31 de maio de 2025

Europa: gerir a diversidade

Para poupar tempo, e para ser mais rigoroso, vou começar por ler um texto não muito longo que preparei para esta ocasião. 

Pediram-nos para falar das crises da Europa. Escolhi, nesse contexto, falar da diversidade europeia e do modo como ela impacta nas crises que o continente atravessa. 

Sou muito pouco dado a citações, mas permitam-me que comece com uma: 

"A situação na Europa, na realidade, nunca deixou de ser medonha. Tem-no sido melancolicamente e apaixonadamente todo este século. Tem-no sido em todos os séculos. A crise é a condição quase regular da Europa. E raro se tem apresentado o momento em que um homem, derramando os seus olhos em redor, não julgue ver a máquina a desconjuntar-se, e tudo perecendo, mesmo o que é imperecível- a virtude e o espírito." 

Quem escreveu isto foi o meu colega de profissão, José Maria Eça de Queiroz, em 1888. 

Por isso, e acreditar no que ouviram, há muito que não estamos sozinhos, nesta sombria constatação de descalabro europeu. 

Mas, para sermos verdadeiros, talvez não valha a pena, mesmo com apoio de clássicos, deixar-nos vencer pelo desânimo. E constatar o óbvio. 

E o óbvio é que Europa, neste caso a Europa unida num projeto multi-nacional vai para 70 anos, foi e é um magnífico modelo, que deu décadas de paz, de progresso e de desenvolvimento a centenas de milhões de pessoas, em várias gerações. 

Esquecer isto, marcados pelas dificuldades conjunturais, é uma patetice. A Europa é um caso de sucesso e, muito provavelmente, está apenas a ser vítima dele. A atual diversidade europeia é a sua riqueza, mas é também a sua fraqueza. 

A Europa de 1957 era composta por seis países derrotados na guerra que tinha terminado pouco mais de uma década antes, com um, no seu seio, que fingia ter saído vencedor: a França. Essa Europa dos seis era unida por um cimento longínquo, mas poderoso: o receio do regresso à guerra e àquilo que estava para além da chamada "cortina de ferro". Costuma-se dizer que Stalin, além de Monnet e Schuman, é também um dos responsáveis pela unidade europeia. 

O primeiro alargamento, feito da ambição para ganhar escala, alterou qualitativamente a Europa: o Reino Unido foi sempre um parceiro relutante à partilha de soberania que o projeto requeria, a Irlanda passou a ser aí o primeiro país neutral e não-Nato, a Dinamarca teve, desde o início, idiossincrasias marcadas por "opt-outs": moeda, política de defesa, justiça, etc. 

A entrada da Grécia, e depois de Portugal e Espanha, o alargamento mediterrânico e pós-ditaduras, não trouxe grandes impactos, nem sequer financeiros. A Europa era então (com exceção da Irlanda) um "clube de ricos". E os "ricos" pagaram, não a crise, mas os diferenciais de riqueza com os novos membros, ajudando a mais estabilidade do espaço geográfico e alargando o mercado de consumo. E todos esses novos Estados eram já membros da NATO. 

Sublinho isto para dizer, que o alargamento seguinte - Áustria, Suécia e Finlândia - que foi financeiramente neutral, por se tratar de contribuintes líquidos, era também securitariamente neutral: nenhum desses países era membro da NATO. 

Negociei o Tratado de Amesterdão com eles já sentados à mesa e constatei que, juntamente com a Irlanda, eles foram um bloqueio a todos os avanços na cooperação em dimensões que tocassem questões de segurança. 

A diversidade começava a acentuar-se dentro do projeto europeu, num momento em que a Europa, depois da queda do Muro de Berlim e das ambições como potência que o Tratado de Maastricht consagrara, passou a ter uma dimensão política muito maior. Do tempo da Europa puramente económica, tínhamos passado para a Europa com o objetivo de gerar uma política externa comum, embora não única, para um mercado interno uniformizador, para um projeto de livre circulação de pessoas, para ambição de uma moeda comum. 

O alargamento aos três estados neutrais que referi foi importante, mas nada que se comparasse com o que estava para vir. 

O "grande alargamento" - 10 países mais dois, três anos mais tarde - trouxe para a União, para além de duas ilhas mediterrânicas que fazem parte de uma outra história, uma dezena de Estados que tinham vivido sob a tutela da União Soviética, entretanto desmantelada. Três deles eram mesmo antigas repúblicas soviéticos. E vamos dizer as coisas com toda a clareza: o alargamento iniciado em 2004 mudou radicalmente a União. 

