26 de abril de 2025

Assim estamos

Texto para o catálogo da exposição "O que faz falta - 50 anos de Arquitetura Portuguesa em Democracia", organizado pela Casa da Arquitectura, Matosinhos, 2025


I . 

Quando Maia arrancou da parada de Santarém, na madrugada do 25 de Abril, sabia que a sua coragem levava consigo a vontade de uma tropa cansada da guerra e a teimosa esperança numa mudança democrática, fosse lá isso o que fosse. O que, convenhamos, já era muito, atenta a modorra cívica do Portugal de então. 

Nessa alvorada, os militares redimiam-se da quartelada que, 48 anos antes, tinha levado à longa ditadura salazarista. E prestavam indireta homenagem a todos quantos, durante essas décadas, tinham lutado e mantido a chama, para que alguém viesse um dia corporizar o sonho da liberdade. 

Até ao 25 de Abril, quase toda a culpa sobre o estado em que as coisas estavam podia ser assacada à ditadura. A partir dessa data, com a liberdade no dobrar do boletim de voto, recuperada que tinha sido a nossa autodeterminação, deixámos de ter desculpas: passámos a ser coletivamente responsáveis pelo que, desde então, fizemos por este país. E, gostemos ou não de o admitir, ficava também com a nossa marca geracional tudo aquilo que não conseguimos fazer. O Portugal de hoje é, muito simplesmente, esse saldo. 

E porque, como dizia o outro, "o que parece é", vale a pena perguntar: o que é, de facto, este nosso país, 50 anos depois, aos olhos dos outros, de quem nos observa de fora? 

Sei que existe o óbvio risco de cair em algum impressionismo quando nos aventuramos a falar no coletivo simbólico. Referirmo-nos a "os portugueses" ou ao olhar de "os estrangeiros" é um passo no reino do arbítrio. Mas é nesse risco, onde se atravessam preconceitos e ideias feitas, que reside a graça de procurar decantar, a partir da nossa própria experiência, as lições que a vida nos pode ter ensinado - e que, com optimismo, imaginamos possa ser de interesse para outros lerem. Vou, assim, conscientemente e com toda a inconsciência, correr esse tal risco. 


II . 

Portugal é um país antigo. Contudo, talvez não prevaleça a ideia de que, com fronteiras praticamente imutáveis, e uma unidade cultural interna invejável, somos uma das mais vetustas unidades estatais à face da Terra. Lá fora, poucos não terão ouvido falar de nós, mas nem todos nos conhecem e muito poucos nos conhecem bem. 

Atrevo-me contudo a dizer, imagino que perante o franzir do sobrolho de alguns, que, à vista de muitos, projetámos por demasiado tempo a imagem de um país que, depois de glórias passadas, se deixou atrasar irremediavelmente na História. 

Fomos um império que, para o bem e para o mal, dele não soube retirar todas as vantagens e que, no estertor dessa aventura, tentou prolongar os mitos que alimentou sobre si próprio, num patético arrastar da jornada ultramarina, provando não ter sabido ler o sentido do vento que já soprava pelo mundo. 

Desse império, que chegou a ter um notável fulgor, tínhamos caído, por um conjunto variado de razões, internas e externas, num drástico declínio como potência. Deixámo-nos, a partir daí e até agora, envolver em ciclos recorrentes de angústia económica e financeira, o que foi comprometendo o nosso lugar relativo no mundo e o bem-estar das nossas gentes. O recurso à emigração, que já leva séculos e que é sempre um sintoma de que alguma coisa persiste em correr mal, passou a fazer parte dos nossos dias – e, principalmente, do quotidiano de quem não se consegue realizar no país onde nasceu. 

O mundo, não sem razão, passou a ver-nos como uma entidade internacional frágil, com mais baixos do que altos, com dificuldade de sustentar no tempo os nossos sucessos. E, durante muito tempo, com inquietações estratégicas de vizinhança, atenuadas por uma então forte, mas pouco prestigiante, dependência política face a Londres. 



