Projeto Memória Oral da Diplomacia Portuguesa
Associação dos Amigos do AHD
Instituto Diplomático
Instituto de História Contemporânea
Depoimento do
Embaixador Francisco Seixas da Costa
(O documento corresponde a uma entrevista realizada por Pedro Aires Oliveira e Ana Rita Moreira ao embaixador Francisco Seixas da Costa, na sua residência, a 17 de Fevereiro de 2014. A entrevista foi conduzida com base num guião previamente enviado ao embaixador. O guião compunha-se de duas partes: uma incidindo sobre aspectos de natureza biográfica (antecedentes familiares e escolares, a entrada na carreira, as missões e os cargos desempenhados); e uma outra versando questões de natureza mais genérica, relativas ao funcionamento do MNE, carreira diplomática e da política externa portuguesa no período em que o entrevistado esteve no activo (1975-2013).
A transcrição da entrevista foi realizada por Manuel Campos Magalhães, tendo sido revista e editada por Pedro Aires Oliveira. Procurou respeitar-se ao máximo o depoimento gravado, procedendo-se apenas à supressão de algumas palavras e ideias repetidas e inserindo, pontualmente, algumas frases de ligação. A transcrição foi submetida ao embaixador Seixas da Costa para revisão e aprovação.)
Embaixador Seixas da Costa (SC) - Sou de Trás-os-Montes, uma zona de onde, historicamente, não emergiam muitos diplomatas. No tempo anterior àquele em que fiz concurso de admissão, isto é, antes do 25 de Abril, a carreira diplomática era um percurso profissional com uma forte marca social, bastante elitista, em que o “networking” de conhecimentos e contactos, muitas vezes os próprios laços familiares, facilitavam a ascensão profissional. Isto foi-se atenuando bastante com o tempo.
Nasci em Vila Real. O meu pai, que era minhoto de Viana do Castelo, tinha ido para lá como funcionário da Caixa Geral de Depósitos, de que viria a ser gerente, na cidade, por quase três décadas. Ali casou com a minha mãe, transmontana, filha de um magistrado. Tiveram-me como único filho.
Desde novo, fui muito hesitante em relação à carreira profissional que desejava seguir. Acabei por ir estudar engenharia electrotécnica para o Porto, influenciado pelos muitos engenheiros que havia na família. “Estudar” é, neste caso, uma força de expressão: apenas concluí duas disciplinas, em dois anos... Nesse tempo, fiz tudo menos estudar - namoro, jornalismo desportivo, locução de rádio, desportos vários, etc. A certo ponto, dei-me conta de que não tinha a menor vocação para aquele curso.
Decidi então vir para Lisboa, para uma escola que aceitava estudantes de qualquer área do ensino liceal, o ISCSPU (Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina). Não sabia, exactamente, o que iria fazer com o curso que lá acabasse por concluir. O meu objectivo, à época, era, muito simplesmente, tentar reorientar a vida. Acabei por ser um aluno razoável e descobrir que, afinal, aquela era uma área do conhecimento que me interessava.
Vivia-se então um período turbulento na vida académica no país, com a crise de Coimbra no auge. Envolvi-me muito nas associações estudantis, acabando por não ser “homologadas”, por decisão ministerial, duas eleições em que havia sido eleito dirigente associativo. Na sequência de outros problemas, por alegada “agitação académica”, fui objeto de um processo disciplinar e acabei suspenso. Para não penalizar mais os meus pais, empreguei-me num banco e passei a trabalhador-estudante.
Fui, entretanto, chamado para o serviço militar obrigatório. Tive a sorte histórica de isso ocorrer durante o período do 25 de Abril, o que me possibilitou estar envolvido na conspiração, na parte em que os oficiais milicianos para ela contribuíram. Mas, de forma ainda mais interessante, participei nos acontecimentos do próprio 25 de Abril e fui muito ativo no período subsequente.
Na carreira diplomática
Durante este período, cruzei-me um dia, numa rua, com um antigo colega de faculdade, que exibia uma garbosa gravata. Em face da formalidade do traje, que contrastava vivamente com o ambiente da época, perguntei-lhe o que fazia na vida. Disse-me que era diplomata e, a propósito, referiu que estava aberto um concurso para o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Por que é que eu não concorria?
Eu tinha conhecido dois diplomatas, durante o meu serviço militar: António Franco e Vasco Bramão Ramos. Falei com o primeiro e fiquei a pensar que poderia ser uma experiência curiosa tentar fazer as provas do concurso. Hoje, olhando para trás, tenho consciência de me ter apresentado a esse concurso de forma completamente diletante, numa espécie de desafio a mim mesmo. Era interessado pelas questões internacionais, mas a diplomacia, como profissão, estava em absoluto fora dos meus projetos de vida. Tinha casado e estava com emprego assegurado. Mal saísse da “tropa”, voltaria à carreira bancária, onde tinha um bom salário. Mas achei graça concorrer.
Estive, por isso, muito à-vontade, nas provas do concurso para o Ministério. Fi-lo, também, no meio da época mais turbulenta da Revolução. Estudei apenas o mínimo necessário, não ficando sequer muito bem classificado – 13.º lugar, entre umas centenas de candidatos, sendo selecionados creio que duas dezenas, entre os quais as primeiras mulheres que foram autorizadas a concorrer à diplomacia. O concurso decorreu ao longo de vários meses. Numa das provas orais, fui interrogado por um jovem professor de Economia, um nome que só mais tarde se tornaria conhecido – Aníbal Cavaco Silva. Depois de admitido, ainda hesitei muito em tomar posse. Teria jeito para aquilo? Acabei por ingressar. Em 13 de Agosto de 1975, no auge do chamado “Verão quente”.
Entrei no Ministério com uma imagem pessoal “de esquerda” muito marcada. A sociedade portuguesa, nesse “Verão quente”, vivia muito polarizada politicamente e eu estava bem ancorado desse lado da trincheira. Tinha sido, e ainda era, militante do Movimento de Esquerda Socialista (MES), embora com escassa atividade política. Essa imagem pessoal, contudo, ficou logo bem vincada, nos corredores das Necessidades, pelo facto de ter aceitado o convite para integrar o gabinete do ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Ruivo, no V Governo Provisório - o governo mais à esquerda da nossa história política. No entanto, porque estava ainda a acabar o serviço militar, só poderia assumir funções durante o mês de setembro. Ora o V Governo, entretanto, caiu. Mas a marca, em mim, ficou.
Na Cooperação
Fui destacado para funções fora do Palácio das Necessidades, no edifício que é hoje o Ministério da Defesa e que, antes do 25 de Abril, fora o Ministério do Ultramar. Comecei a minha carreira no Gabinete Coordenador para a Cooperação, uma estrutura ligada à Comissão Nacional de Descolonização, da Presidência da República. Por ali se desenhavam então as primeiras ações de cooperação com as antigas colónias. Este serviço, por um período breve, e ainda nesse ano de 1975, transitou para um efémero Ministério da Cooperação, liderado pelo almirante Vítor Crespo, que tinha como secretário de Estado da Cooperação o comandante Gomes Mota.
Não obstante a minha juventude na nova profissão, fui escolhido para ir a S. Tomé e Príncipe, numa missão de serviço público com algum grau de responsabilidade. Era uma coisa incomum, para quem acabava de ingressar na carreira. No Gabinete Coordenador para a Cooperação, eu havia sido responsável pelo recrutamento dos primeiros professores cooperantes para aquele país, e também para a Guiné-Bissau. Ora esses professores, mal chegados a S. Tomé, tinham entrado em greve, por inadequação das condições de vida às expetativas que lhes tinham sido criadas pelas autoridades locais. Mandaram-me ir lá tentar resolver o assunto.
Era difícil fazer a viagem para aquele país, dada a situação de guerra civil em Angola, que desaconselhava o trânsito por Luanda, pelo que tive de ir por Paris e Libreville. Foi um périplo de quase duas semanas, entre viagem e trabalho. Pediram-me para aproveitar para inventariar a situação das dezenas de quadros da administração colonial que ali tinham ficado, bem como das necessidades mais prementes do novo país, em áreas em que a futura cooperação portuguesa se revelasse possível. Nesse tempo, era tudo protocolarmente muito fácil: fui recebido pelo primeiro-ministro e por vários membros do governo santomense. Como se pode imaginar, fui uma primeira experiência profissional fantástica, de que resultou um imenso relatório, que me valeu mesmo um louvor do secretário de Estado da Cooperação. O entusiasmo decorrente dessa missão deve ter atenuado as dúvidas que eu havia tido, por ocasião da entrada para o Ministério. Afinal, devo ter concluído para mim mesmo, aquilo podia acabar por ter alguma graça!
Nos Negócios Económicos
Um dia de maio de 1976, como referi, o meu destacamento na Cooperação terminou, por decisão do MNE. Fui chamado para ir prestar serviço nas Necessidades, na Direcção-geral dos Negócios Económicos.
O Ministério possuía então, além de outras, duas grandes direcções-gerais, a Política e a Económica. Fui para a repartição que era responsável pelas relações económicas bilaterais com todos os países da Ásia, África e Oceânia. Um mundo! Tinha a meu cargo as relações económicas com os países árabes. Mas convém ser realista: na hierarquia “psicológica” das Necessidades, aquele era um serviço tido como pouco relevante. Tinha a consciência de ter sido lá colocado por essa razão…
Vivia-se então um tempo de grande abertura dos países árabes em relação a Portugal, e vice-versa. Antes do 25 de Abril, Portugal mantinha relações diplomáticas com poucos países membros da Liga Árabe. Tive a sorte de ficar envolvido, desde o primeiro momento, em dezenas de negociações de acordos e uma imensidão de projectos económicos, que iam desde a Mauritânia aos países do Golfo. Secretariei uma comissão interministerial para as relações económicas com o mundo árabe. Fui enviado em missões a Marrocos e, por duas vezes, à Líbia. Creio ter sido, aliás, o primeiro diplomata português a deslocar-se oficialmente à Líbia, incluído numa missão técnica ligada à construção civil e obras públicas.
Dois anos mais tarde, curiosamente, haveria de ser também o primeiro diplomata a ir oficialmente a Israel, numa outra missão técnica. Nesta última situação, houve um episódio curioso. Lembro-me de ter sido chamado ao ministro dos Negócios Estrangeiros de então, Sá Machado, de um governo PS-CDS, que me anunciou que eu tinha sido escolhido para integrar aquela missão. Ainda eu não tinha digerido a simpática surpresa e logo o ministro esclareceu: “Vai você porque queremos que o nosso sinal político seja dado ao mais baixo nível oficial possível”. Eu era, como “desk” do Magrebe e do Médio Oriente, nas “Económicas” do MNE, “o mais baixo nível oficial possível”!
Portugal, tal como a Espanha, no tempo da ditadura, não tinha estabelecido relações diplomáticas a nível de embaixada com Israel. No pós-25 de Abril, a prioridade era dada às relações com o mundo árabe. Viria a ser através de Mário Soares, no âmbito da Internacional Socialista, que os trabalhistas israelitas iriam conseguir, com alguma dificuldade, alterar a posição portuguesa face a Israel. Por uma infeliz coincidência, essa decisão veio a ser anunciada num dia em que eu estava em Tripoli, na Líbia, integrado numa delegação técnica. As autoridades líbias, furiosas, confiscaram os passaportes da nossa delegação e os bilhetes de avião de regresso, colocando-nos, por alguns dias, num hotel miserável, numa periferia da cidade. Num tempo sem telemóveis, nem podíamos avisar as famílias! Sabe-se hoje que essa decisão de Mário Soares foi uma das razões da demissão de Medeiros Ferreira do cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros.
Desses tempos das “Económicas”, recordo a figura de um grande embaixador, Paulo Ennes, subdiretor-geral (na altura, o cargo designava-se “adjunto do diretor-geral”) que chegou a secretário de Estado, mas que optou por abandonar prematuramente a carreira. Foi ele quem confiou profissionalmente em mim, pondo de lado os preconceitos políticos criados à minha volta. Mas também guardo, imagino que para surpresa de muita gente, recordações positivas dos dois diretores-gerais que aí tive, João Pequito e Alexandre Lencastre da Veiga, bem como do subdiretor-geral Carlos Simões Coelho. Cada um a seu modo, foram personalidades marcantes na área económica do MNE. E dei-me lindamente bem com todos.
Na Noruega
Um dia, em inícios de 1979, fui colocado na embaixada em Oslo, na Noruega. Não tinha sequer pedido para ir para o estrangeiro. Por razões que não vêm ao caso, mas que se prendem com outras atividades que então tinha, estava muito confortável em Lisboa e não me apetecia sair – exatamente ao contrário da maioria dos diplomatas, que quase sempre tudo fazem para ser colocados e permanecer no estrangeiro. Acrescia a essas circunstâncias o facto da minha mulher, funcionária pública, para poder acompanhar-me, ter de obter autorização para suspender a sua profissão de assistente social, de que muito gostava. Pensávamos numa licença sem vencimento, que era a única solução, com forte prejuízo para a sua carreira. Por sorte, a primeira-ministra Maria de Lurdes Pintasilgo acabava de publicar uma legislação pela qual, pela primeira vez, era permitido aos cônjuges dos diplomatas, que tivessem vínculo à Função Pública e que desejassem acompanhá-los, poderem manter esse vínculo público, perdendo antiguidade, mas permitindo-lhes descontar para a sua futura aposentação. A minha mulher foi a primeira e feliz beneficiária desta lei. Um dia, em Oslo, tivemos o gosto de oferecer um almoço a Maria de Lurdes Pintasilgo, entretanto já fora de funções, num tempo em que ela vivia num conflito com o novo poder político, e agradecer-lhe essa iniciativa legislativa. Ela não fazia a mais leve ideia de quem tinha sido a primeira usufrutuária da medida.
A Noruega era, para Portugal, um posto europeu secundário. Contudo, no plano bilateral, existia um quadro de cooperação interessante. Por influência de governos socialistas em ambos os países, a Noruega tinha decido privilegiar Portugal com várias e vultuosas ações, desde ajudas à construção de habitações para a integração dos “retornados” das ex-colónias até à oferta de um navio oceanográfico e à montagem de uma unidade hospitalar, precisamente na minha terra natal, em Vila Real. Essa oferta ocorrera, contudo, num período anterior à minha chegada a Oslo, pelo não posso reivindicar o menor crédito por isso... Era a embaixada norueguesa em Lisboa quem, legitimamente, tinha a “glória” dessas ações. Para nós, em Oslo, sobravam os contenciosos: a gestão da penosa “auto-limitação” na exportação de têxteis, no quadro EFTA, e os problemas decorrentes das limitações à nossa atividade pesqueira na costa norueguesa. Os noruegueses seguiam, à perfeição, aquilo que vim a aprender como uma regra básica da diplomacia: um país deve procurar utilizar as suas embaixadas no exterior para tratar temas que tenham um impacto positivo na sua imagem e usar as missões dos outros Estados na sua capital para com eles tratar de questões com incidências negativas.
A nossa embaixada era muito pequena. Além do embaixador e de um secretário, que era eu, acreditado como “primeiro-secretário” (em regra, no exterior, os diplomatas são acreditados um “furo” acima da sua categoria na carreira; para Portugal, eu era, na realidade, “segundo-secretário”), havia um delegado e um subdelegado do ICEP, bem como um staff administrativo muito reduzido. Como tive a meu cargo, durante esses três anos, a secção consular da embaixada – nessa época, não se podia ser promovido a conselheiro sem ter três anos de experiência consular – aprendi ali o básico dessa relevante área da diplomacia.
As nossas relações bilaterais com a Noruega, se bem que cordiais, já tinham ultrapassado os tempos áureos em que, em ambos os lados, havia governos da mesma cor política. Em Portugal, estava no poder o governo conservador da Aliança Democrática e a cumplicidade política, quando cheguei a Oslo, tinha-se já esfumado. Mas ainda houve uma visita de Estado do presidente Ramalho Eanes e algumas visitas ministeriais, entre as quais a de um ministro das Finanças, de seu nome Cavaco Silva, com quem eu já me tinha cruzado no concurso de admissão ao MNE.
Em Oslo, tive dois embaixadores, de estilos diametralmente opostos. Quando cheguei, era Fernando Reino, um profissional que me marcou bastante, que estava então na sua primeira chefia de missão. Figura muito ativa no seio do MNE no período que se seguiu ao 25 de Abril, pertencia a uma espécie de “jovens turcos” de uma primeira vaga da nova diplomacia democrática, já com responsabilidades atribuídas. Era muito sensível às questões europeias, tema que então, a mim, pouco me mobilizava. É verdade! Reino, com quem trabalhei apenas um ano, viria a sair de Oslo para chefe da Casa Civil de Ramalho Eanes. Foi sucedido por António Cabrita Matias, que representava um estilo muito mais clássico. Aprendi com ambos e de ambos fiquei amigo. Na diplomacia, se estivermos atentos ao procedimento daqueles que nos chefiam, colhemos indicações preciosas sobre como nós próprios nos devemos comportar no futuro. Retirei lições, pela positiva e pela negativa, de todos os chefes que fui tendo. Talvez também por isso, não houve um único desses diplomatas de quem não tivesse ficado amigo para sempre.