Esse alargamento não deveria ter ocorrido? Deveria ter sido faseado e progressivo? O ótimo é inimigo do bom. A esses países, o ocidente tinha mostrado, ao longo de décadas, o projeto de liberdade e de desenvolvimento que, do lado de cá do continente, estava a ser desenvolvido. Com toda a naturalidade, logo que puderam, esses países vieram bater à porta, querendo partilhar esse modelo. 

Seria uma imensa hipocrisia se a Europa os não tivesse acolhido. Tive o gosto de ter feito parte de um governo, com responsabilidades específicas nessa área, que foi totalmente favorável a esse alargamento. 

Acresce ainda um fator, de que se fala pouco e que se prende com o calendário da entrada desses países. O percurso de afirmação autónoma desses Estados só foi possível por uma fragilidade conjuntural de Moscovo. Para os países candidatos, a entrada para a União Europeia interessava menos do que a entrada para a NATO. Mas foi aproveitada a debilitação do poder político em Moscovo e os candidatos acabaram por obter dois-em-um. 

A Rússia titubeou, mas acabou por aceitar. Hoje percebemos melhor que foi um silêncio sofrido. 

Como antes disse, este, mais do que qualquer outro alargamento, mudou profundamente a União Europeia. 

É interessante pensar que, por muito tempo, esse grande alargamento foi visto como politicamente inócuo para os equilíbrios que existiam na Europa. Alguns pensavam ingenuamente que iria ser uma espécie de "colonização" política do centro e leste europeus, um "template" trazido do ocidente que esses países se limitariam a aceitar. Houve mesmo quem pensasse que a Alemanha - onde já tinha ocorrido um discreto "alargamento" de que ninguém fala, o da Alemanha Oriental - acabaria por ser a potência de tutela dessa nova Europa. 

Todos se enganaram redondamente. 

Logo que entrados na União, esses países carrearam para o seio desta todas as suas ideossincrasias, os seus interesses próprios, a sua geopolítica, os seus receios e os seus ódios. E, claro, as suas afinidades afetivas. Para a generalidade desses Estados, o "amigo americano", e aqui não entra o conceito de Wim Wenders, era muito mais importante do que o clube de amigos europeus. Porquê? Porque Washington era, na prática, a NATO e eles confiavam pouco na ajuda que Bruxelas pudesse dar, se alguma coisa viesse a correr mal na sua relação futura com a Rússia. 

Nos últimos tempos, depois da crise da Ucrânia, não tendo com certeza mudado de opinião sobre quem é o verdadeiro "dono da bola", os países desse alargamento - e vale a pena lembrar que ele ocorreu já há mais de 20 anos - terão percebido que há mais amigos para além do "amigo de Peniche" em que a América se transformou. Com a invasão russa da Ucrânia, e com a tensão político-militar instalada na Europa, muita coisa mudou. 

Alguma diferenciada perspetiva, dentro da Europa, sobre a virtualidade residual da relação com Moscovo, em especial no aspeto económico, atenuou-se. 

Era com isso que Putin contava para poder dividir a Europa, mas enganou-se. 

A guerra na Ucrânia trouxe várias consequências. 

Trouxe uma atitude mais coesa dentro da União Europeia face à ameaça que a Rússia pode significar para os seus Estados membros, embora com graus de risco potencial diferenciados. 

Trouxe, nessa decorrência, um esforço de "decoupling" das dependências até então existentes face à Rússia, em especial em matéria energética. 

Trouxe uma histórica alteração da cultura de segurança e defesa alemã, acabando com uma postura de contenção e retraimento, que vinha de longe e parecia já quase identitária. 

Trouxe um rápido salto em frente, em direção à NATO e à partilha da segurança comum, de dois países nórdicos que antes tinham estatuto neutral que parecia marcar o seu DNA. 

Trouxe, ironicamente, um tempo de reaproximação com um Reino Unido ainda em maturação dos efeitos do Brexit. 

Trouxe uma atitude nova por parte da máquina da União Europeia, financiando ineditamente material para um conflito armado e provocando, surpreendentemente com escasso ruído, uma reversão institucional que deu à Comissão Europeia um protagonismo operativo que considero muito discutível face aos tratados. 

E, finalmente, levou a um discurso - por ora, apenas um discurso - de possível partilha da cobertura de segurança dada pela "force de frappe" francesa, na primeira grande evolução dentro do "gaullomitterrandisme" de Paris. 

