e construir, a partir daí, uma sólida presença nas instâncias multilaterais. Em grande parte, isso ter-se-á ficado a dever a razões orçamentais, que se reflectiam negativamente nas contribuições financeiras e humanas disponibilizadas para essas instituições. Olhando para trás, verificamos que essa foi uma fantástica oportunidade perdida, em muitos casos por uma incompreensão estratégica de que uma rede de pessoal colocada nesses contextos, para além do prestígio automático que acarreta para o país, se bem coordenada, funciona como uma porta para nichos de oportunidade, em matéria de projectos e novos recrutamentos. Uma visão limitada e curta dos nossos interesses conduziu a uma política muito selectiva de apoio à colocação de pessoal, às vezes à luz de critérios exclusivamente políticos, outras vezes por meras teimosias de personalidades, que hoje pagamos fortemente. E essas organizações, e os outros Estados dentro delas, não deixaram de tirar as devidas conclusões dessas nossas fraquezas.
       Mas como é que Portugal se comportou nessas instâncias? Não queria aparecer como negativista, mas, conhecendo bem algum desse tecido de representação, não me parece que, em geral, o olhar dos outros nos fosse muito favorável. Embora não possamos fazer generalizações, o nosso país, por falta de reflexão e de ideias novas, aparecia muitas vezes como mero defensor do statu quo, ou envolvido na defesa de pontos muito específicos, de interesses próprios frequentemente magnificados e mitificados, que se erigiam como vitais, por mero receio de nos envolvermos num percurso de mudança cuja orientação temíamos não poder influenciar. A exigente tecnicidade de algumas questões, bem como a debilidade das estruturas de coordenação e decisão em Portugal, acabou frequentemente por deixar nas mãos de certos delegados, idos de Lisboa, a responsabilidade última das apções a tomar. Em algumas instâncias multilaterais, alguns funcionários tinham completa luz verde para definir a posição nacional – e, vale a pena dizê-lo, isso também passou a ser válido, a partir da adesão, para o tratamento de questões no âmbito comunitário, como eu próprio tive ocasião de verificar.
       Porque quem nos via actuar não era ingénuo, a imagem que projectávamos era muitas vezes de descoordenação, de casuísmo, de irresponsabilidade, da falta de uma linha de orientação central que articulasse os diversos actores negociais, que, algumas vezes, davam nota de fortes incoerências nos vários palcos de actuação. Em algumas organizações internacionais, a coordenação comunitária – ou a própria representação assumida pela presidência de turno ou pela Comissão Europeia, no âmbito das competências próprias – acabou por disfarçar a debilidade técnica das posições nacionais. E acabou por ser a Europa, a participação contínua dos nossos especialistas em contextos técnicos no âmbito europeu, que ajudou a criar a massa crítica necessária, nos diversos ministérios, para uma participação mais capaz nas instâncias multilaterais.
       De sublinhar que tudo o que acabei de descrever, talvez com alguma excessiva crueldade para gente muito competente e profissional que conheci, se prende, essencialmente, com áreas técnico-económicas, com as quais lidei de perto durante muitos anos. Com efeito, no âmbito mais político, as dimensões de política externa “pura” foram sempre bastante mais coordenadas – seguindo, aliás, o exemplo que já vinha de antes do 25 de Abril. Porque essa era já uma “escola” que, no Palácio das Necessidades, se tinha desenvolvido e, há muito, aperfeiçoado.
       Para além da interiorização e respeito pelos princípios que marcam ideologicamente a Revolução de Abril, a questão de Timor Leste acabou por ser o factor decisivo para a gestação, no âmbito da diplomacia portuguesa, de uma filosofia menos casuística e muito mais assente em valores. A mais impressiva marca da nossa política externa, a partir de certa altura, terá sido, porventura, a adesão e o empenhamento naquilo que eu costumo designar por uma diplomacia ética. Quero com este conceito referir a defesa dos Direitos Humanos, a promoção dos valores da democracia e do Estado de direito, a adesão aos projectos internacionais de solidariedade e luta contra a pobreza e exclusão, a vinculação à luta contra o racismo, xenofobia e intolerância, etc. Terá essa linha de actuação tido sequência, com efeitos na cultura diplomática ainda hoje prevalecente nas Necessidades? Tenho dúvidas – e lamento ter de tê-las. A sensação com que fico é que o template da União, essa espécie de média aritmética europeia de posições, soprada em especial pelos poderes diplomáticos mais fortes da União e pela mentalidade burocrática de Bruxelas, funciona hoje como uma cómoda escola de atitude, quase expressa numa langue de bois onde muitos diplomatas ainda se refugiam.