Em Angola
Um dia, em 1982, sem que tivesse pedido para sair do posto, onde estava há apenas três anos, o MNE retirou-me de Oslo para me colocar na embaixada em Luanda. Não apreciei o modo como fui intimado à mudança. Recordo-me de ter dito, perante uma abordagem telefónica equívoca: “Se me perguntam se quero ir para Luanda, não quero; se me dão uma instrução para ir, cumpro e vou. Não desejo é que, no registo da minha carreira, fique escrito que fui por minha vontade”. De certa maneira, fui “para Angola, rapidamente e em força”, para utilizar uma frase clássica! Mas, no fim de contas, o posto de Luanda, que era então uma das maiores embaixadas portuguesas, embora com uma vida dificílima, acabaria por ser um “boost” na minha carreira.
Atravessava-se um período muito difícil nas relações bilaterais. Portugal era acusado pelas autoridades de Luanda de deixar alojar, no território nacional, a UNITA, de esta se movimentar à-vontade em Lisboa. Revelava-se difícil, para o poder do MPLA, compreender a dificuldade que Portugal teria de, depois de décadas de regime autoritário, vir a recriar limitações à liberdade de movimentação e de expressão de cidadãos angolanos que, na maioria dos casos, também eram cidadãos portugueses. Esse pano de fundo político induzia uma tensão muito forte nas relações entre os dois países. Isso prolongou-se durante todo o período em que estive em Angola.
Quando cheguei a Luanda, a embaixada era titulada pelo embaixador Fernando da Silva Marques, um homem que tinha feito o seu bom nome na área económica do MNE. Conhecia-o vagamente de Lisboa e tive sempre com ele uma muito boa relação, pessoal e profissional, embora por um curto período. Seria, contudo, com o embaixador António Pinto da França, que chegou no ano seguinte, que acabei por trabalhar mais de perto e por um período mais longo.
Eram figuras muito diferentes, como pessoas e no estilo de trabalho. Enquanto Silva Marques, que saía de um período traumático da vida familiar, era uma figura reservada e se mostrava menos ativo face à difícil sociedade política e cultural luandense, Pinto da França assumiu um estilo completamente diverso: abriu a embaixada a múltiplos setores e procurou remar contra a hostilidade oficial dominante. A qual, diga-se, no fim de contas, aparentava não ser tão profunda quanto queria fazer transparecer. Pinto da França escreveu um interessante livro sobre essa sua experiência (1).
Para mim, Luanda foi um período extremamente rico, quer em termos de aprendizagem de comportamento diplomático num posto com aquelas caraterísticas, quer na construção de alguma visibilidade positiva perante o ministério. Oslo havia sido uma pequena embaixada de modelo tradicional. Em Lisboa, ninguém “olhava” para Oslo! Luanda, pelo contrário, estava, nesse tempo, numa “linha da frente”, era uma realidade complexa e desafiante. Ali tratava-se de um terreno em que a facilidade não era a palavra de ordem.
Pinto da França tinha um modelo de trabalho em equipa muito interessante. Com ele e com o seu “número dois”, o ministro-conselheiro José Stichini Vilela, bem com o novo Cônsul-Geral, Fernando Andresen Guimarães, que havia chegado no mesmo avião que eu, um ano antes, formou-se uma equipa que aliava a funcionalidade profissional a um excelente relacionamento pessoal, dentro de um clima que se converteu em forte amizade.
Aprendi ali também que o bom ambiente numa embaixada, o modo como ela projeta, para fora, a ideia de ser um grupo coeso, sem clivagens, com aceitação da autoridade natural da sua chefia e uma unidade no modo de proceder de todos os seus integrantes, tudo isso são fatores essenciais para prestígio de uma presença diplomática, junto das autoridades locais, mas igualmente junto dos cidadãos nacionais ali residentes.
Em termos de distribuição de tarefas, comecei por ter a meu cargo o setor da Cooperação, em que recuperei a minha anterior experiência, em Lisboa. Além das relações com as empresas portuguesas que atuavam em Angola, com muitos cidadãos nacionais nos seus quadros, cabia-me tratar dos problemas das largas dezenas de professores cooperantes que Portugal destacara para Angola e aos quais pagava parte do salário.
Foi publicado, recentemente, um livro da autoria de uma das cooperantes que acolhi em Luanda e que, com o companheiro, acabou por ser raptada. Acontecia então, com alguma frequência, o rapto de cidadãos portugueses pela UNITA, que assaltava localidades e levava as pessoas, em longas caminhadas, para a sua base central na Jamba, do extremo sudeste do país, libertando-os depois através da Cruz Vermelha Internacional (2). Era uma forma de afirmação de poder e de capacidade de desafio ao governo de Luanda.
Além do setor da Cooperação passei, já com Pinto da França, a ocupar-me também da informação política. Era fascinante seguir a guerra civil, através do cruzamento dos comunicados oficiais e da propaganda da UNITA, esta essencialmente divulgada em Lisboa. E também era muito interessante procurar informar Lisboa sobre as manobras políticas no seio do regime, as relações com a URSS e com os diversos países de Leste, da forte presença cubana, etc. A análise das linhas políticas que identificávamos em torno do presidente da República, José Eduardo dos Santos, fizeram de mim um esforçado “futungólogo”, do nome da então residência do presidente, no Futungo de Belas. Era muito curioso ver as várias embaixadas ocidentais virem consultar-nos para saber do curso das tendências no seio do regime. Isto só me voltou a acontecer no Brasil.
A vida dos estrangeiros em Angola, diplomatas incluídos, com a guerra entre o exército angolano e a guerrilha da UNITA, era difícil e por vezes perigosa. O conflito estendia-se a largas zonas do país, para onde era impossível circular por terra. Luanda era, na prática, uma cidade sitiada, uma espécie de “ilha”. Não podíamos sair mais do que uma vintena de quilómetros para norte e leste, e algumas dezenas mais para sul. Havia recolher obrigatório (da meia-noite às cinco da manhã), com controlos militares pelas esquinas e muitos tiros. Havia uma escassez imensa de produtos do dia-a-dia (em certos períodos, tivemos de mandar vir, por mala diplomática de Lisboa, batatas, ovos e até café e açúcar!). Salvo nos mercados tradicionais, em condições de higiene que se adivinham, o comércio tinha desaparecido. Os cortes de água e de eletricidade eram frequentes. Tal como algum outro pessoal da embaixada, eu vivia, com a minha mulher, no “compound” que era propriedade do Estado português, no mesmo prédio onde também trabalhava. Aliás, trabalhava-se muito e, nos fins de semana, a praia e o convívio eram a rotina possível.
O ambiente entre nós, malgrado essas dificuldades ou por causa delas, era de uma grande solidariedade entre as pessoas, de entreajuda, quer no seio da comunidade portuguesa, residente local ou expatriada, quer com os angolanos com quem convivíamos. Tenho ainda, nos dias de hoje, muitos e bons amigos, portugueses e angolanos, que foram criados nesse período. Tanto eu como a minha mulher mantemos saudades do convívio desse tempo, talvez também pelo facto de sermos então bem mais novos…
Primeiro regresso a Lisboa
Em meados de 1985, o diretor-geral político do MNE, embaixador João Matos Proença, de passagem por Luanda, convidou-me para um lugar de chefia na estrutura da “cooperação política europeia”, para a nossa próxima entrada nas Comunidades Europeias, em janeiro do ano seguinte. Para tal, teria, no entanto, de chegar a Lisboa mais cedo do que o que estava previsto para termo da minha missão em Luanda, em junho/julho de 1986.
Achei a proposta entusiasmante. Parecia-me um sinal claro de que a minha imagem profissional finalmente se consolidara e que Lisboa tinha isso em conta, no meu futuro no quadro do MNE. Em novembro, fiz as malas e apresentei-me, em Lisboa, ao secretário-geral do ministério, o embaixador João de Sá Coutinho. Fora ele, aliás, quem, semanas antes, muito insistira junto de Pinto da França para que eu regressasse a Lisboa, com urgência.
Senti-o, na audiência que me concedeu, um tanto embaraçado. Eu não sabia, mas, para mim, alguma coisa tinha mudado, entretanto em Lisboa. Chegara ao poder um novo governo, e, pelos vistos, eu não fazia parte dos planos desse executivo, em termos de chefias. Matos Proença, à época, já não era diretor-geral.
Fui, então, deixado numa situação profissional muito pouco confortável, sem qualquer chefia, mesmo sem um lugar físico para me sentar. Durante algumas semanas, fui “colocado” … em casa. Em Lisboa, eu estava então a viver numa habitação emprestada, porque o meu apartamento estava em obras, dado que tinha previsto um outro calendário de regresso. Afinal, tinha vindo, à pressa, de Luanda, para nada!
Acabei por ir trabalhar, semanas mais tarde, já não para o setor político, mas para a primeira estrutura técnica ligada às questões europeias, a então Direcção-geral das Comunidades Europeias (DGCE). Não me seria atribuída, contudo, qualquer chefia, durante mais de um ano.
A meu cargo, ficavam as questões europeias de Cooperação para o Desenvolvimento (de novo!), numa espécie de “competição” com a secretaria de Estado que existia para esse fim, nas Necessidades. Não obstante as contrariedades, tentei entusiasmar-me com o trabalho. E, em especial, comecei a interessar-me, cada vez mais, pelas coisas europeias, temática de que até ali estivera afastado. Bruxelas passou a ser um destino de vida profissional bastante frequente.
Dependia então do secretário de Estado da Integração Europeia, Vítor Martins, tendo, como diretor-geral, José Gregório Faria e, como sub-diretor, Paulo Castilho. Com todos, tive um excelente relacionamento. A DGCE era uma estrutura jovem, entusiasmada e muito competente. Apesar do mau começo, acabei por ter ali um lugar de chefia e julgo ter feito um trabalho positivo.
Estive na DGCE menos de dois anos. Um dia, fui chamado por Durão Barroso, recém-nomeado secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação e que, nesse governo em que João de Deus Pinheiro passou a ministro, substituindo Pires de Miranda, sucedera a Eduardo Azevedo Soares.
Barroso, que sabia da minha “vocação” para as temáticas da Cooperação, convidou-me para ir assessorá-lo tecnicamente nessa área, recolhendo a experiência europeia que eu tinha adquirido na DGCE e aquela que, antes, no terreno bilateral, já tinha tido em Lisboa e Angola. A minha ida para o seu gabinete também solucionava a questão da “competição” sobre a direção das questões de Cooperação para o Desenvolvimento junto de Bruxelas. A montante da minha aceitação, assegurei que os temas da Convenção de Lomé e a preparação dos Conselhos de ministros europeu de Cooperação ficavam a meu cargo.
Achei o desafio profissionalmente interessante. Aquilo parecia significar que eu conseguira, com os meus dois anos nos assuntos europeus, fazer bem a “travessia do deserto”, recuperando estatuto dentro do MNE, ultrapassando as reticências políticas anteriormente suscitadas a meu respeito, que tinham impedido a atribuição do lugar de chefia, logo no regresso de Luanda.
Recordo-me que Durão Barroso, quando, com franqueza, lhe manifestei a estranheza por receber um convite para integrar o seu gabinete, num governo com uma orientação política que era público e notório não ser a minha, me disse que sabia perfeitamente “quem eu era” e que o que me pedia era uma colaboração puramente técnico-diplomática, sem qualquer necessidade de alinhamento político. Combinámos então que o meu lugar de origem na DGCE ficaria por preencher e eu trabalharia no seu gabinete enquanto ambos nisso estivéssemos de acordo. E assim se fez. O gabinete de Durão Barroso era chefiado por António Monteiro, um colega e amigo que terá sido responsável pela indicação e credibilitação do meu nome.
Passei a desempenhar o papel de “focal point” das propostas que vinham das duas estruturas sob a tutela do secretário de Estado - a Direcção-Geral da Cooperação (DGC) e o Instituto para a Cooperação Económica (ICE), que eram então entidades diferenciadas. A primeira estava vocacionada para as temáticas culturais e educacionais e a segunda para as questões económico-financeiras, tendo sido originalmente criada para negociar o contencioso colonial.
Curiosamente, a DGC sucedera ao Gabinete Coordenador para a Cooperação, onde eu iniciara a minha carreira, uma década antes. No gabinete de Durão Barroso, cabia-me, no dia a dia, fazer uma espécie de triagem: comentava tecnicamente as propostas recebidas dos serviços e Durão Barroso decidia sobre esse meu parecer. E assim foi, durante mais de dois anos e meio.
Nesse período, tive também a meu cargo a chefia da negociação da Convenção de Lomé IV, no âmbito da União Europeia. Viajei imenso por África e outras partes do mundo. Foram quase quarenta países! Sinto bastante orgulho pelo trabalho que desenvolvi naquele lugar. Sem modéstia, creio tê-lo feito bem. E aprendi bastante, o que foi sempre algo que valorizei em todos os lugares por onde passei.
No Reino Unido
Em 1990, estando em Lisboa há quase cinco anos, senti que aquela fase do meu percurso profissional começava a estar esgotada. Além disso, via a política financeira da nossa Cooperação a mudar, num rumo com que me identificava menos, porque ia à revelia da perspetiva que eu próprio tinha ajudado a desenvolver. Não me sentia com vontade para integrar esses novos tempos. Recusei, por esse motivo, um lugar que me foi oferecido na direção do Fundo para a Cooperação, que estava a ser criado.
Manifestei vontade de ser colocado no estrangeiro. Foi-me proposto ir para Lusaka, como Encarregado de Negócios com “cartas de gabinete”, uma espécie de embaixador “júnior” na Zâmbia. Não aceitei, tanto mais que o meu último posto tinha sido em África. Tinha 15 anos de “casa”, embora fosse apenas Primeiro-Secretário, por virtude de umas trapalhadas entre o MNE e o Tribunal de Contas, que tinham atrasado, desde há três anos antes, a minha promoção a Conselheiro de Embaixada, bem como as de outros colegas.
A minha imagem profissional, por essa altura, estava, ao que me parecia, já bem firmada na “casa”. Tinha recebido convites dos embaixadores em Paris e nas nossas representações nas Nações Unidas, em Genebra, e na OCDE para ir ser o seu “número dois”, na iminência da minha promoção a Conselheiro.
Faço aqui um parêntesis para explicar um ponto. Eu tinha a noção de que as minhas ideias políticas, que eram bem conhecidas no MNE e que nunca disfarcei, podiam ser um fator limitativo no meu percurso profissional. Não havia muitos colegas que estivessem tão identificados politicamente como eu estava. Ora, de certo modo, para “compensar” essa posição, eu tinha de construir um percurso profissional “à prova de bala”, tão qualificado quanto possível, aos olhos de todos os governos, qualquer que fosse o ciclo político.
Um dia, num corredor de Bruxelas, fui surpreendido pelo ministro João de Deus Pinheiro: oferecia-me o lugar de ministro-conselheiro, substituto do embaixador, na embaixada em Londres. Era e é um dos postos mais prestigiados da carreira. Gostei da ideia e aceitei, de imediato.
Meio ano depois, fui para Londres. Trabalhei com o embaixador António Vaz Pereira, durante os mais de quatro anos em que estive ali colocado, até regressar de novo a Lisboa, a meu pedido. Mas já lá vamos!
Vaz Pereira era uma figura muito interessante na carreira diplomática portuguesa, com uma forte personalidade, grande cultura e uma leitura muito própria do MNE. Havia sido diretor político e chefiou embaixadas como Moçambique, Dinamarca ou a NATO. Sem termos a menor sintonia nas nossas ideias políticas, criámos uma relação pessoal excelente. Vaz Pereira foi o meu quinto e último embaixador, sob cujas ordens trabalhei.
Aproveito para dizer, porque é algo de que muito me orgulho, que fiquei amigo de todos os embaixadores com quem trabalhei, sem nenhuma exceção. Quando, em 2007, lancei um livro, tive o imenso gosto de ter juntado todos os que ainda estavam vivos. Como também raramente acontece - e aconteceu-me a mim, em todos os postos por onde passei, como embaixador ou noutra função - fiquei com muito boas relações com todos os meus antecessores e, igualmente, com todos os meus sucessores. Todos, repito, todos! O crédito disso é, claro, tanto meu como deles. Mas estou em crer que muito pouca gente, se alguma, no MNE, poderá afirmar o mesmo.
A embaixada em Londres era uma embaixada clássica, com um lugar quase mítico na história da representação externa de Portugal. Era um posto privilegiado de informação e, pelo impacto da singular posição que o Reino Unido tem na União Europeia, a sua vida política interna era relevante para Lisboa. Aquele era um momento em que o relacionamento bilateral luso-britânico ainda tinha um certo significado, quer no plano retórico da “velha Aliança”, quer pela aproximação de posições entre Londres e Lisboa nas questões transatlânticas. Digo ”ainda” porque Portugal e o Reino Unido, uns anos depois do início da nossa integração nas então Comunidades Europeias, iniciaram um caminho divergente, em que muita coisa mudou. Portugal, talvez para surpresa de Londres, tornou-se um país fortemente integracionista, ao passo que o Reino Unido nunca abandonou a sua postura de parceiro “relutante”.
