O entrevistado desta edição é Francisco Seixas da Costa, antigo embaixador português. Entrou para a carreira diplomática em 1975, sendo o seu primeiro posto Oslo (1979-82). Exerceu funções nas embaixadas de Luanda (1982-86) e de Londres (1990-94) antes de exercer o cargo de Secretário de Estado dos Assuntos Europeus, entre 1995 e 2001. Durante este período foi o negociador português do Tratado de Amesterdão e do Tratado de Nice. Em 2001 é nomeado Representante Permanente de Portugal junto das Nações Unidas e em 2002 Representante Permanente de Portugal junto da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Entre 2005 e 2009 é embaixador no Brasil, antes de ocupar o seu último posto em Paris (2009-13), tendo sido também Representante Permanente de Portugal junto da UNESCO e da União Latina. Após a sua carreira diplomática foi consultor, docente universitário, colunista e comentador em diversos meios de comunicação.
Antes de mais, é uma honra ter o Sr. Embaixador como entrevistado. Primeiro de tudo, e antes que me esqueça, queria falar de duas ou três coisas sobre o seu livro “Antes Que Me Esqueça” e perguntar qual é que foi a inspiração de pegar no seu blogue e torná-lo uma obra, um livro?
O meu blogue pessoal começou em 2009, há 16 anos, no dia em que iniciei funções como embaixador em Paris. Embora o blogue aborde muitas outras coisas, tinha, desde o início, decidido colocar nele algumas historietas da vida diplomática. Umas mais divertidas, outras mais sérias. Ao longo dos anos, vários amigos foram-me pedindo para juntar essas histórias: por que não fazes um livro? Um dia, uma editora, que não foi a que agora editou este livro, veio ter comigo e disse-me: gostávamos de publicar histórias que tem no seu blogue. Respondi que não tinha tempo, que teria grande dificuldade em organizá-las, porque isso implicava uma reordenação. A resposta foi desarmante: nós fazemos isso, vamos ao blogue, que está aberto para consulta, escolhemos o que achemos que tem graça e preparamos um livro. E assim fizeram. O resultado não me satisfez, confesso. Era uma seleção por temas e o critério da editora, se bem que respeitável, assentava demasiado nas histórias mais anedóticas. Achei que aquilo dava do Ministério dos Negócios Estrangeiros um ar um demasiado leve, pelo que decidi não ir avante com a publicação.
Contudo, a pressão dos meus amigos, e até de comentadores no blogue que não conhecia, ia aumentando. Um dia, disse para mim mesmo que talvez valesse a pena revisitar o blogue, com o olhar voltado para uma outra seleção de textos. Mas não era fácil: eram treze mil e tal posts. Escolhi cerca de trezentos dentre eles e daí resultou um livro. Depois, foi preciso recompor alguns textos, em particular retocando questões da atualidade. O livro procurou essencialmente assentar em histórias de que eu fosse parte, ou que tivesse testemunhado. Como não tenho apontamentos, como não me habituei a guardar dossiers com documentos, os textos baseiam-se essencialmente na minha memória e isso pode facilmente conduzir a alguns erros. E, de facto, depois do livro publicado, constatei que houve três ou quatro histórias face às quais algumas pessoas vieram ter comigo e disseram: não foi bem assim. Nada de grave, mas eram imprecisões. Mas isso é o que dá fazer uma coisa de memória e, mesmo assim, acho que tenho razoável memória para conseguir escrever trezentas e tal histórias, na maioria das quais não há erros fácticos. E a ideia do livro era, em primeiro lugar, ser mais ou menos divertido para leitura e, depois, procurar, através dele, revelar às pessoas o que é a vida diplomática, o que foi a experiência de alguém que fez 40 anos dessa profissão, andando de posto em posto. A tudo isso, juntei episódios dos cinco anos e meio em que eu estive no governo. Esse tempo foi também uma experiência diplomática, porque eram funções políticas com essa dimensão.
Tudo aquilo, no fundo, acaba por facilitar um teste global, que só os outros que podem ajuizar, sobre a eventual coerência existente na ação e no pensamento. O livro segue um método à partida estranho: os textos reportam-se a variadas épocas, estão misturados cronologicamente e não se pode perder de vista que, quando atravessamos uma vida que tem décadas de trabalho, nós próprios vamos aprendendo e evoluindo na maneira como olhamos para as coisas. De certo modo, o livro é um exercício de transparência sobre a natureza da vida diplomática, ou melhor, sobre uma vida diplomática em concreto. É que convém que fique claro: não quero servir de exemplo ou de modelo a ninguém.
Acho que o livro teve bastante êxito, pelo menos bem mais do que eu pensava: vai na 3ª edição, a caminho da 4ª, e tem-se vendido bem. Decidi doar metade dos rendimentos das vendas da edição inicial para a Associação de Proteção dos Diabéticos de Portugal, uma instituição muito meritória que achei que merecia esse gesto. No blogue ficou ainda muito material, que dá para fazer mais um livro, pelo menos. A seu tempo se verá.
E também existem poucos relatos dentro do que se passa na vida diplomática.
Há alguns, embora poucos. E este livro não é, em rigor, uma memória organizada dessa natureza. Não foi um livro de raiz, foi um livro com coisas que já estavam publicadas. Nele procurei também evitar textos que tivessem uma qualquer dimensão de queixa, de acrimónia, de conflitualidade, mesmo de polémica. Costumo dizer que a vida me correu demasiado bem para não ter que estar a sublinhar as poucas coisas que me correram mal. Por isso, os textos são basicamente textos pela positiva, um relato da ação diplomática desenvolvida, expondo os problemas encontrados e o modo, bom mau, como os consegui resolver.
E há situações mais sérias, digamos, não é? Existe um exemplo muito específico que foi o caso da Líbia.
