9 de novembro de 2018

“Autobiografia”


Se a vida são dois dias, aproveitemos as noites

Nasci, ao que me disseram, já o dia tinha entrado há muito pela noite. Sempre me perguntei se isso não terá marcado o meu destino. Sou um assumido militante da noite, embora só raramente tenha sido um notívago. Ou melhor, fui sempre um notívago sereno.

O imperativo “apaga a luz!” persegue-me desde a infância. Dou por mim, lá por Vila Real, a tentar ler Júlio Verne e coboiadas importadas do Brasil, graças a um candeeiro escondido sob os lençóis. Em férias, em Viana do Castelo, com a luz já apagada por imposição paterna, recorria à luminosidade declinante de uma Nossa Senhora fosforescente para observar, sob os lençóis, páginas inacabadas dos Tintin. Foi também pelas noites que, no final da adolescência, ouvia a Radio London e a Radio Caroline, as rádios-pirata que me traziam a música anglo-saxónica e, mais tarde, também as rádios épicas da liberdade que, para os “amigos, companheiros e camaradas” de quem me ia sentindo próximo, por cá tardava em chegar.

Quando, em meados dos anos 60, fui estudar para o Porto, foram as noites, da Candeia à Japonesinha, das conversas no lar da Torrinha ou no quarto a meias na Miguel Bombarda, além de um mundo de aventuras sem fim, e que afinal apenas vingavam o meu jejum adolescente vilarrealense, que viriam a arruinar, de vez, o percurso académico do engenheiro que então julgava poder vir a ser. O teatro, o atletismo, até o incipiente jornalismo, compunham a sofreguidão do usufruto de um quotidiano que me desviava daquilo que me estava destinado. As noites no Rádio Clube, com o Alfredo Alvela, que acabavam em madrugadas no Ginjal ou no Transmontano, fizeram o resto. Vistas as coisas em perspetiva, ainda bem!

Lisboa, para onde depois me mudei, mudou-me um pouco, mas não no essencial. Na escola onde Adriano Moreira preponderava, descobri um percurso académico que me agradava. Afinal, “tirar o curso”, desiderato à época essencial, talvez fosse possível. A vida, porém, levou-me por muitos e inesperados caminhos de interesses. Passei a encontrar-me com outras noites, da Granfina ao Montecarlo e ao Bolero. As olheiras com que entrava nas aulas, bem como, mais tarde, na Caixa Geral de Depósitos, onde entretanto me empregara porque sobressaltos académicos a isso haviam obrigado, eram produto do contraste dos horários, agora imperativos, com esse tempo lúdico que eu teimava em não deixar escapar. Havia já então por ali bastantes livros, muitos em francês, lidos avidamente por madrugadas, no meu quarto nos Olivais, com a chama vermelha de Cabo Ruivo a ver-se ao longe. Chama vermelha essa que, noutro registo, adubado por lutas académicas e aventuras cívicas mais ou menos óbvias para a minha geração, me pôs na pista de amanhãs que acabaram finalmente por cantar, também numa noite, claro, de um certo dia 25. E aí, sim! Fardado de abril, com farto bigode e cabelo a desafiar as NEP’s, foram então muitas mais as noites de sonhos acordados, tentando apressar o futuro, já com família, num tempo excitante e, esse sim!, bem novo.

Um dia, por um acaso da vida, as minhas noites (e, vá lá!, também os dias), mudaram de latitude. Recordo, da janela da minha casa, em Oslo, rodeado de livros, com uma Aquavit a aquecer-me as leituras, com música em fundo, ver a neve cair no escuro, com Holmenkollen no horizonte. Vivi muito bem as famosas longas noites nórdicas e, dentro delas, tive conversas com amigos que me ficaram para a vida. A diplomacia, nesse entretanto, acabaria por ser a minha via profissional definitiva, que aliás nunca me passara pela cabeça seguir, à qual me habituei com forte dificuldade interior (confesso agora), mas que, com o tempo, passou a fazer parte de mim. Olhando para trás, não trocaria essa “estranha forma de (boa) vida” por nada! 