Quando, cinco anos depois da minha chegada a Londres, assumi funções como secretário de Estado dos Assuntos Europeus, vim a constatar isso melhor. E, posso confessá-lo, não combati minimamente esse afastamento, porque não nos revíamos, de todo, na atitude de Londres. Ressalvo, como antes disse, a questão transatlântica.
A experiência que tive na embaixada em Londres foi muito positiva e agradável. Aprendi a organizar uma grande embaixada e apreciei o privilégio que foi ali viver. Tive o gosto de estar no centro da organização de uma visita de Estado de Mário Soares ao Reino Unido, usufruindo ludicamente de toda aquela coreografia de rainha e príncipes, Diana incluída, que só por ali existe daquela forma. Na embaixada cruzei figuras muito interessantes da cultura portuguesa, como Rui Knopfli e Eugénio Lisboa, respetivamente conselheiros de imprensa e cultural, de uma histórica “fornada” moçambicana.
Segundo regresso a Lisboa
No MNE, desde sempre, havia uma regra escrita em lei, tendente a estimular a rotação do pessoal: não se podia ser promovido duas vezes enquanto colocado no mesmo posto. Essa regra foi revogada ao tempo em que eu estava em Londres. E fui ali promovido, sucessivamente, a Conselheiro de Embaixada e a Ministro Plenipotenciário, categoria a partir da qual se pode chefiar um posto diplomático. Curiosamente, acabei por ser o primeiro e involuntário beneficiário, na carreira, dessa mudança da lei.
Ainda em Londres, tinha-me sido proposto, pelo secretário-geral do MNE, embaixador António Costa Lobo, que concorresse, com fortes hipóteses de sucesso, ao lugar de ministro-conselheiro em Washington, posição idêntica à que tinha em Londres. Era um lugar muito prestigiante e cómodo, mas senti que, profissionalmente, seria, de certo modo, andar “para o lado”. Além disso, os meus pais estavam já com uma idade avançada e eu gostava de me aproximar deles, nos anos que aí viriam. Regressar a Lisboa era, assim, a minha opção.
Sabia estar vago o lugar de subdiretor-geral dos Assuntos Europeus. O secretário de Estado Vítor Martins já me havia sondado para ocupar essa posição, dois anos antes, mas eu tinha então preferido continuar em Londres. Nesse ano de 1994, depois de quatro anos de Londres, pedi para regressar a Lisboa. Foi uma surpresa para muita gente: ninguém queria ir para Lisboa e eu queria!
A minha relação com o poder político em Lisboa tinha-se alterado, e não para melhor. Em Londres, tinha já tido algumas “accrochages” com o governo. Senti, em algumas ocasiões, que estava a ser aproveitado o menor pretexto para o meu nome ser posto em causa. Tinha a consciência de ter passado a ser “persona non grata” em áreas determinantes do governo. Decidi assim “forçar a barra” e tentar ocupar um lugar institucional na hierarquia do MNE. Não queria nenhuma embaixada, longe disso! Queria um lugar para poder trabalhar e, uma vez mais, firmar o meu nome profissional. Devo a Vitor Martins a coragem de impor o meu nome, contra a vontade expressa de setores acima dele. Nunca esqueci isso. Senti que, a partir de Lisboa, poderia controlar melhor o meu futuro. Nem eu imaginava quanto!
Vale a pena referir que, para tentar evitar o meu regresso a Lisboa, fui sondado para a chefia de alguns postos, ainda que de segunda linha, no estrangeiro. Recusei. Alguns amigos acharam que eu estava a ser suicida, ao colocar-me no “olho do furacão”! Eu achei que essa era a melhor solução.
A minha “performance” em Londres tinha sido positiva, com o embaixador Vaz Pereira a atestá-lo. Profissionalmente estava seguro.
Chegado a Lisboa, tomei posse como subdiretor-geral para os Assuntos Europeus. A convite do secretário-geral do MNE, passei a integrar os júris de acesso à carreira diplomática (onde vim a cruzar-me com Marcelo Rebelo de Sousa, Miguel Beleza, Vitor Gaspar, entre outros), bem como de promoção à categoria de conselheiro de embaixada. Fui, entretanto, eleito pelos meus colegas para o Conselho Diplomático (que decide das promoções e das colocações) e fui cooptado para vice-presidente da direção da Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses (ASDP). Como não precisava de ser promovido, nem queria lugares no estrangeiro, não tinha a menor dependência do poder político. Estava de mãos livres! Costumo dizer, a brincar, que nunca tive tanto “poder” dentro das Necessidades…
Nos assuntos europeus, tive, sucessivamente, Paulo Castilho e Manuel Fernandes Pereira como meus diretores-gerais, ambos excelentes funcionários e amigos. Em termos de trabalho, fiquei ligado à revisão do Tratado de Maastricht, que estava em preparação. O professor André Gonçalves Pereira, que integrava o “grupo de reflexão” criado a nível europeu para tratar dessa revisão, convidou-me para seu “número dois”. Trabalhei com ele, nessa tarefa, durante quase um ano, andando por muitos lugares europeus. Foi uma experiência magnífica, não apenas pelo convívio com uma inteligência superior, com graça, cultura e um admirável cosmopolitismo, mas porque, durante esses meses, me meti a fundo em todas questões europeias.
No Governo
Ainda durante o primeiro semestre de 1995, António Guterres, líder socialista, quis falar comigo. Eu não era filiado no PS, mas sentia-me próximo dos socialistas. Ele apenas queria conversar sobre as questões da Europa. Mas estava implícito um convite para trabalhar com ele, no caso, que surgia como provável, do PS vir a ganhar as eleições, nesse tempo de crescente ocaso do período Cavaco Silva. Foi isso que acabou por acontecer, embora eu não estivesse à espera de entrar para o governo, como secretário de Estado. Nunca me passara pela cabeça ter qualquer cargo político. E teria tido muito gosto em continuar a servir no Ministério, qualquer que fosse o poder político “de turno”.
Aqui chegados, gostava de deixar uma coisa bem clara. Sempre me senti um “civil servant”, ao longo dos 42 anos em que estive ao serviço do Estado - e gosto muito de dizer que fui funcionário público, servidor público. Trabalhei sob a orientação de 21 diferentes ministros dos Negócios Estrangeiros, mas, naturalmente, porque, desde a minha juventude, sempre me situei à esquerda, estava mais à-vontade com governos de que fosse mais próximo. Não obstante, nunca tive a menor dificuldade em representar os interesses portugueses sob a direcção de outros titulares legítimos do poder, como tinha provado no gabinete de Durão Barroso. E, em termos de trabalho e lealdade funcional, nunca ninguém me pôde acusar de nada. Tenho esse orgulho! Desafio quem quer que seja a provar o contrário.
Em 28 de Outubro de 1995, entrei para o governo chefiado por António Guterres, como secretário de Estado dos Assuntos Europeus. Fiquei na equipa de Jaime Gama, pessoa que conhecia há quase 20 anos. E por ali estive até 8 de Março de 2001 – portanto, cinco anos e um pouco mais de quatro meses.
Foi uma experiência extremamente interessante, na medida em que se tratava de fazer diplomacia de uma outra forma. Ser membro do governo, com tutela sobre um setor, quando se é originário da própria “máquina”, representa um desafio único. Por um lado, sentimos que pertencemos à “corporação” de onde vimos, mas, se queremos exercer com eficácia as funções políticas, temos de conseguir distanciar-nos da “casa”. Às vezes, confesso, não foi fácil, e não sou o melhor juiz do saldo final desse esforço.
Em termos europeus, vivi tempos muito interessantes. O “grupo de reflexão”, que eu tinha integrado ao lado de Gonçalves Pereira, decidiu rever o Tratado de Maastricht. Em 1996 foi lançada a Conferência Inter-Governamental (CIG) que preparou o Tratado de Amesterdão, em que conduzi a negociação pelo lado português. Terminada essa tarefa, arrancámos com as negociações financeiras (a chamada “Agenda 2000”, as Perspetivas Financeiras plurianuais, entre 2000 e 2006), nas quais trabalhei durante dois anos. A meio desse período, assumi a presidência do Acordo de Schengen, e, terminado este ciclo, em 1999, começámos a preparar a Presidência portuguesa da União, em 2000 - um tempo muito complexo, com o polémico “caso austríaco” e as negociações do grande alargamento da União que estava à porta. Voltei a representar Portugal na nova CIG, na negociação que levou ao Tratado de Nice, que veio a ser assinado em Janeiro de 2001.
O trabalho de um secretário de Estado dos Assuntos Europeus não tem uma agenda de rotina. A Europa vive por ciclos e o membro do governo com esse pelouro transversal tem de os acompanhar, devendo desenvolver, simultaneamente, uma tarefa de coordenação interministerial interna. Tinha, além disso, por essa altura, que assegurar a representação portuguesa no Conselho de Ministros europeu do Mercado Interno, na OCDE, na União da Europa Ocidental, na Organização Mundial do Comércio, na Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, etc. Vim a juntar um ano depois, em livro, a minha perspetiva sobre esse tempo que passei no governo (3).
Admito que talvez tenha estado demasiado tempo naquela função. Passei semanas quase sem pousar em Lisboa, numa agenda desgastante, bilateral e multilateral. Viajei imenso e, se posso confessar uma coisa, cansei-me para sempre de aviões onde logo adormecia, de hotéis sem charme, de refeições à pressa, a ler papéis. Admiro, cada vez mais, quem consegue ter essa vida! Mas - que fique muito claro! - nunca me arrependi, minimamente, do privilégio que foi ter tido essa magnífica experiência.
Na ONU
Em Março de 2001, tal como havia combinado um ano antes, com António Guterres e Jaime Gama, saí do governo. Fui colocado em Nova Iorque, como embaixador representante permanente nas Nações Unidas, lugar que Gama me propôs.
Na ONU, sucedi ao meu colega António Monteiro, que tinha titulado a segunda presença portuguesa no Conselho de Segurança. A nossa atividade vivia então um tempo menos intenso do que esse, mas a larga e muito qualificada equipa de diplomatas e técnicos que passei a dirigir tinha muitas outras tarefas exigentes.
Por essa altura, empenhávamo-nos em assegurar a renovação da força militar para Timor-Leste. Coube-me também integrar, com os meus colegas americano e russo, a “troika” do acompanhamento do processo político em Angola, das sanções impostas à UNITA, num tempo em que ocorreu a morte de Jonas Savimbi.
Houve ainda que garantir várias eleições para órgãos da ONU, destacando a de Paula Escarameia como a primeira mulher eleita para a Comissão de Direito Internacional, escolhida depois de uma campanha muito difícil. Mas desenvolvemos várias outras campanhas. Com algum orgulho, posso dizer que, nesse período, ganhámos todas as eleições a que Portugal concorreu, sem uma única exceção.
O sucesso eleitoral é, aliás, de há muito, a marca portuguesa na ONU. Eu próprio assumi as funções de vice-presidente do ECOSOC e, no final desse ano, fui eleito presidente da Comissão de Economia e Finanças da Assembleia Geral. Mais tarde, fui eleito vice-presidente da Assembleia Geral. Nesse período, tive, ainda, uma outra experiência interessante, porque, a convite do secretário-geral, tornei-me membro, a título pessoal, do “board” do UNFIP (United Nations Fund for International Partnerships). O UNFIP foi um organismo criado para decidir a utilização de mil milhões de dólares que Ted Turner, dono da CNN, tinha oferecido às Nações Unidas. O secretário-geral Kofi Annan escolheu cinco embaixadores que avaliavam os projectos e atribuíam os fundos. Fui um deles.
Devo dizer que uma passagem pela ONU é um tempo inigualável, enquanto experiência diplomática. Pelas Nações Unidas passam uma multiplicidade de temas da agenda internacional. Todas as grandes temáticas, as crises e os principais conflitos, têm ali o seu palco político. Como “escola” diplomática, é um lugar único. Mas, infelizmente, não tive muito tempo para aproveitar essa experiência.
Na OSCE
O meu percurso nas Nações Unidas, iniciado em março de 2001, iria ser interrompido, de forma um pouco abrupta, quando, em maio de 2002, fui chamado a Lisboa e me foi dito que o novo governo, entretanto empossado, tinha intenção de substituir o embaixador em Nova Iorque, isto é, eu.
O pretexto funcional invocado era o imperativo de eu ir chefiar a Presidência portuguesa anual da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), em Viena, onde, na perspectiva do governo, havia alguns problemas a resolver. Aparentemente, o meu nome teria sido aventado como a pessoa capaz de solucionar essas alegadas questões e conseguir terminar a nossa presidência com êxito. Se tudo corresse bem no final da nossa presidência, foi-me dito formalmente, iria, de seguida, para embaixador em Londres. O presidente da República seria informado desse compromisso. Mas também me foi dito que, se acaso eu não aceitasse ir para a OSCE, tinha como alternativa as embaixadas em Moscovo ou Pequim. Afinal, ficava óbvio que não eram apenas os problemas na presidência da OSCE... O objetivo era retirarem-me de Nova Iorque. A imprensa da época e várias entidades perceberam bem isso e tornaram público que se tratava de um flagrante “saneamento”, um ajuste de contas político e pessoal. O assunto foi mesmo abordado num debate na Assembleia da República. Concordei com essa visão e fi-lo saber publicamente. O governo não terá gostado. Tant pis!
Cheguei a Viena, em início de setembro de 2002, com a missão de completar a nossa presidência da OSCE, que terminava no final desse ano. A minha nova equipa, em Viena, era maior, em número de pessoas, do que aquela que eu tinha deixado em Nova Iorque - entre diplomatas, militares e técnicos, cerca de 20 pessoas, além de muitos quadros administrativos.
Conseguimos conduzir a presidência com êxito e, em dezembro desse ano, na cimeira ministerial no Porto, foi possível garantir um acordo entre os então 55 Estados-membros da organização, através de um documento final por todos subscrito, preparado pela presidência portuguesa. Porque é um facto incontroverso, gostava de sublinhar que se tratou da última vez em que foi obtido consenso no seio da OSCE, em torno de conclusões finais de uma presidência. Desde então, por razões que basicamente se prendem com a crescente crispação na sociedade internacional, a OSCE praticamente ficou bloqueada no seu funcionamento. O seu papel de “ponte” Leste-Oeste tem sido frustrado. A presidência portuguesa de 2002, dizem-me, continua marcada, de forma bem positiva, na memória da organização. Todos aqueles que para isso contribuíram devem estar orgulhosos do que conseguimos fazer.
Terminada a presidência, passei a integrar a “troika” da OSCE e a chefiar a cooperação da OSCE com países asiáticos. Em Lisboa, passaram-se, por essa altura, alguns episódios menos edificantes, que não acho necessário trazer aqui em pormenor. Basta dizer que os entendimentos que tinham sido formalizados comigo, envolvendo o governo e o presidente da República, no tocante ao meu destino profissional futuro, foram, ostensiva e deliberadamente, incumpridos. As memórias de Jorge Sampaio registam uma versão desses factos (4).
Fiquei assim mais dois anos em Viena, naquilo que eu chamo a minha “osceosidade”. Escrevi, li muito, viajei e estudei alguns temas de natureza internacional que conhecia menos bem, como as resultantes geopolíticas das implosões da Jugoslávia e da União Soviética. Na OSCE, acabei por me especializar na área das Medidas Geradoras de Confiança e Segurança (Confidence and Security Building Measures). Nesse âmbito, fiz palestras no Japão, na Coreia do Sul, na Jordânia, no Egito, na Polónia e a Itália. Tive oportunidade de viajar no espaço OSCE, quase sempre em representação da organização e menos pelo governo português, por exemplo, por todos os países da Ásia Central e do Cáucaso. Hoje, continuo a acompanhar bastante esses temas, muito em especial as questões da Rússia e da sua periferia. A minha estada na OSCE, mais longa do que prevista, acabou por ser uma experiência muito interessante e enriquecedora. Como dizem os franceses, “à quelque chose malheur est bon”.
No Brasil
Em janeiro de 2005, fui para Brasília, onde estive até dezembro de 2008. Foram o presidente Jorge Sampaio e Teresa Gouveia, então ministra dos Negócios Estrangeiros, quem mais se empenharam para que o governo se decidisse a atribuir-me esse posto.
Brasília acabaria por ser a colocação onde mais me realizei profissionalmente. A relação entre Portugal e o Brasil é muito complexa, contrariamente ao que possa parecer, se se olhar só o gongorismo da retórica trocada entre os dois países. Exige muito cuidado e atenção, precisamente porque é uma relação eterna, mas que tem ciclos diferentes, relacionados com o posicionamento de ambos os países no quadro internacional, bem como com algumas questões de natureza bilateral, que se tornam mais difíceis porque se transformam, digamos, em “questiúnculas” de família. No Brasil, ainda hoje se fala muito dos dentistas brasileiros que tiveram dificuldades de inserção profissional em Portugal, tema que passou a constituir um forte trauma nas relações luso-brasileiras. Mais tarde, surgiu também o problema do tratamento dado, nos nossos aeroportos, aos brasileiros que chegavam supostamente em turismo e que aproveitavam para ficar a trabalhar em Portugal, com necessidade de regularização posterior. À época, bem mais de uma centena de milhar de brasileiros por aqui ficaram. Foi uma questão difícil de gerir, porque envolvia situações humanas complicadas, com temas correlativos, como a prostituição e redes de tráfico.