Tudo isto a Europa fica credora de Putin, afinal um digno sucessor de Stalin no papel de "cimento" pelo medo. 

Mas voltemos à diversidade, que me propus abordar. 

Num primeiro tempo, as várias "Europas" que referi encontraram na ameaça russa um fator de diluição das várias idiossincrasias nacionais. A emergência da guerra pareceu ter atenuado as divergências e criado um modo comum de atuar. 

Isso foi verdade até um certo ponto. O caso húngaro e, depois, o eslovaco, vieram demonstrar que a ação coletiva mostrava fissuras e divergências, mesmo naquilo que parecia essencial: a atitude comum face à Rússia. Viu-se isso no estabelecimento dos pacotes de sanções, como também nos debates sobre as dependências residuais de Moscovo em matéria energética. E a história promete continuar. 

O resultado das eleições na Roménia sossegou quantos temiam um efeito dominó nesse caminho divergente. Mas nada está adquirido para sempre e essa é uma realidade com que a Europa tem de se habituar a viver. 

A Europa não é um país, é um conjunto heterogéneo de Estados com 27 constituições diferentes, com sistemas políticos de vária natureza, com composições de governo diversas, com calendários eleitorais que nunca poderão ser harmonizados. 

Além disso, por muito que temas como a guerra na Ucrânia possam funcionar como fatores de unidade pontual na ação, em tudo o resto os países europeus, que são unidades democráticas, vivem sob o controlo de opiniões públicas mobilizadas por agendas políticas próprias e até contraditórias, algumas delas marcadas pela sua inserção geopolítica, pelos seus graus de desenvolvimento, mesmo pela sua história. 

Acho algo ingénuo pensar-se que é possível blindar, em definitivo, a atitude europeia, por exemplo em relação à Rússia. Basta pensar o que pode acontecer se, um dia, a Europa acordar com a extrema-direita na liderança da França. 

Dir-se-á que é forçoso encarar modelos decisórios novos, que afastem o empecilho da unanimidade e aumentem as decisões por maioria qualificada. Não consigo deixar de ser muito prudente e sou levado a tentar travar as ambições neste domínio. Romper com a obrigatoriedade da unanimidade em matéria de política externa, para enfrentar a ameaça russa? 

Desafio-os então a tentar passar ao voto por maioria qualificada para a Europa se pronunciar sobre o escândalo em Gaza. Acham que isso seria possível, sem uma grave crise dentro da União? 

Sei, por experiência governativa própria, o que teria acontecido se Portugal não tivesse utilizado, até ao limite, a exigência da unanimidade para tratar da questão de Timor no seio da União Europeia. 

Lamento ter de informar que a União Europeia - que, repito uma vez mais, não é um país - tem e terá sempre limites de intervenção em áreas que tocam a soberania dos Estados que a compõem. Muito longe já fomos, mas haverá sempre limites a respeitar e a política externa é um deles. Pode haver alguns truques, jurídicos ou semânticos, que possam ser utilizados pela Comissão Europeia para fugir a determinados coletes de força impostos pelos tratados. 

Mas eu gostava de lembrar algo que aprendi, ao trabalhar na área europeia: a desejável eficácia das ações nunca pode afetar a legitimidade dos governos nacionais eleitos e tem de estar sempre subordinada à sua aceitabilidade pelas opiniões públicas. 

Temos de perceber uma coisa simples: os eleitorados escolhem deputados que elegem governos que são supostos levarem para Bruxelas as posições nacionais. Não é expectável que essas posições saiam sempre vencedoras, mas é defensável que sejam sempre ouvidas e respeitadas. 

É que se um eleitorado nacional gera um governo cuja ação na Europa se torna, por sistema, irrelevante, na tentativa de afirmação dos seus interesses nacionais ou numa leitura própria dos interesses europeus, ou esse governo se desprestigia internamente ou o país passa a ver a sua inserção na Europa como um ambiente hostil. 

Tudo o que acabo de dizer tem a ver, naturalmente, com os casos húngaro ou eslovaco, mas também com outros Estados onde, um dia, a fadiga dentro da opinião pública, nomeadamente no apoio à Ucrânia, possa vir a manifestar-se. Vêm aí decisões difíceis de natureza orçamental, que terão impactos inevitáveis em algumas políticas públicas, por muito que queiramos edulcorar o cenário. 