       No plano da segurança internacional, é importante notar que Portugal iniciou, a partir de determinado momento, a prestação de um contributo muito interessante, naturalmente à sua escala, para operações internacionais de paz. Isso permitiu-nos – embora alguns, lá fora, possam não se ter apercebido disto – criar internamente um quadro alternativo e dignificador de tarefas para umas Forças Armadas que haviam sido atravessadas, até muito recentemente, por um processo de muito elevada instabilidade e crise de objectivos. É pena que a escassez de meios não nos permita ir mais longe nesta via, onde temos dado uma imagem de grande profissionalismo, sensibilidade político-social e capacidade de organização e trabalho no terreno.
       Como antes disse, neste processo de afirmação de princípios éticos à escala externa, Portugal foi inicialmente muito estimulado pela crise de Timor, por essa espécie de remorso histórico no qual, a partir de certo momento, concentrámos muito do nosso empenhamento diplomático. Verdade seja que se torna sempre um pouco muito mais fácil aplicar alguns princípios quando não se tem, na ordem externa, grandes interesses a defender. A experiência veio a demonstrar – e não quero, por razões óbvia, ir muito longe neste assunto – que a ocorrência pontual de alguns desses interesses, ou a ânsia de mostrar algum seguidismo de oportunidade, nomeadamente no quadro transatlântico,  levou a escassos, mas muito lamentáveis, desvios desse curso de dignidade à escala internacional.
       Mas, em geral, é preciso deixar claro que Portugal tem mostrado ser um país com uma política externa muito responsável e coerente, previsível e assente em bases sólidas, cultor de uma agenda de diplomacia ética que nos garante respeito e crédito no cenário internacional. O modo como nos comportámos nas presenças nos biénios no Conselho de Segurança da ONU, o nosso trabalho na área dos Direitos Humanos, várias participações individuais em áreas delicadas de estruturas internacionais, tudo isso acabou por dignificar a imagem portuguesa.
       Mas, uma vez mais, e nesses mesmos âmbitos, o mundo também repara que, por vezes, sendo um funcionário substituído, cai, em absoluto, a presença portuguesa na área que ele tratava – precisamente porque era esse mesmo funcionário, com ou sem backing da sua missão ou da sua capital, que tinha o pleno conhecimento do dossiê e que era, ele próprio, o criador da posição portuguesa. Infelizmente, isto passa-se, ainda hoje, muitas mais vezes do que o que se julga – com efeitos negativos sensíveis na nossa imagem como país no campo multilateral.
       Uma última nota para registar que, também algumas vezes, o investimento feito por Portugal em alguns exercícios multilaterais, com esforço, dedicação e preparação de pessoal nesses domínios, acaba por ser completamente desperdiçado pela inexistência de um trabalho de follow-up. Um exemplo que me vem à memória, porque trabalhei nele com intensidade, foi a presidência portuguesa da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), em 2002, organismo em que Portugal também havia estado envolvido pela preparação da Cimeira de Lisboa, em 1996. A OSCE, em si, vale o que vale, mas o esforço de aproximação e diálogo que, no seu contexto, fizémos com países que estavam fora da órbita normal da nossa esfera de actividade, e perante os quais criámos então uma imagem dialogante e construtiva, acabou por não ter grande sequência, desbaratando-se, ingloriamente, um importante esforço, financeiro e humano, que o país realizou durante alguns anos.
       É por essa razão que volto a dizer que Portugal ainda projecta uma imagem irregular, de entusiasmo sectorial súbito, logo seguido de grandes quebras de empenhamento, voltando-se, transitória e subitamente, para outros pontos alternativos de interesse, num zig-zag sem sentido óbvio. Para além daqueles que são temas centrais da nossa diplomacia – Europa, relações transatlânticas, NATO, países de língua portuguesa –, em tudo o resto como que funcionamos um pouco à la carte, ao sabor das vontades políticas conjunturais. Ou de entusiasmos pouco respeitáveis. Como é evidente, esta é uma crítica geral, dirigida aos últimos 30 anos e, no fundo, pretende ser um alerta para o futuro, um apelo a que consensualizem rumos, se instituam mecanismos alargados de revisão periódica de políticas, deixando de vogar apenas ao sabor das conjunturas políticas.