O período em que estive no Brasil foi, contudo, globalmente muito bom, do ponto de vista do relacionamento bilateral entre os dois países. Foi um tempo que se sucedeu à grande entrada de capitais portugueses no Brasil – bancos, telecomunicações, turismo, setores industriais vários. Vivia-se também o deslumbramento turístico com as praias do Nordeste e da criação, no imaginário português, de uma certa sedução pelo país, que parecia ser barato e fácil para trabalhar. Muitas pequenas e médias empresas avançaram para o Brasil, por vezes de uma forma um pouco descuidada e desatenta. Os brasileiros, muito por virtude do aumento exponencial dos voos da TAP, passaram a viajar muito mais para Portugal.
Foi também um tempo muito interessante do relacionamento diplomático, que me permitiu visitar em trabalho 23 dos 27 Estados brasileiros e me pôs em contacto com as comunidades portuguesas e com os novos empresários portugueses que iam surgindo. A ideia foi aproveitar o renovado interesse por Portugal para reforçar os laços de natureza cultural, utilizando alguns meios que o Instituto Camões tinha à sua disposição. Julgo que se fez, não obstante a escassez de recursos, um trabalho bastante importante. A embaixada era grande e com gente qualificada. Para além dos diplomatas de carreira, dispunha de conselheiros cultural, social, de imprensa, comercial, económico, adido de Defesa, técnicos do SEF, da Polícia Judiciária e dos serviços de informação. Era uma excelente estrutura diplomática que, entretanto, se foi reduzindo. Havia então 10 postos consulares de carreira em todo o Brasil, e creio que quase 40 cônsules honorários, numa rede coordenada pela embaixada.
Sob o ponto de vista humano, terá sido a minha experiência profissional mais interessante, nas quase quatro décadas que passei na carreira. O relacionamento que existe entre os portugueses e os brasileiros é único. Já tinha trabalhado num outro país de língua portuguesa, em Angola, mas são relações diferentes. Aliás, nos vários países de expressão portuguesa, cada caso é um caso.
No final do trabalho no Brasil, publiquei um livro sobre essa experiência (5). Já tinha feito o mesmo, como referi, quando saí do governo e também depois da experiência de Viena (6). Já em França, publiquei um quarto livro (7).
Em França
Com quatro anos de Brasil, restavam-me outros tantos, num último posto, até perfazer 65 anos, à época a idade limite para servir no exterior. Foi-me proposto ir para Paris. Aceitei, com entusiasmo, quanto mais não fosse porque ia ter a oportunidade única de, sequencialmente, ser embaixador em dois países com fortes comunidades portuguesas, embora muito diferentes entre si.
A França foi um posto magnífico. Para a minha geração, tudo tem ali muito a ver com a nossa identidade, com referências culturais, políticas e históricas. Quando jovem, tinha viajado à boleia, da rotunda do Relógio, em Lisboa, até Paris, na minha primeira “ida à Europa”. Paris era então como que uma Meca para nós. A língua francesa tinha sido a minha segunda língua e, por isso, senti-me em França como peixe na água.
A França, com a Alemanha, é um país axial da União Europeia. Se, em Londres, a singularidade era a distanciação sempre procurada pelos britânicos face a Bruxelas, em Paris havia que contar com a idiossincrasia francesa no quadro integrador europeu. Estar atento aos sinais europeus em França era o nosso trabalho primordial.
Além disso, era importante assegurar a ligação permanente à nossa comunidade - e tive imenso gosto em fazê-lo. A França é um país com o qual Portugal mantém excelentes relações no plano político e económico. Há imensas empresas portuguesas a operar em França. A França, num momento que por acaso coincidiu com o tempo em que eu me encontrava lá, tornou-se o primeiro investidor externo em Portugal. O turismo francês também tem vindo a crescer imenso – Portugal é uma descoberta recente para os franceses. Da mesma maneira como, durante muitos anos, os franceses tiveram como destino importante a Espanha, agora estão a descobrir Portugal. Foi um período muito interessante das relações bilaterais aquele que me foi dado viver em Paris.
Eu estava em França no momento da grave crise financeira que afetou Portugal. Posso hoje dizer que a França se portou bastante bem em relação ao nosso país. A coreografia política europeia fazia com que o presidente francês tivesse alguma influência junto da chanceler alemã, de quem dependia o essencial das decisões. Paris ajudou-nos a reforçar as mensagens que procurávamos passar para Berlim. A França esteve sempre ao nosso lado nessa situação de crise.
Não posso, contudo, esconder que, na sequência da crise de 2011, a vida se tornou muito complicada para a nossa representação diplomática. Na sequência da fixação das medidas restritivas impostas pela “troika”, houve redução de salários do pessoal administrativo, que foi profundamente penalizado, fecho de consulados, não recondução de professores que ensinavam as crianças da nossa comunidade, o que fez com que cerca de 2700 alunos tivessem ficado privados do ensino do português, houve redução de outros quadros, etc. Isso afetou, negativamente, como não podia deixar de ser, o nosso ambiente de trabalho. Mas, enfim, era essa a realidade com que tínhamos de funcionar e assim o fizemos, com toda a lealdade que devemos ao Estado. Eu fi-lo até 28 de Janeiro de 2013, dia em que fiz 65 anos.
É uma regra sábia estabelecer um limite de idade para o trabalho no exterior. Ajuda à renovação e permite, em alguns casos, como foi o meu, poder encontrar ainda outras atividades profissionais posteriores.
Regresso final a Lisboa
Não obstante estar aposentado, e já sem ter direito a qualquer salário, aceitei vir dirigir, em Lisboa, o Centro Norte-Sul do Conselho da Europa. Fui nomeado pelo respetivo secretário-geral, sob proposta do governo português.
Fazia essa tarefa em acumulação com funções de administração e consultoria estratégica que passei a exercer em algumas empresas e outras entidades, bem como atividade docente numa universidade. O Centro atravessa um momento de impasse, com a sua existência ameaçada. Foi-me pedido que tentasse travar a tendência, que chegou a parecer então inexorável, para o seu fecho. Não posso continuar por mais do que um ano, porque a tarefa de diretor-executivo se revelou incompatível, em termos de tempo, com muitas viagens de permeio, com os meus outros compromissos profissionais e académicos.
Aqui está, “à vol de l'oiseau”, um percurso de 66 anos de vida…
***
Pedro Aires de Oliveira (PAO) – Tem um poder de síntese absolutamente admirável! Antes de passarmos à segunda parte, gostaria, ainda, de pegar nalguns pontos ainda relativos a este seu trajecto...
SC – Sim... é verdade! Esqueci-me de falar no 11 de Setembro, que aconteceu quando eu estava em Nova Iorque...
PAO – Era algumas dessas coisas que eu gostaria, agora, de tocar. Dá-se o caso de a Ana Rita ser uma grande interessada no relacionamento de Portugal com o mundo árabe...
Ana Rita Moreira (ARM) – Gostaria de saber se poderia elencar alguns episódios ou situações que lhe pareçam relevantes no que respeita a essas relações...
SC – Não acompanhei os primeiros meses desse adensamento de relações natureza bilateral. O que fui encontrar, quando cheguei à Direção-Geral dos Negócios Económicos do MNE, em Maio de 1976, foi uma panóplia de acordos de natureza bilateral, muitos ainda em gestação: acordos de comércio, de pescas, de transporte aéreo, e, numa fórmula que muito comum na altura, acordos gerais de cooperação científica e técnica. Esses textos eram muito declaratórios, basicamente protocolos políticos de intenções, que depois eram complementados por programas anuais de implementação, já com coisas mais concretas. No fundo, procurava explorar-se a boa vontade de que Portugal passou a usufruir nesse mundo, depois do 25 de Abril.
Estava a ser feito, com forte apoio político de todos os governos, um interessante trabalho para ajudar à atuação e fixação de empresas portuguesas nos mercados árabes, em particular na área da construção civil e obras públicas. Algumas dessas empresas vinham das antigas colónias, onde tinham visto desaparecer o seu mercado de origem. Portugal não era opção, o país estava em estagnação, pelo que o Estado se esforçava para as promover no exterior. Recordo-me de importantes contratos estabelecidos em Marrocos, na Argélia, na Tunísia, na Líbia, no Iraque e em alguns países do Golfo - que os árabes gostavam que chamássemos “golfo arábico” e não “pérsico” … Foi criada, com antes referi, uma comissão interministerial, que secretariei, a CICEPMOM (Comissão Interministerial para as Relações Económicas com os Países do Médio Oriente e do Magrebe), dirigida pelo engenheiro Torres Campos. O seu “número dois” era um jovem, também engenheiro, chamado António Guterres.
Vivia-se, por essa altura, um período muito positivo relativamente à aproximação de Portugal com os países árabes. Recordo que havia sido criada a Associação de Amizade Portugal-Países Árabes, que tinha como presidente Suleiman Valy Mamede, chefe da Comunidade Islâmica em Portugal. Os árabes e os islâmicos estavam “na moda”, entre nós.
Como também já referi, Mário Soares procurou dar um sinal paralelo de aproximação face a Israel, onde os trabalhistas de Ytzhak Rabin e Shimon Peres tinham, entretanto, subido ao poder, depois de bastantes anos de predominância do Likud. No meu caso, tendo ido a Israel, como contei, como jovem diplomata, em 1978, acabaria por regressar lá, em 1995, como secretário de Estado, acompanhando Mário Soares, naquela que foi a sua última deslocação ao estrangeiro como presidente da República. Fomos convidados por Rabin para almoçar na sua residência em Jerusalem, na véspera dele ser assassinado, em Telavive. Estávamos a jantar em Gaza, como Yasser Arafat, quando se soubemos da notícia da sua morte.
Nessa visita, já no governo, fiz algo que não agradou muito aos israelitas: visitei e tive um encontro com responsáveis palestinos na Orient House, a simbólica representação da Autoridade Palestina, em Jerusalém Oriental. À nossa embaixada em Telavive tinha sido pedido que o membro do governo que acompanhava o presidente não tivesse esse contacto. Mas achei que não podia proceder de outra forma, seguindo uma linha comum a muitos países da União Europeia. Soares aceitou, sem problemas, essa minha decisão.
Portugal tinha, na questão israelo-palestina, um posicionamento muito medido e rigoroso, nos vários ciclos políticos. Com escassas exceções, Portugal foi sempre consistente e coerente: apoio ao direito de Israel possuir fronteiras seguras que lhe são reconhecidas pelas resoluções da ONU, de paralelo com a afirmação do inalienável direito dos palestinos à auto-determinação, na lógica de dois Estados. É uma linha que o nosso Ministério foi sempre mantendo, salvo quando foi politicamente orientado a sair desse equilíbrio. Ou melhor, desorientado…
PAO – Isso é algo que vem da máquina do Ministério e é incutido aos decisores políticos?
SC – Acho que sim. Não que queiramos ser vistos como uma espécie de “Sir Humphrey” do “Yes, Prime Minister”, mas sou de opinião que nos compete, enquanto carreira de Estado, tentar preservar as linhas de continuidade da nossa política externa. Muitas vezes, em alguns domínios, há que convir que aquilo que surge como uma política externa não é mais do que uma espécie de diplomacia “reiterada”. É claro que alguns ministros introduzem, aqui e ali, uma pequena nuance, mas, quase sempre, também eles são sensíveis à nossa preocupação de sustentar uma linha sólida no tempo. Desta forma, a posição portuguesa, na maioria dos grandes dossiês, acaba por ser independente das flutuações, mais à esquerda ou à direita, dos sucessivos titulares políticos do Palácio das Necessidades. Atenção! Isto não significa que os governos e os ministros não usufruam de uma legitimidade democrática que lhes permite reorientar algumas linhas de atuação. Mas acho francamente lamentável que, por amiguismo conjuntural ou seguidismo partidário, sem nada que substantivamente o justifique, alguns episódicos políticos se autorizem a distorcer uma posição que Portugal tinha demorado anos a construir. O que se passou com o caso do voto sobre a entrada da Palestina na UNESCO e, de forma particularmente escandalosa, a subserviência demonstrada por Portugal ao disponibilizar-se para um papel servil na “cimeira” das Lages, só para referir dois casos que não são indiferentes ao mundo árabe, são momentos que não dignificaram a imagem do nosso país. Curiosamente, ou não, ambos os casos têm os Estados Unidos como pano de fundo motivador dessa mudança de posição. Ter a coragem de dizer que não a Washington não está no ADN de muitos políticos portugueses. Ou na sua coragem.
A experiência levou-me a concluir que é vantajoso que Portugal seja visto, pelo exterior, como um país previsível, em termos da sua política externa. Como disse, não sou favorável a grandes nuances, em função dos ciclos políticos. Sustentar a imagem de um país previsível – no plano dos Direitos Humanos, da promoção do multilateralismo, na política europeia, na política atlântica, na atenção à América latina, no equilíbrio no Médio Oriente, na cooperação para o Desenvolvimento (gosto desta designação antiga), mas também no desenvolvimento sustentável, na política da transição energética, do acolhimento de imigrantes ou refugiados, etc - é uma coisa positiva e prestigiante. Num plano diferente, saliento a proteção da diáspora portuguesa, a promoção da Língua, o trabalho com a CPLP. Os outros países olham para nós e esperam que sigamos estas linhas. Quando mudamos nos essenciais, provocamos uma surpresa, tornamo-nos erráticos.
Houve, claro, alguns elementos tradicionais que, com o tempo, foram caindo – de que é um bom exemplo a importância determinante do relacionamento luso-britânico - mas muitas outras mantiveram-se intocadas ou foram inteligentemente adaptadas.
Só os países mais fortes se podem dar ao luxo de mudar radicalmente de atitude externa. Um país como Portugal, que aufere de uma capacidade de afirmação diplomática limitada – no plano dos recursos humanos e materiais -, tem de se fazer valer daquilo que é o seu património diplomático histórico, o seu acquis no imaginário dos outros.
Uma prova deste impacto positivo foi-nos dada, há pouco tempo, na eleição para o Conselho de Segurança da ONU, em que ultrapassámos países como o Canadá ou a Austrália. Não foi por acaso! É preciso perceber que Portugal projecta uma imagem de equilíbrio, de diálogo e capacidade de interlocução, de “honest broker”. E, curiosamente, isso acontece na América Latina, na Ásia, em África, no Magreb ou no Médio Oriente. Em particular, temos a boa fama de mantermos a nossa palavra quando prometemos um voto numa eleição. Fazemos o que prometemos! Isto ficou muito nítido no programa que apresentámos para sustentar a nossa candidatura ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. Portugal cumpriu, ao longo de toda a sua permanência no Conselho, exatamente aquilo com se havia comprometido face a quem lhe havia dado o seu voto.
Isso é vital para preservar a imagem do país e, digo mais, está para além das crises económicas. Recordo que fomos eleitos para o Conselho de Segurança precisamente no auge da nossa própria crise económica. E que a crise comportou um grau de debilitação muito forte em várias áreas, nomeadamente no plano europeu. Mas a imagem de um Portugal coerente continua a existir independentemente das crises que atravessa.
Dois pontos ainda, que não quero deixar de referir, por serem relevantes.
O primeiro, a prestigiante participação portuguesa nas operações multilaterais de paz, que tem dado um novo objetivo às nossas Forças Armadas. Depois, o caso de Timor que nos deu um forte crédito em matéria de Direitos Humanos e de capacidade de articulação no plano multilateral. Serviu, também, para nos obrigar a implementar uma certa disciplina no quadro do tratamento das questões dos Direitos Humanos, que espero que não se perca...
PAO – Sim, que está sujeita a algumas tensões...
SC – Algumas tensões de “realpolitik”.
PAO – No âmbito da CPLP...
SC – Uma diplomacia económica de sucesso nem sempre se coaduna bem com uma política de respeito pelos Direitos Humanos (riso).
PAO – Eu gostaria de propor um retorno ao período dos primeiros governos constitucionais e, até à altura em que Melo Antunes foi Ministro dos Negócios Estrangeiros – essa abertura ao mundo árabe comporta, também, a marca dele. Não sei se gostaria de fazer algum comentário sobre esses momentos – de Melo Antunes, Medeiros Ferreira, da abertura à Europa...
SC – É interessante revisitar esse período. As tendências que vieram a impor-se na vida política portuguesa, imediatamente após o 25 de Abril, convergiam numa espécie de subliminar ato de contrição pelas décadas de uma política colonial que não tinha sabido evoluir com os tempos, como outros impérios europeus haviam feito. O país procurou reverter essa sua imagem internacional, mas, curiosamente, sem incorrer num sentido “auto-flagelatório” quanto à sua política externa, fê-lo sem falar muito desse passado, tentou olhar essencialmente para o futuro, em especial apostando em estabelecer uma relação serena e estável com os países saídos da sua colonização, nos casos mais importantes com longos conflitos militares pelo meio.
