2 de dezembro de 2019

Tratado de Lisboa - 10 anos depois

Começo por agradecer ao senhor ministro Augusto Santos Silva a amabilidade do seu convite para aqui estar, ao seu lado, nesta data que marca uma década desde a entrada em vigor do Tratado Reformador - era assim que se chamava originalmente o Tratado de Lisboa,

Devo confessar que fiquei um pouco surpreendido com este convite. Mas apenas por uma razão: é que nunca fui conhecido por ter uma grande simpatia pelo Tratado de Lisboa.

Em 2008, estava embaixador no Brasil, escrevi, numa revista de Relações Internacionais de S. Paulo, um artigo sobre o tema que estava longe de ser elogioso. Reproduzi esse texto mais tarde, sob o título “Um Tratado para outra Europa”, num livro que publiquei em 2009. Podem não acreditar, mas decidi não reler esse texto, para não ser influenciado pelos preconceitos que tinha à época.

Recordo, no entanto, que era uma análise política serena, muito centrada nas dúvidas sobre aspetos funcionais do Tratado, escrito com a disciplina que compete a um embaixador cujo governo se envolve empenhadamente num determinado projeto. Mas, em privado, devo dizer que chamava aos amigos portugueses que ajudaram a concluir o Tratado, “os tratantes de Lisboa”...

A verdade é que, com o tempo, fui melhorando a minha opinião sobre o Tratado de Lisboa. E mudei, desde logo, a ideia de que Portugal poderia ter feito diferente na gestão negocial do Tratado, em especial para colmatar os principais defeitos que eu então achava que ele tinha. Ora Portugal tinha herdado uma negociação que vinha das pesadas mãos da Alemanha, e isso conta muito, como todos sabemos. Além disso, já à época, tinha ficado para mim muito evidente que, sob a liderança política de José Sócrates - sei que não está na moda pronunciar este nome -, Portugal fez então um excelente trabalho, na sua Presidência, na fase final da conclusão do Tratado que viria a chamar-se de Lisboa. Aproveito também para relembrar aqui os nomes de outras pessoas envolvidas nesse trabalho: Luis Amado, Manuel Lobo Antunes, Alvaro Mendonça e Moura, Nuno Brito, entre outros.

Permitam-me regressar um pouco atrás no tempo, num brevíssimo bosquejo da atitude portuguesa perante a Europa. Sem isso, é difícil entender o porquê de certas posições. Eu tinha tido a responsabilidade de titular a representação portuguesa no grupo negocial dos tratados de Amesterdão e de Nice, neste último coordenando a parte técnica da CIG.

Ainda antes disso, tinha estado como substituto do professor Gonçalves Pereira, no “grupo de reflexão”, chamado “grupo Westendorp”, que, durante 1995, havia feito um inventário daquilo que eventualmente seria necessário mudar no Tratado de Maastricht, a fim de adaptar as estruturas comunitárias aos alargamentos que aí vinham e melhorar a eficácia funcional da máquina institucional.

Há nesta sala pessoas desse tempo e que se recordam, com certeza, que nesta casa se vivia alguma dessintonia entre uma tradicional perspetiva soberanista, muito ciosa da preservação da unanimidade e do poder de veto, com uma outra escola mais europeísta, aberta à ideia de que mais Europa, isto é, um projeto europeu mais aprofundado, significava um melhor terreno para a defesa não apenas dos nossos interesses, mas da própria eficácia de Europa - que também é, vale a pena lembrá-lo, um interesse nosso.

A negociação de Amesterdão e de Nice viria a ajudar muito o MNE a transitar da primeira posição para a segunda. E esta mudança tem uma cara e um nome: António Guterres. Foi António Guterres, com Jaime Gama, quem pilotou essa mudança, nos dois governos sucessivos que chefiou. Portugal passou então da sua tradicional atitude mais defensiva na Europa para uma posição muito mais pró-ativa, que não chegava ao ponto de ser federalista mas que era muito propensa, por exemplo, a aceitar bem uma questão que era vista, cada vez mais, como essencial para a funcionalidade da máquina decisória europeia: o aumento das matérias em que as votações se fariam por maioria qualificada, com o fim da unanimidade, com a consequente alargamento de poderes de co-decisão do Parlamento Europeu.

Devo confessar que, eu próprio, que estava muito marcado pela atitude soberanista, que estava muito na matriz desta casa, vim a interiorizar, numa evolução durante os mais de cinco anos em que fui secretário de Estados dos Assuntos Europeus, uma atitude mais europeísta do que aquela que originalmente tinha. Não tenho a menor dificuldade em assumir isto.

