Para poupar tempo, e para ser mais rigoroso, vou começar por ler um texto não muito longo que preparei para esta ocasião.
Pediram-nos para falar das crises da Europa. Escolhi, nesse contexto, falar da diversidade europeia e do modo como ela impacta nas crises que o continente atravessa.
Sou muito pouco dado a citações, mas permitam-me que comece com uma:
"A situação na Europa, na realidade, nunca deixou de ser medonha. Tem-no sido melancolicamente e apaixonadamente todo este século. Tem-no sido em todos os séculos. A crise é a condição quase regular da Europa. E raro se tem apresentado o momento em que um homem, derramando os seus olhos em redor, não julgue ver a máquina a desconjuntar-se, e tudo perecendo, mesmo o que é imperecível- a virtude e o espírito."
Quem escreveu isto foi o meu colega de profissão, José Maria Eça de Queiroz, em 1888.
Por isso, e acreditar no que ouviram, há muito que não estamos sozinhos, nesta sombria constatação de descalabro europeu.
Mas, para sermos verdadeiros, talvez não valha a pena, mesmo com apoio de clássicos, deixar-nos vencer pelo desânimo. E constatar o óbvio.
E o óbvio é que Europa, neste caso a Europa unida num projeto multi-nacional vai para 70 anos, foi e é um magnífico modelo, que deu décadas de paz, de progresso e de desenvolvimento a centenas de milhões de pessoas, em várias gerações.
Esquecer isto, marcados pelas dificuldades conjunturais, é uma patetice. A Europa é um caso de sucesso e, muito provavelmente, está apenas a ser vítima dele. A atual diversidade europeia é a sua riqueza, mas é também a sua fraqueza.
A Europa de 1957 era composta por seis países derrotados na guerra que tinha terminado pouco mais de uma década antes, com um, no seu seio, que fingia ter saído vencedor: a França. Essa Europa dos seis era unida por um cimento longínquo, mas poderoso: o receio do regresso à guerra e àquilo que estava para além da chamada "cortina de ferro". Costuma-se dizer que Stalin, além de Monnet e Schuman, é também um dos responsáveis pela unidade europeia.
O primeiro alargamento, feito da ambição para ganhar escala, alterou qualitativamente a Europa: o Reino Unido foi sempre um parceiro relutante à partilha de soberania que o projeto requeria, a Irlanda passou a ser aí o primeiro país neutral e não-Nato, a Dinamarca teve, desde o início, idiossincrasias marcadas por "opt-outs": moeda, política de defesa, justiça, etc.
A entrada da Grécia, e depois de Portugal e Espanha, o alargamento mediterrânico e pós-ditaduras, não trouxe grandes impactos, nem sequer financeiros. A Europa era então (com exceção da Irlanda) um "clube de ricos". E os "ricos" pagaram, não a crise, mas os diferenciais de riqueza com os novos membros, ajudando a mais estabilidade do espaço geográfico e alargando o mercado de consumo. E todos esses novos Estados eram já membros da NATO.
Sublinho isto para dizer, que o alargamento seguinte - Áustria, Suécia e Finlândia - que foi financeiramente neutral, por se tratar de contribuintes líquidos, era também securitariamente neutral: nenhum desses países era membro da NATO.
Negociei o Tratado de Amesterdão com eles já sentados à mesa e constatei que, juntamente com a Irlanda, eles foram um bloqueio a todos os avanços na cooperação em dimensões que tocassem questões de segurança.
A diversidade começava a acentuar-se dentro do projeto europeu, num momento em que a Europa, depois da queda do Muro de Berlim e das ambições como potência que o Tratado de Maastricht consagrara, passou a ter uma dimensão política muito maior. Do tempo da Europa puramente económica, tínhamos passado para a Europa com o objetivo de gerar uma política externa comum, embora não única, para um mercado interno uniformizador, para um projeto de livre circulação de pessoas, para ambição de uma moeda comum.
O alargamento aos três estados neutrais que referi foi importante, mas nada que se comparasse com o que estava para vir.
O "grande alargamento" - 10 países mais dois, três anos mais tarde - trouxe para a União, para além de duas ilhas mediterrânicas que fazem parte de uma outra história, uma dezena de Estados que tinham vivido sob a tutela da União Soviética, entretanto desmantelada. Três deles eram mesmo antigas repúblicas soviéticos. E vamos dizer as coisas com toda a clareza: o alargamento iniciado em 2004 mudou radicalmente a União.