Sim, há situações mais sérias, que têm a ver com conjunturas mais delicadas. O que é fascinante na vida diplomática é que nada se repete. As experiências são muito diferentes umas das outras, tanto mais que os interlocutores são muito diversos. Somos postos a teste permanentemente sobre a nossa capacidade de reagir perante uma determinada situação, sempre com dimensões novas. São testes contínuos ao nosso bom senso, à nossa capacidade de atuar de forma ponderada, equilibrada e que, essencialmente, defenda o interesse do Estado que representamos. A defesa do interesse do Estado é o elemento essencial na nossa ação. Não estamos ali para melhorar a nossa imagem pessoal, estamos para preservar a imagem do Estado português e para defendê-la da melhor maneira que sabemos e podemos.
A diplomacia é, além disso, até porque somos um país com embaixadas em regra muito pequenas, um exercício de alguma solidão na ação. Os diplomatas estão muitas vezes sozinhos, não têm sequer com quem “checkar” as coisas, com quem trocar ideias no sentido de definir o que deve ser a ação a executar. Quando se tem embaixadas grandes, e eu já trabalhei em embaixadas grandes como Luanda, Londres, Paris, Nova Iorque ou na OSCE em Viena, com bastantes pessoas, é uma coisa, mas quando se está num posto como a Noruega, numa embaixada pequena, a decisão e a ação são muito solitárias.
Essa solidão pode ter outras formas. Conto no livro a experiência de uma missão que fiz a São Tomé e Príncipe, menos de seis meses depois de entrar no Ministério, ainda jovem Adido de Embaixada. Fui encarregado de tentar resolver ali um problema que, entretanto, surgira, e que a nossa embaixada não conseguia solucionar. Tive de ir falar com o primeiro-ministro e com vários ministros do novo país. Foi uma missão muito incomum, pois não conheço nenhum caso de um funcionário acabado de entrar para o Ministério que tenha sido enviado numa missão individual dessa responsabilidade ao exterior. Atuar sozinho, tomar uma decisão sobre um problema, implica, como então implicou, a necessidade de ter a noção de que estava a representar o país, de ser a cara do país. Isso, ao mesmo tempo, é um orgulho, mas também é uma responsabilidade.
E é necessário também muita capacidade de adaptação a nível pessoal.
Quando se circula entre vários postos, é necessária essa capacidade de adaptação, porque a vida é muito diferente de sítio para sítio. Alias, falo no livro na mudança que foi viver na Noruega, um dos países mais desenvolvidos e cómodos do mundo, e, de um dia para o outro, cair numa Luanda quase caótica, no meio de uma Guerra Civil. Essa capacidade de adaptação é fundamental.
É nos postos mais complicados que podemos cometer mais erros. Na carreira diplomática há uma coisa que se aprende: é que quando se comete um erro, passa-se o resto da carreira a tentar apagar esse erro. Há um colega meu, Marcello Mathias, um embaixador que tem uma obra literária magnífica, que dizia isso: passa-se uma vida inteira para corrigir um erro feito num segundo. Se uma pessoa comete um erro grave, e se esse erro tem repercussões no Ministério, a imagem profissional desse funcionário fica colada a esse erro, toda a gente o passa a recordar por esse episódio. Há uma coisa que costumo recomendar aos jovens diplomatas: não se deixarem amarfanhar por uma coisa que lhes correu episodicamente mal na vida profissional.
Dou um exemplo: uma pessoa é colocada num sítio que não gosta, imaginemos Ulan Bator (não temos embaixada em Ulan Bator...). Ele não queria ir para Ulan Bator, mas o seu desejo não foi atendido, foi ali colocado contra a sua vontade. E, enquanto está por lá, deixa que a sua ação passe a ser marcada por esse mal-estar. Se, nesse quadro de trabalho, ele vier a revelar desinteresse profissional, falta de disponibilidade e de iniciativa, ausência de sociabilidade, tudo isso vai fazer parte de um capítulo da sua vida diplomática que o Ministério não irá esquecer. Qual é a solução para isso? É preciso saber dar a volta “por dentro”, tentar “transformar” Ulan Bator no posto mais “importante” da carreira diplomática, estimular protocolos entre universidades de Ulan Bator e universidades portuguesas, procurar intercâmbio cultural e artístico, tentar promover ali a literatura portuguesa, encontrar empresas compatíveis em ambos os países, etc.
É sempre possível criar, é sempre possível inventar, ser criativo. Mas se o diplomata desiste, se “sofre” o posto, vai ali torturar-se durante três ou quatro anos. E isso vai mudá-lo por dentro, de forma negativa. Vi colegas meus que tinham um excelente potencial, mas que, entretanto, atravessaram experiências desagradáveis e deixaram-se marcar por elas. Isso arruinou-lhes a carreira, porque não conseguiram ultrapassar esse mau momento. No que me toca, estive em postos de que não gostei, mas consegui ultrapassar o meu desagrado íntimo. Fiz isso de propósito, para não dar uma alegria a quem tinha contribuído para ter sido colocado nesses postos que eu não desejava...
Neste caso até pode considerar-se que é um mal que vem por bem.
Existe uma expressão francesa, que aliás Mário Soares utiliza no prefácio a um livro meu, que diz “à quelque chose malheur est bon” (que, de certa forma, se pode traduzir por “há males que vêm por bem”). Há sempre um lado positivo nas coisas más, que temos de descobrir. Isso faz parte dessa capacidade de adaptação, sem a qual um diplomata não conseguirá um mínimo de sucesso profissional e até de estabilidade emocional.
Outras dimensões que estão presentes no seu dia-a-dia é a adaptação dos cônjuges, dos filhos, as condições de saúde e segurança nos postos, os problemas da família que fica em Portugal. São coisas que se não podem pré-determinar, que vão evoluindo, pelo que estamos sujeitos a um teste permanente, na nossa vida no exterior. Às vezes, essa vida corre bem, outras vezes corre mal.
