Apresentação do livro “Breve Infinito – O Cais Anterior”, de João Miranda. Grémio Literário, Lisboa, 11.12.24
Hoje lembrei-me muito de um amigo que tenho, uma pessoa muito conhecida. Um dia, ao vê-lo intervir num determinado contexto, achei estranha essa sua incursão por zonas em que eu lhe não conhecia hábitos e, com a confiança grande que temos, disse-lho. A resposta foi desarmante: "Sabes, nos dias de hoje, com a idade que tenho, salvo sobre algumas ciências exatas, já falo um pouco sobre tudo".
Sinto-me hoje como esse meu amigo. É que ver-me a apresentar um livro de ficção é algo tão estranho que só uma grande inconsciência me pode levar a esta ousadia. A idade, de facto, fragiliza-nos as defesas e abre espaço a ousadias que, com um pouco mais de serenidade, nunca levaríamos à prática.
A culpa é minha, é verdade, mas é muito mais do João Miranda, que me levou a esta posição em que aqui estou agora. Prometo ser breve.
O João é meu camarada de tropa. Fizemos juntos o 25 de Abril. Depois, perdemo-nos de vista. Cada um foi à sua vida, ele pela banca, depois de ter andado por outras guerras, eu pela ação externa do Estado, depois de ter a banca como meu primeiro emprego. Já nem recordo bem como nos reencontrámos. Sei que um dia dei por mim na cave da falecida "Férin", onde ele apresentava um livro que intitulou "O homem que inventa setembros". O João teve o bom gosto de se acolher à sombra do local onde o Artur Curvelo vendeu, ou tentou vender, o "Esmaltes e Jóias", na "A Capital", do Eça. Espero que com maior sucesso.
Depois disso, eu e o João fomo-nos vendo pelas redes sociais, às vezes num registo de muro das lamentações, outras vezes no comentário ao quotidiano político, coisa que costuma entreter os reformados, que acham que já ganharam altura, distância e inimputabilidade para se darem ao luxo de olhar o mundo com uma suposta autoridade crítica.
Até que chegou o "Breve Infinito – O Cais Anterior". Um dia, que por acaso era uma noite, o João perguntou se eu estava disponível para fazer a apresentação do livro. E eu, sem conhecer a obra, sem medir a irresponsabilidade do gesto, disse que sim. Só quando pus os pés na realidade é que me dei conta de que estava quase a entrar nas "ciências exatas" do outro meu amigo. E quando acabei de ler o texto, aí sim, percebi que tinha passado a linha vermelha da prudência mínima.
O que acabo de dizer, como já perceberam, é um pouco subtil "disclaimer" para atenuar o eventual impacto negativo do que vou dizer a seguir.
Sei que chocarei a maioria dos presentes se disser que não sou um regular leitor de obras de ficção, salvo de algumas memórias políticas que quase sempre se inserem nesse mundo inventivo. Não excluo que um livro que publiquei há um ano possa sofrer desse possível pecadilho...
O livro do João Miranda, para um leigo da literatura como eu sou, é um objeto estranho. Os senhores, que o vão ler, perceberão melhor isso depois. Não vou contar o livro, mas sempre direi que o João procura ancorar o cruzamento, a partir de um cais que é um cenário recorrente, entre pessoas que combinam a banalidade e a simplicidade da vida com o salto mais exaltante para outros mundos.
O leitor tem de estar atento, porque se combinam, numa escrita culta e temperada por referências, algumas muito atuais, figuras que se acolhem em vários tempos. O recorte no presente de algumas personagens é-nos elucidado e colorido pelo recurso ao seu passado, havendo por ali, além de alguns espaços oníricos, "flashbacks" sem os quais a trama seria menos compreensível e menos rica.
O João carreia para o texto, e para as suas personagens, onde há muito poucos nomes, muitos quadros de referência que fizeram parte da sua, da nossa geração. Estão por ali o Maio 68, a guerra do Vietnam, mas também a guerra colonial e outras, muitas coisas, que nos sao comuns. E a música, onde a sua música clássica surge, a espaços, a pontuar situações, mas também a música de contestação ao fascismo, nosso ou daqui ao lado, em Espanha. E o jazz, também muitas vezes por ali.
O João - deve ser da idade - traz para o texto diversas notas de um tempo atual que a todos nos diz muito, mas, curiosamente, evita dar-lhe excessiva importância, não levando as coisas muito a sério, deixando no ar uma ironia relativizadora a marcar essas referências. A prova mais provada desse jogo, quase depreciador da gravidade dos temas, é o frequente recurso que faz a expressões comuns, às vezes colocando-as em moldes de trocadilhos. Repito: deve ser da idade, porque eu próprio me vejo tentado, muitas vezes, a abordagens semelhantes. Sem, contudo, o pôr na escrita ficcional, porque cada um nasce para o que é.