Amesterdão e Nice, como é sabido, foram tratados “tímidos”, naquilo em que conseguiram avançar. O espetro de Maastricht, dos referendos, da dificuldade das ratificações nacionais, esteve sempre presente, em especial na negociação do Tratado de Amesterdão. Eu recordaria que, em Maastricht, as instituições comunitárias haviam tocado aquilo que era o “core” da soberania dos Estados: a moeda, a política externa e de segurança, mesmo a justiça e assuntos internos.Terá sido isso que provocou o primeiro sobressalto em certas opiniões públicas. E o automatismo das reformas europeias nunca mais foi o mesmo depois de Maastricht.

Esse trauma esteve presente nas quase 350 horas que estivemos à mesa durante as negociações do Tratado de Amesterdão, um acordo que tinha já no horizonte o grande alargamento a Leste. Como se recordarão, esse tratado fechou e foi assinado deixando para trás os seus chamados “leftovers” ou “reliquats”: a dimensão da Comissão, a revisão do poder de voto de cada Estado, agregado ou não ao peso populacional, e uma maior dispensa da unanimidade em certas decisões, que se ligava à co-decisão com o Parlamento Europeu.

E porque havia uma pressão, insuportável, para resolver esses “restos”, abriu-se, algum tempo depois, a negociação do Tratado que haveria ser de Nice.E foi aí que os demónios se soltaram e a luta pelo poder de cada Estado, que estava um pouco disfarçada, se revelou em pleno. Deu-se conta de uma realidade muito clara: os países que tinham as rédeas das Comunidades desde a sua criação, e que tinham visto o seu poder relativo erodido com os sucessivos alargamentos, queriam garantir que, numa União muito mais alargada, com Estados de uma natureza diferente, não iam perder mais poder.Deixou de haver punhos de renda e Nice acabou por ser uma luta despudorada. Pela nossa parte, mostrámo-nos abertos aos principais avanços europeus, mas revelámo-nos indisponíveis para passar a ser irrelevantes no processo decisional futuro - em termos de votos no Conselho, de lugares no Parlamento europeu e no direito a nomear um comissário.

E tal como, depois de Amesterdão, tinham ficado os seus “leftovers”, dos turbulentos dias de Nice acabaria por sair a iniciativa de Laeken, desta vez a ideia de que era preciso dar um salto de aprofundamento, quiçá de sentido constitucionalizante - se a palavra existe. Daí viria a surgir a ideia da Convenção para o Futuro da Europa, pela constatação de que o modelo das Conferências Intergovernamentais tão conseguiam dar saltos suficientemente ousados para aquilo que alguns pretendiam. E foi da Convenção que nasceu o projeto de Tratado Constitucional. A França, que tinha conseguido impor Giscard d’Estaing à frente da Convenção, acabou por ser um dos primeiros países a dar cabo do trabalho desta, derrotando em referendo a ideia do Tratado Constitucional.

Que fazer?, então, como diria um clássico. A Europa bruxelense não se deixa derrotar com facilidade. Percebendo que não conseguia ter ambiente, a nível das opiniões públicas, para fazer aprovar essa espécie de Constituição Europeia, a máquina de Bruxelas fez um truque semântico: readequou o Tratado de Maastricht, que já tinha sido “remendado” em Amesterdão e Nice, e introduziu-lhe aquilo que considerava essencial no Tratado Constitucional, que tinha acabado de ser derrotado. Mudou palavras, reorganizou o texto e “vendeu-o” bem, sem necessidade de grandes legitimação popular, como se de um mera reformulação se tratasse. E não era. Foi a isso que se chamou Tratado Reformador e, depois, tratado de Lisboa.

Vale a pena dizer, com honestidade, que todos estes passos, que já vinham do Tratado de Roma e que passaram pelo importante Ato Único Europeu, um passo institucional a que muitos não deram a importância devida, representaram sempre, em maior ou menor grau, saltos qualitativos importantes, que foram melhorando a funcionalidade da máquina europeia, que trouxeram maior legitimidade e uma participação mais alargada à tomada de decisões, reforçando a democraticidade da União.