A lusofonia

       E termino com algumas considerações sobre a questão da lusofonia e do papel de Portugal nesse contexto.
       Julgo que é óbvio para todos – e quando digo todos, refiro-me também aos países lusófonos – que Portugal tem tido uma permanente acção em favor da densificação do relacionamento, em todas as áreas, dentro do espaço de língua portuguesa. Vale a pena olhar atrás e atentar num aspecto: Portugal e a diplomacia portuguesa, com persistência e com constância, conseguiram reverter, nestas últimas décadas, uma atitude de alguma “lusofobia” que se havia criado em sectores de algumas das suas antigas colónias, no período posterior à descolonização, quase sempre como saldo dos traumas dos conflitos armados. Embora cada caso fosse um caso, tivemos que gerir, durante bastante tempo, uma diplomacia de tensão, que tinha que se confrontar com desconfianças, preconceitos e agravos fáceis, que só foi possível ultrapassar com muito e árduo trabalho político e diplomático. Esse trabalho acabou por compensar, porque alguns desses países vieram a der-se conta que, de facto, estávamos a ser sinceros quando afirmávamos querer colaborar nos seus processos internos de reconciliação, contribuir para a sua recuperação económica e social e ajudar à sua promoção, à escala das nossas possibilidades, no campo externo. Com avanços e recuos, muitas vezes ao sabor das conjunturas internas desses Estados, a diplomacia portuguesa face à África lusófona tem hoje um saldo global de êxitos, que só não é mais evidente porque factores externos de circunstância impediram, frequentemente, a maturação de muitas das soluções em nos empenhámos.
       Esse trabalho acabou por redundar, em Portugal, na criação de uma importante massa crítica de expertise africana que, por exemplo, nos colocou no centro de duas cimeiras entre a União Europeia e a África, a última das quais, em 2007 – e talvez as pessoas não se tenham dado bem conta disso –, trouxe um modelo novo de articulação (como antigamente se dizia) “Norte-Sul”, cuja conceptualização muito prestigia Portugal aos olhos da África e da própria Europa. Por essa e por outras razões, a África de lingua portuguesa olha-nos hoje de forma muito diferente: Portugal é visto genericamente como um país consistente com as suas promessas, determinado na promoção internacional dos interesses comuns e de cada um dos seus parceiros africanos.
       E que dizer de Timor-Leste? Vou ser muito parco num terreno em que a resposta é óbvia: Portugal foi e é o mais consistente parceiro internacional de Timor-Leste, em todos os momentos e por várias formas. A imagem de Portugal em Timor-Leste é, em geral, a de um país amigo e seguro, sem interesses a defender que não sejam os que derivam do nosso empenhamento em desenvolver a herança cultural de um passado comum.
       O que falta, então, para que as coisas possam dar certo na lusofonia, para que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) deixe, mais de uma década depois da sua criação, de ser apenas um embrião de uma organização com expressão à escala global? A chave dessa questão chama-se Brasil. Não posso aqui elaborar muito sobre isto, mas a realidade dos factos deixa claro que a CPLP começou mal, porque, por motivos próprios, não foi possível ao Brasil assegurar um papel central, desde o início, no seio da organização. Ora o Brasil é o maior Estado da CPLP. Nas comunidades internacionais desta natureza costuma haver uma coincidência entre o Estado descolonizador e o maior país da organização: não é esse o caso da CPLP, bem pelo contrário. E talvez não seja por acaso que um país como os Estados Unidos não faz parte da Comunidade Britânica, embora fosse uma antiga colónia britânica...
       Depois de viver há alguns anos no Brasil, tenho a sensação – mas concedo que posso estar enganado – que o Brasil só agora começa a interessar-se verdadeiramente pela CPLP e a testar em pleno as suas possibilidades. Porque só agora, envolvido que está numa batalha positiva para consagrar, à escala global, a sua força regional e o seu poderio económico e demográfico, o Brasil começa a perceber a vantagem de utilizar a sua posição na CPLP como um instrumento mais da sua própria política externa. Este aparente avanço político  – mais do que bem-vindo – parece somar-se à consciência crescente no Brasil de que a língua portuguesa pode e deve converter-se num importante utensílio de poder para quantos a falam e escrevem.  A criação, há dois anos, do Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, a negociação de acordos com países vizinhos com vista a colocar o Português como segunda língua na América do Sul, tudo isso são sinais claros de que uma política da língua já começa a ser percebida como uma política de Estado no Brasil.
       Ora a promoção da Língua Portuguesa à escala internacional foi, é e será sempre um dos objectivos centrais da nossa própria acção externa. Por isso, estamos abertamente com o Brasil nesse objectivo e estaremos também com o Brasil, de forma muito óbvia, em tudo quanto possa afirmar esse país no quadro global. O Brasil sabe isso. Sabe que nenhuma dimensão da sua afirmação externa é contraditória com os nossos interesses estratégicos nacionais e, bem pelo contrário, se trata de um jogo de sinergias. Por isso, o Brasil entende que Portugal é um parceiro certo e quase automático, quando interesses seus podem cruzar-se no nosso horizonte de acção diplomática. O Brasil vê isso, com regularidade, nas eleições nas estruturas multilaterais, como viu no esforço que fizemos, contra ventos e algumas marés passageiras, ao conseguir conferir-lhe o estatuto de Parceiro Estratégico da União Europeia, durante a nossa recente Presidência.
      Como prometido, abordei três dimensões da nossa acção externa: a Europa, a acção multilateral e o espaço da lusofonia.
       Alguns estarão, com certeza, a perguntar-se por que razão, a parte relativa ao Brasil foi a única em que não referi nem comentei, em detalhe, o modo como o outro lado nos olha. A explicação é muito simples: eu sou actualmente embaixador de Portugal no Brasil e todos sabem que não se podem tirar retratos de muito perto, porque as imagens saem quase sempre desfocadas...











A INDEPENDÊNCIA DE PORTUGAL HOJE[26]




















       Há cerca de 40 anos, numa aula no então Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, cometi a ousadia de perguntar ao professor Adriano Moreira se, no prazo de algumas décadas, ele visualizava a possibilidade de Angola e Moçambique virem a ser países independentes. A pergunta estava longe de ser inocente e a almofada temporal que eu nela usava era apenas uma forma de adocicar uma questão que sabia ser altamente provocatória. O professor Adriano Moreira foi, como sempre, muito inteligente na resposta e disse-me que, se eu fosse capaz de definir o que o conceito de independência poderia significar, a essas décadas de distância, ele teria o maior dos gostos de me dar a sua opinião. Eu não sabia – ou não fui capaz de descortinar uma contra-resposta rápida – e a coisa ficou por aí.
       O aspecto hábil da resposta escondia, contudo, um elemento muito verdadeiro – a questão do conteúdo da ideia de independência. E isso ajuda-me a introduzir o tema que gostaria de lhes trazer aqui hoje.
       Faz hoje 368 anos, um grupo de nobres portugueses, cansados do modo como o corte madrilena tratava a aristocracia lusitana no quadro da nobreza ibérica, e aproveitando a atenção prioritária que Castela dedicava então a dissidências na Catalunha, desencadeou um golpe de Estado e colocou um dos seus no poder. Alguns historiadores pouco propensos à glorificação dos actos colocam ênfase menos no patriotismo e mais no sentido prático dos nobres envolvidos na conjura, que se sentiriam prejudicados nos seus interesses pela lógica de distribuição de poder por parte de Madrid. Quaisquer que tenham sido as motivações do acto, a verdade é que o momento terá sido muito bem medido, em termos de avaliação da relação de forças, o que é provado pelo facto de, não obstante tentativas posteriores de retomada de controlo por parte de Castela, ter sido possível assegurar, em permanência, a independência formal de Portugal a partir de então, pondo fim a um período de 60 anos de tutela espanhola.
       Portugal era um país independente desde o século XII e esse é um facto que, associado à quase constância histórica das nossas fronteiras, nos traz um grande orgulho e que sempre afirmamos aos estrangeiros com alguma vaidade. Mas se olharmos para História com alguma atenção – e eu não sou um historiador, quero deixar bem claro –, torna-se evidente que a independência de que Portugal desfrutou teve características que variaram muito ao longo do tempo e das circunstâncias.

