(Entrevista a Helena Tecedeiro, para o “Diário de Notícias”)
Antes da Conferência de Lisboa - nos dias 10 e 11 na Gulbenkian - sob o tema Um Mundo Dividido, o DN foi ouvir o embaixador Francisco Seixas da Costa, presidente do Clube de Lisboa.
Dos EUA à China, do Médio Oriente à Ucrânia e à Europa, pequena volta pelos desafios do nosso mundo.
Estamos a pouco mais de um mês das presidenciais nos EUA. O mundo vai ser muito diferente se vencer Kamala Harris ou Donald Trump, ou nem por isso?
Eu acho que vai ser muito diferente se ganhar Donald Trump. Mas se ganhar Kamala Harris, provavelmente também não será business as usual. Uma nova presidente americana, sobretudo alguém que estava relativamente abafada pelo presidente, vai querer introduzir essa nota de diferença na atitude americana, quer no plano interno, quer na política externa. No quadro dos dois cenários de guerra que vivemos, provavelmente na questão da Ucrânia haverá um sentimento de continuidade que fará respirar fundo os europeus. No caso do Médio Oriente, e tendo em atenção aquilo que já se viu, pode haver alguma diferença na atitude face a Benjamin Netanyahu, e é possível esperar alguma ligeira mudança. Digo ligeira porque acho que nos EUA desde há 30 ou 40 anos que não verificamos uma diferença de posicionamento das administrações, republicanas ou democratas, face ao essencial da questão israelita. A exceção é uma ala mais à esquerda no Partido Democrata, que, a meu ver bem, se escandalizou com o tipo de collateral casualties que Israel provocou em Gaza, para utilizar um understatement.
Essa ala ganharia peso numa administração Harris
A administração Biden foi uma construção de várias alas democratas para vencer Trump. Algumas alas mais radicais - de Bernie Sanders, de Elizabeth Warren ou de Ocasio-Cortez - prescindiram de alguma expressão e preferiram apostar em alguém que tinha condições para derrotar Trump. Esse alguém acabou por se autoprestigiar ao longo dos quatro anos e condicionou a evolução dessas alas. Veremos o que vai acontecer com Kamala Harris, tendo em conta que ela era uma caução mais liberal dentro do ticket americano. Olhando em perspetiva a política americana, a sensação que tenho é que Biden era, em função da sua experiência, o condutor da sua própria política. Harris pode vir a representar mais a média das posições do Departamento de Estado e da Defesa, nos próximos quatro anos. Ela não tem a experiência internacional que Biden invocava internamente. Se acaso for Trump a ganhar, vai mudar, como já anunciou, a questão ucraniana. E no caso de Israel, das duas uma, ou continua na mesma linha que seguiu no passado, isto é, o mais concessionista possível, ou poderá repensar a questão. Não há sinais de que Netanyahu ficasse descontente se Trump ganhasse. Há só um problema entre a agenda israelita e a agenda de Trump. Este deu sinais de não querer a América envolvida em novos conflitos, no sentido de boots on the ground, homens no terreno. Mas pode fazer uma espécie de sublocação no sentido de dizer que Israel toma conta do Médio Oriente, e os EUA dão-lhe todos os meios para tal. Isso tornaria Israel numa espécie de poder subordinado. Para muitos americanos, Israel é uma espécie de enclave ocidental naquela região. Por outro lado, há um sentido de resistência, de que há um grupo que está ali a lutar contra os vizinhos que, mais ou menos, o detestam. E isso tem expressão, particularmente, no caso de um país do qual, quer republicanos, quer democratas, estão mortos por se livrar, que é o Irão. Pode ser que Trump cometa a ousadia de dizer a Israel: tratem do caso do Irão. Eu diria que já há grandes potências europeias mais ou menos predispostas a aceitar que Israel fizesse o dirty work por elas, para acabar com a ameaça nuclear no Irão. Um terceiro cenário é a questão da Ásia Pacífico e a relação com a China. Não