Há um aspeto que eu gostava que ficasse claro, e julgo que fica evidente no livro e, de certo modo, na minha própria vida no Ministério. Fui fazer o concurso de admissão ao Ministério dos Negócios Estrangeiros não conhecendo ninguém lá dentro. Nem um contínuo! Preenchi uma ficha, fiz os vários e muito exigentes exames e fui admitido. Não fiquei no topo, fiquei em 13°, entre centenas de candidatos. Fiz a minha carreira, que não foi má de todo, foram-me dadas oportunidades, que soube aproveitar, e acabei como embaixador em Paris. Creio que isto prova que há alguma democraticidade e reconhecimento do esforço. E há muito mais gente como eu, gente que não tinha conhecimentos, que não tinha um tio ou um primo ou um avô que tivessem sido embaixadores, ou o apoio de famílias mais ou menos conhecidas e influentes. Repito: fiz o meu percurso sem conhecer ninguém, sem ser protegido por quem quer que fosse. Fui sendo promovido e colocado por governos das mais diversas cores.
Acho que isto, de certo modo, é um elogio não apenas ao serviço público português, mas também à própria sociedade portuguesa. Essa ascensão pelo mérito aconteceu, na sua vida, com pessoas como Cavaco Silva ou António Guterres, por exemplo. Há espaço em Portugal para que quem trabalhe bem tenha oportunidade de construir uma carreira. Isto não quer dizer que alguns não tenham, por vezes, a vida facilitada através de conhecimentos, até de “cunhas”, mas a experiência mostrou-me que quem for persistente, quem for competente, pode conseguir afirmar-se no serviço público, mesmo não fazendo parte de circuitos sociais elevados. E, claro, é também necessário ter alguma sorte. A mim, como diz o outro, toda a sorte que tive deu-me muito trabalho a conquistar...
Na questão da educação, considera que ao prosseguir os estudos, como o mestrado e o doutoramento, pode-se abrir essas portas?
Hoje em dia, tenho alguma dúvida sobre esse efeito. Já tenho encontrado licenciados em caixas do Pingo Doce e, portanto, tenho muitas dúvidas sobre essa relação de causa-efeito. Não ter um curso é, obviamente, um “handicap”. Ter um curso é uma plataforma a partir da qual se parte, mas não é condição sine qua non para ter um futuro garantido. Faço parte de uma geração em que quem tivesse concluído um curso tinha uma garantia de emprego e, mesmo sem um curso, conseguia-se facilmente aceder a uma atividade profissional. Verdade seja que, com os mesmos 10 milhões de população dessa época e de hoje, o número de licenciados era muitíssimo mais pequeno. Tudo era mais fácil para quem tivesse a sorte de conseguir aceder à universidade. Mesmo para os maus alunos! Comecei por estudar engenharia eletrotécnica e fui aí um péssimo estudante. Mudei entretanto de curso e concluí uma outra licenciatura. Mas, ainda antes de a concluir, fiz, em 1971, concurso para a Caixa Geral de Depósitos, passando a trabalhador-estudante para não sobrecarregar os meus pais. Aí teria continuado se, depois de acabado o curso, me não tivesse tentado pela diplomacia. Já estava casado e, posso hoje confessar, fiz o concurso de acesso ao MNE por diletantismo puro, num sentido quase provocatório. Disse para mim mesmo, na altura: vou conseguir ser aprovado no concurso para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, porque, em temas internacionais, provavelmente sei tanto como os que vão fazer esse concurso. Embora não fosse só isso que estava em jogo. Era preciso saber história diplomática, economia política, direito internacional, além de relações internacionais em geral. Estudei o mínimo que era necessário dos restantes temas e fui admitido.
Com algum orgulho, costumo dizer que fiz parte de uma geração, a geração que nos últimos anos vai saindo da cena profissional, que se interessava por saber um pouco de muita coisa. Nisso fui ajudado pela minha família. O meu pai assinava o L’Express, que eu lia, desde os meus 16 anos. Havia muitos livros lá por casa. Entre o meu avô materno, o meu pai e os meus tios falava-se muito da Segunda Guerra Mundial. Olhando para trás, acho que cheguei às questões internacionais muito por virtude da literatura em torno dessa guerra.
Lia então muito pouco em inglês: 90% do que lia em línguas estrangeiras eram revistas e livros em francês, só 10% em inglês. Hoje é praticamente o contrário. Leio 80% em inglês e 20% em francês. Essa foi a geração universitária de cafés, de tertúlias, muito interessada pelas coisas internacionais. Estávamos vidrados na democracia que havia lá fora, porque não havia disso por cá. Lembro-me de ter um dia ido a Paris para ... ver eleições. Por cá não havia eleições ou, se havia, não eram “a sério”!
Voltando à sua questão: é necessário um curso? É, mas, sendo necessário, não é suficiente. Mas vou ser sincero: há uma coisa muito importante, para além do curso: a vontade de saber, a curiosidade em aprender, continuamente. Digo isto com total abertura: tenho 77 anos de idade e continuo a comprar livros desalmadamente, consulto cada vez mais apps de Inteligência Artificial, para saber coisas que não sabia e que infelizmente já devia ter sabido há anos. Mantenho uma curiosidade insaciável sobre imensas coisas e concluí que essa curiosidade foi um elemento fundamental para a construção do meu percurso de vida. É tentar saber um pouco de tudo. Não é ler tudo. Quer dizer, se eu tivesse lido dois livros por semana, entre os meus 17 os 77 anos, que é a minha idade de hoje, teria lido 6 mil e tal livros. Ora, eu tenho 10 mil e tal livros e, obviamente, fiquei muito longe de ter lido dois livros por semana. O que é que se passa? Comprei muitos mais livros do que consigo ler. Há livros que eu nunca li e comprei e, se calhar, vou comprar amanhã outros que nunca vou ler, mas esta vontade de querer saber um pouco mais, mesmo não conseguindo ir a todas, foi para mim a minha salvação de vida.
Mas volto a dizer, o curso é fundamental, é importante concluir um curso. Se é preciso fazer um doutoramento, não sei. Acho que mestrado, hoje em dia, é o mínimo. O doutoramento, para o qual me tentaram no passado, nunca esteve no meu radar. Nunca fez parte da minha ideia de vida ter uma carreira académica. Agora, ter uma base sólida de natureza cultural e académica, que nos garanta um conhecimento alargado da realidade mutante em que vivemos, acho fundamental. Eu vivo de iPad ao lado, de manhã à noite, e, quando não tenho iPad, tenho iPhone. Confesso que sou muito dependente hoje de toda essa informação, além de que escrevo um blog diário, escrevo no Twitter, escrevo no Facebook.