Independências

       A independência que Afonso Henriques assegurou junto do Papa é muito diferente da independência que dom João tinha perante os ingleses, quando veio para o Brasil há 200 anos, como esta é diferente da que hoje possuímos no quadro da União Europeia.
       Por isso, vale a pena interrogarmo-nos: a independência é um valor em si ou é um atributo meramente instrumental? O que é que liga, na História, estas diferentes independências? E, já agora, Portugal é hoje um país independente?
       No plano dos princípios – ou mesmo da etimologia – ser independente é não ser dependente. Mas será que os Estados Unidos não são altamente dependentes do petróleo do Médio Oriente? No plano mais formal, poderemos dizer que é independente um país que tem possibilidade de afirmar a sua identidade política perante outros e que, para manutenção dessa identidade, não precisa da tutela alheia. Daí que talvez valha a pena perguntar: a República turca de Chipre Norte é um Estado independente, quando apenas a Turquia a reconhece? A Ossétia do Sul e a Abcásia são países independentes, quando necessitam da tutela de Moscovo para se manterem formalmente como tal? Aliás, por aquelas bandas, lembram-se certamente da famosa Comunidade de Estados Independentes (CEI), criada efemeramente após a implosão da União Soviética. A maioria desses Estados achou que tinha de ser mesmo independente e rapidamente esqueceu tal Comunidade. E pode ser-se independente dentro de uma Comunidade? Lá iremos…
       Um interessante caso de transição é o Kosovo, que foi uma província da Sérvia até que a Comunidade internacional o colocou numa espécie de limbo, quase semelhante a outros Estados e regiões sob tutela que surgiram no século XX. O Kosovo declarou a sua independência e esta tem vindo a ser reconhecida, quase a conta-gotas, precisamente pela mesma Comunidade internacional que havia decidido que o seu estatuto futuro teria de ser decidido de outra forma.
       No passado, o reconhecimento da independência dos Estados começou por ser papal, depois passou, na prática, a ser feito pelos outros Estados, em especial pelos mais poderosos. Hoje, o reconhecimento deriva dessa entidade difusa que é a Comunidade internacional, o que significa um misto do reconhecimento pelos restantes Estados e pela estrutura que os congrega no plano multilateral – as Nações Unidas. Mas tendo sido embaixador junto das Nações Unidas, posso assegurar-lhes que por lá andam muitos países, com direito de voto na Assembleia Geral igual ao dos Estados Unidos ou da China, que de independentes só têm o nome…
       E Portugal – para voltarmos ao âmago desta conversa – é hoje um país independente? Portugal perdeu independência quando perdeu o seu império colonial? Portugal é menos independente desde que é membro da União Europeia? E a França? E a Alemanha? São menos independentes desde que fazem parte da União Europeia?
       O conceito de independência traz consigo a questão simbólica do reconhecimento do Estado. Sem querer enveredar pelo Direito Internacional, mas exclusivamente pela dimensão cultural e política da questão, eu diria que um Estado independente é aquele cuja população vive sob a mesma bandeira e numa mesma unidade política – internamente gerida da forma que quiser.     Muitas vezes, como é o nosso caso, essa independência acarreta o peso de uma longa Historia, de uma identidade que favorece o auto-reconhecimento colectivo dos seus cidadãos, tendo uma língua e cultura comuns. Portugal está perfeito nesse retrato, como perfeita estaria a nação curda se a deixassem organizar como Estado – diga-se de passagem.

Somos independentes?

       Mas somos, de facto, independentes? Algum país o será?
       Economicamente, estamos longe de o ser. Dependemos do investimento estrangeiro, dos mercados externos para os nossos produtos, da energia estrangeira e dos produtos importados para o nosso consumo e equipamento. Estamos hoje na moeda única, não podemos fazer desvalorizações para promover exportações, não temos autonomia para decidir o nível das taxas de juros praticadas pelos nossos bancos. Mas o que teria acontecido a Portugal se, perante o recente deslizar das contas públicas para financiar o bem-estar, não estivéssemos protegidos pela protecção do “euro”?
       Em matéria de defesa, se fôssemos alvo de um ataque externo, que hipóteses teríamos de reagir? As mesmas que tivemos na Índia. Isto é, nenhumas.
       E politicamente? Integrados no bloco ocidental, membros da NATO e da União Europeia, o que aconteceria a Portugal se acaso decidisse apoiar causas internacionais impopulares?
       Mas, por outro lado, como teria sido possível promover a causa timorense, bloqueando, por anos, os acordos entre a União Europeia e a Asean, para isolar a Indonésia, se não estivéssemos nas Comunidades Europeias? E que hipóteses teríamos de ser os promotores da Parceria Estratégica entre a União Europeia e o Brasil e, dessa forma, mostrarmos o nosso peso na reorientação da política exterior europeia?
       Confesso que, com o decorrer dos anos, e não obstante ter um grande orgulho histórico nas raízes da nossa independência – e esta ser, provavelmente, das poucas coisas pela qual me vejo a arriscar a vida – associo-a hoje a uma visão bastante mais pragmática. A independência é-nos útil para aculturar um projecto comum, assente em alguns pontos de consenso nacional e para garantir a preservação daquilo que, em cada momento, são os interesses que consensualmente entendemos dever defender.