Temos de saber viver com a divergência, por muito que isso custe a quem está convencido que tem a razão e a moral do seu lado. 

Como comecei por dizer, a natureza democrática da União, que é a sua força, é também a sua fraqueza. Quisemos um alargamento a todos os azimutes. Temos agora de pagar o preço por essa opção. A União Europeia, pela sua natureza, é diversa. 

Apesar das dificuldades, não estou pessimista com o futuro do processo decisório dentro da União. Preocupa-me muito mais a justeza das políticas, a coerência dos princípios, a coragem, o realismo e a equanimidade nas decisões: face à Ucrânia e face à Palestina, por exemplo. 


(Intervenção inicial na conferência "As múltiplas crises da União Europeia", promovida pelo Beira – Observatório de Ideias Contemporâneas Azeredo Perdigão, em Viseu, em 31 de maio de 2025








29 de maio de 2025

Teixeira Gomes

Quero começar por agradecer o amável convite do Dr. José Alberto Quaresma para hoje aqui estar. É um gosto partilhar esta ocasião com o meu colega e amigo embaixador Luís Castro Mendes. E é também para mim um grande prazer ter o ensejo de falar sobre o nosso comum praticante de profissão, Manuel Teixeira Gomes, uma figura que há muito me interessa e que me habituei a admirar. 

Começo por um "disclaimer". Estou aqui como um mero observador, impressionista e nada especialista, do percurso diplomático e político de Teixeira Gomes. Nem mais nem menos. 

Há uns anos, quando foi editada a biografia de Teixeira Gomes, escrita pelo Dr. José Alberto Quaresma, fui convidado para falar sobre ela, num mano-a-mano com Hélder Macedo, num evento no Centro Cultural de Belém. Foi um exercício que me levou então a refletir um pouco mais sobre a interessante figura de Teixeira Gomes. 

Até essa altura, eu tinha criado, intimamente, algumas referências quase caricaturais sobre Teixeira Gomes. Mas essas imagens não rimavam necessariamente bem entre si. De um lado, estava o autor de ficção de quem eu tinha lido algumas escassas obras e cuja escrita, devo dizer, sempre achei fascinante, original e provocatória, que sabia ter abalado os costumes da época. 

Ora esse autor - e eu não tenho a menor pretensão de ser especialista no domínio literário, diga-se desde já - sempre me havia parecido algo inconforme com a persona do diplomata e do político que conhecia melhor. 

Para confundir ainda mais as coisas vinha a surgir a figura, bastante misteriosa e atípica, do quase eremita que decidira acabar os seus dias na Argélia, numa derradeira aventura sobre a qual eu tinha lido, muitos anos antes, um livro apenas razoável de Norberto Lopes. 

A biografia do Dr. José Alberto Quaresma ajudou-me muito e acrescentou bastante ao pouco que eu sabia sobre Teixeira Gomes: trouxe-me a sua geografia sentimental algarvia, as peculiaridades e complexidades da sua vida familiar, as referências detalhadas às suas múltiplas viagens e afinidades eletivas, a revelação da profundidade da sua diversificada cultura. 

Eu tinha consolidado a ideia, reforçada pelos seus retratos - e nós acabamos por ser muito sensíveis a essas influências impressionistas - de estar perante um gentleman frio e distante, uma figura algo atípica no universo dos atores políticos do período convulso da Primeira República. Curiosamente, esse perfil físico parecia-me, como referi, menos conforme com aquilo que ressaltava da sua escrita de ficção. E essa dissonância tinha, para mim, algo de misterioso. 

Ao ter tido o ensejo de entrar, mais profundamente, no mundo que criou e marcou Teixeira Gomes, através daquela biografia, passei a perceber muito melhor a personalidade que se projetava suas diversas dimensões. 

Burguês rico de Portimão, provido de capitais familiares que lhe davam uma grande independência no seio da sociedade crescentemente tensa dos últimos anos da Monarquia, Teixeira Gomes, pelas raízes e pelos ambientes que foi levado a frequentar, era, com naturalidade, uma figura tributária das "luzes", do ativismo cívico liberal que, pouco a pouco, ia minando o rotativismo político e gerando uma surda alternativa ao status quo. 

Em Portugal, o republicanismo foi profundamente ideológico: consubstanciava uma doutrina combativa e salvífica, radicalmente humanista, que desesperava com a influência religiosa obscurantista e afirmava o seu positivismo extremo contra o antigo regime. Foi uma aliança de oportunidade de burgueses esclarecidos com uma classe trabalhadora cada vez mais marcada pelos ventos do radicalismo, nos princípios e na ação política. 