As redes sociais, para mim, mais do que a conversa e o debate entre pessoas, que não pratico, são fontes de informação - jornais, think tanks, etc. Tenho informação a mais e a minha preocupação é conseguir fazer uma triagem eficaz. Gosto muito de ter acesso aos factos, para os poder analisar sem estar sistematicamente a tê-los já trabalhados por alguém. Desde há vários anos que privilegio fontes de informação de tendências políticas diferentes das minhas. Gosto de ler o que me contraria... Obriga-me a criar anticorpos e argumentos. Costumo dizer que para pensar aquilo que eu penso basto eu! E, por isso mesmo, ouvir o contraditório, ouvir o outro lado, é muito importante, porque senão você fica preso numa caixa e deixa de ter elasticidade mental. Não consegue sair depois dessa caixa.
Voltando outra vez ao que me perguntou. Estudar em permanência é absolutamente essencial, par ter as bases essenciais atualizadas. Todos nós temos de perceber que um curso não é chave de futuro, só que, às vezes, sem ele não há futuro.
A transição tecnológica também se fez sentir na rede diplomática e nas embaixadas? E como é que se fez, como é que foi essa transição? É que existe uns pequenos retratos, durante o seu livro, que não tinham contacto para Lisboa, por exemplo.
Em fins de 1987, depois de ter estado cerca de dois anos no departamento criado para o ingresso de Portugal nas então Comunidades Europeias, fui convidado para assessorar o então secretário de Estado, Durão Barroso, nas questões de cooperação para o desenvolvimento, lugar onde fiquei três anos. Num canto do gabinete que me atribuíram, havia umas caixas. Abri-as e era um computador a estrear, que os anteriores ocupantes do espaço não chegaram a usar. Era um Olivetti 286. As pessoas que conhecem computadores sabem o que isso era. Era praticamente dos primórdios. Eu, até então, nunca tinha tocado num computador.
Chamei um colega que sabia do assunto e montou-me o aparelho. Fiquei “cliente”! Desde esse mês de dezembro de 1987 que não uso outra coisa! Em 1990, fui para a nossa embaixada em Londres, onde não havia nenhum computador. Pedi ao Ministério dinheiro para comprar um computador “desktop” para mim. Como havia uns saldos, com esse dinheiro consegui comprar dois aparelhos. E, tempos mais tarde, conseguiram-se outros, para todos os diplomatas e técnicos. Era unidades isoladas, não tínhamos rede nem, claro, internet. Funcionávamos à base de disquetes. Quando regressei a Lisboa, quatro anos depois, tudo era já diferente. Mas tenho orgulho de dizer que, se bem julgo saber, terá sido a primeira embaixada informatizada, embora de forma muito rudimentar.
A informatização mudou radicalmente o sistema de comunicações do Ministério, bem como a sua rapidez e facilidade de difusão da informação. Antigamente tudo ia por telex, depois por fax, sempre com códigos cifrados. Em geral, a rapidez e facilidade das comunicações mudou tudo. Os telefonemas entre países eram muito caros e usados com grande parcimónia. E, às vezes, eram difíceis. Quando estive na embaixada em Luanda, uma chamada telefónica para Lisboa tinha de ser pedida com horas de antecedência...
E, durante muito tempo, não houve internet. E a internet mudou tudo, facilitou a circulação da informação, tornou a relação entre os funcionários mais fácil, entre os postos e Lisboa, o que se cumulou com a criação do e-mail. Mudou também a forma de fazer diplomacia. Algumas embaixadas começaram a ter “sites” próprios.
Em Brasília, em 2005, criei, e eu próprio alimentei pessoalmente durante mais de dois anos, um blogue, que chegou a ter milhares de consultas por dia. Dava informação oficial mas, essencialmente, cobria as relações Portugal-Brasil, nas suas várias dimensões – económicas, culturais, desportivas, etc. Tenho o gosto de dizer que foi o primeiro blogue criado numa embaixada portuguesa. Os britânicos já tinham isso em algumas das suas missões e inspirei-me neles. Fiz depois o mesmo em Paris, mas com uma ambição de cobertura informativa mais limitada. Tradicionalmente, as pessoas escreviam cartas para as embaixadas. Com o e-mail, tudo se agilizou, dispensando o correio tradicional. As redes sociais vieram facilitar o papel de comunicação através das embaixadas, potenciando fortemente a chamada diplomacia pública, que é a ligação direta com as sociedades em que as missões diplomáticas estão inseridas. A partir do momento em que as embaixadas passam a ter os seus próprios espaços de informação, isso valoriza-as localmente e aumenta a sua capacidade de passarem mensagens, seja aos seus concidadãos nesse país, seja ao público em geral.
E no caso das comunidades portuguesas?
As comunidades portuguesas, pela sua diversidade, apresentam problemas muito particulares no tocante à utilização dos meios digitais para as servirem. Descontando esta última vaga migratória, feita por gente com qualificações académicas, o panorama dos portugueses da diáspora é muito diverso. Há comunidades mais antigas, pouco propensas à utilização dos meios informáticos, ao lado de outras mais abertas a tal.
Fui embaixador, sucessivamente, nas duas maiores comunidades portuguesas no mundo, o Brasil e a França. Ao tempo em que ali atuei, dei-me conta da diferenciada disponibilidade dessas pessoas para abandonarem a “cultura de balcão” e optarem pelos meios digitais. Em grande parte, há uma divisão etária, mas também cultural, que é necessário superar. O tempo acabará por resolver isso, com os nossos concidadãos a convencerem-se das vantagens de evitar desnecessárias deslocações. Mas, em muitos casos, cruzamos pessoas que se habituaram a um tratamento presencial e ainda têm dificuldade em dispensá-lo. Vivemos um tempo de transição. Nos dias de hoje, de certo modo, os nossos consulados passaram a ser uma espécie de Lojas do Cidadão, onde cada vez mais há uma desmaterialização dos atos, pelo acesso às coisas por via informática. Isso traz imensas vantagens, poupa deslocações, poupa tempo e mesmo custos.