sabemos como é que a decisão será tomada perante situações de maior tensão. Temos consciência que a decisão com Trump é mais unipessoal e que com os democratas há uma contextualização e uma abordagem mais racional e mais ponderada. Mesmo tendo muitas dúvidas sobre certos comportamentos da administração americana nos últimos quatro anos, nomeadamente na Ucrânia, acho que Biden foi o adulto na sala que impediu que posições mais extremadas, quer dos Bálticos, quer da Polónia, pudessem vir ao de cima e por isso mesmo é que se viu por parte de Zelensky algum mal-estar perante a prudência de Biden. Em relação à China tudo dependerá do grau da ameaça. Eu nunca vi declarações muito concretas de Trump relativamente a Taiwan, vejo-as mais em relação à China. Como é que ele vê a chamada "ambiguidade estratégica" face a Taiwan? O grande drama que podemos ter com Trump - e que podemos ter com Putin - é o processo decisório estar muito centrado numa pessoa. Devo confessar que me assustei no outro dia ao ver Putin declinar a nova doutrina nuclear russa, porque a noção de ser um “vaipe” de natureza pessoal faz-me ter consciência que o processo decisório na Rússia é menos democrático hoje do que no tempo da União Soviética, em que tínhamos o Politburo, o Comité Central, etc. Ora a matriz americana, em matéria de poder do presidente, confere-lhe uma liberdade quase sem limite, portanto, um presidente americano pode guinar para um lado ou para o outro, e nós já vimos o que foi Trump durante quatro anos.
Estava a falar de Putin e de como, se lhe der um “vaipe”, como diz, pode carregar no botão do nuclear a qualquer momento. Para a Europa a Rússia é a maior ameaça?
Acho que a maior ameaça que a Europa tem é a sua própria unidade. A Europa vive neste momento numa pulsão anti-Russa e num medo à Rússia. Dito isto, e vou dizer algo que é politicamente menos correto, há dois desfechos possíveis na guerra da Ucrânia, ambos desfavoráveis à Ucrânia. Um é a bielorrussização da Ucrânia, que era o sonho de Putin, que falhou em 2022. A segunda “solução” para a Ucrânia é aquela que J.D. Vance avançou e que é a meio percurso entre a entrada na NATO e na UE e a bielorrussização, isto é a Ucrânia continuar como um país independente mas perder territórios para a Rússia num acordo de paz. Seria apenas uma estabilização da situação no terreno, uma espécie de guerra congelada. Devo dizer que não subscrevo uma leitura trágica para a Europa perante uma situação desse género. E digo esta coisa que pode parecer simplória mas que é uma síntese: se Putin não consegue chegar a Kharkiv, como é que vai chegar a Varsóvia? Dito isto, será uma solução justa para a Ucrânia? Essa é outra questão. Tenho, sim, uma leitura trágica se a Ucrânia caísse para o lado russo. Porque a Bielorrússia já é um país dependente e se a Ucrânia caísse, a situação era profundamente detrimental para a segurança dos países nessa fronteira. Conheço bem aqueles países e quando se está lá, percebe-se melhor porque é que eles têm esta obsessão em relação à Rússia. Não é só produto de uma russofobia militante. Foi a obsessão em relação à Rússia que os levou a ir para a NATO. Eles perceberam que a evolução da Rússia foi-se densificando numa matriz autoritária que os preocupou. Matriz essa que veio a confirmar-se com a invasão da Ucrânia. Agora, a questão é a seguinte, Trump vai impor uma solução. Zelensky pode protestar, os europeus podem protestar, mas é indiferente. Pode manter Zelensky no poder em Kiev, perdendo algumas regiões, não sei, mas que o mundo vai ser diferente, vai. E isto tem uma constatação terrível, que é que nós não temos verdadeira autonomia relativamente à autodeterminação do nosso futuro. Estamos dependentes de umas eleições americanas que decidem o nosso futuro em matéria de segurança.
A Europa parece começar a perceber isso, ainda vai a tempo?
