11 de janeiro de 2024

A Europa no limiar do século XXI

Texto incluído no livro "Portugal e as Presidências do Conselho da União Europeia", ed. Fronteira dipo Caos, Porto, 2023

O programa de uma presidência semestral da União Europeia é sempre o fruto de um compromisso. O Estado membro que assume essa função não está totalmente livre para desenhar as suas metas e objetivos, tendo apenas como limite as suas próprias ambições. Tem de saber adequar estas àquilo que já está no “pipeline” da vida comunitária, bem como aos próprios ciclos políticos, muitas vezes eleitorais, que se vivem dentro da Europa e no mundo.

Foi, naturalmente, nessa mescla entre aquilo que herdámos, dentro do contexto político que nos rodeava, e do que pensámos ser interessante e exequível colocar sobre a mesa europeia, que exercemos a nossa presidência, naquele primeiro semestre de 2000.

Vale a pena lembrar que, à época, a Europa era atravessada por uma onda de algum otimismo, de uma perspetiva positiva sobre os efeitos do grande alargamento, que iria dar um “template democrático” e um apoio ao desenvolvimento dos países que tinham estado reféns da Guerra Fria.

A globalização, se bem que já revelasse os seus descontentes, era vista, aos olhos de muitos, como uma oportunidade que a Europa não podia desperdiçar, cuidando em garantir a preservação e a sustentabilidade do seu modelo social. A economia do conhecimento, por exemplo, em que o Velho Continente necessitava de afirmar-se no terreno mundial era, assim, um instrumento essencial para garantir um futuro de progresso e de bem-estar, isto é, de paz.

Mas nem tudo eram rosas, por esse complexo tempo europeu. O ano de 1999 havia sido aquele em que fora introduzido o euro, mas também aquele em que emergiu uma grave crise na Comissão Europeia, que levou ao afastamento do presidente Santer. Tinha havido também, nesse ano, um Conselho Europeu muito tenso, em Berlim, onde a Agenda 2000, a programação financeira entre 2000 e 2006, havia sido acordada. Quando Portugal chegou à presidência, a nova Comissão Europeia tinha apenas dois meses de existência. E o Parlamento Europeu também havia sido recentemente eleito. Mário Soares havia tentado a presidência do Parlamento Europeu e fora derrotado.

Nesta contextualização, vale também a pena lembrar que 1999 foi também o ano da grande crise da ex-Jugoslávia. Já em 1992, a segunda Presidência portuguesa tivera que gerir a resposta europeia à situação de guerra na região. Nesse ano, depois da agressão da Sérvia ao Kosovo, a NATO, sem mandato legitimador das Nações Unidas, decidiu forçar militarmente a mão a Milošević.

Esse foi também o ano do voto interno em Timor, que consagrou o seu afastamento institucional da Indonésia, bem como da transferência de Macau para a China, pontos muito importantes na nossa agenda externa.

Foi sob esse complexo e interessante pano de fundo, europeu e mundial, que preparámos a Presidência portuguesa das instituições europeias. Do programa que divulgámos não constavam duas incógnitas, isto é, duas iniciativas que, à partida, não tínhamos a certeza de poder levar a cabo.

Uma delas era a I Cimeira UE-África, uma iniciativa inédita, que considerávamos muito interessante no quadro da nossa afirmação externa. Até ao último momento, não tínhamos a certeza de poder realizar essa Cimeira. O interlocutor africano, a então Organização da Unidade Africana (OUA), não admitia a presença de Marrocos na reunião e, pela nossa parte, não considerávamos realizar a reunião sem Marrocos. Foi uma difícil negociação, que deu muito trabalho a concretizar, mas essencial para a estabilidade e confiança na nossa relação com Marrocos.

Uma outra questão era o encerramento da negociação do Acordo de Cotonou, que substituía a Convenção de Lomé IV. O processo negocial tinha variáveis que nos escapavam, pelo que omitimos a questão do nosso programa. Mas viríamos a concretizar a assinatura da Convenção na nossa presidência.

O caso austríaco

Tínhamos preparado a nossa presidência com todo o cuidado. Mas a realidade é sempre mais imaginativa do que os homens. Não era muito previsível, no final de 1999, que os conservadores austríacos, se ganhassem as eleições, quisessem fazer uma aliança com um partido de extrema-direita. Quando isso aconteceu, surgiu um clamor um pouco por toda a Europa.

Portugal acabou por ter de atuar em nome dos chamados “catorze” (os então quinze membros da UE, menos a Áustria), isolando, de certo modo, o governo de Viena, num modelo um pouco atípico, tanto mais que não significava uma posição formal da União. Era a reação face a um Estado que dava sinais de vir a pôr em causa regras a que se tinha comprometido, aquando da sua adesão, pela subscrição dos chamados “critérios de Copenhaga”.

O “caso austríaco” foi uma sombra que pairou durante os seis meses da nossa presidência. Cuidámos sempre em respeitar os direitos da Áustria como Estado membro da União, sem deixarmos de atender ao sentimento dos restantes Estados. Conseguimos salvaguardar em pleno a nossa relação bilateral com Viena – e isso não era coisa fácil, nesse contexto. À distância do tempo, perante o cenário daquilo que hoje emerge em outros países europeus, o “caso austríaco” era apenas um jardim de infância...

Um novo tratado

O Tratado que se viria a chamar de Nice, cuja negociação coordenámos no nosso semestre, na certeza antecipada de que só se viria a concluir na Presidência francesa que nos sucederia, era um ponto muito importante dos temas no nosso exercício.