Antes do 25 de Abril, as nossas relações com os países africanos e com o mundo árabe eram residuais. Possuíamos algumas ligações com a América Latina e tínhamos um histórico de memória em alguns países asiáticos, em especial os já mais desligados do espírito de Bandung. O 25 de Abril abriu-nos o resto das portas, passando Portugal a ser bem-vindo no seio da generalidade da comunidade internacional.
Os governos portugueses eram, então, de curta duração, destroçados sempre por crises internas entre os partidos e, dentro destes, entre as suas figuras. Vivíamos num país político convulso, com o novo regime a sofrer também os salpicos da Guerra Fria. Num primeiro tempo, a política externa parecia sobredeterminada pela necessidade de credibilização do regime, que era visto como palco de tensões entre máquinas partidárias que transportavam projetos muito diversos, alguns com clara influência de poderosas tutelas externas, parte delas muito interessadas no destino das antigas colónias portuguesas.
Durante todo esse período e o que se lhe seguiu, a sociedade política portuguesa revelou, sempre, um grande interesse em procurar a estabilização do relacionamento com as antigas colónias. Na realidade, porém, viriam a ser precisos mais de 20 anos, depois das independências, para que isso se concretizasse, com alguma substância. Os traumas das guerras são difíceis de superar.
Por outro lado, esses anos foram também marcados pelas movimentações, em Portugal, de grupos que se opunham aos governos de Luanda e Maputo. Tudo isto dificultou o relacionamento português com os governos dos “Cinco”, mais com uns do que com outros, bem entendido. A própria criação institucional desses “Cinco” foi autónoma em relação a Portugal, funcionando como uma espécie de prolongamento do antigo CONCP [Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas]. A relação com Portugal, a chegada ao modelo 5+1, foi estabelecida muito lentamente, através de passos muito complicados. Nesse processo, essencial para a fixação de uma das nossas principais dimensões externas futuras, teve um papel muito importante Ramalho Eanes, que usufruiu da conjugação da sua autoridade institucional com o facto de ser um militar. Nas ex-colónias portuguesas com quem tinha havido guerra, os militares permaneciam ancorados no poder político.
Na diplomacia portuguesa, a marca distintiva, de natureza ideológica, mais relevante, situada à esquerda da postura pró-democracia ocidental que Mário Soares simbolizava, foi titulada por Melo Antunes. Era como que uma reinterpretação do Programa do MFA, no qual o seu “dedo” tinha sido evidente. Tratava-se de uma filosofia que ia no sentido de colocar Portugal numa espécie de terreno intermédio entre as democracias liberais ocidentais, cujos princípios básicos perfilhávamos, e a descoberta de um nicho, ao lado do chamado Terceiro Mundo, então ainda muito polarizado pela União Soviética e pela China, com os EUA como polo concorrente. Melo Antunes pareceu procurar um modelo que nos permitisse estabilizar uma relação serena com os países africanos e asiáticos, procurando, por essa via, ultrapassar definitivamente o traumatismo – profundo e duradouro, que eu próprio senti ainda, quando estive nas Nações Unidas – do tempo da agressão colonial. A política colonial do salazarismo e, em especial, a manutenção de três guerras coloniais (com Angola, Guiné e Moçambique), por mais de uma década, atravessada por episódios dramáticos e com forte impacto internacional, como a morte de Eduardo Mondlane e de Amílcar Cabral, criou situações complicadas de ultrapassar. Melo Antunes queria uma política externa que colocasse Portugal à margem dessa memória.
Houve, então, uma clara reversão na política externa portuguesa e, ao mesmo tempo, um aproveitamento das oportunidades que essa reorientação abria. No plano económico, a relação com os países árabes representou isso mesmo. Mas quero deixar claro que a expressão dessa linha não se concretizou sem gerar tensões internas, entre a tal orientação mais terceiro-mundista e uma outra mais europeia e filo-atlantista. Essa tensão esteve bem presente, por exemplo, na relação difícil entre Melo Antunes e Medeiros Ferreira. Este último era claramente mais europeísta e a sua entrada para ministro, em substituição do primeiro, consagrou uma opção declarada pela Europa, em detrimento do tal olhar mais terceiro-mundista. O livro do Medeiros Ferreira, “Não há Mapa Cor-de-Rosa” (2013), é um documento muito elucidativo neste aspeto. A situação a que me venho referindo consubstanciou um momento-chave da consolidação do modelo democrático português, e aí existiu uma sabedoria de Medeiros Ferreira e de Mário Soares, no sentido de apostar no caminho europeu.
Mas a Europa não era um tema de leitura unívoca. Podemos falar daquilo que representava a Europa dentro do MNE. Houve várias “Europas” nas Necessidades.
A primeira foi aquilo que podemos qualificar de uma “Europa pré-Europa”, que surgiu num período, ainda dentro do Estado Novo, em que o país, por necessidade imperiosa, começou a aculturar-se à filosofia da EFTA, em que entrara por “cunha” britânica, e a uma filosofia europeizante e de natureza multilateralista. Nesta linha destaca-se a figura de Teixeira Guerra, que não cheguei a conhecer, mas cujo nome atribuí a um espaço no palácio da Cova da Moura, quanto estive no governo. Era uma escola de pensamento e ação de natureza económica, modernizante, cosmopolita, que não punha em causa os equilíbrios do regime, em especial o tabu colonial, mas que já olhava o futuro e pressentia que ele ia trazer o imperativo do diálogo multilateral, a começar no espaço europeu. Ao que julgo saber, o MNE nem sequer era o espaço institucional onde essa cultura europeísta “avant la lettre” tinha maior expressão. Homens como Correia de Oliveira e outros setores da máquina do Estado, nas Finanças e na Economia, com frequentes contactos em círculos europeus, não eram, com certeza, indiferentes ao êxito, em termos de modelo, que alguma Europa mais integrada atravessava, não muito tempo depois de uma guerra devastadora. Vivia-se o período das “trente glorieuses”, esses trinta anos de progresso e bem-estar que ficaram como um “benchmark” eterno no continente.
Essa linha era abertamente contrariada por um outro setor dentro do Ministério, onde se destacava, com autoridade delegada por Salazar, a figura de Franco Nogueira. Nogueira foi um brilhante diplomata, que chegou a embaixador, embora sem nunca chefiar nenhuma missão diplomática. Não que não tivesse qualidades para tal, longe disso! mas porque a atividade política o absorveu. Franco Nogueira, que sofreu, na sua constante luta, face a umas Nações Unidas adquiridas para o anti-colonialismo, as agruras do crescente isolamento de Portugal, detestava claramente o mundo multilateral e, tal como Salazar, preferia apostar no bilateralismo. Induziu no MNE um temor imenso à Espanha e, no relacionamento transatlântico, partilhava os receios de Salazar face à “perfídia” da política americana.
O 25 de Abril deu asas, dentro do Ministério, a uma geração europeísta que, imediatamente após o 25 de Abril, permitiu a rápida recuperação e evolução da tal filosofia que ali existia, esse núcleo minoritário, de que Teixeira Guerra era a figura tutelar. Lá estão Calvet de Magalhães e Siqueira Freire, mas também gente mais nova como Alexandre Lencastre da Veiga, Fernando Reino ou Fernando Silva Marques. Foram eles quem, nas Necessidades, deram lastro técnico ao caldo de cultura que ajudou à decisão política de Mário Soares e de Medeiros Ferreira, para o pedido de adesão às então Comunidades Europeias. Esse grupo tem, contudo, de coexistir com os herdeiros da geração soberanista que continua no Ministério, até muito tarde...
PAO – Com algum peso?
SC – Com bastante peso. Sem ter nada a ver com a “escola” Franco Nogueira, estando mesmo nos seus antípodas políticos, eu próprio, até um certo momento, estive basicamente de acordo com alguma postura soberanista. Como diplomata, alimentava alguma relutância em relação à abertura europeia – assumo isso sem qualquer problema. A minha preocupação era muito simples: tentava evitar que a partilha de soberania no quadro europeu pudesse limitar a nossa capacidade de gerir autonomamente alguns interesses nacionais essenciais. Tinha, digamos, algumas teias-de-aranha na cabeça em relação àquilo que essa abertura poderia significar, porque não percebia por completo as suas virtualidades últimas. Mas se o MNE comportou, por algum tempo, essas duas escolas, isso hoje parece-me completamente ultrapassado.
Vale a pena dizer que a política portuguesa face à Europa sofreu uma forte influência de Vítor Martins, secretário de Estado da Integração Europeia e, depois, dos Assuntos Europeus. Foi-o por dez anos, durante os governos de Cavaco Silva. Martins, durante muito tempo, foi combatido, dentro do MNE, pela escola diplomática que não apreciava essa abertura europeísta. Quando lhe sucedi, em 1995, houve alguns diplomatas que esperavam que eu pudesse travar o europeísmo que tinham achado excessivo em Vítor Martins. E, de certa maneira, ainda fui, durante algum tempo, como que o promotor daquilo a que André Gonçalves Pereira chamava o meu “reacionarismo” europeu. Evoluí no meu pensamento, à medida que passei a conhecer melhor as virtualidades do projeto europeu. Mas, por vezes, ainda recupero algumas dessas ideias, quando a via comunitária marginaliza a nossa singularidade. Mas isso daria outra discussão…
PAO – Medeiros Ferreira, no livro que referiu e no seu lançamento, foi bastante taxativo quando asseverou que “nós entrámos sem uma estratégia em 86” ...
SC – Estou de acordo. Aliás, creio que grande parte das decisões que, por essa época, Portugal tomou, no plano internacional, eram de natureza intuitiva. Havia um objetivo - ancorar Portugal à Europa, para fixar a democracia e criar um choque de desenvolvimento - mas houve muito de navegação à vista no modo de lá chegar. Só que a intuição estava certa! Anos mais tarde, em relação ao euro, quando fui secretário de Estado, lembro-me de ter tido igualmente uma noção intuitiva em relação à questão, pela evidência da bondade da ideia de integração naquele projeto. Penso que isso deriva do facto da indecisão ser imensa, quando se pesam as situações nos pratos da balança e existem opiniões bem fundamentadas, para ambos os lados. Tem, então, de se tomar uma decisão que releva de algum grau de risco.
O sentimento que acabei por criar relativamente à questão europeia, para Portugal, ao longo destes anos, tem que ver com uma leitura relativamente simples: percebi o risco do nosso país poder cair em modelos que consagrassem a nossa periferização, dos quais seria depois muito difícil sair. Daí eu ser sempre favorável a um salto centrípeto para as políticas mais integradas. Fui e continuo a ser favorável a que Portugal faça parte de todas as cooperações reforçadas e de políticas de integração diferenciada, na medida em que isso aumenta as nossas possibilidades resistência às crises. É que, nesse núcleo duro, estão sempre os países mais poderosos, que são também aqueles que têm mais interesse em salvaguardar o corpo de políticas e que igualmente têm maior capacidade de intervir em sua defesa. É por essa razão que tenho medo de uma saída portuguesa do euro e de outros mecanismos integradores.
PAO – Gostaria, agora, de voltar um pouco à sua passagem por Angola. Este período (82-86) é ainda um tempo em que – apesar da revisão constitucional que veio diminuir um pouco as competências do Presidente da República em matéria de política externa – havia alguma indefinição acerca de onde se encontrava o centro do poder em Lisboa. Isso era explorado pelos angolanos? Isso foi-me referido, pelo menos em relação a períodos anteriores, por colegas seus que também lidaram com estes assuntos...
SC – A divisão do poder em Portugal no período de dez anos em que Ramalho Eanes assumiu a Presidência da República foi marcada pela convivência do Presidente com dois primeiros-ministros de cores diferentes, com ambos tendo conflitos – Mário Soares e Sá Carneiro. Ramalho Eanes, apesar de ser o homem do 25 de Novembro e que, mais tarde, acelerou o fim do Conselho da Revolução, foi durante muito tempo visto, pelos dois principais partidos, como o protetor de uma certa presença ou tutela militar, no topo do sistema político, que se ia prolongando institucionalmente no tempo. Isso criou uma aberta conflitualidade com os dois primeiros-ministros referidos. É claro que esses conflitos eram explorados lá fora. Foi Ramalho Eanes quem primeiro se encontrou com Agostinho Neto, em Bissau, para atenuar as tensões bilaterais. Seria também ele a ir ao funeral de Neto. Ele e não o primeiro-ministro, levando apenas um secretário de Estado.
Houve um hiato temporal em que o modelo institucional e constitucional português esteve como que sob um teste. Antes da revisão constitucional de 1982, que diminuiu os poderes do Presidente da República, havia muitas zonas cinzentas na gestão da área externa, em momentos de tensão, em conflitos muito dependentes das personalidades envolvidas. Numa relação tão complexa como aquela que, na altura, Portugal tinha com as suas antigas colónias em África, os atores africanos procuravam explorar, em seu benefício, esses conflitos lisboetas, tentando muitas vezes colocar os decisores portugueses com poder político uns contra os outros. Esse foi o tempo das famosas “diplomacias paralelas”, em que os primeiros-ministros expediam os seus enviados políticos e o presidente encarregava militares com bons contactos locais para executar as suas instruções. Tudo isto eram fatores de perturbação, com os quais a diplomacia tradicional tinha de sobreviver.
PAO – Numa das entrevistas que fiz, ao embaixador Vasco Valente, ele falava, exactamente, na dificuldade que tinha em explicar em Luanda que o MNE é que era o interlocutor...
SC – Sim, ele esteve em Angola num período muito importante, quando estava a ser montada a nossa primeira embaixada em Luanda.
PAO – E, depois, também chefiou uma das repartições dos Assuntos Africanos nos anos 80, penso eu. Isso coincidiu, creio, com a estada do embaixador Pinto da França em Luanda e com o embaixador Paulouro das Neves em Moçambique. A expressão dele é a de que tinha dois Rolls-Royce em África e que, nesse aspecto, corria tudo muito bem.
SC – Sim, tinha toda a razão. Tratava-se de pessoas com uma grande capacidade diplomática e uma forte propensão para promover o diálogo com as autoridades locais, frequentemente muito difícil, por esse tempo.
PAO – O embaixador Pinto da França tem, um pouco, aquela reputação de ser um pouco mais patrício, aristocrata. Ele movia-se bem em Luanda?
SC – Pinto da França é um homem com uma capacidade de relacionamento humana absolutamente excecional. Essa dimensão algo aristocrática é, pura e simplesmente, uma “patine”, porque ele tem uma rara facilidade de se adaptar a todos os contextos. Costumo compará-lo, nesse registo, ao também meu colega António Monteiro. São ambos pessoas que, sem artificialismos, conseguem estar à vontade em todos os lugares, com toda gente, da mesma forma. É uma característica diplomática pouco comum.
PAO – Muitas vezes também me é referido que, nos anos 80, ao nível da cooperação, o PCP tinha uma força muito grande em Angola.
SC – A relação do PCP com o MPLA era antiga e profunda, embora também tenha tido os seus problemas. Cheguei a Luanda em 1982 e, cinco anos antes, o país tinha atravessado uma grave crise política - o 27 de maio de 1977 - em que militantes do PCP haviam estado envolvidos. Vivia-se, por essa época, um tempo de grave crispação entre os governos angolano e português. O PCP, na altura, esforçava-se para monopolizar o relacionamento luso-angolano.
Recordo-me de uma ida de Álvaro Cunhal a Luanda, creio que em 1984, em que fui ao aeroporto representar o embaixador Pinto da França. Nem se imagina a frieza com que Cunhal me cumprimentou, incomodado pela minha presença, deixando muito claro que não desejava ter o menor contacto com a embaixada.
O PCP apostou sempre no mau relacionamento entre os governos portugueses e os governos angolano e moçambicano, pensando que disso retiraria algum proveito, como que mantendo para si o exclusivo na relação de simpatia. O PCP não só não ajudou como foi altamente negativo para as nossas relações bilaterais com esses países. Não tenho a menor dificuldade em assumir isto.
Só mais um exemplo. Em Luanda, existia, no seio da comunidade portuguesa, uma Associação 25 de Abril, uma estrutura muito sectária e que se sabia ligada ao PCP. Não obstante eu ter sido militar de Abril, o facto de eu pertencer à embaixada fez com que nunca ninguém me convidasse para qualquer iniciativa, nomeadamente para as comemorações da data.
PAO – A comunidade portuguesa que estava em Angola nesta altura era maioritariamente composta por pessoas que já lá estavam antes da independência...?