Não é que vamos a tempo ou não - a Europa não é um país, a Europa tem dentro de si diferenças profundíssimas de perspetivas. Os últimos alargamentos, introduziram na UE uma diferença de perspetivas que cria uma grande tensão. Esses países trazem para a UE todas as suas idiossincrasias, algumas muito respeitáveis, que têm a ver com a sua proximidade geográfica. Eu não acredito na capacidade da Europa de criar uma estrutura de segurança e defesa. A Europa foi gerida durante muito tempo como se fosse um condomínio de que França e Alemanha eram sempre membros da Administração. Ora a França e a Alemanha hoje não se dão entre elas da mesma maneira, têm posturas muito diferentes. A França vive uma crise interna e um isolamento grande - é o único poder nuclear, é a única potência com capacidade de projeção de forças. A Alemanha vive na necessidade de uma reconversão rápida, que vai ter um tournant político para o ano. Estamos numa mudança rápida, e não tenho a certeza que consigamos um consenso interno na UE para os esforços financeiros que isso exige. Como aliás para o alargamento à Ucrânia. Das duas uma, ou isentamos a Ucrânia das grandes políticas da UE e portanto fica sem beneficiar delas, ou damos, e a Ucrânia torna-se um dos maiores países da UE, com mais deputados do que muitos outros, e no processo decisório torna-se um fator decisivo que vai confortar um pilar leste-europeu, centrado na Polónia, que pode desequilibrar por completo a UE que hoje conhecemos.
Vemos muitos países europeu, a virarem para a extrema-direita. É um cenário que também pode desestabilizar a ideia que tínhamos da UE?
Eu acho que essencialmente vai afetar o nosso património moral de valores. Tínhamos criado a ideia de uma vontade de acolhimento que se ligava a uma certa noção de que é preciso imigração para o funcionamento do país. Depois assistimos ao medo que isso criou em determinados países europeus e a tensões de natureza social a que isso levou, quer no quadro de uma imigração ou de refugiados de origem muito diferente, quer na evolução interna das sociedades em que muitos já nasceram. No caso da França, das pessoas que têm atitudes de comunitarismo radical, muitas já lá nasceram. São filhos de gente que veio do norte da África mais do que da África subsaariana.
Estamos em 2024, mas recordo-me bem de em 2000 estarmos a discutir a chegada ao poder de Jorg Haider na Áustria. Na altura foi o pânico na Europa.
Foi o pânico, mas ele estava sozinho. E lembro-me que o país que mais impulsionou Portugal, na estava na presidência da UE na altura, a tomar atitudes radicais contra a Áustria, foi a França. Porquê? Porque estava muito preocupada com a subida da então Frente Nacional. Nós achávamos que era uma coisa residual. O que estamos a dar conta é que esta barreira moral e ética de princípios e valores que tínhamos por adquiridos na UE se desfez rapidamente. E desfez-se à esquerda e à direita. A Sahra Wagenknecht [fundadora da Aliança Sahra Wagenknecht na Alemanha], por exemplo, é muito interessante. Ela vem do Die Linke mas introduz um fator de conservadorismo de esquerda. E isto levanta uma questão que em França aconteceu que é a transferência de eleitores do Partido Comunista para a Frente Nacional. Depois levantou-se este mito da ligação da imigração à criminalidade. Porque temos tendência para achar que quem vem para a nossa terra não pode ter a sua quota de delinquência. Ora bem, há tantos imigrantes delinquentes como nacionais portugueses delinquentes. Nós em Portugal não estávamos habituados a viver com imigração oriunda de países que tivessem matrizes de natureza cultural e religiosa muito diferentes das nossas. Estávamos habituados a viver com pessoas que vinham de Angola, Guiné, Cabo Verde, Moçambique, etc. Começámos a habituar-nos, embora houvesse já alguma rejeição, aos brasileiros, mas esta onda de hindustânicos começou a criar uma diferença na paisagem, em particular, os trajes muçulmanos nas nossas ruas. Não estávamos habituados porque não havia fluxos muçulmanos para cá. E por isso o cartaz da manifestação organizada pelo Chega há dias, é um cartaz que tem elementos passíveis de acusação criminal, porque associa a imigração à insegurança e junta imagens que são fatores de indução de medo e terror. Acho isto muito perigoso. Voltando à questão, em todos os países há partidos com ramificações à extrema-esquerda ou à extrema-direita. Mas durante muitos anos a extrema-esquerda não era, e continua a não ser, equiparada à extrema-direita. Porque não tem agendas de ódio, a não ser aos ricos. A extrema-esquerda não é racista, não é xenófoba.