III . 

Perdida que tinha sido a jóia da coroa que era o Brasil, o que nos ficou do império era objeto de cobiça alheia e o país viu-se em palpos de aranha para o conservar, no século e meio que se seguiu até 1974. 

Entretanto, em 1910, uma monarquia já declinante tinha por cá dado lugar à segunda experiência republicana na Europa, depois da francesa. Com o imenso trauma da Grande Guerra pelo meio, com muitos inimigos e poucos amigos, a efémera República viria a deixar-se cair, em escassos anos, nas mãos de uma ditadura, primeiro das armas, depois de um conservadorismo paroquial que veio a revelar-se de pedra, cal e repressão. 

Após a Segunda Guerra, o regime salazarista viria a ser salvo pelo gong cínico da Guerra Fria, graças a um ocidente que decidiu cooptar o país para o “mundo livre” da NATO, com as Lajes na mira. A democracia é apenas boa para nós, terão pensado os aliados, prenhes de realpolitik... 

Confrontado com a vaga das descolonizações, a que os impérios europeus tinham acedido, a bem ou a mal, Portugal disfarçou, fingindo não ter colónias. Como teatro político, isso passou a ser demais para o mundo, mesmo para alguns dos nossos aliados, que até aí aturavam as farsas eleitorais portuguesas e fechavam os olhos aos crimes da polícia política. 

Na ONU e no mundo, perante o crescente embaraço de escassos amigos mais chegados, o país foi ficando cada vez mais isolado. "Orgulhosamente sós", vangloriava-se o ditador, em cima de quem a História acabaria por cair, antes dele próprio tombar de uma cadeira. 

Por mais de uma década, no que restava do império, abriram-se absurdas guerras que iam exaurindo o erário e as pessoas, muitas das quais iam a salto para a nova vida de trabalho na Europa. Portugal, dia após dia, era pressionado pelo mundo a deixar de viver no passado. 


IV . 

Na História não há becos, há sempre saídas. Com o desespero interno criado pela guerra a servir de motivo próximo, o golpe militar do 25 de Abril foi a porta encontrada para o impasse em que a ditadura de quase meio século tinha encurralado o país. 

Reduzido a uma liderança titubeante e pouco confiante em si própria, o regime veio a cair fragorosamente, de um modo que, olhado agora à distância, teve mesmo o seu quê de ridículo. A facilidade constatada na execução do golpe, a apoteose que se soltou pelas ruas, que aclamaram a tropa mesmo sem saber bem ao que ela vinha, revelou o estado patético a que as coisas tinham chegado. 

O mundo exterior, que até então olhava o Portugal autoritário de viés, em grande parte pela postura internacional assumida pela ditadura, rendeu-se de admiração, quase num instante, pelo facto de o país ter sabido dar um súbito safanão no seu destino. E, como ficou claro, também pela circunstância de isso ter sido feito quase sem sangue, com uma bela dose de alegria e de flores pelas ruas. 

A democracia, objetivo que por cá era lido de forma diferente por quantos tiveram a oportunidade de cavalgar a liberdade que o fim do autoritarismo tinha despertado, teve os sobressaltos de todas as experiências históricas convulsas, com a atenuante de ter sido implantada ainda na Guerra Fria, sob as pulsões contraditórias das ideologias. 

Mas alguma sorte, a pertinácia de uns tantos e os felizes azares de outros redundaram num modelo constitucional que, com o tempo, veio a revelar-se resiliente e funcional. 

Não devemos ser modestos e nem demasiado auto-flagelatórios: tudo correu bastante bem. Melhor era possível? Claro que sim. Mas o ótimo é sempre o pior inimigo do bom. 


V . 

No auge da ditadura, na defesa da filosofia colonial, houve alguém que um dia proclamou que "Portugal não é um país europeu e tende cada vez mais a sê-lo cada vez menos". Era uma óbvia patetice, mas vale a pena evocá-la pelo seu ridículo, porque é bem reveladora de que o capítulo imperial revelava já então não passar de um frágil e bazofeiro castelo de cartas. 

