Intervenção no lançamento do livro “Sem Papas na Língua”, de Zé de Bragança (José Luis Seixas), em 16 de setembro de 2020, no Palácio Galveias
Quero começar por agradecer ao Zé Luís, e também à Isabel Stilwell, a amabilidade que tiveram, ao convidar-me para intervir na sessão de apresentação deste livro de crónicas. Contrariamente ao professor Ernesto Rodrigues, não tenho nenhuma qualificação particular que me recomende para apreciar textos desta natureza, salvo o facto de ser um leitor, embora tardio, confesso, de algumas destas crónicas. E, agora, do livro. Levo assim este amável convite à conta, exclusivamente, da grande amizade que me une ao Zé Luís.
O lançamento de um livro, porque é preparado com muita antecedência, sofre inevitavelmente das limitações decorrentes da conjuntura, que não pode antecipar. Não se trata da pandemia, que já aí estava quando esta data foi escolhida, mas a acontecimentos supervenientes à distribuição dos convites.Refiro-me, naturalmente, ao infortúnio que ontem desabou, em Salónica, sobre as afinidades clubistas do autor. Só a recusa da hipocrisia me impede de deixar uma palavra de pesar. Mas não posso deixar de dizer que eu, que venho de outra freguesia desportiva, de um clube ao fundo do Campo Grande - um clube essencialmente católico, porque só ganha quando Deus quiser - eu e os adeptos desse clube não temos a menor culpa desse infortúnio. Ecoando o que um defunto governo espalhava, em tempos, pelos corredores europeus, revelando bem o que era a sua elevada leitura da solidariedade: “Nós não somos a Grécia!” Mas, ontem, gostávamos de ter sido...
As determinantes de conjuntura não se ficam, porém, por aqui. O Dr. António Costa, que por mais de uma vez surge zurzido no texto do livro que hoje junta, é, afinal, um “compagnon de route” do autor, numa campanha alegre - encarnada para uns, vermelha para outros - que por aí anda. E nós interrogamo-nos sobre se, tal como o Dr. Telmo Correia, o autor absolverá, no seu íntimo, a desastrada opção do Dr. António Costa de integrar a famigerada (entenda-se, gerada pela fama) comissão de honra. Mas, pronto!, não queremos saber! O que também me pergunto é se o Zé Luis não terá já intercedido junto da Isabel para que uma segunda edição elimine essas perturbadoras referências a um consócio]. A ver vamos! É que há opções de vida que se pagam caro, meu caro Zé Luis. E sei do que falo, pode crer.
Como o professor Ernesto Rodrigues já referiu num texto que tive oportunidade de ler, este livro começa-se e não se pára de ler. Tem registos diferentes, mesmo do plano discursivo, alguns mais ferozes na crítica, outros mais intimistas na reflexão. Certas peças entram pela polémica sem cerimónias, à esquerda e à direita, talvez porque o autor é tributário de uma posição politica que lhe permite essas cotoveladas lateralizadas, hoje tão na moda.
Mas a política não esgota o mercado da polémica, a que o livro se não esquiva. Dessa atitude aguda é forte recipiente um “senhor maduro de idade quase provecta”, com residência fixa a norte, sobre cujas aventuras amorosas o autor elabora com algum detalhe, sem que se possa deduzir que esse passeio do autor pelos campos de fruta e pérolas afro-descendentes derive de qualquer rivalidade colorida. Nada disso! É uma mera coincidência!
Por quase todos os artigos, uns mais longos que outros, mas todos com uma extensão cómoda para leitura, perpassa sempre um assumido sentido irónico, um humor servido por um léxico rico, culto, ritmado na escrita. Ainda por ali muito da “Campanha Alegre” do Eça e do Ramalho, mas também ecoa-se o antigo estilo de Artur Portela Filho, de “A Funda”, ou das crónicas do Nuno Brederode de Santos que, há menos de um ano, também tive o gosto de ajudar a apresentar.
Mas não nos enganemos: não é um livro de “anedotas”, no sentido anglo-saxónico do termo, isto é, historietas em que a diversão sobrevive na exploração do seu próprio exagero. Este é um livro sério porque, por detrás do tom leve que alimenta a escrita, surgem problemas concretos, aparecem críticas fortes a comportamentos e vícios, agarram-se, com ambas as mãos, temas de um país que, porque endemicamente em crise, justifica a permanência do discurso agudo sobre ele.
Eu não conheço o Zé Luís há muitos anos, mas conheço-o ao tempo suficiente para dizer que o conheço “de toda a vida”, para usar uma expressão do “tialecto” - isto é, o dialeto das tias - de alguma sociedade lisboeta - e não digo alfacinha para que não cheire a varinas. E julgando conhecer o Zé Luis - e estou a imaginar que o Becas deve estar a pensar: “isso julga você!” - eu acho que ele está todo neste livro.
Desde logo, ao expor o peito às balas do politicamente correto. E passo a citar, entrando “a matar”: “Pertenço a uma geração em que as coisas eram claras. Havia homens e mulheres. Os homens apaixonavam-se pelas mulheres e as mulheres pelos homens. Casavam-se e tinham filhos. Ponto final e parágrafo. Esta coisa de maridos casarem com maridos e esposas serem esposas de outras esposas causa-me a maiir das confusões. Correndo o risco do enxovalho público, digo mesmo mais: não me habituo a ver dois marmajões de bigodeira aos beijos na via pública nem me cai bem assistir aos afagos de duas matronas à porta do centro comercial”.