SC – Depois da independência, a comunidade portuguesa sofreu uma redução muito grande. Creio que, em toda Angola, não haveria, nesse tempo, mais de 20 mil pessoas, o que é uma fração ínfima das que ali estavam no 25 de Abril. Os que tinham ficado trabalhavam em geral em empresas, havia uns escassos profissionais liberais e trabalhadores independentes, a maioria em Luanda, mas alguns distribuídos pelas diversas cidades do país. Como em outras ex-colónias, houve em Angola um surto dos chamados “cooperantes” estrangeiros. Nesse grupo, houve gente que ia de Portugal desempenhar funções técnicas essenciais, normalmente em empresas. O Estado português também enviava professores, cerca de uma centena, para o ensino liceal, dividindo os custos com as autoridades angolanas. Havia alguns técnicos nacionais, em permanência ou por períodos, que viviam em hotéis ou apartamentos, na maior parte dos casos sem levar a família. Embora ganhassem razoavelmente bem, a sua vida era complicada, num país em que quase não existia comércio, nem nada à venda. Muitos dependiam em exclusivo das empresas, onde muitas vezes habitavam em “compounds”. Mas, respondendo diretamente à sua pergunta: a maior parte dos portugueses que viviam em Angola, no tempo em que eu lá estive, eram pessoas que tinham ficado depois da independência.
Já agora, gostava de referir que o relacionamento das autoridades angolanas com a embaixada era curioso. Por um lado, havia uma frieza oficial, assumida como política de Estado. Na prática, no plano pessoal, salvo algumas figuras mais sisudas do aparelho político do MPLA, as entidades e os funcionários angolanos eram de uma grande simpatia pessoal para connosco. Mais ou menos discretamente, iam jantar à embaixada ou às nossas casas. Fiz bons amigos entre eles. O embaixador Pinto da França era um “mestre” nessa captação de relações. Se me perguntar se o efeito prático desse relacionamento teve uma importância decisiva no distender das relações políticas entre os dois países, confesso que não consigo dar uma resposta positiva. Mas, pelo menos, tentámos fazer o nosso melhor.
PAO – E a diplomacia angolana?
SC – A diplomacia angolana era uma diplomacia nascente. Nessa altura, dependia muito da sua relação com a União Soviética e com Cuba. Essa era a sua frente essencial de luta – combate à UNITA, às incursões da África do Sul, num cerco que sentiam ser comandado por Washington. Angola colava-se diplomaticamente aos chamados “países da linha da frente” africanos, à luz da legitimidade que o governo do MPLA tinha adquirido no quadro da então Organização de Unidade Africana. No posicionamento internacional, poderíamos situar Angola com um estatuto similar ao de um país do Leste europeu. Era com esses Estados, tal como com Cuba, que se processavam as relações privilegiadas - com a Hungria, com a RDA, com a Checoslováquia, com a Bulgária e, com grande e maior intimidade, com a União Soviética. Tinha sido nesses países que muitos quadros, políticos e militares, do MPLA tinham sido formados, no tempo da guerra colonial. Muita coisa tinha mudado. Vivia-se um período de Guerra Fria no mundo e de guerra civil, sendo que esta última não era independente da primeira, antes pelo contrário. Luanda necessitava de manter a União Soviética como seu suporte internacional, de forma a assegurar o seu apoio militar, com Cuba a colaborar neste domínio, bem como em áreas como a saúde e educação. Muito apoio técnico vinha da Europa de Leste.
PAO – E Angola acaba por fazer uma abertura para o Ocidente muito mais tardia do que Moçambique, por exemplo.
SC – Essa abertura é posterior à minha estada em Luanda. Mas, curiosamente, manteve-se sempre, desde a independência, uma “abertura” em relação ao Ocidente, nunca posta em causa: Cabinda. A Gulf Oil americana pagava, através do petróleo que aí extraía, o esforço de guerra angolano contra a UNITA … uma protegida dos EUA! É a lógica da “realpolitik”!
Vale a pena dizer que, na base da relação tensa que Luanda insistia em manter com Lisboa, ao tempo que por lá vivi, a queixa essencial era a liberdade de movimentação e propaganda de que a UNITA beneficiava em Portugal. Angola não aceitava o nosso argumento de que muitas dessas pessoas eram também cidadãos portugueses, bem como o facto de Portugal ser um país onde a liberdade de expressão era então total, para quem lá vivesse.
Mas havia uma queixa mais. Um sector da elite angolana considerava que o facto de o Estado português, em 1975, não ter reconhecido imediatamente o governo do MPLA teria levado a que os Estados Unidos se colocassem ao lado dos opositores da nova República Popular de Angola. Não estou nada convencido de que Washington estivesse à espera de uma atitude de Lisboa, que no dia 11 de novembro de 1975 vivia num período de intensa turbulência política, para assumir a sua própria posição. Mas o MPLA parecia acreditar nisto.
Finalmente, uma nota sobre Angola e a figura de Mário Soares. Ao tempo em que vivi em Luanda, Soares era regularmente diabolizado na comunicação social, oficial e única. Em parte, isso devia-se à sua alegada simpatia pela UNITA, mas, sem que isso fosse claramente assumido, Soares era considerado, em muitas conversas que tive, como co-responsável pela hostilidade americana face a Luanda. Lembro-me de uma conversa com Soares sobre isto, numa noite, em Brasília. Soares nunca me pareceu minimamente preocupado por essa perceção angolana. Soares pensava o que pensava e devia sentir-se confortável por, quase sempre, ter tido razão.
PAO – Há pouco referia que, no período em que se encontrava na ONU, se deu a crise do 11 de Setembro e, depois, a da guerra do Iraque...
SC – Já não estava lá na altura do Iraque. Cheguei à ONU no início do primeiro mandato de Bush filho, no começo de 2001. Assisti ao 11 de Setembro e a toda a movimentação que se seguiu, mas em setembro de 2002 fui para a OSCE, em Viena.
PAO – E qual foi a sua percepção acerca do 11 de Setembro – a de que era um acontecimento que iria mudar o rumo da política internacional ou, à distância, considera que talvez não tenha sido uma crise sistemicamente tão importante como na altura se julgou?
SC – A única consciência clara que tive, desde a primeira hora, foi a de que aquele acontecimento, tivesse quem tivesse por detrás, era uma provocação insuportável para os Estados Unidos. A América nunca tinha sofrido, no seu próprio território, atos de guerra que não resultassem de uma conflitualidade interna, com exceção do ataque japonês a Pearl Harbour. Os atentados daquele dia induziram uma imensa desconfiança face ao estrangeiro. Houve como que um fechamento da América sobre si própria. Raiva e sentido de vingança eram os sentimentos mais evidentes. Não tive, todavia, a noção de que uma agressão ao Iraque viesse a ser a resposta óbvia. A partir do momento em que as primeiras responsabilidades foram definidas, pensou-se que os EUA atuariam, principalmente, sobre o Afeganistão, onde se acolhiam os mandantes dos atentados. Recordo que, na altura, não houve a mais pequena hesitação no sentido de conferir um mandato aos Estados Unidos para poderem atuar com chancela do Conselho de Segurança. Como referi, imaginei que o 11 de Setembro iria ferir os Estados Unidos para sempre e alterar a sua atitude perante o mundo. Aquilo que se passou depois, contudo, extrapolou o que supusemos inicialmente.
PAO – Quando os aviões embatem encontrava-se em Nova Iorque?
SC – Sim. Estava prestes a chegar a um edifício em frente das Nações Unidas, numa reunião na delegação da União Europeia. Mas as Twin Towers não se viam à distância. Andava um fumo negro muito alto, ao longe, quando ainda ia no caminho para essa reunião. Lembro-me de ter comentado isso com o meu motorista. Quando ia a entrar no edifício, o embaixador francês, Jean-David Levitte, disse-me que havia um incêndio nas Twin Towers. Jeremy Greenstock, embaixador britânico, que se nos juntou, sabia mais: que tinha sido um avião que tinha embatido numa das torres. Eram escassos minutos antes das nove horas, porque as nossas reuniões começavam, impreterivelmente, à hora. Já na sala, minutos depois, entrou uma pessoa a dizer que um segundo avião havia embatido contra a outra torre.
PAO – A sua saída das Nações Unidas é em Maio de 2002?
SC – Foi anunciada em Maio de 2002, mas eu só saio em fins de Agosto.
PAO – A sua saída esteve relacionada, de alguma forma, com a tomada de consciência de que as Nações Unidas se tornariam de novo o epicentro de debates internacionais importantes?
SC - Não creio. A administração Bush, que tinha entrado um ano antes, nunca deu sinais de pretender colocar as Nações Unidas no centro da sua ação externa. Nem nunca o fez. Não obstante ter usado a ONU para legitimar, e bem, a sua reação ao 11 de Setembro, Washington continuou a bloquear, por sistema, até financeiramente, o funcionamento da organização. A ativação do multilateralismo nunca fez parte dos seus propósitos. Aliás, desde o início, creio que ficou claro para toda a gente que a minha saída das Nações Unidas esteve ligada a questões internas portuguesas e não a questões de natureza internacional.
PAO – Como avalia a decisão tomada pelo governo português, nesse momento de divisão entre os aliados dos Estados Unidos? Qual é, no seu entender, o racional dessa decisão?
SC – Estamos já a falar do Iraque, isto é, de 2003, não é? Penso que, em primeiro lugar, essa atitude é justificada pelo predomínio, quase obsessivo, de uma perspetiva ultra-atlantista dentro do governo de então. Depois, houve o “argumento” espanhol: o primeiro-ministro disse ao presidente da República que o inédito e completo alinhamento da Espanha com os EUA na questão tornava difícil a Portugal não acompanhar com uma atitude idêntica. É aqui que as águas devem ser separadas. Não se coloca em causa a importância do laço transatlântico, para um país como Portugal. Mas uma coisa é ter simpatia pela posição americana, outra é cair no pleno seguidismo, em face daquilo que foi um objetivo desprezo pela ordem multilateral e pelo papel das Nações Unidas. Uma coisa era estar ao lado dos americanos, outra foi ir ao extremo de organizar a reunião nas Lajes. Na diplomacia portuguesa essa posição provocou algum desconforto.
PAO – Podia, então, ter sido encontrada uma via alternativa que não passaria pela colagem à França e Alemanha, mas que também não nos conferisse um perfil tão notório de excesso atlantista?
SC – Sim, penso que não tínhamos necessidade de assumir esse perfil ultra-atlantista tão evidente.
PAO – Mas também não poderíamos ter alinhado com a França e com a Alemanha... Isso já seria demais...?
SC – Sim, isso talvez fosse demasiado. Considero, não obstante, que teria sido possível encontrar uma fórmula que, não nos distanciando excessivamente dos EUA, não nos colocasse, de um modo tão flagrante, no seio de um grupo de países que acabaram por ser culpados por uma quebra da unidade dentro da Europa.
PAO – Considera que isso deixou algumas sequelas na reputação portuguesa nalguns meios?
SC – É muito curiosa essa sua pergunta, porque nos remete para o mistério que foi a posterior eleição de Durão Barroso, com o apoio da França e Alemanha, para o cargo de Presidente da Comissão Europeia.
PAO – Eu não falava, sobretudo, desse aspecto, mas focava-me naqueles países que prezam o sentido de equilíbrio português, como os do mundo árabe.
SC – Nessa área, claro que não nos ajudou. Tendo em conta o que era visto como um padrão dominante na política externa portuguesa, essa atitude foi interpretada como um flagrante desvio.
PAO – De alguma maneira o papel do Presidente Sampaio, nessa altura, terá, igualmente, contribuído para isso, na questão de não permitir o envio de elementos das Forças Armadas, mas apenas da GNR...
SC – Era a nuance possível de fazer. Sampaio interpretou bem o mal-estar que o seguidismo do governo estava a criar. E soube desenhar uma linha das competências, estabelecendo um limite para a ação do governo.
PAO – O PS também se encontrava um pouco dividido nessa altura. Personalidades como Luís Amado e Jaime Gama mantiveram-se muito reservados nesta questão.
SC – Luís Amado deu uma entrevista a “O Independente” de que certos sectores do PS não gostaram, em particular a linha de Ferro Rodrigues. Jaime Gama, como é do seu estilo, não teceu comentários públicos. Mais tarde, ouvi-o dizer que teria sido possível seguir uma outra linha, sem nos dissociarmos abertamente de Washington, mas também sem nos prestarmos a organizar as Lages. A diplomacia tem necessidade de, às vezes, descortinar caminhos menos óbvios, para situações mais delicadas. Uma potência relativamente frágil no plano internacional, como é o caso de Portugal, tem de saber encontrar, perante momentos complexos, fórmulas criativas dentro das quais alguma ambiguidade pode ter de surgir.
PAO – Talvez pudéssemos, então, passar a uma segunda parte desta entrevista em que abordaríamos questões que dizem respeito à diplomacia de uma forma mais genérica. Já fez um pouco o balanço destas últimas décadas da política externa portuguesa, incluindo as relações bilaterais mais relevantes. Do ponto de vista político, as relações com Espanha assumem a correspondência que deveriam assumir, tendo em conta a importância dos laços económicos?
SC – As relações com a Espanha estão marcadas pela determinante inescapável da vizinhança. Independentemente de quem estiver no poder, aqui ou em Madrid, as relações terão de assumir, sempre, uma grande importância para nós. O comércio, o investimento, as questões das acessibilidades, dos rios comuns, das pescas - é um mundo único na nossa relação externa. A relação é assimétrica? É. A Espanha olha mais para outro lado.
É importante notar que a assimetria no relacionamento internacional é muito comum, é quase uma regra. Veja-se o caso do Brasil. Não há programa de governo, em Portugal, que não fale das relações luso-brasileiras. Mas Portugal não ocupa uma única linha num documento brasileiro idêntico. Nós estamos, quase sempre, muito preocupados com o relacionamento com os EUA, mas eles raramente se preocupam connosco, como se constata pela sua atitude quanto ao modo de abandono das Lages. Existem, depois, questões de natureza conjuntural que conferem importância a determinadas relações. Há uns anos, o relacionamento luso-alemão não era muito significativo, salto em termos de investimento e pela nossa comunidade por lá. Hoje assume uma relevância vital, tendo em conta o papel que Berlim tem nas decisões europeias que são fundamentais para o nosso país. Também com Angola, passou-se por um período de menos interesse, pela frieza que imperava, mas hoje as coisas são muito diferentes, dadas as dimensões económicas, no comércio e no investimento. Estas coisas também variam, não só com o tempo, mas também com a vontade. Veja-se o caso de Marrocos. Sendo uma relação com um vizinho muito próximo, não tem sido, a meu ver, suficientemente cultivada, explorando, a nosso favor, o quadro mais tenso que aquele país tem com a Espanha e com a França, o que nos pode conferir uma maior importância, aos olhos de Rabat, nas suas relações com a União Europeia.
Este é, aliás, um ponto que nos deve fazer refletir. A Europa e as suas relações externas devem continuar a ser um instrumento magnificador da nossa própria política externa. Desde 1986, com maior ou menor empenhamento, Portugal tem trabalhado relativamente bem no destacar, junto de Bruxelas e dos nossos parceiros europeus, de algumas das nossas prioridades, seja em África, seja na América Latina. Noto, por exemplo, que foi pela nossa mão que se iniciaram as cimeiras UE-África ou se negociou a parceria estratégica com o Brasil. Este tem sido o meu cavalo de batalha no seio do Ministério – procurar tirar proveito das nossas relações bilaterais (com Angola, Brasil, Moçambique, etc.) no seio do nosso principal eixo de acção externa que é a Europa.
PAO – E isso é feito com eficácia?
SC – Considero que isto já faz parte de uma espécie de matriz automática de funcionamento da nossa política externa. A sensação que tenho, contudo, e dada a debilidade dos meios com que o MNE trabalha, é que as decisões neste domínio relevam muito do casuísmo, menos de uma planificação estratégica de longo prazo. Mas, se calhar, as coisas não poderiam deixar de ser de outra forma.
PAO – Gostaria de lhe perguntar quais são os países em que Portugal, efectivamente, conta.
SC – Conta em África, sobretudo. E em Timor-Leste.
PAO – O embaixador português é uma figura de relevo nalgumas capitais africanas?
SC – Entendo que sim, mas cada caso é um caso. Os países de língua portuguesa são, claramente, aqueles onde assumimos uma maior evidência, onde acabamos por nos tornar mais visíveis, o que, contudo, nem sempre é sinónimo de sermos mais relevantes. E temos sempre de saber medir-nos com alguma modéstia. Senti, naturalmente, que era mais importante como embaixador português no Brasil do que o era em França. Mas qual é a real importância disso? Tudo são estatutos simbólicos, marcados pelas conjunturas. Só os grandes países, pela sua capacidade de serem determinantes na vida dos outros, é que se podem dar ao luxo de terem um estatuto permanente de relevo.
PAO – Quais são os governantes ou ministros dos Negócios Estrangeiros que gostaria de destacar?
SC – A pessoa que vi com maior peso efetivo no plano internacional, para além do caso excecional que foi Mário Soares, foi António Guterres. No contexto europeu, Guterres jogava, manifestamente, num patamar acima daquele que era a força tradicional do nosso país. António Vitorino prolongou, mais tarde, um pouco disso no seio da Comissão Europeia.
PAO – Trata-se de dois excelentes comunicadores.