Agora tem um pouco em relação a Israel…
Sim, sim. Mas é um caso pontual. E há ali mais antissionismo do que antissemitismo. Portanto, a extrema-esquerda era mais falável do que a extrema-direita. O que damos conta, neste momento, é que a extrema-direita tem várias declinações. Temos a extrema-direita da senhora Meloni, que é atlantista e pro-ucraniana, temos a extrema-direita anti-ucraniana, contra os imigrantes. A extrema-direita dá uma resposta radical aos problemas, quase sempre com valores que fogem do mainstream. Vai ser possível travar isto? Já se percebeu que mecanismos como aquele que há 24 anos criámos por causa da Áustria não funcionam. Já se percebeu que a UE só tem capacidade para reagir em relação a certas derivas quando o comportamento de um partido ou de um país abala o mainstream da Europa. Foi o caso da Hungria relativamente à questão ucraniana. Mas já não foi o caso da Polónia, com derivas graves em matéria de separação de poderes, de ataque à liberdade de imprensa, etc. Por isso, diria que há a possibilidade de estes movimentos, apesar de estarem divididos - no Parlamento Europeu têm três grupos diferentes -, a certa altura virem a obstaculizar agendas importantes, a principal das quais é a transição energética e a questão climática. Temos esses partidos ligados a questões de reacionarismo agrícola, isto é, de tentativa de não fazer as mudanças na agricultura devido ao seu custo económico. Em Portugal já assistimos a esse discurso, e há sinais disso no Parlamento Europeu.
Falámos há pouco da China e de como a questão de Taiwan pode ser a próxima frente de batalha. A China está empenhada em disputar aos EUA o lugar de superpotência mundial?
Sim, e não é de agora. Quando em 2001 fui para os EUA, fiquei muito surpreendido por haver think tanks em Nova Iorque dedicados à China. Eu ia com a ideia de que a China era um poder que tinha uma relação estável com a Europa, provavelmente tínhamos cometido alguns erros no sentido de lhe dar entrada na Organização Mundial de Comércio, porque a China tem elementos de dumping objetivos que favoreceram a sua ascensão económica, mas nunca pensei que fosse uma questão muito importante para os EUA. Mas era. Fui para lá em fevereiro de 2001, e no dia 11 de Setembro de 2001, os EUA deixaram de falar da China, e passaram a falar do Médio Oriente, e só regressaram à China 20 anos depois. A China tinha um projeto de expansão serena à escala global, de que os EUA se tinham apercebido mais cedo que qualquer outro país, e que criava zonas de influência. Não do ponto de vista militar. A China tem 3 ou 4 bases no estrangeiro, os EUA têm 800. Mas a China era um poder que já tinha tido momentos de afirmação em África, criou a ideia da Nova Rota da Seda, isso foi muito importante para certos países poderem ter acesso a financiamento para infraestruturaa. Era uma forma serena da China entrar e fazer o seu percurso pela Ásia Central, por África, até por países europeus, a Grécia, a Itália, etc. Na guerra da Ucrânia, a China percebeu que não podia evitar pôr-se ao lado, ou pelo menos como colaborante com alguma distância, da Rússia, porque o mundo está a mudar e está dividido. A China percebe que lhe compete a liderança desse outro mundo. Eu não sou nada favorável à ideia de que vai haver um Sul Global tutelado pela China, acho que é um mito. A Índia nunca deixará que a China tenha a tutela desse mundo, e os países do Sul, muitos deles são apenas uma coleção de fragilidades que conjunturalmente estão com a China, mas se amanhã os EUA lhes dessem uma mão, iriam. A China tem aquele desiderato de Taiwan, sublinhou-o muito aquando do Centenário do Partido Comunista, mantém isso como uma obsessão mobilizadora internamente, e os EUA utilizam a questão de Taiwan - que foram eles que criaram, porque quem mudou a titularidade da presença no Conselho de Segurança da ONU em 1971-72 foram os EUA, para entalar a União Soviética, para colocar ao lado da União Soviética um outro poder do mesmo campo, do dito Sul, que o pudesse confrontar. Só que agora estão a vê-los juntos.
Na altura dava jeito.