Não deixo de reconhecer que, em certas comunidades, a presença consular tem ainda uma significativa dimensão simbólica. Recordo-me de que, quando cheguei ao Brasil, cabia-me tutelar uma rede de 10 consulados de carreira, titulados por diplomatas, e cerca de 40 consulados honorários, com funções diferenciadas entre si. As coisas já se não passam hoje da mesma forma e a tendência vai necessariamente no sentido da simplificação, que acabará por ser um ganho grande para as nossas comunidades portuguesas. Além disso, o facto de, no âmbito da União Europeia, haver hoje um Serviço Europeu de Ação Externa é um importante contributo para uma maior proteção dos portugueses que andam pelo mundo. Onde não há embaixadas ou consulados portugueses, os nossos compatriotas podem hoje recorrer a outras embaixadas de Estados da EU. A cidadania europeia é um valor acrescentado à nossa cidadania nacional. E isto protege muito mais nossos cidadãos.
Como é que é feito o contacto das embaixadas de Portugal com o poder local, ou neste caso o poder nacional, de onde estava acreditado?
Há um formalismo, quase um ritual, no relacionamento entre as embaixadas e os poderes locais. Curiosamente, é um modelo de matriz europeia, porque o berço dos rituais diplomáticos foi a Europa. É interessante ver, digamos, a embaixada da Malásia a dirigir-se ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Bolívia exatamente da mesma maneira que a embaixada da Alemanha em Paris se dirige ao Quai d‘Orsay, à sede da diplomacia francesa. Há uma espécie de um “template” que a diplomacia internacional adotou. O relacionamento entre as embaixadas entre si ou com os governos nacionais está plasmado nas Convenções de Viena sobre Relações Diplomáticas e sobre Relações Consulares, que são documentos dos anos 60 do século passado. Sabe-se exatamente quais são os direitos, quais são os deveres, o comportamento que é exigido a cada um e o que se espera do outro. Há uma espécie de igualdade formal entre os Estados.
Mas essa igualdade é só formal. Os países têm uma capacidade de afirmação muito diferente. Se o embaixador americano em Paris quiser ser recebido pelo ministro dos Negócios Estrangeiros francês, por um motivo urgente, a probabilidade de conseguir esse encontro no mesmo dia é elevada. Por muito que peça, o embaixador da Bielorrússia ou do Botswana nunca conseguirá ter uma audiência com o ministro francês, nem com um secretário de Estado, e o melhor que consegue é encontrar-se, alguns dias depois, com o “desk” da área geográfica ou com um subdiretor qualquer. Goste-se ou não, os países têm uma hierarquia entre si.
Por essa razão é que os diplomatas, em especial dos países menos poderosos, têm necessidade de criar relações com figuras locais com interesse para a sua ação profissional. Há algum artificialismo nisto? É verdade, mas a chamada “representação”, a criação de círculos de conhecimentos, é parte integrante da atividade diplomática. Em cada posto que tive, comecei por identificar as pessoas que poderiam vir a ser importantes para o meu trabalho, em especial nos Ministério dos Negócios Estrangeiros locais, mas não só – empresas, imprensa, “opinion makers”, etc. Fazia-lhe visitas de cortesia, convidava-os para jantar, para concertos ou cocktaiks na embaixada, isto é, criava com eles uma proximidade que me permitia, nomeadamente em face de uma situação de interesse para Portugal, contactá-los rapidamente pelo telefone, evitando o moroso percurso burocrático tradicional. Muitas vezes, acabei por fazer bons amigos nesses conhecimentos profissionais. Muitos até hoje.
Portugal não é um país poderoso. É um país muito conhecido: todos nos conhecem, até porque somos um dos mais antigos Estados do mundo. Mas temos a importância que temos. Somos o país mais pobre da Europa Ocidental. Alguns portugueses não gostam de ouvir isto, mas é a pura verdade. Somos, contudo, um país que tem, no plano internacional, a imagem de país sério, que cumpre o que diz, que tem uma agenda internacional decente, que respeita os grandes princípios e os grandes valores humanistas. Mas não somos a Alemanha, não somos a Itália, nem somos o Brasil. Não temos essa dimensão associada ao nosso nome. ser claros. Por isso mesmo, como diplomatas, somos obrigados a fazer um esforço para compensar essa limitação de poder à escala internacional. Um embaixador português, se quiser ter as “portas abertas” no país onde está acreditado, tem de se movimentar, de convidar pessoas, de saber intervir. Não se trata de um mero exercício de afirmação pessoal, trata-se, muito simplesmente, de criar as melhores condições para, se e quando necessário, poder ter eficácia na defesa dos interesses portugueses – na economia, na nossa comunidade, na vida cultural. Profissionalismo diplomático é isso.
E outro aspeto, dentro da área da diplomacia, é o das visitas de Estado, que também é muito importante nas dinâmicas e nas relações bilaterais entre os países. Como é que elas são organizadas?
Estamos a falar de dois tipos de visitas. As visitas ditas “de Estado” são as tituladas, em Portugal, pelo Presidente da República. As visitas em que as delegações são chefiadas pelos Primeiros Ministros ou por outros membros dos governos designam-se por visitas oficiais.
Como os chefes de Estado portugueses não têm poderes executivos, as visitas que eles titulam apenas podem funcionar como plataformas para aquilo que os governos quiserem que o presidente faça nessas ocasiões. Ao longo da minha carreira, tive forte responsabilidade na organização de algumas visitas de Estado e, como membro do governo, integrei algumas outras. Umas tiveram alguma importância substantiva, outras foram meramente protocolares. Repito: as visitas de um Presidente português têm a importância que os governos da altura lhe quiserem dar. Às vezes, podem assinar-se alguns acordos, haver encontros entre empresários, ter lugar algum evento cultural. Recordo-me de ter integrado visitas de Estado dos Presidentes Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva. Já não “apanhei” Marcelo Rebelo de Sousa...