SC – Sim, com facilidade de relacionamento, conhecimento de línguas, inteligência, informação e poder de conceptualização, a partir das situações. Guterres possuía, ainda, uma grande capacidade de gerar consensos. Assisti um dia à sua ação para construir uma “ponte” negocial, num determinado caso, entre a França e a Alemanha. Era uma intervenção, num Conselho Europeu, que parecia estranha porque dava a ideia de que jogávamos num terreno que não era o nosso. Não obstante, fez aquilo muito bem, prestigiando-se e prestigiando-nos. Um país como o nosso – pequeno, com uma imagem exterior frágil, com debilidades ciclicamente emergentes– ganha prestígio com a atuação de personalidades de relevo que dele emergem.
Fiz parte das pessoas, e na minha área política não eram muitas, que considerou que a nomeação do Durão Barroso para a Comissão Europeia era um fator positivo para Portugal. Nunca mais vamos conseguir ter um Presidente da Comissão Europeia. Independentemente de se poder discutir a qualidade da gestão que Barroso vem fazendo do seu lugar, o facto de se ver um português a assumir aquelas funções foi algo de importante, que funcionou a nosso favor. Da mesma forma, ter tido António Guterres como Alto-Comissário da ONU, ter Vítor Constâncio como Vice-Presidente do BCE ou Jorge Sampaio na Aliança das Civilizações são elementos que contam. É pena não termos mais portugueses, de esquerda ou de direita, isso é perfeitamente indiferente, a assumirem lugares de destaque no plano internacional. Portugal é um país muito conhecido pelo seu passado, mas é importante que se mostre na sua contemporaneidade. Precisamos de símbolos exteriores positivos, que possam ir para além do futebol. Necessitamos de mais António Damásio, que marquem positivamente a nossa imagem. Na semana passada, fui, em Londres, a uma exposição na Royal Academy, em Piccadilly, onde, entre inúmeros arquitectos, apenas dois tinham a mesma nacionalidade – Siza Vieira e Souto Moura. Isso é muito importante e funciona, subliminarmente, como fator de prestígio para o país
PAO – E em relação a colegas de profissão? Consegue destacar embaixadores que tivessem um estilo que o marcou?
SC – Quando entrei para o Ministério, já tinham desaparecido as figuras cimeiras da diplomacia portuguesa do Estado Novo. Apesar de terem defendido a política que o 25 de Abril derrubou, mantinham uma aura de prestígio, pela sua qualidade profissional. Havia agora por ali um escol de transição: Calvet de Magalhães, Humberto Morgado, Hall Temido, Siqueira Freire, Freitas Cruz, António de Faria, Tomás Andresen. Fui marcado por uma personalidade mais nova, que, entretanto, abandonou a carreira – Paulo Ennes. Era subdirector-geral dos Negócios Económicos e chegou a secretário de Estado. Zangou-se, entretanto, com o Ministério e saiu. Foi um excelente embaixador na Alemanha. Ao longo destes anos, contactei com várias personalidades de recorte profissional interessante, muito diverso entre si, até no perfil político: Lencastre da Veiga, Fernando Reino, Villas Boas, Gaspar da Silva, Vaz Pereira, Simões Coelho, Leonardo Matias, Pinto da França, Paulouro das Neves, Costa Lobo, Gregório Faria, Silva Marques.
PAO – Silva Marques esteve na RDA, creio eu...
SC – Não, esteve em Bona e, antes, na Haia e em Luanda, onde trabalhei com ele. Foi também secretário-geral.
PAO – Ainda houve um número significativo de embaixadores de nomeação política, a seguir ao 25 de Abril...
SC – Houve exactamente, até hoje, 29 pessoas que chefiaram embaixadas nessas circunstâncias. Por curiosidade, organizei a sua lista, há dias.
Diria que há três “categorias” de embaixadores políticos: um grupo escasso que se constituiu como um valor acrescentado para a carreira, um outro grupo, a maioria, que exerceu funções com competência, mas cuja nomeação não trouxe nada de particularmente relevante, que um profissional de carreira não pudesse levar a cabo, e, finalmente, um grupo, felizmente muito pequeno, que deixou uma marca negativa na casa.
Falarei apenas do primeiro grupo. No topo, com indiscutível relevância, ambos oriundos da área conservadora, gostaria de destacar dois nomes – Ernâni Lopes e José Cutileiro. Depois, num outro patamar, até pelos postos que lhes competiram, vindos de outro setor político, notaria dois outros nomes, curiosamente ambos da área cultural: Fernandes Fafe e Álvaro Guerra. Mas volto a repetir, para que fique muito claro: muitas das outras personalidades desempenharam as funções com dedicação e muita competência, prestigiando o nome do país.
Não posso, contudo, esconder que sou, por princípio, contrário à chefia de missões diplomáticas por personalidades oriundas de fora da carreira, que vão ocupar lugares para as quais os profissionais da diplomacia, que entraram por concurso, se prepararam durante muitos anos. Costumo dizer, com ironia, que, se se trata de adaptação a funções, eu também não teria sido um mau Comandante da Região Militar Norte… Mas não podia ser, e bem.
PAO – Que aspectos mais problemáticos destacaria no funcionamento do Ministério enquanto máquina?
SC – O grande problema do Ministério deriva, a meu ver, do facto de ser uma máquina relativamente grande, sem uma forte e exigente cultura comportamental, para compensar essa dispersão. No MNE, sempre entendi haver uma escassa “accountability”, demasiados erros funcionais perdoados, uma cultura de responsabilização pouco rigorosa. Vi gente a cometer pecadilhos sérios, às vezes à revelia da lei, e, mais tarde, a ressurgir como embaixador. Por outro lado, o ambiente da casa como que autoriza o cinzentismo, deixa às vezes progredir gente pouco dedicada ao trabalho, que, nos postos, se apaga e não interage, que não opina nem desenvolve espírito crítico.
Nas Necessidades, o que me pareceu muito negativo foi a perda de importância do papel do secretário-geral. Julgo que houve uma atitude deliberada de ministros no sentido de anular a figura daquele que era o “chefe da carreira”, a charneira com o ministro. Hoje, o secretário-geral é uma espécie de super director-geral da administração da casa. Alguns secretários-gerais tentaram remar contra a maré, outros não se ajudaram a si próprios ou acomodaram-se, nomeadamente ao nível da actuação no tocante às colocações e promoções. Envolveram-se, muitas vezes, em jogos de poder e nos confrontos entre grupos – e o MNE é um ministério muito atreito à formação de grupos...
PAO – Grupos formados na base de afinidades pessoais?
SC – Sim. Quase sempre, nada tem a ver com afinidades de natureza política, mas sim com afinidades pessoais. Há gente que cria, à sua volta, “cortes” e esferas de influência. São “os rapazes de fulano”. É um sistema que tem o seu quê de perverso, tutelado por pessoas por vezes bastante inteligentes. Como os lugares, nos dias de hoje, são escassos e as promoções estão complicadas - muito longe de como as coisas eram no meu tempo - esse “networking” torna-se importante.
Mas sejamos justos: basicamente, a meritocracia ainda funciona na carreira diplomática portuguesa. Quem for competente, trabalhador, dedicado e não se revelar, demasiado cedo, como um “troublemaker”, pode fazer uma carreira serena e simpática. Eu próprio não me posso queixar e sei de bastantes pessoas que, como eu, sem fazerem parte de quaisquer grupos, conseguiram progredir, com mais ou menos problemas. Há também um fator sorte ou azar com que há sempre que contar.
PAO – O Ministério não tem estruturas de apoio à decisão...
SC – O Ministério teve um gabinete de estudos em 1975. Nuno Brederode Santos foi director desse gabinete, tal como José Cutileiro.
PAO – Quando entrevistei o embaixador José Cutileiro ele manifestou-me alguma indiferença por esse género de estruturas, referindo-se aos embaixadores como um corpo de elite muito bem preparado...
SC – Muitas pessoas que tiveram lugares de natureza executiva no Ministério, como José Cutileiro, pelos vistos, não sentiram necessidade de ter alguém que os estimulasse. Penso que existe uma aversão, em certos setores, em relação a esse tipo de núcleos de produção de pensamento. Não é só um caso português, sei que noutras diplomacias se reage da mesma maneira. Eu não seria tão radical. Penso que faz falta uma espécie de permanente ligação entre a Universidade e os “think tanks” com o Ministério, que nos ajude, sem necessariamente ficarmos dependentes da produção teórica do exterior, a trabalhar a reflexão, quer nos temas bilaterais, quer nas questões globais, quer, essencialmente, na reflexão estratégica. Seria necessário envolver também os militares e os decisores económicos privados.
No que me toca, passei toda a vida relativamente atento ao pensamento produzido pelos “think tanks”. Não vivo, como alguns colegas gostam, quase só dependentes dos jornais e revistas, embora os não dispense. Quero dizer, com a maior franqueza, que a reflexão que vejo produzida em Portugal, nas últimas duas décadas, sobre temas internacionais, me surpreende positivamente pela sua qualidade. Pode ser um contributo muito importante para ajudar a nossa diplomacia, porque o MNE vive num imediatismo em que não tem tempo para pensar aprofundadamente nada e não pode continuar a assentar as decisões na intuição e no brilho de algumas cabeças. Ora as coisas têm de ser preparadas. O que tem de existir é uma barreira, muito nítida, entre aquilo que é o pensamento académico e a reflexão estratégica e aquilo que é a execução da política externa. Mas não podemos ter os dois mundos completamente separados.
PAO – Relativamente à questão das instruções, alguma vez se sentiu abandonado a esse respeito?
SC – Tive apenas um momento de abandono, em termos de informação, que foi aquele que antecedeu o pedido de ajuda externa, em 2011. Tratou-se de um tempo em que ninguém sabia nada, o que se torna particularmente angustiante para quem está no exterior a representar o país. Foi um período, de algumas semanas, bastante difícil, até porque éramos solicitados pela imprensa, pelas autoridades dos países onde estávamos acreditados e pelos colegas. E não podíamos dizer nada, porque nada nos era dito. Verdade seja que, tirando essa ocasião, não me recordo de nenhum outro período em que sentisse carência de instruções. Às vezes, confesso, até agradeci não as ter recebido...
Creio que, no Ministério, relativamente a embaixadores com alguma experiência, por isso colocados em certos postos chave, existe mesmo uma relutância em enviar-lhes instruções muito concretas, na presunção de que esse embaixador será capaz de interpretar, sem elas, os interesses nacionais que lhe compete defender. Em princípio, presume-se que uma pessoa que chegou a um ponto de poder ser escolhida para ocupar um posto importante tem a capacidade necessária para saber o que deve fazer. E, se não sabe, naturalmente pergunta.
Dito isto, quando fui secretário de Estado, enviei muitas vezes informações e instruções, não tanto para controlo da ação dos embaixadores, mas para padronizar a mensagem que Portugal queria veicular pelos vários países, para evitar uma cacofonia de linhas de orientação. Isso aconteceu em relação ao alargamento da União Europeia, às discussões institucionais, aos dossiês financeiros, etc. Lembro-me de eu próprio ter preparado telegramas com aquilo que deveria ser dito aos nossos interlocutores. Depois, naturalmente, cada embaixador adaptava isso consoante o contexto, não era necessário repetir a mensagem “ipsis verbis”. Sou contra o envio de “talking points” para as embaixadas. Não somos uma ditadura!
PAO – Quando entra na carreira, as mulheres estão a ser admitidas pela primeira vez na profissão.
SC – Entrei para o Ministério em 1975, num concurso aberto no segundo semestre de 1974, após o 25 de Abril. Foi o primeiro em que a carreira foi aberta às mulheres. Hoje, quase que não se acredita que as coisas eram, de facto, assim. Foi Mário Soares, como ministro, quem fez essa abertura.
PAO – Apareceu muita gente a concurso nesse ano?
SC – Mais de 400, creio. Entrámos, numa primeira fase, menos de 20.
PAO – Que mais o impressionou, ao entrar no ministério? O que acha que mudou, de forma relevante?
SC – No passado, o sistema hierárquico no ministério era bastante autoritário. Numa pequena embaixada, por exemplo, o embaixador dispunha do exclusivo da informação sobre o funcionário perante Lisboa. Se este não fosse conhecido e não estivesse nas boas graças do embaixador, a sua carreira subsequente podia ser prejudicada, porque as informações de serviço eram bastante arbitrárias. Durante muito tempo, houve uma grande impunidade relativamente a este tipo de comportamento. Hoje, as pessoas comunicam mais, assinam aquilo que produzem, são mais conhecidas em função do seu trabalho. Mas há algo que a dispersão da carreira fomenta, a que eu chamo “a imagem de corredor”. Cria-se, às vezes injustamente, em torno de alguém, a ideia de que “é bom” ou “é mau”, sem nunca termos visto a pessoa, sem termos lido nada por ela produzido, só porque ouvimos opiniões de terceiros sobre essa pessoa. Por outro lado, um eventual mau início de carreira, num posto adverso ou com um chefe complicado, pode levar a que um bom funcionário fique desestimulado e isso venha a marcar o seu comportamento futuro. Algumas pessoas ficam estigmatizadas por postos para os quais foram contra vontade e onde, por essa mesma razão, tiveram um comportamento abaixo daquele que poderiam levar a cabo num posto que lhes agradasse. A carreira é construída sobre uma sucessão de acasos. O conselho que dou aos jovens diplomatas é o de não darem razão a quem os enviou para um destino que lhes desagradou. Têm de saber “dar a volta” ao posto, terem a capacidade psicológica para não se sentirem abafados por ele. Fiz isso e deu resultado.
Apesar de todos aspetos negativos que se possam apontar ao sistema, hoje a carreira funciona de modo muito mais transparente. Não obstante necessitarem de ser aperfeiçoados, os processos de avaliação dos funcionários melhoraram um pouco. No passado, havia muita gente capaz de fazer bluff e “passar por entre os pingos da chuva”, gente que era injustamente protegida, em determinados postos, através da colocação em posições onde não era possível dar conta da sua falta de qualidade. Hoje isso já não se passa. O que não significa – e não gosto de ter de constatar isto – que tenha deixado de existir uma permissividade excessiva relativamente à entrada de incompetentes para a carreira. Eu tenho encontrado incompetentes em todas as gerações da carreira e, infelizmente, não se conseguiu, ainda, instituir um modelo que nos garanta que as pessoas que entram são efetivamente as melhores. Fiz parte dos júris do Ministério para a admissão de adidos e à promoção a conselheiros. No que toca aos conselheiros, a função é facilitada porque há pelo menos uma década de trabalho do candidato, que podemos aferir. No tocante às admissões, por melhores que sejam as provas de aferição, podemos ter surpresas. O exame permite-nos perceber se o candidato não serve. Mas dei a minha benção à entrada de funcionários que, depois de entrarem, se revelaram maus profissionais.
PAO – Até que ponto é que a filiação partidária interfere na carreira diplomática?
SC – Não somos eunucos políticos. Portanto, da mesma maneira que podemos ter filosofias de vida ou religiões diferentes, também temos direito a assumir o nosso posicionamento político. Penso, aliás, que a filiação partidária é uma bela forma de transparência.
PAO – E não é proibida.
SC – Não, nem nunca foi. As pessoas têm a estrita obrigação de provar, no dia-a-dia, que a circunstância de serem filiadas num partido, ou de terem uma determinada ideologia política, não condiciona o seu comportamento e ação e, em particular, que não afeta minimamente a lealdade que é devida ao poder político em funções.
Trabalhei sob a chefia de 21 ministros dos Negócios Estrangeiros. Desafio quem quer que seja a conseguir encontrar, ao longo das minhas quase quatro décadas de profissão, a mínima deslealdade da minha parte face a qualquer governo - e, de alguns, gostei mesmo muito pouco!
Não vale a pena esconder que o Ministério é uma casa, globalmente, bastante conservadora, embora já tenha sido bem mais. Após o 25 de Abril, recordo-me de correr uma lista com o nome das pessoas tidas como de esquerda. Éramos 18, nessa altura…. Curiosamente, essas pessoas eram de diferentes origens. Havia três ou quatro nomes tidos como próximos do PCP, sem o dizerem. Depois, havia um conjunto de pessoas mais próximas do PS, mais “vocais” na admissão dessa proximidade. Outras ainda, o que era o meu caso, vagueavam entre o meloantunismo e aquilo que iria ser o sampaísmo. Finalmente, outros eram, tão só, “tipos de esquerda”. Tinha graça!
Um ponto interessante tem a ver com os diplomatas colocados nos gabinetes dos ministros ou dos secretários de Estado. No MNE, não se pode deduzir a ideologia política de alguém através da sua presença num determinado gabinete. Fiz parte do gabinete do secretário de Estado Durão Barroso e, creio, nunca existiu a mais pequena dúvida sobre onde me situava politicamente. O facto de a política externa portuguesa ser muito consensual, não sendo, dentre as políticas públicas, das que mais divide as pessoas, faz com que seja muito fácil, a quem não for muito sectário, trabalhar com o “outro lado”.