Ora bem, todos sabemos que nenhum de nós pensa assim, estamos mesmos convencidos que o Zé Luis, lá no fundo, o não pensa verdadeiramente, tanto mais que todos estaremos de acordo em convir que o único, embora frágil, argumento em favor da heterossexualidade tem a ver com esse pormenor, quiçá despiciendo, de ser a sobrevivência da espécie humana. Passo rapidamente este momento que alguns poderão, erradamente, ler como homofóbico, mas que, numa perspetiva de esquerda - que é a minha, senão eu estava aqui a fazer nada - eu costumo chamar de “machismo-leninismo”. Aliás, o camarada Jerónimo, se aqui estivesse, por detrás da máscara, rir-se-ia a bom rir, tanto mais que algumas das histórias antigas das noites da Festa do Avante, nesta matéria, teriam muito para contar. Mas, adiante!
O Zé Luis, como disse, surge neste livro por inteiro. Porque não esconde o que pensa, as suas escolhas religiosas, a preeminência dos valores da família, a ligação à sua terra, a leitura ética da vida cívica. Tudo isto me levaria à conclusão fácil de que estamos perante um livro por onde perpassa um espírito conservador. Mas será mesmo assim? O Zé Luís será mesmo um conservador?
Na política, com certeza. Andou muito pelo CDS mas, curiosamente, o CDS não anda muito pelas páginas deste livro. Aliás, verdade seja, o CDS não se tem visto andar muito, nos últimos tempos, por sítio nenhum - mas já ali presumo, por detrás da máscara, a cara façanhuda do Francisco, que desta forma confirma que este amigo do pai e do tio é, lá no fundo, um “comuna” empedernido.
Mas a dúvida que coloquei, ao ler este livro, sobre se o Zé Luis é um conservador ou não, é uma dúvida muito egoísta. E explico porquê: é que sendo eu ateu, favorável a quotas para mulheres, ferozmente anti-touradas, defensor da legitimidade do aborto e coisas assim, ao ler os textos reunidos neste livro, dou-me conta que, em tantos e tantos outros dos valores que dele dimanam, me sinto 1000% ao lado do Zé Luís. Ora eu posso ser conservador, mas não gosto que me chamem isso! Não fica bem no meu currículo de esquerda...
Estou assim, com ele, na caricatura a alguns cromos, que retrata com tecla de mestre, no sobressalto ético que se pressente no modo como reage a algumas patifarias e patifes que a nossa sociedade parece aceitar como fazendo parte do “novo normal”, no sensato equilíbrio político que ressalta de muitas das suas análises - bem tributárias desse tempo antigo, aparentemente perdido, em que a democracia cristã fazia par com o socialismo democrático para construir a Europa. Nós, Zé Luís, somos herdeiros de boas alianças e cumplicidades que se perderam. Se, por aí, recebo o “insulto” de me chamarem conservador, pois bem, que assim seja!
É claro que, neste caminho para o consenso, a página 133 do livro deixou-me em estado de choque, ao ler isto: “Espera-se ardentemente que se exclame nas urnas e massivamente: “Chega!”. Chega?! Só o pé-de-página clarificador, que prudentemente o Zé Luís logo inseriu, me sossegou. Tratava-se de um texto de 2011, embora, em 2011, o tal Ventura fosse um orgulhoso militante do então parceiro de coligação do CDS. Mas adiante!
O texto deste livro termina com um compreensível desagravo à canalhice, menos por má fé e mais por ignorância, que foi feita, em tempos à cidade de Bragança, pelo facto de nela terem sido detetadas algumas “start ups” do mercado libidinal transfonteiriço. Nesse tempo, recordemos, houve um duelo de titãs do jornalismo mundial: o Mensageiro de Bragança versus a Time. O Mensageiro deu uma cabazada argumentativa à Time: em Bragança todos recordam os editoriais poderosos do periódico local. Dizem-me que, em Nova Iorque, os débeis argumentos da Time sobre as casas de alterne bragançanas feneceram há muito.
A este respeito, acho justo que se note que nós, em Vila Real, mantivemos uma atitude recatada sobre a polémica que então fervia nas margens do Fervença. A doutrina divide-se, contudo, sobre se o fizemos por solidariedade transmontana ou para proteger o nosso nicho de mercado.
Olhando ainda a questão, em perspetiva, limadas as aresta da ofensa, termino deixando ao Zé Luis duas interrogações.
E se eu lhe dissesse que o senhor Podence, essa figura de empreendedor, bem retratada no texto, cujo modo de receber cidadãs de um país onde se fala um português com açúcar e cachaça, muito ajudou ao nosso excelente rating europeu, como modelo de acolhimento de comunidades estrangeiras?
E quem sabe, amigo Zé Luis, se um empresário desse quilate, com nome de terra de outras máscaras que não aquelas com que agora andamos, não daria afinal muito jeito na equipa de António Costa Silva, nesse esforço denodado, que está em curso, e que há muito é uma das nossas especialidades nacionais, que é conseguir gastar, com generosidade e mãos largas, a riqueza que não produzimos? Pense nisso, pensemos todos nisso, porque, como dizia o outro, todos não somos demais, salvo nos ajuntamentos proibidos pela DGS.
Parabéns, Zé Luis. Parabéns, Isabel. Parabéns, também, Rusa e os filhos. Este livro é uma bela iniciativa, vai divertir muita gente, como me divertiu a mim, como me honrou pela sua amizade, Zé Luis, me ter permitido falar sobre ele - e de algumas outras coisas a propósito dele.
Obrigado pela vossa atenção e cuidem-se, que isto não está fácil!
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