Os interesses portugueses

       Mas os interesses não são nem foram sempre os mesmos. Num passado não muito distante, esses interesses eram identificados com a preservação das colónias, das possessões ultramarinas ou do ultramar – só para utilizar três formulações que o regime caído em 25 de Abril de 1974 usou em momentos distintos. Ora o império foi-se com os ventos da História mas a nossa sabedoria – a sabedoria do nosso regime democrático português, sublinhe-se – foi capaz, depois de um longo e laborioso processo, de recuperar os traumas provocados por uma descolonização que só teve de ser apressada porque foi tardia. E é importante que se diga – porque alguns teimam em esquecê-lo – que a política colonial portuguesa, desde a Índia aos três teatros de guerra que tivemos em África no século XX, nos criou um ambiente de má-vontade internacional que demorou décadas a superar.
        Hoje as coisas evoluíram, como evoluíram os protagonistas desses conflitos. Estamos com os países africanos que falam português a trabalhar no quadro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em temas em que o Brasil está cada vez mais presente. Mas alguém terá a coragem para dizer que houve alguma virtualidade em ter mantido uma guerra de 13 anos em Angola ou de 10 em Moçambique e na Guiné? A nossa independência passava por aí? Ou não passa muito mais pelo entendimento fraterno que hoje estamos a desenvolver e que poderia ter começado a gerar-se mais cedo, se uma solução negociada tivesse sido assumida como possível, desde a década de 50?
       Sei que este é um terreno polémico, mas há que dizer que os interesses de Portugal, como nação independente, assentam hoje nesta magnífica capacidade de nos termos sabido reconciliar connosco mesmos, neste sentido de descoberta de um novo destino, que pode não ser tão glorioso e heróico à luz das epopeias históricas, mas que é singelamente útil a todos nós. Esse destino é saber aproveitar a democracia, a liberdade, o usufruto da nossa cultura e a nossa inata capacidade para nos relacionarmos com todos.

O mundo multilateral

       Perguntar-se-ão alguns se, ao entregarmos alguma gestão do quotidiano aos braços das instituições internacionais em que participamos, não estará a nossa independência em risco. Em minha opinião, o actual quadro de inserção de Portugal na ordem internacional, podendo formalmente aparecer como beliscando um tradicional conceito de independência, e mesmo como gerador de novas dependências, é aquele que melhor serve os interesses do nosso país. Senão vejamos alguns exemplos.
       Em matéria de defesa e segurança, e tendo em atenção a nossa insuperável debilidade, a pertença a uma organização de defesa colectiva – como é a NATO – que tem no seu cerne a preeminência dos interesses dos Estados que a compõem e uma cultura de entendimento em torno de valores comuns, é a nossa única protecção eficaz no mundo de hoje. Independência no seio da NATO impõe, contudo, que saibamos posicionar-nos de forma a preservar os paradigmas fundamentais que fizeram o sucesso da organização, adaptando-os às novas realidades em termos de ameaças, mas evitando tentações de extrapolação de objectivos que podem pôr em causa a sua própria identidade.
       Numa outra área, como é a segurança pública, atento o carácter transversal da criminalidade e das novas ameaças, julgo evidente que só uma participação activa e cooperante num quadro internacional alargado tem condições de nos dar o mínimo de capacidade para a preservação dos nossos interesses. Mas ser independente no quadro dessa política é, da mesma forma, ter a coragem de carrear para o debate europeu as temáticas da luta contra a intolerância, o racismo e a xenofobia, a necessidade de respeito pelo Direitos Humanos, de atenção às minorias, de defesa de políticas migratórias sãs e solidárias.
       Em matéria de integração política, económica e social, por determinantes geográficas e económicas, a pertença à União Europeia é a melhor garantia de que os nossos cidadãos têm o usufruto de um espaço comum para a sua realização, marcado por uma cultura democrática, de defesa de liberdades e como fonte de progresso e desenvolvimento. A Europa comunitária é um pólo de estabilidade no mundo mas, no seu seio, devemos sempre lutar pela adopção de uma visão aberta e cooperativa com áreas like-minded, como é geralmente o caso dos Estados Unidos e da América Latina.
       Por razões óbvias, e para um país como Portugal, ter uma voz independente na definição da política externa da União Europeia significa também, por exemplo, lutar para definir uma estratégia solidária para a África e para a América Latina, ajudar a desenhar rotas para a paz e segurança nas várias regiões do mundo e garantir que a Europa se mantém na linha da frente dos processos multilaterais de ajuda ao desenvolvimento.
       Em termos da promoção de valores à escala global, e para além de trabalhar para a respectiva aculturação no quadro da União Europeia, importa destacar que Portugal dispõe hoje de uma posição altamente confortável no quadro das Nações Unidas. Aí somos vistos como um poder moderado e moderador, com importantes laços com África, com um registo muito positivo de diálogo com o mundo árabe, com um excelente relacionamento com a América Latina, com um património histórico de prestígio em muitos lugares do globo. Quando fui embaixador na ONU, pude testemunhar esse imenso capital de simpatia de que o Portugal democrático hoje dispõe no quadro internacional, não obstante termos meios económicos muito limitados para sustentar de forma significativa políticas activas de cooperação e ajuda ao desenvolvimento. Portugal é visto, no quadro mundial hoje, um soft power que – acreditem! – joga numa divisão acima daquela que o seu peso demográfico e económico justificariam, com uma capacidade de interlocução muito superior a países mais ricos da nossa dimensão.
       Será que isto não reforça a nossa independência? Ou será que éramos mais independentes quando vivíamos acantonados pelo mundo nas organizações internacionais e “orgulhosamente sós” contra a História?
       Por que razão isso acontece hoje? Isso é produto de estarmos fixados no imaginário do mundo como um país com uma longa história, com interesses materiais limitados, mas com uma projecção cultural muito interessante – que a expansão da língua portuguesa tenderá sempre a potenciar. O grande desafio que se nos coloca é sabermos utilizar este poder cultural e humano que fomos criando, não obstantes alguns recuos históricos, para, em conjunto com aqueles Estados e povos que nos acompanham nos mesmos terrenos, construir uma mais alargada identidade colectiva à escala global. E o Brasil é, sem a menor dúvida, o parceiro nº 1 para essa nova aventura. Essa é, nos dias de hoje, a chave para afirmar um voz portuguesa própria no cenário internacional. À luz dos interesses que, nos dias de hoje, nos compete defender, essa é a chave da nossa verdadeira independência.

