20 de dezembro de 2024

Entrevista à revista "Must.


Aque horas se costuma levantar? 

Em regra, tarde. Desde que saí da função pública, recusei todos os convites para atividades “from-nine-to-five”, para tarefas executivas. E foram alguns. Desde há 12 anos, sou dono de grande parte do meu tempo, coisa que não tinha sido durante 41 anos. Leio muito e preciso da noite para ler. Assim, tento que o meu dia comece sete horas após o momento em que me deito. Aliás, decido a hora a que me deito e a que quero acordar em função da agenda do dia seguinte. E ponho dois despertadores, para não ter surpresas. Se nada tenho marcado para a manhã, acordo quando acordar.


O que costuma refletir/ponderar/pensar nos primeiros minutos acordado?

Não sou um intelectual das manhãs. Nunca tive ideias geniais ao acordar. Só tenho sono. Não acordo logo, vou acordando. Eu sou como a madrugada: o dia vai nascendo dentro de mim. Verdadeiramente, só acordo cerca de uma hora depois de despertar.


Qual é a sua rotina quando se levanta?

Começo por olhar o iPhone e o iPad, para ver se houve chamadas ou mensagens relevantes. Depois, verifico os emails. Durante a noite chega um mínimo de duas dezenas de emails. Mas quase nada a que seja necessário responder: são essencialmente alertas e notícias, de várias partes do mundo. Umas leio logo, outras guardo para mais tarde, muitas nunca as chego a abrir. Mas procuro ser rápido na resposta a emails que me dirigem.


Que tipo de pequeno-almoço costuma tomar?

Ninguém vai acreditar: não sou eu quem decide. Tanto pode vir fruta como uma torrada com manteiga ou doce ou um iogurte. Ontem, foi Bolo Rei. É sempre um “happening”. No final, em regra, um café expresso.


Costuma haver algum tipo de atividade antes de começar o dia?

Rigorosamente nada. Não sou dado a ginásticas ou coisas assim. É a única coisa em que sou fiel seguidor das ideias de Churchill.


Como são os seus trajetos? Como os faz? A pé, automóvel, transportes…

Em regra, ando em três meios de transporte: de carro, de carro ou de carro. Ando muito pouco a pé e raramente de transportes coletivos. Ando muito de táxi e de Uber/Bolt. Sou um bom cliente da Radiotaxis. Sei que este comportamento não está na moda.


Tem algum tipo de preparação prévia antes do trabalho?

Não tenho rotinas diárias. Tenho tarefas em empresas, que podem ocupar o dia todo ou uma parte do dia. E que ocorrem pontualmente, algumas com atividades separadas por semanas. A maioria são em Lisboa, outras são fora, às vezes no estrangeiro. Antes dessas reuniões, há bastante material para ler e, algumas vezes, trabalho escrito para executar.


A que horas começa a trabalhar?

Trabalho quando entendo. Cada dia é diferente do outro. Às vezes tenho que escrever, na maioria dos casos leio informações e tomo notas durante algumas horas. Posso começar essa atividade depois de acordar, deixá-la para a tarde ou mesmo para a madrugada, onde o trabalho parece render sempre mais. É de madrugada que me surgem algumas ideias geniais. Depois, durmo “sobre” elas e, no dia seguinte, constato, em geral, que eram ideias banais.


Quais são as suas principais tarefas e responsabilidades?

Executo estudos de consultoria estratégica para que sou solicitado, faço parte de órgãos de gestão e supervisão de empresas, sempre em áreas não executivas. Faço comentário sobre temas internacionais na comunicação social, quando a isso convidado e se tenho interesse e disponibilidade para o fazer. E faço palestras e intervenho em debates.


Como gere o seu tempo?

Depois de décadas em que a decisão sobre o tempo não me pertencia, uso a liberdade que ganhei de uma forma um pouco caótica, mas altamente satisfatória. Na véspera de cada dia, arrumo a respetiva agenda, que é imensamente variada.


Como lida com a pressão e o stress?

Bem e mal. Como ficou demonstrado pelo momento de entrega deste inquérito, trabalho sob pressão do tempo e sob algum stress. Às vezes, aceito demasiadas coisas, para serem feitas simultaneamente, e isso traz-me uma pressão desagradável. Já pensei corrigir-me, mas sou cada vez mais tolerante com os meus defeitos, os quais, às vezes, já nem vejo como tal.


Qual é a parte favorita e menos agradável do trabalho e porquê?