Quando fui secretário de Estado, a minha primeira chefe de gabinete foi Ana Gomes, pessoa que toda a gente sabe como se posiciona politicamente. O meu segundo chefe de gabinete havia sido adjunto de Cavaco Silva. O terceiro havia sido adjunto de um outro secretário de Estado do PSD. A quarta havia sido chefe de gabinete do meu antecessor, que era PSD. Creio que, no meu gabinete, não havia ninguém do PS. Nem eu era!
PAO - Atribui isso ao recrutamento social?
SC – Não sei, confesso que não sei.
PAO – Talvez esteja ligado à natureza da função...
SC – Sim, isso talvez. Eu digo isto empiricamente, porque nunca levei a cabo uma contabilização. O que interessa é que o pessoal seja competente e leal.
PAO – Aí o conservadorismo está ligado ao soberanismo?
SC – Não necessariamente. Há uma esquerda sempre muito soberanista no plano europeu. Eu próprio entrei para o Ministério cultivando essa visão.
PAO – Uma outra questão que colocamos aos nossos entrevistados refere-se à forma como a europeização modificou certos mecanismos de funcionamento...
SC – Digo sem a menor hesitação: a entrada de Portugal para as instituições europeias foi fantástica para a nossa máquina diplomática. Abriu o Ministério a um tipo de temáticas que o anterior relacionamento bilateral ou multilateral não comportava. Dou exemplos. Passámos a formular uma opinião sobre a questão do Myanmar, sobre Direitos Humanos nos países do Golfo e outras coisas que não faziam parte do nosso anterior horizonte de interesses. A cooperação política europeia, e tudo o que lhe sucedeu até hoje, trouxe uma riqueza temática e de abordagem que modificou o Ministério por completo. Além disso, obrigou a uma reflexão global, menos casuística, que nos ajudou a ganhar coerência no cruzamento dos dossiês. E, finalmente, fez com que tivéssemos de trabalhar os nossos anteriores quadros de relação bilateral, bem como de abordagem multilateral de certas temáticas, num contexto mais alargado, ganhando da experiência dos outros. Foi um salto qualitativo notável.
Há um ponto de que não falámos ainda, que tem a ver com o equilíbrio das dimensões política e económica no seio do MNE. A certo passo, constatou-se que a intensificação da abordagem das questões políticas se fazia em detrimento das de carácter económico. Houve um momento decisivo que marcou essa tendência. Existiam no MNE duas grandes direcções-gerais: a dos Negócios Políticos e a dos Negócios Económicos. Em 1985, foi decidido proceder à fusão dessas duas direcções-gerais, tendo sido criada a Direcção-Geral dos Negócios Político-Económicos. Não se terá percebido que, ao assim proceder, a tendência dentro do Ministério ia no sentido de o político vir a prevalecer sobre o económico. A certa altura, a dimensão económica como que foi desaparecendo. Esta situação tinha, entretanto, encontrado alguma compensação na criação da secretaria de Estado da Integração Europeia (depois, chamada dos Assuntos Europeus), por onde passava o cada vez mais importante tratamento das questões económicas no plano comunitário. Só que, no plano bilateral, era óbvia uma lacuna, que não podia ser compensada pela existência do ICEP, então fora do MNE. Durão Barroso decide, então, fazer um “remendo institucional”, criando o gabinete dos Assuntos Económicos. Muitos anos mais tarde, estando o poder político finalmente convencido de que a dimensão económica, para além da Europa, continuava a ser importante, foi criada, penso que por Freitas do Amaral, a Direcção-Geral dos Assuntos Técnico-Económicos. Essa estrutura desapareceu em 2011, com a suposta integração da AICEP no MNE. Depois, a AICEP foi “raptada” por Paulo Portas quando saiu do MNE e o ministério ficou de novo sem a sua dimensão económica. Vamos esperar pelas cenas dos próximos capítulos…
PAO – Isso não conduz à criação de uma massa crítica estável dentro do Ministério...
SC – É verdade. E é assim que o Ministério não possui, hoje, um departamento que lide com os assuntos económicos.
PAO – Como é que as novas tecnologias – o email, a internet, etc. - vieram alterar os mecanismos do Ministério?
SC – A introdução dos meios informáticos veio facilitar certos procedimentos, alterando muitas das rotinas. Possibilitou a dispensa de muito pessoal administrativo, antes dedicado à dactilografia. No início - mas acho que isso ocorreu em toda a parte - o uso das novas tecnologias ia de par com a diferenciada propensão dos funcionários para lidarem com elas. Ainda hoje, consta, há embaixadores que ditam os telegramas ao seu secretariado...
Um dos efeitos perversos do uso abusivo do email como elemento de transmissão de instruções é o possível desaparecimento da memória histórica. Arriscamo-nos, um destes dias, a deixar de perceber porque é que determinadas coisas se passaram. Fui sempre um diplomata “à antiga”, exigia tudo por escrito, o que irritava profundamente certos setores, que adoravam resolver as coisas pelo telefone. Eu gostava das coisas registadas em arquivo, de ficar com nota do que se fez e da razão por que se fez. Hoje, sei que há as pessoas que assumem uma posição, em nome do país, no seio de uma organização internacional, porque, entretanto, o colega do pelouro, de Lisboa, lhes disse por email que podia votar dessa forma. Isso é uma situação que amanhã terá consequências na desconstrução das decisões.... Parece-me que é desestruturante do funcionamento de uma instituição de Estado esta pluralidade de mecanismos de transmissão da informação, sem que existam regras concretas. Mas tenhamos confiança de que este “granel” venha a resolver-se.
PAO - Há pouco falávamos, também da força dos estereótipos. Gostava de lhe perguntar se isto é um problema que um diplomata sente num país como Portugal.
SC – Temos consciência de que o diplomata está marcado pela sociedade com um determinado estereótipo. Houve políticos que não ajudaram, ao fazerem referência à diplomacia do croquete. Existe um pouco a noção do diplomata como alguém ligado a uma profissão assente em boas maneiras, boas comidas, bons postos e usufruto dos aspetos lúdicos da vida. Mas a vida diplomática, se pontualmente pode ter algumas dessas caraterísticas, está muito longe de ser assim. A maioria dos diplomatas não vive em cidades glamorosas, não tem salários de luxo, tem de mudar de casa com frequência, os filhos têm de saltitar entre escolas, os cônjuges raramente conseguem progredir nas profissões, se acaso os acompanharem.
PAO – Há pouco, quando me referi aos estereótipos, falava, igualmente, daqueles que se relacionam com Portugal, noutros países.
SC – Julgo que era o José Cutileiro que dizia uma frase irónica do tipo “os diplomatas são pagos para dar no estrangeiro uma imagem melhor do que o país real de onde provêm”. Há países que têm uma diplomacia muito acima daquilo que verdadeiramente são, projetam uma imagem muito melhor. Têm uma diplomacia de grande qualidade que não corresponde, nem de longe, ao país que se encontra por detrás da mesma. A diplomacia portuguesa, creio, é um espelho realista do país.
Eu fiz um texto longo sobre a imagem de Portugal no mundo, para um estudo publicado pela Assembleia da República. Que imagem Portugal projeta hoje? Não é a mesma em todos os sítios, mas existe uma ideia genérica que, falando honestamente, não é muito lisonjeira. Sob o ponto de vista histórico e cultural, é prestigiante, mas está muito ligada ao passado. No presente, Portugal é visto como um país em declínio, em particular desde a independência do Brasil. Todo o trajecto do século XIX foi de relativa tragédia, depois tivemos uma república convulsa e uma ditadura muito longa. Houve, mais tarde, um período interessante, de ascenso, que começa com o 25 de Abril e se prolonga para a entrada nas Comunidades Europeias. Este momento tem sido perturbado nos últimos anos pela situação financeira em que nos encontramos. Faço parte de uma geração diplomática que teve a sorte de estar na rampa de ascensão, mas também o azar de, na parte final, encontrar o país numa fase descendente, que esperamos possa vir a não ser muito longa. Vivi, com grande gosto, todo o período da glória de Portugal no imaginário internacional: a implantação da democracia, com toda a conflitualidade inerente, mas, também, com a leitura positiva que foi sendo feita sobre a forma como as disputas iam sendo resolvidas pacificamente; depois, a entrada para as Comunidades Europeias e o assentar de uma tipologia de relacionamento internacional estável; a recuperação das relações com as antigas colónias; a melhoria do nível de vida; e a entrada para o euro.
Mais tarde, veio, como disse, algum declínio. Houve muita gente para os quais esta crise confirmou aquilo que sempre pensaram sobre Portugal. No fundo, há uma conclusão de que me não afasto: a imagem de Portugal é a de um país que não consegue sustentar os sucessos que consegue. Que tem picos muito positivos, mas que não os sabe manter. Que faz a Expo, mas depois lhe acontece algo negativo. Que leva a cabo uma presidência muito positiva da UE, mas depois sucede-se alguma situação complicada. Portugal projecta a imagem de um país relativamente desorganizado, pouco estruturado, com uma cultura simpática, mediterrânica, com tudo o que de negativo isso também implica.
PAO – Gostaria agora de o inquirir sobre o papel do diplomata. Distinguem-se, aqui, as funções clássicas da representação, negociação e informação. No essencial, mantêm-se?
SC – Penso que sim, embora a função de negociação tenha deixado, em geral, de caber às embaixadas bilaterais. Mas mantém-se muito forte na diplomacia multilateral. A representação e a informação continuam no corpo central da função diplomática, embora a última seja muito desafiada pelas novas formas de comunicação.
PAO – Pensa que a frequência de cimeiras e contactos entre os chefes de Estado e de governo, de alguma forma, pode gerar a tentação nos responsáveis políticos de achar que a actividade dos diplomatas é um pouco redundante, que se trata de um canal que pode ser ultrapassado pelo contacto directo?
SC – Sim, e é frequentemente.
PAO – Por outro lado, há muita gente que acredita que não, que existem certas mensagens que são mais bem transmitidas por uma via mais formal...
SC – Vê-se primeiros-ministros a corresponderem-se regularmente, entre si, através dos assessores diplomáticos, por email ou telefone. Nós, os diplomatas, andamos, por vezes, à procura daquele que é o nosso real papel. As embaixadas dentro da UE, por exemplo, têm, hoje, um trabalho completamente diferente daquele que assumiam no passado. Os ministros encontram-se em Bruxelas todos os meses, mantêm contactos frequentes e os chefes de gabinete conhecem-se, o mesmo acontecendo com os primeiros-ministros. Os sherpas na preparação dos Conselhos Europeus, fazem tudo entre si. Acontece muitas vezes termos dificuldade em perceber o que querem de nós, até porque, às vezes, nada nos pedem.
Mas, às vezes, fazemos coisas que dificilmente outros conseguem fazer. Vou dar um exemplo. No final da minha estada em Paris, o governo mudou, de conservador para socialista. Eu e mais quatro ou cinco embaixadores tínhamos relações com personalidades relevantes no Partido Socialista. Através delas, ficámos a conhecer aqueles que seriam os futuros atores políticos, se a mudança viesse a ter lugar. Pude, desta forma, enviar a Lisboa, algumas páginas com as ideias de Jean-Luc Le Drian que veio a ser ministro da Defesa, de Pierre Moscovici, que foi ministro das Finanças, do novo ministro dos Negócios Estrangeiros, Laurent Fabius. Esse é um trabalho que só um diplomata pode fazer.
Há profissionais da diplomacia que conseguem assegurar, dentro dos ministérios nos países onde estão acreditados, conhecimentos – um director-geral, um secretário-geral, um membro do gabinete do primeiro-ministro ou do Presidente – e que, de repente, numa situação importante para o país, conseguem mobilizar. Isso ganha-se com a carreira e com um trabalho de networking, que pode ficar adormecido durante anos, mas a que se pode recorrer tempo depois. Quando cheguei a Paris, tinha dois ou três amigos no Quai d'Orsay, um outro que era assessor do primeiro-ministro, outro que era assessor do presidente da República. Essa é a vantagem de criar contactos. Para isso, às vezes, é necessária a tal diplomacia do croquete...
Porque, em certos países, a função diplomática é vista como possuindo um certo prestígio, isso dá acesso a determinados meios sociais, políticos, culturais e económicos, a que um cidadão comum não acede tão facilmente. Costumo brincar com o facto de que, quando estava em Londres, como ministro-conselheiro de embaixada, ter ido várias vezes a receções e jantares no palácio de Buckingham. Agora, se eu quiser entrar em Buckingham, tenho de pagar bilhete. O diplomata também tem de ter a noção clara desta faceta da sua vida – a precariedade do seu estatuto. O nosso papel só é relevante naquela função específica. Há diplomatas que ficam deslumbrados pelo upgrading social pontual que a carreira lhes deu e consideram, por isso, que entraram num olimpo social. Não há nada melhor para curarem isso do que regressar a Lisboa…
PAO – Gostaria, neste momento, de o questionar sobre os aspectos mais cerimoniosos e protocolares da função diplomática.
SC – As regras protocolares fazem parte da liturgia do funcionamento da sociedade internacional. As rotinas do protocolo têm uma grande importância porque regulam situações que, de outra forma, poderiam resvalar para a relação de forças. O protocolo equipara as pequenas e as grandes potências. O embaixador dos Estados Unidos, apesar da sua importância objetiva, pode ter de ficar à espera do embaixador do Tuvalu, se este estiver à frente dele, em termos de antiguidade. As regras protocolares, de etiqueta diplomática, permitem que culturas diferenciadas se encontrem num registo comum. É uma espécie de “esperanto” de comportamento, que evita conflitos e surpresas. É claro que subsistem diferenças nacionais. Uns Estados são mais atreitos a cerimoniais faustosos, outros mais espartanos. As monarquias são mais dadas a um certo tipo de rituais gongóricos, certas repúblicas são mais secas nos formalismos.
PAO – E o serviço de Protocolo do Ministério funciona bem?
SC – Acho que sim. Ao tempo em que eu era embaixador em Paris, havia 51 embaixadores lá residentes que estavam acreditados em Lisboa. Quando vinham a Portugal, todos diziam maravilhas do modo como eram tratados pelo serviço de Protocolo do MNE. O protocolo tem uma função muito mais importante do que se pensa. Sempre tive excelentes ecos do funcionamento do nosso serviço do Protocolo. É uma das áreas mais ingratas do MNE. Costumo compará-los com os árbitros de futebol: só se fala deles quando alguma coisa corre mal…
PAO – Finalmente, gostaria de colocar uma última questão que se relaciona com a criação do serviço diplomático europeu – o Serviço Europeu de Acção Externa. O que pode isso trazer para a diplomacia portuguesa?
SC – Acho que quem está mais preocupado com o Serviço Europeu de Acção Externa são as grandes potências, que possuem uma diplomacia própria que nunca dispensarão. Tenho algumas dúvidas sobre se poderá existir, algum dia, um verdadeiro serviço diplomático europeu, porque isso implicaria a existência da Europa como um Estado. Independentemente de possuirmos interesses comuns, que podem ser representados por um serviço europeu, existem interesses nacionais diferenciados no seio da União Europeia que nunca se conjugarão – empresas, expressões culturais, comunidades na diáspora, países que são membros do Conselho de Segurança e outros não, etc. Penso que continuará a haver um espaço para aquilo que é de cada país, num quadro de uma política comum. Normalmente, a palavra “comum” aparece muito ligada a esse tipo de serviços, nunca aparecendo a palavra “única”. Aquilo que é comum consubstancia a matriz que é possível partilhar, o que se encontra a partir daí cabe no espaço da autonomia que cada Estado não dispensará. Por isso, não vejo que o SEAE coloque algum perigo para diplomacias como a portuguesa.
PAO – Portanto o Ministério deve encorajar candidaturas portuguesas, apoiá-las?
SC – Sim, desde que também seja capaz de as coordenar. Há funcionários portugueses que vão para as instituições internacionais e esquecem a sua nacionalidade. Refugiam-se na neutralidade e na independência virtual do seu estatuto para não trabalharem em articulação com os países de origem. Não é o que acontece com alemães, franceses, ingleses ou mesmo espanhóis, que mantêm uma gestão desse pessoal. Temos de saber operar melhor neste domínio.
(O texto deste diálogo foi revisto pelo entrevistado)
(1) França, António Pinto da França, “Angola - Dia a Dia de um Embaixador” (1983-1988), ed. Prefácio, Lisboa, 2005
(2) Fonte, Dora, “O Rapto - com os Kwachas até à Jamba”, ed. Húmus, Vila Nova de Famalicão, 2013
(3) Costa, Francisco Seixas da, “Diplomacia Europeia - Instituições, Alargamento e o Futuro da União”, ed. Dom Quixote, Lisboa, 2002
(4) Castanheira, José Pedro, “Jorge Sampaio - uma biografia”, vol. 2, ed. Porto Editora, Lisboa, 2017
(5) Costa, Francisco Seixas da, “Uma Segunda Opinião - Notas de Política Externa e Diplomacia”, ed. Dom Quixote, Lisboa, 2007
(6) Costa, Francisco Seixas da, “Tanto Mar? - Portugal, o Brasil e a Europa”, ed. Thesaurus, Brasília, 2008
(7) Costa, Francisco Seixas da, “Apontamentos”, ed. Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 2009