Noto que, sob a conjuntural pressão do caso austríaco, conseguimos incluir na negociação do tratado uma cláusula relativamente à possibilidade de um Estado poder ser, face à unanimidade dos restantes, sancionado e isolado. A fórmula do Tratado de Nice viria a ser aperfeiçoada no Tratado de Lisboa.

Porquê era necessário um novo tratado? Depois de assinado o Tratado de Amesterdão, alguns países consideraram importante voltar a tratar de aspetos que nele não tinham sido nele suficientemente desenvolvidos, à luz das exigências de funcionalidade e legitimidade, numa Europa que preparava um grande alargamento.

Aí se incluía um ponto importante: a necessidade de rever a dimensão da Comissão Europeia, criando uma espécie de trade-off entre, por um lado, a ideia dos Estados europeus que tinham dois comissários (que eram os cinco maiores Estados) perderem o seu segundo comissário, os quais, em compensação, receberiam mais votos no âmbito do processo decisório do Conselho, além de mais deputados no Parlamento Europeu. Também a temática das “cooperações reforçadas”, que regula os processos de integração diferenciada, esteve na mesa dessa negociação.

O Tratado de Nice acabou por ser isso. No termo da nossa presidência, passámos à França o resultado de seis meses negociais intensos, num relatório que acabou por condicionar todo esse semestre subsequente.

A Estratégia de Lisboa

Mas a nossa presidência tinha um foco principal, que assentou no extraordinário trabalho realizado durante o ano de 1999 por António Guterres, com Maria João Rodrigues, para o estabelecimento da chamada Estratégia de Lisboa.

A Estratégia de Lisboa era um programa muito ambicioso, tendo como objetivo colocar a Europa, no prazo de dez anos, como o polo mais competitivo à escala global, em especial desenvolvendo todo o potencial da economia do conhecimento. Como é sabido, no processo europeu há questões de natureza comunitária, isto é, sujeitas aos procedimentos regulares de partilha de soberania mediados pela Comissão e há outras que o não estão, que dependem da decisão nacional, pelo que têm de merecer um tratamento de natureza intergovernamental. A ideia portuguesa era fazer aprovar um programa que, ao mesmo tempo, desse uma maior coerência às diversas políticas europeias e procurasse assegurar, por parte do Estados membros, a sua disponibilidade de se comprometerem a um processo gradual de aproximação em áreas de competência nacional. Este método traduz-se na fixação de uma espécie de benchmarks, que faria com que os Estados, embora mantendo a liberdade de ação relativamente a um conjunto muito alargado de matérias, pudessem ir observando as melhores práticas dos outros. Isto criaria uma espécie de pressão para que, não havendo harmonização, pudesse haver um tendencial seguimento de uma linha comum. A ideia era trabalhar um conjunto de medidas relativas ao crescimento, à competitividade e ao emprego, à luz daquilo que eram, e que estavam muito bem definidos no plano teórico, os desafios colocados pela globalização, pela mudança tecnológica e pelos riscos de exclusão social, que afetavam a própria subsistência do “modelo social europeu”. Em suporte deste projeto, e com ele conjugado, incluíam-se medidas de natureza macroeconómica e estrutural, bem como a mobilização de políticas ativas de emprego, que já tinham sido aprovadas em Conselhos Europeus anteriores. Haveria, assim, vários processos que ali conjugavam.

Como é óbvio, este esforço envolvia não apenas os governos mas também os parceiros sociais, o Comité Económico e Social Europeu, o Parlamento Europeu e o Banco Central Europeu. Era um conjunto de medidas que se pretendia tivessem uma coerência global, pondo a máquina europeia a “remar” toda para o mesmo lado. Pressentia-se que a entrada em vigor da moeda única viria a exigir um conjunto de medidas de acompanhamento que tornassem mais coerente o trabalho futuro da Europa que se reunia à volta do euro, mas que igualmente ajudassem naquele que era o objetivo político de criar condições e apetência para levar todos os Estados a integrarem futuramente o projeto da moeda única. Na nossa presidência, todas as formações sectoriais do Conselho de Ministros europeus funcionaram subordinadas a uma agenda que apontava para os objetivos dessa Estratégia de Lisboa. Ela seria aprovada, como se previa, no Conselho Europeu de Lisboa, em março de 2000, ficando aí também desenhado um seu percurso posterior, com um calendário de revisão.

A aprovação da Estratégia de Lisboa foi, claramente, o ponto alto da nossa Presidência de 2000. Portugal, muito em especial o primeiro-ministro António Guterres, saiu muito prestigiado desse exercício. O futuro viria, como se sabe, a introduzir modificações na Estratégia. Algumas foram apenas semânticas, para satisfazer egos nacionais. Outras corresponderam à adequação desse projeto de coordenação de políticas públicas às novas realidades. Pela nossa parte, fizemos o que nos competia. E a Europa deu sinais claros de que o tínhamos feito muito bem.

Coíbo-me de elencar aqui a multiplicidade de outras iniciativas, em mais de duas dezenas de áreas, que foi possível levar a cabo durante o nosso semestre de 2000. A Presidência Portuguesa de 2000 foi, à época, considerada um sucesso, confirmando a tradição do nosso país de gerir, com competência, profissionalismo, seriedade e rigor, as suas responsabilidades europeias.

Sem comentários:

Enviar um comentário