Empurrado pela História para o retângulo europeu, o país cedo mostrou que o seu verdadeiro destino estava com o projeto de integração continental que, em "trinta gloriosos" anos, tinha dado prosperidade, paz e liberdade a quem antes se combatera entre si com uma violência muito rara. 

O país político moderado, gerado na jovem democracia, soube então forjar um consenso em torno da adesão à Europa. Portugal entusiasmou-se com a ideia, em parte pelos cifrões, noutra parte, não despicienda, pelas novas oportunidades que ela trazia. A administração pública sofreu um saudável abanão e as mentalidades, a pouco e pouco, com setores mais bafejados do que outros, foram perdendo a marca da perifericidade que nos caraterizava aos olhos alheios. Vendo as coisas com um mínimo de realismo, a Europa ajudou, em escasso tempo, a mudar Portugal. Imenso. 

E Portugal, em geral, tem-se portado bem na e com a Europa. Aí tem conseguido defender os seus interesses, mesmo os mais egoístas, como é das regras do jogo. Mas tem igualmente sabido partilhar, como seus que também são, aquilo que são os interesses da própria Europa. As presidências da União revelaram sempre um parceiro capaz, empenhado e responsável. 

A Europa teve connosco, desde o primeiro momento, uma agradável surpresa. Viu-nos concordar com a reunificação alemã, por partilha de razões estratégicas, mas à custa de uma fatura nas taxas de juro. Viu-nos defender os alargamentos que, à partida, pareciam detrimentais para os nossos interesses, por solidariedade geopolítica e, vá lá, por consciência da sua inevitabilidade. Viu-nos pagar um pesado preço pela abertura do mercado europeu a quem, de fora, passou a vender mais barato à Europa aquilo que ela nos comprava, oferecendo-nos novos mercados para aquilo que não produzíamos. E viu-nos saber usar, com mérito e efeito de prestígio, os nossos recursos militares em operações de paz de interesse para a estabilidade global. E muito mais. 

De país de vocação soberanista, Portugal soube evoluir para uma construtiva postura integracionista, embora sempre distante do modelo federal, que aliás já esteve mais na moda. Desde o Tratado de Adesão, Lisboa nunca pediu qualquer "opt out" às políticas da União, aderiu cedo ao acordo de Schengen e fez o trabalho de casa necessário para estar no grupo fundador do euro, consciente de que a adoção da moeda única era uma condição "sine qua non" para a sua credibilidade no mercado financeiro global. 


VI . 

Passaram 50 anos. Comparar os dias de 1974 com o ano de 2024, para sublinhar o que mudou, é um pensamento que arrasta consigo um inevitável equívoco: o país teria mudado imenso, tivesse ou não acontecido a Revolução de Abril. A história contra-factual é apenas e sempre um registo de curiosidade, embora tenha o mérito de nos obrigar a relativizar os efeitos daquilo que acabou de facto por acontecer. 

De uma ditadura de tons atenuados, à vista de outros exemplos bem mais sinistros, Portugal, quase de um dia para o outro, normalizou-se no seio de um mundo ocidental ao qual, na verdade, nunca deixara de pertencer, se bem que colocado, por muito tempo, num embaraçado limbo. 

O novo país oficial viria, simultaneamente, a revelar uma capacidade pouco comum de relacionamento com Estados de muitas e diversas geografias. 

A África sub-saariana foi-se-lhe abrindo, ao ver confirmada a vontade descolonizadora de Lisboa. O processo esteve sempre condicionado, contudo, ao ritmo da normalização das relações com todas as antigas colónias, de que a CPLP viria a ser o corolário. O apoio maciço de África de que Portugal hoje dispõe, quase automaticamente, nas organizações multilaterais prova o sucesso do caminho percorrido. 