Em termos de substância, os encontros de delegações chefiadas pelos Primeiros Ministros são, em regra, bastante mais “sumarentos”. Como se trata de figuras com competências executivas, há nesses encontros coisas mais concretas. Participei em inúmeros encontros entre chefes de Governo, entre ministros e eu próprio presidi a dezenas de delegações portuguesas.
Os acordos que se vão assinar nessas ocasiões são, em regra, discutidos em tempo anterior, em regra através das embaixadas. Há sempre uma margem para algum improviso, mas o essencial já está fixado semanas antes. O que muitas vezes acontece é que um determinado acordo não esteja completamente “fechado”, por dificuldades ou objeções de uma das partes, e haja, à última hora, uma pressão política para ultrapassar a dificuldade.
Outro aspeto também, já quando referiu a sua experiência de enquanto Secretário de Estado, é o das negociações para os tratados de Amsterdão e de Nice. Como é que são realizadas estas negociações?
Esse tratados passam por um processo negocial longo, de muitos meses, de centenas de horas de debate. São as chamadas Conferências Intergovernamentais. Cada país, em regra, designa um negociador-chefe, que se rodeia de pessoas das áreas do governo a quem poderá interessar a negociação. Nos tratados que vieram a chamar-se de Amesterdão e de Nice, eu fui designado pelo governo como negociador-chefe, cumulando com a minha função de Secretário de Estado dos Assuntos Europeus. No anterior tratado, chamado de Maastricht, o meu antecessor como Secretário de Estado decidiu indicar negociadores para os capítulos económico e político, fazendo ele a coordenação. O modelo do tratado de Lisboa foi também diferente, tanto mais que o texto partia do projeto de Tratado Constitucional, que foi rejeitado pelos referendos francês e holandês, depois da chamada Convenção Europeia.
O processo negocial é complexo. Em regra, no âmbito europeu, entre os chefes de Governo, é estabelecida uma agenda, assente nas áreas do anterior tratado que se pretende alterar. Cada país, no plano interno, olha para a agenda e define se está ou não interessado em associar-se às mudanças. Pode fazer propostas ou reagir às que vão surgindo. A nível do governo, é aprovado um mandato para o trabalho do negociador-chefe, que, em princípio, ele tem de respeitar. O grande problema é que, muitas vezes, a dinâmica dos debates vai mudando a própria agenda inicial e nós temos de estar preparados para evoluir das nossas posições de partida. Ora isso implica estar sempre a consultar as áreas técnicas do governo que são relevantes para os temas em discussão. No fundo, temos de ir revendo aquilo que era o nosso mandato inicial. O negociador nacional não pode perder de vista que o tratado que sair da negociação europeia tem de ser ratificado no parlamento português. Daí que, com regularidade, tenha de ir à Comissão Parlamentar de Assuntos Europeus dar conta de como anda a negociação. E, ainda antes disso, tem de ir informando o seu próprio governo do que anda pela Europa a decidir em nome dele... É um processo interessantíssimo em que eu percebi que, às vezes, era mais fácil negociar na Europa do que com os vários ministérios portugueses! Foi um trabalho fascinante, mas muito cansativo.
Só mais uma nota. Ainda antes de chefiar a negociação em Amesterdão e em Nice, eu já tinha feito parte do “grupo de reflexão” que inventariou as modificações a introduzir no tratado de Maastricht. E, enquanto decorria a negociação do Tratado Constitucional, que seria rejeitado, e estando como embaixador na OSCE, na Áustria, vim a Lisboa aconselhar o governo de então nessa negociação. Mas nada tive a ver com o Tratado de Lisboa.
E quais foram os principais desafios à posição de Portugal durante essas negociações?
É difícil sumariar aquilo que foi um imenso trabalho. Diria que tínhamos uma agenda defensiva, uma agenda ofensiva e uma agenda funcional. Eu explico.
A agenda defensiva era, no essencial, conseguir não perder poder próprio numa Europa cada vez mais alargada: poder de voto no Conselho de Ministros europeu e número de deputados no Parlamento Europeu. Além disso, queríamos manter a unanimidade em áreas que fossem muito sensíveis para Portugal. Mas havia bastantes outros aspetos em que tínhamos de ter uma postura restritiva. O que eu pretendia garantir era a nossa capacidade de bloqueio. Pode parecer que estava assim a tentar prejudicar o funcionamento da União. Mas não era isso. A capacidade de bloqueio na União Europeia é uma coisa importante, porque quando se tem capacidade potencial para bloquear uma decisão, isso não significa que a vá bloquear, mas apenas se quer utilizar esse poder para fazer pressão junto da Comissão Europeia para que ela, na apresentação da proposta, tenha em atenção as nossas preocupações, para que não fiquemos isolados. Portugal, na União Europeia, tem uma posição difícil. Temos 10 milhões de habitantes, isto é, a mesma população que a Bélgica ou a Áustria, mas não temos os mesmos problemas desses países. A maioria das decisões tomadas no processo decisório legislativo europeu cobrem os interesses da Bélgica ou da Áustria, mas não cobrem necessariamente os interesses de um país pobre, pouco menos desenvolvido, periférico, económica e fisicamente, como é Portugal. Os nossos interesses são periféricos e não são cobertos pelo “mainstream” das decisões que são interessantes para a França e para a Alemanha e, portanto, para a Bélgica, para a Holanda e para o Luxemburgo, porque estão ali no meio dessa geografia desenvolvida. Nós estamos fora, estamos mais longe, somos mais pobres. Temos assim que encontrar maneira de garantir um mínimo de força institucional para preservar essa nossa diferença. E esse é sempre um desafio para qualquer negociador português.
A agenda ofensiva essencial era conseguir garantir uma base jurídica para poder beneficiar as regiões ultraperiféricas dos Açores e Madeira. Nos Tratados anteriores havia apenas uma declaração, na base da qual nós conseguíamos algum financiamento. Pretendíamos uma base jurídica, que era o que nos dava força para, em termos orçamentais, poder ter verbas. É sempre difícil, porque com uma União a alargar-se, naturalmente, sendo o bolo o mesmo, as fatias são menores. Conseguimos o nosso objetivo e as Regiões Autónomas beneficiam hoje disso.