A EUROPA NÃO NOS DIVIDE[27]





















       Haverá que convir que o debate realizado em Portugal, em torno das recentes eleições europeias, terá ficado à porta das grandes questões que se prendem com o futuro do nosso país no projecto integrador. Seria ingenuidade pensar que as coisas pudessem ter-se passado de modo diferente, atento o quadro de tensões políticas que antecedeu o sufrágio. Mas isso não impede que, ultrapassado este, se não tente reflectir, com serenidade, sobre o caminho que estamos a percorrer, situando-o no tempo europeu que actualmente se vive.
       Gostaria de começar por notar que a Europa comunitária se tem revelado uma entidade mutante, que adquire novas formas à medida dos desafios que enfrenta e do modo como consegue, ou não, compatibilizar as vontades nacionais de que é composta. Com o tempo, vão-se alterando as expectativas de quem nela está inserido e de quem a olha de fora, seja como interlocutor, seja como potencial membro. Essa qualidade auto-transformadora do projecto europeu é, simultaneamente, a sua força e a sua fraqueza. Aliás, fica-se hoje com a sensação de que, se assim não fosse, a Europa comunitária teria estiolado.
       A ambiguidade tem sido um dos principais motores da Europa. Os países e os povos estão neste projecto mobilizados por finalidades que nem sempre são exactamente as mesmas. Se se perguntasse a cada Estado qual o modelo final europeu para o qual desejaria ver evoluir a União Europeia, aqueles poucos que ousassem responder diriam coisas bem diversas – que iriam desde o formato federal à “Europa das nações”. Por isso, retomando a frase clássica de Kautsky para outra realidade, temos de concluir que, também na Europa, “o movimento é tudo, o fim é nada”.
       No seu pouco linear processo de construção – dos  ”seis” aos “vinte e sete” – a Europa passou por etapas diferentes, que corresponderam às pressões que foi colocando a si mesma, por opção própria ou por determinantes externas. Também por essa razão, convém que tenhamos plena consciência de que a Europa de amanhã vai ser outra coisa, distinta da que hoje existe e, naturalmente, já muito diferente daquela a que aderimos, nos Jerónimos, numa manhã de 1985.
       Um mínimo de bom-senso deve levar-nos a concluir que, tendo em atenção o nível de consenso potencial hoje existente, o modelo federal europeu perdeu, definitivamente, a corrida. O federalismo europeu nasceu, historicamente, em torno dos países que deram início ao processo integrador, no pós-guerra. Essa pulsão, gerada pelo medo à repetição do conflito intra-europeu e às tensões da Guerra Fria, continuou a ser uma ideia muito centrada nesses mesmos Estados e, alguns deles, conseguiu mesmo suplantar os sentimentos nacionalistas. Pode dizer-se que o alargamento a Portugal e à Espanha foi o último momento desse tempo, que ainda apontava para que o modelo federal tivesse alguma plausibilidade.
       Mas tudo mudou na Europa com o termo da Guerra Fria e, há que assumi-lo, toda a sedução que o modelo federal mantinha, mesmo em sectores dos países fundadores, acabou por esvair-se muito com a realidade dos últimos alargamentos. Interpretada como um imperativo político e estratégico, a entrada desse importante conjunto de novos Estados teve, como efeito colateral, a emergência de uma consciência de que a gestão da nova Europa tinha de fazer-se de outra forma. O Tratado de Nice foi a derradeira tentativa de compromisso com o modelo anterior. O Tratado de Lisboa é já a consagração da prevalência dessa outra leitura da Europa. Diga-se isto em voz alta, de uma vez por todas.
      