O tempo da Primeira República iria, aliás, trazer ao de cima todas as contradições dessa aliança, imanentes ao equívoco de propósitos que faz parte de todas as revoluções. Esse equívoco é quase sempre essencial ao sucesso dos momentos de mudança - como mais tarde o 25 de Abril veio a provar. 

Sendo um burguês no sentido mais puro do termo, Teixeira Gomes decantou, curiosamente, na sua personalidade, uma espécie de snobe sofisticado, que teve o ensejo, o bom gosto e a sabedoria de se educar sob os quadros culturais mais avançados para a época. 

Imerso no turbilhão dos grupos de jovens muito propensos às novas ideias e doutrinas, trazidas de Paris e do resto da Europa pelo Sud Express, com a bem guarnecida retaguarda económica a permitir-lhe todos os devaneios filosóficos, as viagens confortáveis e as aventuras carnais, Manuel Teixeira Gomes corria o sério risco de se converter num inútil diletante, saltitante entre doutrinas e se cultivava pela espuma dos dias. 

Curiosamente, embora falhando a universidade, Teixeira Gomes não falhou o seu encontro muito sério com a cultura. Soube ligar-se a quem o podia contribuir para a sua formação, frequentou os cenáculos das artes, das letras e da política, em Coimbra, Lisboa e no Porto. Criou também, com o tempo, uma apreciável rede de contactos no estrangeiro, onde ancorava as suas regulares andanças. 

É aliás curioso interrogarmo-nos como é que, no meio desse turbilhão de vida, ele conseguiu decantar o génio de uma escrita rica, gráfica nos detalhes, humana - muitas vezes cruel - no recorte das figuras, das circunstâncias e das paisagens. 

Dir-se-á que o cultivo dos clássicos ajudou muito a isso. Porém, conhecemos exemplos vários em que a imersão nesse mesmo caldeirão de livralhada redundou em escritas pesadas, prenhes de adjetivação redundante, penosamente solene e gongórica. Estava a escrever isto e a lembrar-me de um dos desprezos de estimação de Teixeira Gomes, que foi Júlio Dantas. 

Da imersão nesse mundo da cultura, onde começou a ter reconhecimento, se bem que, às vezes, um tanto reticente, Teixeira Gomes criou uma imagem pública que se foi destacando e se fez notar. 

Curiosamente, o seu surgimento no mundo republicano fez-se de forma pouco impositiva. Para mim, um dos maiores mistérios é perceber como a sua ascensão nos meios republicanos se fez sem aparentemente ter passado por aquele que parecia ser um patamar de iniciação quase obrigatório - a maçonaria. Quase todos os ambientes em que Teixeira Gomes se movimentava eram marcados por esse "template" filosófico e, ao que tudo indica, ele fez questão de saltar essa etapa de credibilização de grupo, então tão na moda. 

De burguês de província, como não me canso de sublinhar, dotado de uma cultura cosmopolita que espelhava nos livros e no convívio, Teixeira Gomes conseguiu desenhar no mundo político em ebulição a imagem de uma espécie de aristocrata da República. E isso dava-lhe uma valiosa independência. Não precisava da alavanca do mundo republicano para viver, não tomava opções políticas com vista a enriquecer. Nisso tinha um perfil idêntico a outros próceres da República, bem abonados de meios, dos quais se distinguia, contudo, pelo manifesto desapego aos lugares partidários e, mais tarde, q cargos de governo. 

Chegada a República ao poder, Teixeira Gomes surge cooptado para representante português em Londres, por razões quase caricaturais. 

Há um texto de João Chagas em que, ressoando a alguma acrimónia, ficaram detalhadas as motivações dessa escolha, embora não fique muito clara a responsabilidade última pela mesma: Teixeira Gomes era um homem inteligente e capaz, tinha um ar "fino", falava línguas e dispunha de uma cultura sempre útil nos salões. 

E aqui trago a esta conversa uma nota sobre a dimensão diplomática do novo regime. 

Portugal tinha então muito poucas representações pelo mundo, embora talvez mais do que seria expectável para um país da sua dimensão, o que a História justifica. Havia já, desde o século anterior, uma carreira criada para tal, dividida entre a parte diplomática e consular. Contudo, aos membros dessa carreira diplomática raramente competiam lugares de representação máxima do Estado nos países onde operavam. Esta estava, até então, em especial nas capitais mais importantes, como que reservada para os representantes pessoais do soberano - e vale a pena lembrar que a República portuguesa foi apenas a segunda, depois da França, numa Europa recheada de monarquias, tirando a bizarria do modelo suíço. 