Mas, se assim é, por que diabo tinha eu dúvidas sobre o Tratado de Lisboa? Não vou aqui descrever o Tratado e os seus principais aspetos, que podem ser lidos na net, mas vou referir as minhas dúvidas e o seu porquê. Eram todas de natureza institucional. Na realidade, o Tratado de Lisboa trouxe muito pouco em matéria de novas competências, isto é, apenas mudou pontualmente o modo como certas competências da União eram exercidas. Porém, introduziu alterações sensíveis na estrutura institucional e na relação de poderes entre instituições.

A primeira grande dúvida que eu alimentava era sobre a ideia da criação da figura do Presidente do Conselho Europeu. A minha ideia era de que isso reforçaria a intergovernamentalidade, em detrimento do papel da Comissão, o que seria um importante retrocesso. Para mim, o presidente do Conselho Europeu iria acabar por ser uma espécie de “capataz” do diretório, em particular num processo decisório em que o fator populacional era reformulado.Além disso, os Estados membros de menor dimensão perdiam o destaque dado pelas presidências rotativas, que tinham sido sempre um fator de mobilização nacional para o projeto europeu.

Às vezes, nestas reflexões um pouco pessimistas que eu fazia sobre os perigos da intergovernamentalidade e o jogo grandes-pequenos na Europa, lembrava-me de uma frase que ouvira a António Guterres: “Não se preocupe. As coincidências de interesses entre os maiores países são sempre pontuais. Os seus interesses comuns nunca são suficientes para dispensarem a necessidade de alianças com alguns mais pequenos. E essa é a nossa força!”. Não sei se ele ainda pensa isto hoje, quando enfrenta os P5, nas Nações Unidas...

Mas, pela primeira vez, no Tratado de Lisboa, o Conselho Europeu era uma instituição, com orçamento e regras, poderes claros embora com preocupantes zonas cinzentas de intervenção. Eu podia perceber, contudo, as vantagens do fator continuidade, de um presidente a tempo inteiro, de haver um interlocutor permanente com entidades estrangeiras, de se evitar que a força da Europa pudesse ficar debilitada por figuras políticas menores ou em crise interna. Mas isso não me sossegava.

Uma outra questão neste domínio era a ausência dos MNE nas reuniões dos Conselhos Europeus, o que daria um poder desmesurado aos “sherpas” e aos gabinetes dos PM, que ficariam “à solta”. A autoridade externa dos MNE, na coerência da acção daquilo a que nós chamamos os ministérios sectoriais, ficava muito prejudicada.

Ligada com a questão do Presidente do Conselho Europeu, eu tinha a preocupação essencial de que pudesse vir a criar-se uma bicefalia competitiva com o Presidente da Comissão Europeia, fragilizando-o, bem como à própria Comissão. Nós tínhamo-nos batido pelo reforço dos poderes do Presidente da Comissão, que tinham vindo a aumentar, ao ter direito de distribuir pastas, de remodelar, até de demitir comissários. A Comissão Europeia fora, por muitos anos, o “bom da fita”, o nosso aliado preferencial. Os Estados mais frágeis não se importavam em conferir-lhe mais poderes. Mas descurámos um aspecto: com o Tratado de Lisboa, a Comissão, ao ganhar mais competências na União Económica e Monetária (UEM) iria mudar bastante a sua imagem pública, passando a ser vista como uma espécie de “ASAE do euro”. Se olharmos retrospetivamente para o modo como a imagem da Comissão Europeia evoluiu, parece-me evidente que a sua popularidade se esvaiu bastante com as novas competências. Entre nós, não tenho disso a menor dúvida!

Nas competências novas da Comissão havia igualmente um outro problema, em que o Tratado de Lisboa me não sossegava: as relações externas. Nós sabíamos que era um pouco incongruente a posição relativa do então “Senhor PESC” e do Comissário para as Relações Externas, a que se somavam ainda os MNEs nacionais nas presidências rotativas. Patten mais Solana - o modelo “Patana” - nem sempre funcionou bem, como sabemos. Mas o novo formato criado pelo Tratado de Lisboa tinha um pecado original, para os puristas institucionais: criava uma dupla tutela Conselho/Comissão, ofendendo a integridade de cada instituição. O Alto Representante era escolhido pelo Conselho Europeu, sendo igualmente vice-presidente da Comissão.Curiosamente, depois da experiência menos bem sucedida da baronesa Ashton, o tempo Mogherini viria a revelar-se bem mais positivo, mas continuo um pouco perplexo quanto ao futuro. Dito isto, não me parece que o Tratado de Lisboa tenha sido negativo nesta matéria das relações externas.