Esse alargamento não deveria ter ocorrido? Deveria ter sido faseado e progressivo? O ótimo é inimigo do bom. A esses países, o ocidente tinha mostrado, ao longo de décadas, o projeto de liberdade e de desenvolvimento que, do lado de cá do continente, estava a ser desenvolvido. Com toda a naturalidade, logo que puderam, esses países vieram bater à porta, querendo partilhar esse modelo.
Seria uma imensa hipocrisia se a Europa os não tivesse acolhido. Tive o gosto de ter feito parte de um governo, com responsabilidades específicas nessa área, que foi totalmente favorável a esse alargamento.
Acresce ainda um fator, de que se fala pouco e que se prende com o calendário da entrada desses países. O percurso de afirmação autónoma desses Estados só foi possível por uma fragilidade conjuntural de Moscovo. Para os países candidatos, a entrada para a União Europeia interessava menos do que a entrada para a NATO. Mas foi aproveitada a debilitação do poder político em Moscovo e os candidatos acabaram por obter dois-em-um.
A Rússia titubeou, mas acabou por aceitar. Hoje percebemos melhor que foi um silêncio sofrido.
Como antes disse, este, mais do que qualquer outro alargamento, mudou profundamente a União Europeia.
É interessante pensar que, por muito tempo, esse grande alargamento foi visto como politicamente inócuo para os equilíbrios que existiam na Europa. Alguns pensavam ingenuamente que iria ser uma espécie de "colonização" política do centro e leste europeus, um "template" trazido do ocidente que esses países se limitariam a aceitar. Houve mesmo quem pensasse que a Alemanha - onde já tinha ocorrido um discreto "alargamento" de que ninguém fala, o da Alemanha Oriental - acabaria por ser a potência de tutela dessa nova Europa.
Todos se enganaram redondamente.
Logo que entrados na União, esses países carrearam para o seio desta todas as suas ideossincrasias, os seus interesses próprios, a sua geopolítica, os seus receios e os seus ódios. E, claro, as suas afinidades afetivas. Para a generalidade desses Estados, o "amigo americano", e aqui não entra o conceito de Wim Wenders, era muito mais importante do que o clube de amigos europeus. Porquê? Porque Washington era, na prática, a NATO e eles confiavam pouco na ajuda que Bruxelas pudesse dar, se alguma coisa viesse a correr mal na sua relação futura com a Rússia.
Nos últimos tempos, depois da crise da Ucrânia, não tendo com certeza mudado de opinião sobre quem é o verdadeiro "dono da bola", os países desse alargamento - e vale a pena lembrar que ele ocorreu já há mais de 20 anos - terão percebido que há mais amigos para além do "amigo de Peniche" em que a América se transformou. Com a invasão russa da Ucrânia, e com a tensão político-militar instalada na Europa, muita coisa mudou.
Alguma diferenciada perspetiva, dentro da Europa, sobre a virtualidade residual da relação com Moscovo, em especial no aspeto económico, atenuou-se.
Era com isso que Putin contava para poder dividir a Europa, mas enganou-se.
A guerra na Ucrânia trouxe várias consequências.
Trouxe uma atitude mais coesa dentro da União Europeia face à ameaça que a Rússia pode significar para os seus Estados membros, embora com graus de risco potencial diferenciados.
Trouxe, nessa decorrência, um esforço de "decoupling" das dependências até então existentes face à Rússia, em especial em matéria energética.
Trouxe uma histórica alteração da cultura de segurança e defesa alemã, acabando com uma postura de contenção e retraimento, que vinha de longe e parecia já quase identitária.
Trouxe um rápido salto em frente, em direção à NATO e à partilha da segurança comum, de dois países nórdicos que antes tinham estatuto neutral que parecia marcar o seu DNA.
Trouxe, ironicamente, um tempo de reaproximação com um Reino Unido ainda em maturação dos efeitos do Brexit.
Trouxe uma atitude nova por parte da máquina da União Europeia, financiando ineditamente material para um conflito armado e provocando, surpreendentemente com escasso ruído, uma reversão institucional que deu à Comissão Europeia um protagonismo operativo que considero muito discutível face aos tratados.
E, finalmente, levou a um discurso - por ora, apenas um discurso - de possível partilha da cobertura de segurança dada pela "force de frappe" francesa, na primeira grande evolução dentro do "gaullomitterrandisme" de Paris.
Tudo isto a Europa fica credora de Putin, afinal um digno sucessor de Stalin no papel de "cimento" pelo medo.
Mas voltemos à diversidade, que me propus abordar.
Num primeiro tempo, as várias "Europas" que referi encontraram na ameaça russa um fator de diluição das várias idiossincrasias nacionais. A emergência da guerra pareceu ter atenuado as divergências e criado um modo comum de atuar.