Nós e a Europa

       Mas voltemos um pouco atrás, ao caso português. O nosso país nasce para a integração europeia de uma forma muito diferente da dos países fundadores. A Europa serviu-nos como âncora para a democracia reconquistada e como apoio a um novo processo de desenvolvimento, encerrado que estava o ciclo colonial. Mas o sentimento soberanista, que é identitário na nossa política externa e que esteve bem patente nas duas primeiras décadas após o nosso acesso às Comunidades, tem em Portugal raízes bem profundas - e, há que dizê-lo, bem fundadas na nossa experiência histórica nacional. Por isso, a nossa atitude europeia começou por ser, em termos de projecto institucional, mais intergovernamental e muito pouco aberta às ideias federalistas. Com o tempo, um compromisso entre esses dois extremos acabou por fixar-se na matriz da nossa política externa.
       O federalismo europeu em Portugal resulta de uma construção intelectual de algumas elites, na maior parte dos casos decorrente do seu convívio com algum outro pensamento internacionalista ou, pelo menos, com um cosmopolitismo cultural desprendido de defesas nacionalistas. Ser europeísta no sentido federal, em Portugal, foi uma atitude que resultou de um esforço de abstracção face à ideologia nacional dominante, uma tentativa de olhar além desses preconceitos, numa outra visão de longo prazo dos interesses portugueses num quadro global. Mas o federalismo pressupõe a partilha de uma "nacionalidade europeia", que os portugueses, pelo menos por ora, parecem longe de sentir.
       O "europeísmo" em Portugal, convém sermos honestos, foi uma realidade diferente: situava-se nas vantagens económicas, nos bolsos ou na paisagem, somadas ao interesse na livre circulação, que garantia um estatuto a quantos já estavam na Europa comunitária antes do próprio país. Daí a insistência inicial na "ideologia da coesão", um teste à coerência do projecto europeu que traduzia, simultaneamente, a proposta de trocar a nossa abertura ao mercado interno pelo recebimento de ajudas compensatórias. Nada que outras países não obtivessem em paralelo, através de outras políticas europeias, note-se.
       Já a indução do debate grandes países/pequenos países no discurso negocial europeu, foi um óbvio reflexo que teve algo de soberanista, embora sem ser, necessariamente, uma mera atitude anti-federal. O que esse movimento defensivo pretendeu ser foi a reacção contra um aproveitamento oportunista, por parte de alguns países que utilizavam a mutação do processo europeu como forma de imposição de um modelo de “directório”. Esses Estados, perdido que estava o modelo federal que apenas funcionava na anterior lógica de pequeno “clube”, rapidamente se reconverteram à ideia de reforço do seu próprio papel nacional, no seio do processo decisório europeu. A eficácia era e é a justificação maior que apresentavam. Nomes? Basta atentar nos países que sistematicamente atacam a Comissão Europeia, a única instituição cuja preeminência pode ainda garantir algum interesse comum e contrariar o peso de quem tem mais força.
       As temáticas da coesão e do conflito pequenos/grandes foram, assim, as que estiveram mais presentes no debate europeu em Portugal, num caso por justificado interesse económico, noutro por considerável interesse político. Mas, curiosamente, temas tão próximos do eixo da soberania como são a moeda ou a segurança e defesa europeias passaram ao lado de qualquer polémica.

E agora?

       Mas, perguntar-se-á o leitor, onde é que estamos hoje, quando a coesão política se sobrepõe à coesão económica e social? O modo responsável como Portugal se comportou face aos alargamentos da União provou que, nas elites políticas, foi possível criar a consciência de que o êxito do processo europeu tinha que ter um preço económico, com uma dimensão estratégica que não nos poderia ser indiferente. Foi uma opção consciente e politicamente motivada, destinada a evitar a emergência, ao tempo em que os últimos alargamentos estavam ainda em discussão, de uma espécie de "egoísmo da coesão". Julgo que, dessa forma, foi possível criar, na opinião pública portuguesa, um sentimento de naturalidade face à diversificação geográfica das ajudas, no quadro de uma Europa alargada. Nesse aspecto, Portugal foi e é um magnífico exemplo.
       Agora, é preciso olhar o futuro, que não vai ser fácil. Perante nós estão dois grandes desafios.
       O primeiro prende-se com a necessidade de assegurarmos, numa Europa que, para se realizar como entidade com escala a nível global, pode tender a dividir-se em núcleos para o aprofundamento de certas políticas, o nosso permanente lugar nesses mesmos modelos variáveis de integração. Não tenho a certeza de que o consigamos. Mas temos de lutar, com todas as forças, para evitar que o país mergulhe num novo ciclo de periferização.
       O segundo desafio prende-se com o anterior. Para além de voluntarismo e de recursos financeiros para estarmos sempre nesses núcleos centrais, importa-nos manter como linha dominante na nossa política externa um sentido profundamente europeu, isto é, uma defesa extrema dos mecanismos comunitários e uma denúncia aberta dos modelos que favoreçam a fixação de “directórios”.
       Nada que todos os governos do nosso país não tenham feito até hoje, diga-se. A Europa, em Portugal, não nos divide.






[1] Texto baseado no artigo homónimo publicado na revista “Política Internacional”, Lisboa, nº 29, Novembro de 2005
[2] A esmagadora maioria das questões de contencioso económico sectorial entre Portugal e o Brasil puderam entretanto encontrar uma resolução satisfatória. A entrada em vigor de um acordo entre a União Europeia e o Mercosul iria permitir, contudo, uma maior segurança jurídica futura para os operadores e facilitaria a rápida discussão técnica de eventuais novos casos, cuja remissão para um diálogo político bilateral se torna sempre inconveniente.
[3] Por iniciativa portuguesa, e durante a sua presidência da União Europeia, em 2007, o Brasil passou a beneficiar do estatuto de “parceiro estratégico” da União. Sobre este assunto, ver Francisco Seixas da Costa, “Tanto Mar? – Portugal, o Brasil e a Europa”, Brasília, 2008.
[4] Texto baseado na intervenção feita no Seminário “Integração Regional: Experiências da União Europeia e da América Latina”, organizado pela delegação da Comissão Europeia no Brasil, em Brasília, em 10 de Maio de 2006