Outros dias, e outras grandes noites, surgiriam, logo depois, na Luanda que o futuro me destinou. O “recolher obrigatório” criava por ali uma espécie de noites compulsivas, que vingávamos com muita festa, muitos copos, muita risada, como que a compensar a nervoseira de um quotidiano da guerra que se vivia no país, de insegurança nas ruas, de um sabe-se lá o que será o amanhã. Tínhamos a idade para isso, os amigos à mão, a genica para as noitadas imensas. Esses anos, que poderiam ter sido chatíssimos, acabaram por ser dos melhores das nossas vidas. Até no trabalho, muito interessante e intenso.

Regressado a Lisboa, surgiu-me pela frente a grande aventura europeia do país. Eu era então um “soberanista” ferrenho, desconfiado da bondade do projeto bruxelense, como impenitente esquerdista que então me orgulhava de ser. Nos anos que se seguiram, a profissão levou-me bastante pelo mundo, da África à Ásia, do Pacífico à América. Grandes noites de conversa, de viagens transatlânticas, de jet-lag sucessivos! Talvez tenha sido, em parte, esse contraste com gentes muito diversas que tenha ajudado a convencer-me da “bondade” do projeto europeu de integração. E a amortecer, de caminho, algum radicalismo do passado. Nunca o saberei! 

Quando, em 1990, na rotação a que a profissão obriga, aterrei na nossa embaixada em Londres, no tempo do estertor de Thatcher, alguma coisa mudara já dentro de mim. Mergulhei noites inteiras na leitura, na conversa, nos teatros e na música da mais viva capital europeia. Foi um dos postos mais trabalhosos da minha vida, mas um dos mais interessantes.

Por um inesperado acaso, Lisboa voltaria a surgir-me no destino, quatro anos mais tarde. E por ali mergulhei, de novo, nas coisas europeias, que estavam então “na berra” da nossa política externa. Foi esse também o tempo áureo das noitadas na tertúlia do Procópio, tutelada pelo Nuno Brederode, das jantaradas num Bairro Alto que andava na moda mas que já começava a não caber nessas costuras - ah! e para que não restem dúvidas, nunca fiz parte das “tropas” do Frágil e da movida que chegou ao Lux! Sempre fui de outra Lisboa, de outras “equipas”, sem veleidades de modernidade vanguardista. E sempre me dei bem assim!

Um dia, quase de surpresa, mas com alguma lógica de percurso, acabei por tomar posse de um lugar governativo onde, ironicamente, iria, por mais de meia década, tutelar - ele há cada uma! - a integração europeia do país. A vingança, diplomática, afinal serve-se fria. Pertencer a um governo tem graça, desde que a ele nos não habituemos. Nunca me arrependi da opção que fiz. As mordomias, os carros, os jantares, as vénias de alguns - tudo isso passou por mim sem (julgo eu!) me afetar excessivamente. Trabalhei então imenso, cansei-me muito, dormi muito pouco (lá estão as noites!), viajei talvez demasiado, mas, caramba!, também me diverti à brava! Olhar o mundo desse lado não nos deixa iguais embora, no meu caso, me tenha deixado (sei que muitos não acreditam, mas que se há-de fazer?) sem a menor vontade de praticar um “remake”. 

Com o cabelo muito mais branco, regressei um dia, de forma planeada e sem o menor “stress”, à profissão que já tinha por minha e por destino. Na vida que aí vinha, estava Nova Iorque, a fantástica cidade que, trinta anos antes, eu visitara nas minhas primeiras férias como funcionário bancário. Quase ainda a desempacotar as minhas coisas, vi as Torres Gémeas caírem ali ao lado, mudando muito mais do que uma cidade. Foi um tempo intenso, interessante, de imensa aprendizagem, com dias cheios e, infelizmente, escasso usufruto das noites.