Estas eram as minhas principais preocupações. O tempo veio a fazer-me refletir mais sobre o Tratado de Lisboa e hoje olho-o de outra forma.

Para concluir, sobre aquilo que disse e sobre outros temas conexos, quero apenas deixar umas notas soltas, mesmo correndo o risco de estar a exceder um pouco o meu tempo:

· A emergência da crise internacional de 2008, com todas as suas decorrências, não ajudou a testar devidamente, num ambiente de “velocidade de cruzeiro”, as eventuais virtualidades do Tratado de Lisboa, na gestão do processo comunitário. Mas também não deixou a ideia de que o Tratado se constituísse, nesse contexto, como um problema.

· Numa Europa hoje condenada - eu diria mesmo, resignada - a ser tutelada por alguns escassos países, pode dizer-se, com alguma ironia, que o Tratado terá servido à perfeição esse objetivo. Sempre me pareceu, aliás, ser esse um dos seus propósitos.

· Num mundo em turbulência, com o principal aliado tradicional da Europa em rota de afastamento e mesmo de alguma hostilidade, com o espaço multilateral à escala global meio atordoado, em particular por essa razão, com o próprio quadro de relações externas da UE sem um sentido muito claro (Rússia, China, Médio Oriente), salvo na cada vez mais impecável “retórica declaratória”, acho que a ação externa da União acabou por revelar a coerência global que era possível.

· Depois de uma primeira fase de algum desnorte, o modelo unitário de representação externa criado pelo Tratado parece funcionar com aceitável eficácia. Mais dúvidas tenho quanto à operacionalidade e em especial ao prestígio futuro do SEAE, embora aí se tivesse confirmado o expectável, em termos da competição com algumas diplomacias europeias, que se sabia serem intraváveis na sua ambição de autonomia.

· A experiência desta década não parece dar ainda a certeza de que a bicefalia de representação Conselho/Comissão sobreviva para sempre sem grandes problemas. Um primeiro “ticket” mais cinzento, seguido por outro mais “colorido”, não foram ainda, a meu ver, uma amostragem suficiente para fixar doutrina nesta matéria. E temo que uma presidente da Comissão de um país muito forte e um Presidente do Conselho Europeu sem grande força política própria não ajudem, uma vez mais, a testar, com suficiente representatividade demonstrativa, a bondade do modelo.

· O modo como se processou a “marchandage” em torno da distribuição dos cargos europeus, há uns meses atrás, terá provado que o modelo do Tratado de Lisboa não trouxe, a esse nível, um suplemento de racionalidade ao funcionamento da União e apenas provou que “old habits die hard”.

· Ligado a isto, o fracasso do modelo do “spitzenkandidat” do Parlamento Europeu pode contribuir, no plano político, para enterrar a fórmula de governança interinstitucional partilhada que estava no espírito do Tratado de Lisboa. Estamos aqui perante um evidente falhanço, que pode ter consequências sérias.

· Finalmente, e embora correndo o risco de terminar com uma nota pessimista, gostava de dizer que me parece - mas espero bem estar enganado - que, nesta Europa que aí está, já não estamos todos no mesmo barco, muito em especial no terreno dos valores e de alguns princípios. 

· Mas a culpa não será do Tratado de Lisboa nem das suas instituições: é da falta de vontade política de alguns Estados membros, nomeadamente para “partirem a loiça” e “chamarem os bois pelos nomes”, Estados esses sem cujo empenhamento o projeto europeu, que naturalmente não desaparecerá, tenderá a fragilizar-se, a meu ver, cada vez mais. 

· Ah! E reparo nem sequer falei do Brexit!

Muito obrigado, mais uma vez, senhor ministro, pelo simpático convite e a todos pela vossa atenção.

(Intervenção apresentada no Palácio das Necessidades, no dia 2 de dezembro de 2019, data em que se comemorou uma década sobre a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a par de outra proferida pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva)

3 comentários:

  1. De facto foi o Tratado de Lisboa que possibilitou que o Reino Unido saísse da EU; coisa que antes não era possível!
    Também competências que antes eram dos parlamentos nacionais passaram para a EU!

    ResponderEliminar
  2. As usual... Pertinente!
    Subscrevo inteiramente (... )nesta Europa que aí está, já não estamos todos no mesmo barco, muito em especial no terreno dos valores e de alguns princípios. (...)
    Parabéns!

    ResponderEliminar