Se a monarquia portuguesa tinha quase sempre escolhido aristocratas de linhagens mais ou menos adequadas para representar o Estado, esperando aliás que, muitas vezes, usassem bens próprios para retribuir a honra da sua nomeação, a nova República decidiu também selecionar alguns dos seus melhores para, pelo mundo, serem a cara do novo Portugal. Mostrar uma imagem de excelência era essencial para credibilizar o regime. E, claro, era imperativo afastar os representantes da monarquia, aristocratas que, não sendo simples "civil servants", obviamente não davam garantias de lealdade às novas autoridades. 

A República foi rápida a enviar para os escassos postos diplomáticos que o país tinha figuras de topo da sua nomenklatura, gente de elevada qualificação, a que quase sempre aliavam "boas maneiras", que caem sempre bem junto das chancelarias e salões estrangeiros. 

José Cutileiro dizia que dar, no exterior, uma imagem melhor do que aquilo que o país realmente é constitui um dos truques na escolha do pessoal diplomático. 

Foi assim que, pelo mundo, estiveram António Luiz Gomes, Bernardino Machado, José Relvas, Sidónio Pais, Augusto de Vasconcelos, Eusébio Leão, Guerra Junqueiro, entre outros menos conhecidos nos dias de hoje. 

Manuel Teixeira Gomes foi para Londres, onde esteve por dois períodos, intervalados por uma demissão determinada pela ditadura de Sidónio Pais e por uma estada breve em Madrid. 

Londres era, por essa época, o posto chave da diplomacia portuguesa. O comportamento do governo inglês, tido como exercendo uma espécie de tutela sobre Portugal, o que era pura verdade, tornava-se fundamental para a credibilização do novo regime. O reconhecimento da República portuguesa por Londres, que tardava, poderia ter um importante efeito dominó pelo mundo. 

Teixeira Gomes tinha, perante si, a mais difícil tarefa da diplomacia do novo regime, só comparável, embora em escala inferior, à da nossa representação em Espanha, país onde conspiravam quantos, pela violência, queriam restaurar a monarquia. Londres acolhia o rei deposto e muitos aristocratas órfãos do regime derrubado. O embaixador da monarquia, Soveral, um "performer" de primeira água, movimentava-se junto da corte como uma espécie de "embaixador sombra". Lá, como no poema de Bandeira, ele era "amigo do rei"... 

Teixeira Gomes fez então o que deve ter parecido impossível: conseguiu com alguma rapidez o reconhecimento britânico e foi construindo as pontes necessárias para uma colaboração futura entre Londres e Paris. Pode hoje imaginar-se a magnitude dessa tarefa e a sua complexidade. 

Convém pensarmos que, sendo então um homem maduro, na casa dos 50 anos, Teixeira Gomes tinha uma experiência negocial internacional que se limitava à venda de figos secos e de produtos congéneres, sendo completamente inexperiente na prática diplomática. Podemos imaginar que nisso pôs todo o seu bom senso e inteligência a funcionar. Mas isso, às vezes, não substitui a experiência. 

Mas ser um homem do mundo e com mundo, um cosmopolita, um descomplexado frequentador de salões, deve ter contribuído muito para o inegável êxito da sua missão. É que Teixeira Gomes tinha uma "aisance" social facilitada pelos seus meios de fortuna, pelos seus gostos refinados, pelos seus móveis e objetos de arte, pela frequência de mesas e "parties" em que, ao que se pressente, se sentia totalmente à vontade. E, ao que se pode presumir, teria um perfil, em matéria de relações humanas, perfeitamente adequado à função. 

A Inglaterra, verdade seja, vivia num dilema face a Portugal. Por um lado, a natureza do seu regime apontava para a proteção do anterior rei, e para aí se inclinaria o serralho da corte. Isso rimava bem, aliás, com uma opinião pública marcada pelas notícias, que por essa altura corriam na Europa, sobre as prisões em massa que a República teria levado a cabo, bem como acusações sobre trabalho forçado nas colónias. 