Dava jeito e agora não dá. E por isso os EUA deram apenas aquela garantia vaga da chamada "ambiguidade estratégica", não dizendo exatamente o que farão se e quando a China atacar. Os EUA estão nessa posição, somado ao medo da afirmação internacional da China e da expansão da China no plano internacional, às ameaças que os seus aliados naquela área estão a ver - a Austrália, o Japão, as Filipinas, a Coreia do Sul. Os EUA, a certa altura, pensaram ser possível serem o protagonista da junção destes medos. Barack Obama e Hillary Clinton tinham o projeto do tratado comercial com os países à volta da China, Trump recuou e deixou-os um bocadinho no vazio, Biden regressa de certa maneira aí, e há uma consciência muito grande, transpartidária, nos Estados Unidos relativamente à China. Há um outro problema que a China coloca, que é o não respeito pelo direito internacional no Mar do Sul da China. A China cria verdadeiros desafios ao direito internacional marítimo, e coloca desafios fronteiriços importantes numa atitude agressiva, no limiar da agressão, e numa tensão grande com a sua vizinhança. Os EUA pressentiram, e bem, que a Europa não é a ameaça e estavam voltados completamente para a Ásia. A grande questão volta a ser Trump. Trump não quer tropas lá fora porque pressente que não há vontade nos EUA de ter our boys abroad, e vai querer fazer uma gestão de negociação de poderes, como fez com as Coreias. Portanto, apesar de tudo, acho que os EUA e os militares americanos são os adultos na sala. Se isto der para o torto, são eles que ficam na primeira linha de um conflito nuclear de natureza estratégica, e por isso têm muito cuidado. Agora, pode dar um “vaipe” ao senhor na Rússia. Nos EUA é menos fácil isso acontecer. Mesmo com um Trump "passado dos carretos", as forças armadas americanas teriam um mínimo de bom senso armado. Já na China as coisas são muito mais pensadas, não são tão personalizadas, apesar de tudo, há um poder decisório de valor mais alargado.
Apesar de Xi Jinping ter puxado a si tanto poder?
Xi Jinping é um bocadinho o "genérico" do Mao. Eles precisam muito de uma cara para representar o país e o prestígio do país. Mas em tudo o que meta armas nucleares estratégicas, tendo a pensar que há alguma racionalidade quer nos EUA, quer na China, já tenho mais dúvidas sobre uma Rússia acossada e com a noção de que pode estar a sofrer um desafio à sua sobrevivência
A Conferência de Lisboa vai discutir este mundo dividido?
Esta conferência é a constatação do óbvio, isto é, o mundo está dividido. Vamos tentar perceber onde é que estas divisões estão, no plano geopolítico, no plano dos grandes equilíbrios, no plano económico, no plano das terras raras, no plano das identidades. É verdade que questões como a guerra, como as migrações, como a abertura e a generosidade face aos refugiados, as questões da nacionalidade, da identidade nacional, os confrontos culturais, impactam sobre a democracia. Se a democracia não é capaz de encontrar mecanismos para gerir essas diferenças, vai rebentar pelas ruas ou vai rebentar pelo mal-estar das populações. Mas já não fomos a tempo nesta conferência de colocar uma questão que para mim é essencial, que é a dualidade de critérios de alguns países e muitos cidadãos na questão da Ucrânia e da Palestina. E isso é, para além de uma hipocrisia, uma quebra moral. Há duas entidades que tiveram esta quebra moral. Uma são os EUA, que na questão da Ucrânia tinham a razão do seu lado, são os grandes vencedores da guerra da Ucrânia, pela contenção da Rússia, pela venda do gás, pelo armamento e por não ter boots on the ground, e também pelos princípios morais que defendiam. Quando os EUA mudam para a questão da Palestina, perdem a razão moral. A Europa, a mesma coisa. Há muitos países europeus onde a questão israelita tem dimensões trágicas, históricas, o que leva a que esteja para além da racionalidade. Em França, por exemplo, o antissemitismo é muito forte, à esquerda e à direita. O antissemitismo tinge às vezes alguma esquerda, mas há outra, à qual eu pertenço, que é antissionista. A meu ver, o antissionismo é uma opção perfeitamente válida, lógica e discutível no plano internacional. O antissemitismo, que é uma forma de racismo, da mesma forma que a islamofobia o é..