[5] Este texto foi escrito em Maio de 2006
[6] Sobre este assunto, ler Francisco Seixas da Costa, A Europa nas Nações Unidas, in “Uma Segunda Opinião – Notas de Política Externa e Diplomacia”, Lisboa, 2007
[7] Decidi manter no texto estes parágrafos, embora já ultrapassados pelos factos supervenientes, dado eles revelam aquela que era, à época, a minha perspectiva. 
[8] Texto baseado no capítulo Os Tratados de Amesterdão e de Nice, incluído na obra colectiva “20 Anos de Integração Europeia (1986-2006) – O Testemunho Português” , Lisboa, 2007
[9] O representante português no “grupo de reflexão” foi o professor doutor André Gonçalves Pereira.
[10] Para uma análise da negociação e resultados do Tratado de Amesterdão, ver Francisco Seixas da Costa, “Para a história de uma negociação”, in “Diplomacia Europeia – instituições, alargamento e o futuro da União”, Lisboa, 2002
[11] “Portugal e a Conferência Intergovernamental para a Revisão do Tratado da União Europeia”, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 1996.
[12] O resultado do trabalho da Conferência Intergovernamental nesse primeiro semeste ficou expresso no Relatório que a Presidência portuguesa apresentou ao Conselho Europeu de Santa Maria da Feira.
[13] Uma análise detalhada dessa negociação, na perspectiva portuguesa, pode ser encontrada em Francisco Seixas da Costa, Portugal e o Tratado de Nice – notas sobre a estratégia negocial portuguesa, in “Negócios Estrangeiros”, nº 1, 2001.
[14] Ver Francisco Seixas da Costa, “Em torno da Constituição Europeia”, in “Uma Segunda Opinião –Notas de Política Externa e Diplomacia”, Lisboa, 2006.
[15] Texto baseado num artigo homónimo publicado na revista  Política Externa”, vol. 16, nº 4, S. Paulo, 2008.
[16] Em 1 de Julho de 2000, publiquei no jornal “Le Monde” um artigo intitulado “Refonder l’Europe” em que abordava a possibilidade de convocação de uma entidade similar àquilo que viria a ser a Convenção Europeia, criada no Conselho Europeu de Laeken, em Dezembro de 2001. Terminava esse artigo com a seguinte frase: “Dirão alguns que isto pode aparecer como uma espécie de ‘salto constitucional’, sem precedentes no historial da União. A título pessoal, a minha resposta é uma pergunta: e porque não?”
[17] Alguns tendem a ligar esta importante evolução da posição francesa ao facto de ter conseguido um acordo com a Alemanha que lhe permitiu, ainda antes da fixação das Perspectivas Financeiras (orçamento plurianual) 2007/2013, a garantia de um montante mínimo da chamada “linha directriz agrícola”, capaz de sustentar, até ao final daquele período, o share orçamental de que beneficia através da Política Agrícola Comum.
[18] É muito elucidativo o artigo do antigo presidente Valéry Giscard d’Estaing intitulado Análise comparada do Tratado de Lisboa (http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1313623), em especial quando refere que “as propostas institucionais do tratado constitucional (...) se encontram integralmente no tratado de Lisboa, mas numa ordem diferente e repartida nos tratados anteriores”.
[19] O Tratado de Lisboa entrou em vigor em 1 de Dezembro de 2009.
[20] O actual presidente da Comissão Europeia reconheceu esse risco numa entrevista dada no início de Outubro de 2007 ao jornal belga De Standaard: “O novo tratado tem grandes riscos (...) Com o presidente do Conselho Europeu (...) poderá haver um novo circuito de decisão ao lado da Comissão e do Parlamento Europeu. Há um risco real de que os governos resolvam os seus problemas entre si de uma forma intergovernamental e sem ter em conta” as restantes instituições. Ver em Isabel Arriaga e Cunha, Tratado de Lisboa consagra uma União Europeia diferente (http://reapnimprensa.blogspot.com/2007/10/tratado-de-lisboa-consagra-uma-unio.html).

[21] Texto baseado na conferência proferida na abertura do Fórum Cultural Europeu, realizado em Lisboa, em 26 de Setembro de 2007.

[22] Texto baseado na intervenção proferida no Seminário “Concepção Estratégica e Política de Defesa”, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, no Rio de Janeiro, em 4 de Junho de 2008.
[23] Se um Estado-Membro vier a ser alvo de agressão armada no seu território, os outros Estados-Membros devem prestar-lhe auxílio e assistência por todos os meios ao seu alcance, em conformidade com o artigo 51.º da Carta das Nações Unidas
[24] A União e os seus Estados-Membros actuarão em conjunto, num espírito de solidariedade, se um Estado-Membro for alvo de um ataque terrorista ou vítima de uma catástrofe natural ou de origem humana

[25] Texto baseado na intervenção proferida no ciclo de Conferências “Pensar Portugal no Mundo”, organizado pela Comissão de Negócios Estrangeiros e Assuntos Europeus da Assembleia da República, Lisboa, em 9 de Abril de 2008.

[26] Texto baseado na intervenção proferida no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, em 1 de Dezembro de 2008.


[27] Artigo publicado no jornal “i”, em 10 de Junho de 2009.