Tempos depois, novo rumo de vida: Viena. Não sou muito dado a dourados palacianos, prefiro o jazz à valsa, gosto mais da Broadway do que do Musikverein. Mas o que tem de ser tem muita força e lá tive eu de encher-me de noitadas no meu terraço sobre o Graben. Muitas jantaradas de Wienerschnitzel e Sachertorte, regadas a Riesling. Viena, por esse tempo, acabaria por se transformar numa espécie de placa giratória: dali descolei, incessantemente, para as misteriosas fronteiras da nova Rússia, para os Balcãs e vários outros destinos, para “fact-finding missions” ou para palestrar sobre temas etéreos, quase sempre em áreas instáveis e turbulentas. Foram, contudo, tarefas muito interessantes. E as noites, nesses mundos muito eslavos, foram muitas e longas, com gente muito diversa, fora do paradigma tradicional ocidental. Aprendi imenso! E diverti-me, claro! Foi um tempo de muitas libações, ilustradas por alguns belos vodkas, conversas pouco óbvias num tempo polémico em que o fim da “détente” já se prenunciava.

A graça da vida diplomática é a sua incerteza. Para quem, como eu, acabou por ter 21 ministros dos Negócios Estrangeiros na sua carreira, viver em sete cidades estrangeiras, em diversos continentes, não pode assustar. O Brasil, uma das mais complexas - se bem que, aparentemente, simples - relações bilaterais de Portugal, saiu-me depois em rifa. Em boa hora! Aprendi, desde logo, que devia ser “obrigatório” para qualquer diplomata português ter um contacto com a realidade brasileira, para pôr fim a alguns mitos, diluir preconceitos e ajudar-nos a situar melhor no mundo. Quatro anos de Brasil, visitando 23 dos seus 27 Estados, fez-me perceber muitas coisas. A vida correu-me bem por lá, mas eu fiz bastante por isso. 

Quando, quatro anos depois, aterrei em Paris, senti-me quase em casa. No final dos anos 60, eu chegara àquela cidade, saído à boleia de Lisboa, como um peregrino que chega a Meca. Depois, viciei-me e passei muitas mais vezes por lá. Regressar como embaixador seria, contudo, muito diferente, muito mais do que eu pensava. Claro que havia os restaurantes e as livrarias, mas as horas foram sempre muito contadas, nos anos em que, até à minha reforma, por ali fiquei. Trabalhei muito, assisti a tempos muito diversos, nem sempre bons, em especial para a imagem de Portugal no mundo. E, como em todo o lado, alimentei-me por ali da serenidades das noites, onde conversei imenso, li muito e, em especial, pensei. 

Em 2013, tal como estava planeado desde há muito, regressei, definitivamente, a Portugal. Era a reforma? “Sort of”, como dizem os anglo-saxónicos. Não parei, desde então, um segundo. Houve empresas que quiseram passar a ouvir a minha opinião sobre as áreas internacionais dos seus negócios, universidades que me contrataram para dar aulas ou me convidaram para as aconselhar, jornais que me ofereceram colunas para eu escrever o que pensava. Fora dessa dimensão mais “séria”, que muito me agrada, divirto-me com o usufruto outros prazeres, como os livros, a escrita, a gastronomia e as viagens. Leio, leio muito, escrevo um blogue pela noite dentro, frequento tertúlias muito diversas. E, pelos dias, mas essencialmente pelas noites, estou com os amigos, com a família. Às vezes, perco alguns deles, dos bons, o que me deixa nostálgico, confesso. Mas tento olhar em frente, aproveitar, ao máximo, este país renovado, magnífico, sereno, que gargalha para as aves agoirentas, para os profissionais da inveja e do mal-dizer, figuras que apetece irritar - e eu faço-o, com algum gosto. Uma terra que agora anda bastante mais feliz do que, ainda há pouco, parecia condenada a ser. Carpe diem! 

(Publicado no JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, em 7 de novembro de 2018)

3 comentários:

  1. Mais um excelente texto, a que há muito nos habituou.
    Obrigado

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  2. Gostei muito de o ler Sr Embaixador Seixas da Costa, porque conhecê-lo foi um prazer e te-lo por amigo uma honra!

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