Sempre gostei de trabalhar. Durante bastante tempo, trabalhava muito e de forma rápida. Sempre fiz o meu trabalho com alguma satisfação, como um desafio perfeccionista perante mim mesmo. Às vezes, quando vejo mal aproveitado o que me obrigou a algum esforço, fico desagradado. Mas passo à frente. Não esqueço nem perdoo agravos, mas dou-me ao luxo de, na maior parte das vezes, não tirar desforço. Não dou a confiança de me aborrecer (muito) àqueles que me tentam prejudicar.


Tem alguém que o acompanha quando trabalha?

Atualmente não. Já trabalhei com equipas com muitos colaboradores e percebi então o meu principal defeito: a dificuldade em delegar, salvo nas escassas pessoas em quem conseguia ter plena confiança. E nunca soube trabalhar em grupo. Sei que é politicamente incorreto estar a admitir tudo isto, mas, dizia já não sei quem, só a verdade é revolucionária. E esta é a pura verdade.


Costuma fazer pausas? Para?

Faço muitas pausas, às vezes em demasia, com efeito negativo na concentração. Sinto que há em mim defeitos comportamentais que se agravam com a passagem do tempo. Aproveito as pausas para fazer coisas que me satisfazem mais do que aquilo que estou a fazer. E resisto pouco a esses impulsos.


Interrompe o trabalho para almoçar? O que costuma comer e onde?

Se estou envolvido num trabalho, o almoço pode esperar. Mas também posso continuar a trabalhar durante a refeição. Em regra, almoço fora de casa umas três vezes por semana, com amigos ou em almoços de trabalho. Alimento-me sem critérios dietéticos e com escassas preocupações de saúde: em regra, o que me apetece é, curiosamente, aquilo que sei que me faz mal. Cada vez resisto menos às tentações. Que culinária? Cozinha tradicional portuguesa, com tinto a acompanhar. Às vezes um whisky no fim. Não me trato mal...


Como lida com eventuais críticas e elogios?

Reconheço que a modéstia não faz parte das minhas maiores qualidades. Mas aceito críticas que ache inteligentes e pertinentes, desde que feitas sem um manifesto desejo de ser desagradável. Levo as observações muito a sério, em especial se vindas da parte de quem me merece respeito e cuja autoridade profissional reconheço.


O que diria sobre a ideia de que as pessoas com quem se relaciona profissionalmente têm de si?

Só perguntando-lhes. A única coisa que eu gostaria que elas pensassem de mim, para além de todos os critérios de avaliação que possam ter sobre o fruto do meu trabalho, é que faço tudo a que me dedico com afinco e seriedade. O resto, o saldo e a qualidade do que faço, é algo que eles têm o direito de julgar. Sou muito menos tolerante para os juízos de caráter.


Ao longo do dia, dá importância às redes sociais?

Bastante. As redes sociais são a minha principal fonte de chamada de atenção para os temas internacionais do dia. Utilizo várias redes sociais, onde comento mas onde raramente interajo. Não consigo ter tempo para a interlocução com os leitores. Não sei se lamento.


Tem hobbies ou atividades que faz regularmente?

Quase nenhuns, salvo algumas tertúlias almoçantes, com amigos. Vejo muito pouco televisão, leio livros, sempre em papel, leio jornais, mas já quase só online, e escrevo o meu blogue diário. Ah! E vou a concertos musicais. E, claro, visito livrarias e restaurantes. Gosto de sair de Lisboa nos fins de semana e ficar numa pousada ou num hotel, a flanar, a ler, a comer, a conversar.


A que horas costuma terminar a atividade profissional?

Nunca, na realidade. Ou melhor, essa atividade só para ao deitar. Pensando bem, trabalho mais de oito horas por dia, sete dias por semana.


"Leva” trabalho para casa?

Trabalho essencialmente em casa, pelo que não abandono o “lugar de trabalho”. Quando viajo, a minha velha pasta, além do iPad que me liga ao mundo, vai atulhada de coisas para ler e para escrever. Levo o “escritório” comigo, às vezes até para a sala de espera de um médico. E, sempre, para o Alfa Pendular, de e para o Porto, onde gosto muito de viajar.


Costuma conversar com alguém sobre a sua atividade no final do dia?

Em casa, com a minha mulher, quando ela tem paciência para ouvir-me falar de algumas das várias coisas que faço. Mas a Star Crime, a 24 Kitchen e a Mezzo interpõem-se muito.


Costuma viajar com frequência nas suas atividades profissionais?