A agenda funcional era de natureza política. Nós tínhamos de conseguir mostrar que, não obstante as nossas resistências à perda de poder institucional, no voto e na preservação pontual do veto, estávamos, em muitas áreas, abertos a considerar um alargamento do número de decisões a tomar por maioria qualificada. Além disso, desejávamos ser criativos na possibilidade de criar modelos de integração diferenciada, as chamadas cooperações reforçadas, a possibilidade de alguns Estados poderem estar juntos na execução de algumas políticas, com outros a não quererem ir tão longe.
Se existir o alargamento da União também a Leste, isso vai complicar um pouco mais as negociações?
O projeto europeu começou com seis Estados e vai em 27. Quase todos os alargamentos da União mudaram a sua natureza. Mas é evidente que o alargamento da União Europeia aos países do centro e do leste alterou qualitativamente a União. Por exemplo, alterou a sua política externa. Já não se ouve falar de política mediterrânea na União Europeia. Já não ouve falar de relações com a América Latina. Já não se ouve praticamente falar das relações com a África. O peso do centro e do leste europeu, e a concentração de interesses no confronto com a Rússia, bem como na questão ucraniana, e mesmo na questão do Médio Oriente, levou a uma deslocação geopolítica de interesses que mudou a natureza da União.
Quanto aos novos possíveis alargamentos de que se fala, nomeadamente aos Balcãs, o único que traria um impacto muito significativo seria o da Ucrânia. Lembro que este passaria a ser o mais extenso país da União e que a aplicação à Ucrânia das políticas atuais da União, nomeadamente a Política Agrícola Comum, mesmo com fases transitórias, implicaria um aumento exponencial do orçamento comunitário. Ora se nós estamos com imensa dificuldade em discutir as contribuições para a defesa, somar a isso um aumento brutal das contribuições nacionais para suportar a integração ucraniana levaria, inevitavelmente, a uma redução drásticas das políticas e apoios sociais. Haverá um ambiente político que permita fazer isso sem revoltas sociais nos 27? E será possível fazer aceitar isso nos parlamentos desses Estados, que têm de votar unanimemente tais medidas? Confesso que duvido.
Mudando agora para a política internacional, um tema que se tem falado muito nos últimos tempos é do Presidente Trump e da questão da Gronelândia. Que impacto é que isso poderá ter nas relações transatlânticas?
Estamos perante um presidente americano imprevisível, com uma lógica de “quero, posso e mando”. Estamos perante uma situação inédita no quadro internacional, que é um Presidente que, no seu próprio país, conseguiu juntar, pela primeira vez, todos os poderes - a vitória da presidência, com maioria de votos, o que lhe confere uma legitimidade grande, com a maioria dentro da Câmara dos Representantes, com a maioria dentro do Senado e com o Supremo Tribunal Americano, com a maioria. Ora a América não é um país qualquer: é o país mais poderoso do mundo, com as mais poderosas Forças Armadas do mundo, a maior potência económica mundial. Ora é esse mesmo país que afirma, pela voz desse Presidente, um total e completo desrespeito pela vontade dos outros, pela vontade de todos quantos se possam opor à vontade americana. Na minha opinião, isto é de uma gravidade sem precedentes. Traduz uma mudança quase sistémica e epistemológica relativamente àquilo que foi a posição americana no passado. Os americanos foram os inspiradores da nova ordem internacional após a 2ª Guerra Mundial. Essa ordem internacional era baseada nas Nações Unidas, às quais os americanos por vezes se ligavam, por vezes se desligavam, conforme lhes desse jeito, faziam uma espécie de multilateralismo à la carte. A partir do momento em que os Estados Unidos dizem que é a sua maior força que determinará as regras de poder à escala mundial, isso significa colocar todo esse normativo que os Estados Unidos nos tinham ensinado a respeitar fora do cenário. E ao fazerem-no, criam uma ordem internacional diferente, que vai inclusivamente, para alguns outros poderes mundiais, pensar que, se tiverem força para atuar numa certa zona, poderem fazê-lo. E agora levanta-se uma questão: quem é que pode travar o poder unilateral dos Estados Unidos? Será a Europa e os seus aliados ocidentais? Não, a Europa e os seus aliados ocidentais estão “taken for granted”, como se costuma dizer. Não têm força, não têm vontade, porque são incapazes de gerar uma vontade para se opor aos Estados Unidos. Nem têm força militar, nem vontade para se opor aos Estados Unidos. Será a Rússia? A Rússia provavelmente vai encontrar uma forma de acomodação com os EUA, a preço de algum espaço na Ucrânia. Será a China? De facto é o único poder que, não no poder militar, mas ao nível de poder económico, pode confrontar os Estados Unidos.
Perante tudo isto, Trump está à solta. Com uma exceção possível, que é o voto futuro do povo americano, o mesmo que o elegeu. Isto é, Trump, daqui a dois anos, vai ter “midterm elections” e esse sufrágio vai, muito provavelmente, de acordo com tudo aquilo que a experiência passada provou, e a menos que a democracia nos Estados Unidos entretanto colapsasse, dificultar a posição do Presidente, como aliás já se viu, ligeirissimamente, na difícil eleição do novo Presidente da Câmara dos Representantes. Se Trump vier a perder a Câmara dos Representantes, isso vai, de certa maneira, atar-lhe politicamente as mãos. Além disso, não pode ser reeleito, porque as regras americanas não o permitem.
A questão da Gronelândia? A Gronelândia já tem lá americanos, já há ali uma base americana, assente num acordo entre Dinamarca e os EUA. Gostava de lembrar que a Dinamarca não é, para os EUA, um país qualquer na Europa. Fala-se disso muito pouco, mas há um acordo de natureza secreta, em matéria de "intelligence” entre os Estados Unidos e a Dinamarca. E portanto, o que vai acontecer é que este “bullying”, porque isto é puro “bullying”, vai ter como consequência os dinamarqueses darem mais espaço aos americanos na Gronelândia. É isso que Trump quer, para dar oportunidades de negócios aos seus amigos do dinheiro. Vale a pena começar a chamar-lhes o nome devido: são os oligarcas americanos.