Mas, por outro lado, o pragmatismo britânico apontava para a necessidade da normalização das relações. A Inglaterra, que parece que não tem amigos e só tem interesses, como alguém disse um dia, não podia ficar refém de uma restauração monárquica que, manifestamente, dificilmente iria ter lugar. E, para a continuação e proteção desses consideráveis interesses, os ingleses dependiam da boa vontade do novo poder de Lisboa. E o governo britânico, quiçá contrariando a propensão inicial da corte, teve um reflexo de "realpolitik". 

E, um tanto ironicamente, aquela boa vontade florescia já na liderança republicana de Lisboa. Digo ironicamente, para sublinhar o contraste com a atitude contra a "pérfida Albion" e o "contra os bretões, marchar, marchar", ditada pela cena do Mapa Cor-de-Rosa, poucos anos antes. A República, que se reforçara no país pela sua feroz atitude anti-britânica nessa crise, necessitava agora de se aproximar de Londres, para diluir as resistências contra si que persistiam pelo mundo. 

Teixeira Gomes fez esse seu trabalho, e fê-lo de forma muito competente. Pelo meio, teve de gerir a difícil e delicada questão da participação portuguesa na beligerância, no conflito mundial que se instalou. 

No início escassamente convencido da bondade da ideia de Portugal se envolver na guerra, o nosso diplomata acabou por ficar confortável com essa opção, colando-se mesmo, a partir daí, a Afonso Costa. E soube trabalhar a filigrana do acordo que, um tanto a contragosto dos britânicos, procurava assegurar ao nosso país um lugar à mesa do compromisso final, para salvar a soberania colonial e pôr travão às ambições que as potências alimentavam sobre um espaço que tínhamos por nosso. Potências essas que incluíam a Inglaterra, bem entendido. 

Conseguiu mesmo que Londres viesse a invocar a Aliança Luso-Britânica nesse contexto, o que, à época, era tido como uma espécie de seguro de vida político, que a diplomacia de Lisboa sempre persistiu em fingir manter vivo, mesmo em tempos posteriores em que, para o que realmente contava, esse tratado estava mais do que morto. 

Uma nota ainda, esta de curiosidade, para sublinhar o incómodo manifestado por Teixeira Gomes com a banalidade burocrática de muitas das tarefas que era obrigado a executar, quase sempre ligadas a questões de natureza consular. Teixeira Gomes não tinha a menor experiência de administração pública e irritava-se com a lentidão dos processos, a complexidade dos protocolos, além da falta de meios materiais de origem oficial, e, em particular, a escassa qualidade dos recursos humanos. Nem Teixeira Gomes, por essa época, poderia imaginar como essa realidade teve o condão de se prolongar em todos os tempos que sucederam aos seus... 

O nosso diplomata em Londres acabaria por ser chamado, no termo da guerra, ao terreno multilateral, onde Portugal negociou os resultados do conflito. Por aquilo que o nosso país não conseguiu, não obstante uma negociação competente, Teixeira Gomes deve também ter entendido aquilo que um diplomata português acaba sempre, e inevitavelmente, por aprender: a dura realidade do nosso real poder relativo, ou da falta dele, no concerto mundial. 

Só o reconhecimento da qualidade do trabalho levado a cabo em Inglaterra pode, aliás, justificar esse seu posterior envolvimento numa grande negociação. É que, no termo da guerra, Teixeira Gomes era um dos mais qualificados diplomatas portugueses, senão mesmo o mais qualificado. 

Pelo meio, tinha ficado o episódio, aliás para ele bem prestigiante, da sua demissão por Sidónio Pais. Sidónio não tardaria a ser assassinado a poucos metros do hotel no qual antes determinara a detenção do diplomata demitido. Teixeira Gomes abriu uma garrafa de champanhe - e isto não é apenas uma metáfora. 

Olhando em perspetiva, tenho-me perguntado sobre as razões de política interna que terão impedido que Teixeira Gomes tivesse alguma vez sido chamado a ocupar o posto de Ministro dos Negócios Estrangeiros, um lugar manifestamente óbvio para o perfil que criara. Alguns terão também desejado, entretanto, que ele fosse chefe do governo, mas parece que esse não seria o seu desejo. Fica a sensação de que a sua apetência para envolvimento na política partidária e governativa terá sido sempre muito escassa. 

E, talvez por isso, por essa distância face à turbulência de Lisboa, somada ao episódio com Sidónio, a sua estrela terá subido na constelação republicana. 

Teixeira Gomes, com o tempo, ainda em Londres, deixou-se um dia tentar pela Presidência da República, que, ao tempo, se decidia por voto parlamentar. Talvez alguma vaidade e desejo de consagração o tenha empurrado para aceitar a ideia. Verdade seja que ele tinha, entretanto, passado a ser uma figura muito considerada dentro do regime democrático. 