Viajo bastante pelo país, que conheço como creio que muito pouca gente conhece. Parte dessas viagens é por razões profissionais ou por atividades “pro bono”, que algumas vezes aceito. As viagens profissionais ao estrangeiro não são muito frequentes, acontecem apenas uma meia dúzia de vezes por ano, tal como para outras tarefas interessantes como palestras, colóquios, seminários para que sou convidado. Mas sou cada vez mais criterioso na aceitação desses convites, pagos ou não.


Há muita diferença entre os dias da semana e os fins de semana?

Quase nenhuma. Apenas, em regra, não tenho reuniões ao fim de semana. Mas os sete dias são, em absoluto, idênticos, no tocante à leitura ou escrita ou outro trabalho.


Quais são os seus hábitos de jantar? Horário e exemplo de menu?

Janto muito em casa. Já fui bem mais, mas ainda sou um regular frequentador de restaurantes. Gosto de conhecer novas casas, tomo nota de recomendações, mas, crescentemente, fujo dos locais que sei que andam em voga. Sendo conhecido, entre amigos, como alguém que visita muitos restaurantes, adoro poder dizer, quando me perguntam o que achei de um determinado lugar de que toda a gente fala: “Não sei, não conheço, nunca fui lá!”. Horários? Gosto de ir pelas 20.30/21.00. Reservo sempre (sempre! e quando não aceitam reservas não vou), não fico em filas, não espero por uma mesa mais de cinco minutos. Menus? Assumo que sou um mau gastrónomo, sou muito tradicional e conservador, nada variado nas escolhas, pouco ousado perante experiências sensoriais novas.


O que faz antes de dormir?

Verifico a agenda do dia seguinte, olho o “Público” on-line e consulto alguns sites de notícias. E leio, no mínimo, aí umas 20 páginas de um dos vários (muitos) livros que tenho “em curso de leitura”, como costumo designar essa otimista tarefa que, em muitos casos, não chega nunca a ser concluída.


A que horas se costuma deitar e quantas horas dedica ao sono?

Como referi, deito-me quase sempre muito tarde, a menos que tenha tarefas a fazer cedo na manhã seguinte. Mas não tenho uma hora certa de ir para a cama. Procuro dormir sete horas por noite, mas às vezes não consigo, precisamente porque a irregularidade me prejudica o sono. Mas, não obstante esse preço, faço essa opção na vida.


Como mantém o equilíbrio entre sua vida pessoal e profissional?

Já fui “workaholic” e até quase “stakanovista”, cometendo então o erro de esperar que outros o fossem também. A minha vida foi sempre um todo: nunca parei o trabalho a uma certa hora, para depois iniciar o resto do meu dia. Nas 24 horas do dia, vou colocando aquilo que me apetece. Ou que tenho de executar. Faço parte das pessoas para quem trabalhar nunca foi um peso para a sua vida quotidiana. Além disso, fiz parte de uma espécie em extinção: as pessoas que sentiam um grande orgulho em serem servidores do Estado. Gostei muito de ter sido funcionário público (como o meu pai e o meu avô), mas tem sido imensamente enriquecedor trabalhar no setor privado, onde a “accountability” é muito mais rigorosa. Aprendi a admirar quem arrisca o seu dinheiro em negócios.


Vê-se a ter outra atividade?

Na vida, em 53 anos de trabalho, gostei de tudo aquilo que fiz. Mas admito que me teria sentido muito bem a fazer outras coisas. Sou muito adaptável e desafio-me a mim mesmo. Sou altamente competitivo comigo e – palavra de honra! – rigorosamente nada com os outros. Não faço parte das pessoas que proclamam: “Não gosto de perder, nem a feijões”. Perco e ganho com imensa naturalidade e, às vezes, até me sinto um pouco envergonhado quando ganho.


O que mais gosta e menos gosta do que faz?

O que mais gosto é, no final das tarefas, ter a consciência íntima de que fiz as coisas bem. Tenho alguma frustração quando sinto que fiz as coisas tão bem quanto sabia e podia, mas que, afinal, isso não foi suficiente para ter atingido o objetivo que pretendia. E que assim desiludi quem em mim confiou para a execução desse trabalho. 