Ainda na questão europeia e nas relações transatlânticas, será que a Europa está na altura de ter a sua tão discutida autonomia estratégico-militar?
Uma completa autonomia estratégico-militar europeia afigura-se-me um sonho irrealizável. Em primeiro lugar, é uma evidência que, no imediato, se os Estados Unidos saíssem da Nato, a Nato parava. Há importantes valências dentro da Nato que só existem e só podem ser exploradas porque os Estados Unidos lá estão. Não é possível substituí-las, ou melhor, ao que parece, seria possível a Europa vir a criá-las, mas apenas num prazo de 30 a 40 anos, e só se houvesse uma vontade coletiva simultânea para isso. E ela não existe. A Europa não é um país, são 27 países, com 27 agendas de interesses, com 27 agendas de preocupações, com 27 governos diferentes, com 27 fronteiras diferentes, com imaginários diferentes sobre o que é a própria Europa, os seus desafios e finalidades. Cada país tem a “sua” Europa. E só pontualmente essas Europas coincidem.
Há uns anos, fui pela Fundação Gulbenkian à Estónia, para participar num exercício comparado de perceções sobre a ideia europeia e os problemas da Europa. A certa altura, abordámos a hierarquia desses mesmos problemas europeus, na perspetiva de cada país. O chefe do grupo estónio disse então: "Nós temos 10 problemas. O primeiro chama-se Rússia, o segundo chama-se Rússia, o terceiro chama-se Rússia, e, quanto ao quarto, talvez possamos hesitar se é Rússia ou se é outra coisa qualquer”. E isto foi bem antes da invasão da Ucrânia! Ora, se perguntar a mesma coisa em Portugal ou em Malta ou na Irlanda, a hierarquia dos problemas não é a mesma. Quero com isto dizer que cada um de nós está na Europa com uma agenda e com um empenhamento diferentes. Às vezes, há momentos de sintonia. Por exemplo, a Europa costuma reagir bem aos sustos que sofre. Costuma-se dizer que os “pais” da Europa unida foram Robert Schumann e Jean Monnet. Mas alguns, ironicamente, acrescentam José Estaline a esses fundadores. Porquê? Porque a Europa também foi criada pela existência da Cortina de Ferro, pelo medo do mundo soviético que estava do outro lado. A Europa une-se pelo medo, como se viu no caso recente da Ucrânia, bem patente na súbita mudança da Suécia e da Finlândia quanto à NATO. Mas não estará a Europa ainda sob esse choque? Talvez, em parte, mas isso não me parece ser suficiente para provocar uma agregação de vontades políticas, com consequências institucionais significativas. Porquê? Porque nós somos, como disse, 27 países, com parlamentos diferentes, com ciclos eleitorais não coincidentes.
Veja-se, por exemplo, a questão das relações da Europa com os Estados Unidos. A relação da Europa com a América só aparentemente é unívoca. Os países europeus não olham os EUA da mesma forma e relacionam-se com eles cada um a seu jeito. Veja a senhora Meloni, que foi já “pedir batatinhas” a Donald Trump. Aposto que vamos assistir aos líderes europeus serem “pescados à linha” por Trump, porque ficarão seduzidos se Trump lhes telefonar. O poder é uma coisa verdadeiramente afrodisíaca. E a Europa coletiva, a União Europeia, vai ser a grande vítima de tudo isto. Aguardemos pelas medidas de natureza aduaneira que a América vai impor. Na parte militar e de segurança, a Europa vai ter de fazer o que Trump quiser. Como já acontece com o gás, que a Europa compra aos Estados Unidos a preços muitos mais caros do que comprava à Rússia. E vamos assistir a uma crescente pressão para a aquisição de armamento americano, com a correspondente pressão para gastar uma maior percentagem dos orçamentos nacionais em defesa. O poder tem muita força. E o poder americano tem, neste momento, uma força desmesurada para ser possível uma gestão democrática do mundo.
E qual é o grande desafio que a União Europeia vai enfrentar, para além da guerra na Ucrânia? A competitividade. O relatório Draghi é um excelente mostruário daquilo que é a dificuldade que a União Europeia tem, num quadro de globalização ameaçada, de garantir uma capacidade de afirmação económica à escala global, que seja competitiva com outros atores, que se lhe opõem ou que com ela rivalizam. A União Europeia tem um desafio muito complicado, que é a dificuldade de, ao mesmo tempo, conseguir defender-se, manter o seu modelo social e ser competitiva. Tudo isto num ambiente com pulsões migratórias e medos de vária natureza. E, se não conseguirem esta “quadratura do círculo”, os governos mais moderados perderão legitimidade perante os seus cidadãos, que se sentirão tentados a dar oportunidade a propostas extremistas. E aí terá sucesso o populismo, o autoritarismo a demagogia.
E a economia verde poderá ser, digamos, um novo modelo económico para a Europa?
Tenho um forte sentimento de que sim, mas não tenho um conhecimento especializado sobre o tema. Na vida, fui aprendendo a não ter opiniões fáceis sobre temas complexos, sobre áreas que não domino. A sensação que tenho é que o desafio da economia verde não é apenas importante para a Europa, é vital para o futuro do mundo, sem o que entraremos numa espiral de tragédia que, pelos vistos, pode ser ainda mais acelerada do que aquilo que se estava à espera. A Europa tem feito coisas muito importantes nessa área, saltos decisivos, quer sob o ponto de vista de avanços tecnológicos, quer na criação de uma nova cultura comportamental. Infelizmente, e não obstante o excelente trabalho promovido pela Comissão Europeia, constata-se que há forças dentro das instituições, nomeadamente no novo Parlamento Europeu, que começam a “remar” num sentido contrário, apoiando tendências mais regressivas em matéria agenda verde. Porquê? Por meros motivos de natureza económica, para terem ganhos de natureza imediata. É aqui que a grande questão se coloca: se estamos interessados no lucro ao fim do mês ou se nos interessa evitar o fim do mundo. Temos de optar.
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