Num tempo político em que, por usura, os atores partidários se iam tornando mais polémicos, o seu perfil algo independente, se bem que nunca partidariamente neutral, acabou por se revelar ajustado a um cargo que passava por um certo consenso parlamentar. 

Os anos de Teixeira Gomes em Belém não terão sido, longe disso, anos felizes. Mas, lendo algumas coisas que escreveu, fico com a sensação de que Teixeira Gomes foi sempre um hábil cultor de uma existência marcada por uma felicidade apenas moderada. De facto, olhando alguns dos seus comentários escritos sobre a sua existência, em especial a epistolografia, Manuel Teixeira Gomes dá ares de ser um eterno desadaptado face àquilo em que se envolve. Fica a ideia de que nada lhe agradava em definitivo, que tudo ficava aquém da sua expetativa. Face ao estado do país, sentia-se claramente um "vencido da vida" tardio. 

Nos dois anos que passou em Belém, marcados por várias crises políticas, com sete tentativas de golpe militar e oito governos, terá percebido que pouco mais poderia fazer, que o regime se encaminhava para um impasse. Para um "pântano", como outros diriam mais tarde. E decide sair de cena, faz este ano precisamente um século. 

Cansou-se mas, vale a pena sublinhar, cansou-se porque se "podia" cansar, isto é, porque tinha dinheiro e possibilidade de continuar, durante algum tempo, a passear pelo mundo, coisa que ele fez sempre de forma confortável e elegante. Eu diria mesmo, como nota pessoal, invejável. 

No imaginário português comum, a derradeira etapa da vida de Manuel Teixeira Gomes aparece quase sempre simplificada, por desconhecimento. Teixeira Gomes não saiu diretamente de Belém para Bougie, onde veio a morrer. Essa é a versão simplificada. Só se fixou em Bougie seis anos - repito, seis anos - depois de ter saído de Portugal, depois de ter viajado, pelo Magrebe que o fascinava e pela Europa em que se educava. 

E por Bougie ficou os seus últimos 10 anos de vida, isto é, entre os 71 e os 81 anos. Noto que ter essa idade, nos anos 30 do século passado, representava um tempo de velhice muito assinalável. 

Não me considero competente para especular sobre a circunstância de alguma da obra mais sensual, às vezes erótica, de Teixeira Gomes ter surgido precisamente nesse período. Mas, sendo Teixeira Gomes, precisamente nesse período de velhice, um cultor da memória do seu Algarve e da sua meninice, talvez tenha recorrido a ela para também praticar o regresso virtual ao seu universo onírico mais prazeiroso. Esse será para sempre parte do mistério do homem. 

A opção por viver em Bougie é talvez dos aspetos mais interessantes desse dandy culto e deliberadamente solitário, mediterrânico e algarvio pela sua raiz, homem de um mundo pelos interesses e gostos. 

Manuel Teixeira Gomes é uma personalidade que se torna mais fascinante à medida que o vamos lendo, que vamos estudando o seu percurso de vida e tentando interpretar o modo como se situou no destino que foi desenhando para si. Para o entender, devemos ter presentes as suas idiossincrasias, que inevitavelmente não podem deixar de comportar - e não quero deixar de o referir - um lado menos simpático da sua vida, que será o comportamento que teve para com a mãe das suas filhas. 

Teixeira Gomes foi uma figura que tinha, com alguma razão para tal, um alto conceito de si próprio. Foi um homem livre, crescentemente solitário, que procurou gerir a vida como queria e sabia que podia querer. 

Foi um autor de imenso mérito, que talvez tenha ficado a dever a si próprio uma obra que poderá ter pensado que não chegou a construir em pleno, prejudicado que foi pelos anos que dedicou à causa pública. 

Foi um estadista, um democrata e um patriota com sentido do interesse nacional, a que o país ficou a dever grandes serviços - e digo isto com a imensa sinceridade de quem o admira. 

O meu - e nosso - colega Manuel Teixeira Gomes sabia que não era um santo, pelo que, estou certo, embora apreciasse que o apreciássemos, zombaria se pressentisse que estávamos a fazer a sua hagiografia. Não foi isso que aqui fiz.

(Intervenção na conferência "Teixeira Gomes, Arte e Diplomacia. Sec. XX- XXI, Portimão, 27 de maio de 2025)