12 de dezembro de 2024

"Breve Infinito - O Cais Anterior"

 


Apresentação do livro “Breve Infinito – O Cais Anterior”, de João Miranda. Grémio Literário, Lisboa, 11.12.24 

Hoje lembrei-me muito de um amigo que tenho, uma pessoa muito conhecida. Um dia, ao vê-lo intervir num determinado contexto, achei estranha essa sua incursão por zonas em que eu lhe não conhecia hábitos e, com a confiança grande que temos, disse-lho. A resposta foi desarmante: "Sabes, nos dias de hoje, com a idade que tenho, salvo sobre algumas ciências exatas, já falo um pouco sobre tudo". 

Sinto-me hoje como esse meu amigo. É que ver-me a apresentar um livro de ficção é algo tão estranho que só uma grande inconsciência me pode levar a esta ousadia. A idade, de facto, fragiliza-nos as defesas e abre espaço a ousadias que, com um pouco mais de serenidade, nunca levaríamos à prática. 

A culpa é minha, é verdade, mas é muito mais do João Miranda, que me levou a esta posição em que aqui estou agora. Prometo ser breve. 

O João é meu camarada de tropa. Fizemos juntos o 25 de Abril. Depois, perdemo-nos de vista. Cada um foi à sua vida, ele pela banca, depois de ter andado por outras guerras, eu pela ação externa do Estado, depois de ter a banca como meu primeiro emprego. Já nem recordo bem como nos reencontrámos. Sei que um dia dei por mim na cave da falecida "Férin", onde ele apresentava um livro que intitulou "O homem que inventa setembros". O João teve o bom gosto de se acolher à sombra do local onde o Artur Curvelo vendeu, ou tentou vender, o "Esmaltes e Jóias", na "A Capital", do Eça. Espero que com maior sucesso. 

Depois disso, eu e o João fomo-nos vendo pelas redes sociais, às vezes num registo de muro das lamentações, outras vezes no comentário ao quotidiano político, coisa que costuma entreter os reformados, que acham que já ganharam altura, distância e inimputabilidade para se darem ao luxo de olhar o mundo com uma suposta autoridade crítica. 

Até que chegou o "Breve Infinito – O Cais Anterior". Um dia, que por acaso era uma noite, o João perguntou se eu estava disponível para fazer a apresentação do livro. E eu, sem conhecer a obra, sem medir a irresponsabilidade do gesto, disse que sim. Só quando pus os pés na realidade é que me dei conta de que estava quase a entrar nas "ciências exatas" do outro meu amigo. E quando acabei de ler o texto, aí sim, percebi que tinha passado a linha vermelha da prudência mínima. 

O que acabo de dizer, como já perceberam, é um pouco subtil "disclaimer" para atenuar o eventual impacto negativo do que vou dizer a seguir. 

Sei que chocarei a maioria dos presentes se disser que não sou um regular leitor de obras de ficção, salvo de algumas memórias políticas que quase sempre se inserem nesse mundo inventivo. Não excluo que um livro que publiquei há um ano possa sofrer desse possível pecadilho... 

O livro do João Miranda, para um leigo da literatura como eu sou, é um objeto estranho. Os senhores, que o vão ler, perceberão melhor isso depois. Não vou contar o livro, mas sempre direi que o João procura ancorar o cruzamento, a partir de um cais que é um cenário recorrente, entre pessoas que combinam a banalidade e a simplicidade da vida com o salto mais exaltante para outros mundos. 

O leitor tem de estar atento, porque se combinam, numa escrita culta e temperada por referências, algumas muito atuais, figuras que se acolhem em vários tempos. O recorte no presente de algumas personagens é-nos elucidado e colorido pelo recurso ao seu passado, havendo por ali, além de alguns espaços oníricos, "flashbacks" sem os quais a trama seria menos compreensível e menos rica. 

O João carreia para o texto, e para as suas personagens, onde há muito poucos nomes, muitos quadros de referência que fizeram parte da sua, da nossa geração. Estão por ali o Maio 68, a guerra do Vietnam, mas também a guerra colonial e outras, muitas coisas, que nos sao comuns. E a música, onde a sua música clássica surge, a espaços, a pontuar situações, mas também a música de contestação ao fascismo, nosso ou daqui ao lado, em Espanha. E o jazz, também muitas vezes por ali. 

O João - deve ser da idade - traz para o texto diversas notas de um tempo atual que a todos nos diz muito, mas, curiosamente, evita dar-lhe excessiva importância, não levando as coisas muito a sério, deixando no ar uma ironia relativizadora a marcar essas referências. A prova mais provada desse jogo, quase depreciador da gravidade dos temas, é o frequente recurso que faz a expressões comuns, às vezes colocando-as em moldes de trocadilhos. Repito: deve ser da idade, porque eu próprio me vejo tentado, muitas vezes, a abordagens semelhantes. Sem, contudo, o pôr na escrita ficcional, porque cada um nasce para o que é. 