Este livro, no fim de contas, acaba por ser um manual de gestão de solidões, quer as que atravessam quem vive as suas vidas, mais ou menos estranhas, ao lado de alguém, quer as dos solitários que, para compensarem o seu isolamento, criam mundos imaginário que, afinal, os enchem de gente à sua volta. O João retrata bem essas solidões diferentemente acompanhadas.
Para quem, como eu, nasceu na província, embora em terra sem cais com brumas por onde não me apareciam raparigas flutuantes a anunciar amanhãs ideais, este texto parece situar-se num contexto urbano fora das grandes urbes, mesmo que pontualmente fuja dessa geografia. Digo isto porque sempre achei que as narrativas assentes nas cidades grandes, embora por vezes reconduzidas ao microcosmo dos bairros, têm uma natureza muito diferente das da província. Ali, nas cidades ou vilas pequenas, há mais transparência, menos privacidade, bastante mais crueldade nos olhares críticos, porque são permanentes, rigorosamente vigiados pela filosofia intrusiva da vizinhança. Este é, para mim, um livro que comporta um olhar sobre um mundo de província - e, podem crer, isso faz toda a diferença. Embora aqui, verdadeiramente, o vizinho espreitador seja o autor.
Como referi no início, não sou um leitor habitual de ficção, salvo aqueles Eças e Camilos que nos absolvem, repetidamente, desse pecado. Por isso - e vou ser totalmente franco - quero dizer que o meu olhar de leitor viciado na não-ficção perdeu-se, algumas vezes, no saltitar das tramas e no elaborado cruzar dos tempos. Andei frequentemente para trás, para perceber se me tinha enganado ou se era a escrita do João que tinha feito isso deliberadamente. Este é um livro e um texto - aviso já - que exige alguma atenção ao leitor, em especial até que ele conseguir fixar, no palco central das personagens, o eixo básico da narrativa. É um livro que exige algum trabalho, como é da natureza das obras sérias, não é um livro ligeiro de literatura "soft". É bom que saibam ao que vão.
Eu sou amigo do João mas, na realidade, conhecemo-nos mal. Mas o que é interessante é que, tendo lido este livro, e o livro anterior, e porque fico com a ideia de que ele não cuida muito em esconder-se por detrás do texto, fiquei agora a conhecê-lo muito melhor, nos seus hábitos - eu não bebo Lagavulin, porque sou dado a whiskies com menos peat -, nos seus classissismos - como no uso do latim com alguma ousada "aisance", que há muito já se perdeu por aí, e também nas suas, às vezes insconcientes, derivas geracionais.
Se os miúdos ainda lessem livros, adorava assistir a uma conversa entre pessoas na casa dos 20 anos sobre este texto. Seria fascinante ouvi-los e perceber o que eles guardariam desta narrativa. É verdade: quem ainda conhece a Jeanne Moreau ou sabe onde se afogou o Barão de Forrester ou viu o bigode orquestral do Xavier Cugat? E tantas outras coisas do género caídas no texto.
Mas eu creio, embora podendo estar errado, que, ao escrever o que escreveu e da forma como o escreveu, o João desistiu deliberadamente de ser entendido para além de algumas fronteiras, não apenas geracionais, mas igualmente culturais. E é preciso assumir isto com frontalidade, como dizia o Batista Bastos, que também já ninguém sabe quem foi.
Meu Caro João. Disse o que pensava, à minha maneira. Acho que fizeste muito bem em fazer esta nova incursão na área da ficção. Acho que o nosso amigo Baptista Lopes, que um dia me pagou um belo cozido à portuguesa para me convencer, sem sucesso, a escrever e publicar um livro com a editora ele, está de parabéns ao ter atracado o seu barco editorial no teu cais anterior. Mereces um cozido. Leva o Antunes, leva o médico esquerdalho, o Preto engraxador, os senhores arquitetos e o homem da Camoniana que nunca mais se esqueceu do Quartier Latin. E leva, claro, a rapariga e o catraio, que tratava o homem por velho.
Ah! Eu não sabia o que era azereiro! Nem nunca usei a palavra azabumbante. Já aprendi com o teu livro! Nem nunca fui a Tisnov, na República Checa e não Chéquia, como agora dizem. Mas conheço Algar do Carvão.
Parabéns, meu caro João. E ficamos à espera de mais livros.
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