Isso foi verdade até um certo ponto. O caso húngaro e, depois, o eslovaco, vieram demonstrar que a ação coletiva mostrava fissuras e divergências, mesmo naquilo que parecia essencial: a atitude comum face à Rússia. Viu-se isso no estabelecimento dos pacotes de sanções, como também nos debates sobre as dependências residuais de Moscovo em matéria energética. E a história promete continuar.
O resultado das eleições na Roménia sossegou quantos temiam um efeito dominó nesse caminho divergente. Mas nada está adquirido para sempre e essa é uma realidade com que a Europa tem de se habituar a viver.
A Europa não é um país, é um conjunto heterogéneo de Estados com 27 constituições diferentes, com sistemas políticos de vária natureza, com composições de governo diversas, com calendários eleitorais que nunca poderão ser harmonizados.
Além disso, por muito que temas como a guerra na Ucrânia possam funcionar como fatores de unidade pontual na ação, em tudo o resto os países europeus, que são unidades democráticas, vivem sob o controlo de opiniões públicas mobilizadas por agendas políticas próprias e até contraditórias, algumas delas marcadas pela sua inserção geopolítica, pelos seus graus de desenvolvimento, mesmo pela sua história.
Acho algo ingénuo pensar-se que é possível blindar, em definitivo, a atitude europeia, por exemplo em relação à Rússia. Basta pensar o que pode acontecer se, um dia, a Europa acordar com a extrema-direita na liderança da França.
Dir-se-á que é forçoso encarar modelos decisórios novos, que afastem o empecilho da unanimidade e aumentem as decisões por maioria qualificada. Não consigo deixar de ser muito prudente e sou levado a tentar travar as ambições neste domínio. Romper com a obrigatoriedade da unanimidade em matéria de política externa, para enfrentar a ameaça russa?
Desafio-os então a tentar passar ao voto por maioria qualificada para a Europa se pronunciar sobre o escândalo em Gaza. Acham que isso seria possível, sem uma grave crise dentro da União?
Sei, por experiência governativa própria, o que teria acontecido se Portugal não tivesse utilizado, até ao limite, a exigência da unanimidade para tratar da questão de Timor no seio da União Europeia.
Lamento ter de informar que a União Europeia - que, repito uma vez mais, não é um país - tem e terá sempre limites de intervenção em áreas que tocam a soberania dos Estados que a compõem. Muito longe já fomos, mas haverá sempre limites a respeitar e a política externa é um deles. Pode haver alguns truques, jurídicos ou semânticos, que possam ser utilizados pela Comissão Europeia para fugir a determinados coletes de força impostos pelos tratados.
Mas eu gostava de lembrar algo que aprendi, ao trabalhar na área europeia: a desejável eficácia das ações nunca pode afetar a legitimidade dos governos nacionais eleitos e tem de estar sempre subordinada à sua aceitabilidade pelas opiniões públicas.
Temos de perceber uma coisa simples: os eleitorados escolhem deputados que elegem governos que são supostos levarem para Bruxelas as posições nacionais. Não é expectável que essas posições saiam sempre vencedoras, mas é defensável que sejam sempre ouvidas e respeitadas.
É que se um eleitorado nacional gera um governo cuja ação na Europa se torna, por sistema, irrelevante, na tentativa de afirmação dos seus interesses nacionais ou numa leitura própria dos interesses europeus, ou esse governo se desprestigia internamente ou o país passa a ver a sua inserção na Europa como um ambiente hostil.
Tudo o que acabo de dizer tem a ver, naturalmente, com os casos húngaro ou eslovaco, mas também com outros Estados onde, um dia, a fadiga dentro da opinião pública, nomeadamente no apoio à Ucrânia, possa vir a manifestar-se. Vêm aí decisões difíceis de natureza orçamental, que terão impactos inevitáveis em algumas políticas públicas, por muito que queiramos edulcorar o cenário.
Temos de saber viver com a divergência, por muito que isso custe a quem está convencido que tem a razão e a moral do seu lado.
Como comecei por dizer, a natureza democrática da União, que é a sua força, é também a sua fraqueza. Quisemos um alargamento a todos os azimutes. Temos agora de pagar o preço por essa opção. A União Europeia, pela sua natureza, é diversa.
Apesar das dificuldades, não estou pessimista com o futuro do processo decisório dentro da União. Preocupa-me muito mais a justeza das políticas, a coerência dos princípios, a coragem, o realismo e a equanimidade nas decisões: face à Ucrânia e face à Palestina, por exemplo.
(Intervenção inicial na conferência "As múltiplas crises da União Europeia", promovida pelo Beira – Observatório de Ideias Contemporâneas Azeredo Perdigão, em Viseu, em 31 de maio de 2025)