Este livro, no fim de contas, acaba por ser um manual de gestão de solidões, quer as que atravessam quem vive as suas vidas, mais ou menos estranhas, ao lado de alguém, quer as dos solitários que, para compensarem o seu isolamento, criam mundos imaginário que, afinal, os enchem de gente à sua volta. O João retrata bem essas solidões diferentemente acompanhadas. 

Para quem, como eu, nasceu na província, embora em terra sem cais com brumas por onde não me apareciam raparigas flutuantes a anunciar amanhãs ideais, este texto parece situar-se num contexto urbano fora das grandes urbes, mesmo que pontualmente fuja dessa geografia. Digo isto porque sempre achei que as narrativas assentes nas cidades grandes, embora por vezes reconduzidas ao microcosmo dos bairros, têm uma natureza muito diferente das da província. Ali, nas cidades ou vilas pequenas, há mais transparência, menos privacidade, bastante mais crueldade nos olhares críticos, porque são permanentes, rigorosamente vigiados pela filosofia intrusiva da vizinhança. Este é, para mim, um livro que comporta um olhar sobre um mundo de província - e, podem crer, isso faz toda a diferença. Embora aqui, verdadeiramente, o vizinho espreitador seja o autor. 

Como referi no início, não sou um leitor habitual de ficção, salvo aqueles Eças e Camilos que nos absolvem, repetidamente, desse pecado. Por isso - e vou ser totalmente franco - quero dizer que o meu olhar de leitor viciado na não-ficção perdeu-se, algumas vezes, no saltitar das tramas e no elaborado cruzar dos tempos. Andei frequentemente para trás, para perceber se me tinha enganado ou se era a escrita do João que tinha feito isso deliberadamente. Este é um livro e um texto - aviso já - que exige alguma atenção ao leitor, em especial até que ele conseguir fixar, no palco central das personagens, o eixo básico da narrativa. É um livro que exige algum trabalho, como é da natureza das obras sérias, não é um livro ligeiro de literatura "soft". É bom que saibam ao que vão. 

Eu sou amigo do João mas, na realidade, conhecemo-nos mal. Mas o que é interessante é que, tendo lido este livro, e o livro anterior, e porque fico com a ideia de que ele não cuida muito em esconder-se por detrás do texto, fiquei agora a conhecê-lo muito melhor, nos seus hábitos - eu não bebo Lagavulin, porque sou dado a whiskies com menos peat -, nos seus classissismos - como no uso do latim com alguma ousada "aisance", que há muito já se perdeu por aí, e também nas suas, às vezes insconcientes, derivas geracionais. 

Se os miúdos ainda lessem livros, adorava assistir a uma conversa entre pessoas na casa dos 20 anos sobre este texto. Seria fascinante ouvi-los e perceber o que eles guardariam desta narrativa. É verdade: quem ainda conhece a Jeanne Moreau ou sabe onde se afogou o Barão de Forrester ou viu o bigode orquestral do Xavier Cugat? E tantas outras coisas do género caídas no texto. 

Mas eu creio, embora podendo estar errado, que, ao escrever o que escreveu e da forma como o escreveu, o João desistiu deliberadamente de ser entendido para além de algumas fronteiras, não apenas geracionais, mas igualmente culturais. E é preciso assumir isto com frontalidade, como dizia o Batista Bastos, que também já ninguém sabe quem foi. 

Meu Caro João. Disse o que pensava, à minha maneira. Acho que fizeste muito bem em fazer esta nova incursão na área da ficção. Acho que o nosso amigo Baptista Lopes, que um dia me pagou um belo cozido à portuguesa para me convencer, sem sucesso, a escrever e publicar um livro com a editora ele, está de parabéns ao ter atracado o seu barco editorial no teu cais anterior. Mereces um cozido. Leva o Antunes, leva o médico esquerdalho, o Preto engraxador, os senhores arquitetos e o homem da Camoniana que nunca mais se esqueceu do Quartier Latin. E leva, claro, a rapariga e o catraio, que tratava o homem por velho. 

Ah! Eu não sabia o que era azereiro! Nem nunca usei a palavra azabumbante. Já aprendi com o teu livro! Nem nunca fui a Tisnov, na República Checa e não Chéquia, como agora dizem. Mas conheço Algar do Carvão. 

Parabéns, meu caro João. E ficamos à espera de mais livros.