A América Latina, onde o regime autoritário português tinha até então procurado e frequentemente encontrado ajuda para escapar ao isolamento internacional, estendeu-lhe definitivamente os braços. Para os países de língua espanhola, Portugal é hoje, como sempre foi, um amigo seguro, nomeadamente na proteção dos seus interesses na Europa. A Espanha também o é, claro, mas fica a ideia de que a subliminar tutela de Madrid sobre aquelas suas antigas colónias, pode resultar algo abafante para ela. Na região, claro, o Brasil continua a ser o nosso mais importante laço bilateral, que consegue sobreviver à ciclotimia política das conjunturas. 

No Mediterrâneo e no mundo árabe, o Portugal de Abril ainda flirtou, embora apenas brevemente, com uma linha terceiro-mundista que ia bem com alguns equilíbrios que faziam parte do magma mutante do poder lisboeta, nesses primeiros anos do novo regime. Em breve, porém, o país ganhou uma postura de equilíbrio, que soube transportar para o quadro europeu. 

Na Ásia, encaminhado Macau e resolvido Timor, o quadro de relacionamento de Portugal normalizou-se com a generalidade dos países, desde logo com a China. 

No Portugal da Revolução, com forte evidência e, para alguns, com um certo escândalo, tinha marcado forte presença uma clara influência de Moscovo, nesse tempo em que a Guerra Fria ainda dividia Berlim e provocava linhas de fratura na nossa própria vida política interna. O tempo veio a diluir, por completo, essa dimensão, que se tornou em absoluto redundante depois da implosão da União Soviética. 


VII. 

No mundo ocidental em geral, e nos EUA em particular, passado o sobressalto do “Verão quente”, Portugal assumiu o estatuto de parceiro estável e confiável. 

Num breve ciclo de ultra-atlanticismo, houve mesmo quem se prestasse a assumir um desprestigiante servilismo face a Washington, aquando da invasão americana do Iraque. Agora, importa esquecer, depois de o lembrar, esse triste momento. 

Em termos gerais, pode constatar-se que o sucesso da integração europeia reforçou fortemente a perceção da continuidade do alinhamento ocidental do país – linha permanente que, recordo, liga a ditadura à democracia. A crise ucraniana veio, aliás, a confirmar isso. 

Pode ainda afirmar-se, sem o menor exagero, que Portugal, neste último meio século, tem tido um percurso praticamente sem falhas na sua ação no mundo multilateral. 

Graças a seguras presenças no Conselho de Segurança da ONU, onde detém hoje o secretário-geral, até à assunção de responsabilidades em outros fóruns, o nosso país é hoje visto como um prestigiado “honest broker”. 

Além disso, temos o invejável estatuto de ser um Estado previsível, na nossa ação externa. Quero com isto dizer que o mundo sabe onde Portugal está, na generalidade dos grandes dossiês. E isso torna-se muito importante para a imagem do país. 


VIII . 

O país antigo que Portugal é terá condições de deixar de ser, aos olhos dos outros, como foi por muito tempo, um “país velho”? 

Observando a gente que circula pelas nossas ruas, atentando nos nossos que continuam a andar pelo mundo, apreciando a abertura e o crescente cosmopolitismo da nossa cultura, a nossa tolerância e o nosso modo de ser e de acolher, diria que Portugal foi capaz, neste meio século, de dar um importante salto na sua nova modernidade. Ficámos na soleira do possível, longe do desejável, aquém do necessário? Talvez. 

É mesmo provável que o sonho de Salgueiro Maia, ao sair de Santarém, não tenha ficado totalmente cumprido. Nunca saberemos, nem sequer saberemos se cumpri-lo era possível. Pela nossa idiossincrasia nacional, todos tínhamos a certeza de que nunca estaríamos à altura da nossa própria ambição, dessa fasquia de objetivos com que, na nossa terra, se constroem as ilusões e se alimentam as frustrações. 

Chegámos assim onde chegámos. E assim estamos.