17 de abril de 2021

Presidências europeias - uma realidade mutante

Quem, distraidamente, olhar o modelo das presidências do Conselho da União Europeia, constatando que a rotina da sua rotação semestral permanece intocável, pode ficar com a ideia de que o modo como cada Estado-membro é chamado a exercer essas funções permanece, basicamente, idêntico, desde o início das instituições europeias. Essa perceção é apenas ilusória. A realidade é bastante diferente. E há razões justificativas para isso.

Desde a sua fundação, o processo integrador europeu viveu sob a necessidade de compatibilizar a eficácia operativa das suas instituições com a sujeição do modelo a constantes testes de legitimidade.

Essa necessidade foi-se acentuando à medida que o leque de temáticas abrangidas pelo processo integrador se foi diversificando - aprofundando, no jargão europês - e, muito em particular, a partir do momento em que áreas tradicionalmente reservadas ao poder soberano dos Estados - moeda, política externa e de defesa, justiça e assuntos internos - passaram a ser abordadas à mesa de Bruxelas, pela porta aberta em Maastricht.

Também o alargamento geográfico da União, agora com Estados cujo padrão médio de interesses, nomeadamente no processo legislativo, se afastou daquele que antes prevalecia, ameaçando a tradicional preeminência dos contribuintes líquidos, obrigou a um “preemptive strike” em sede de modificação dos tratados - objetivado no Tratado de Nice e consagrado no Tratado de Lisboa.

O objetivo, não declarado, foi garantir que quem se tinha habituado, desde o seu início, a ter o poder de condução do processo integrador o não viesse a perder, ou a diluir excessivamente, por virtude do aumento do número de novos parceiros, a grande maioria dos quais, à época, estava afastada do anterior “mainstream” de interesses prevalecente. Com maior ou menor retórica a envolver os discursos justificativos, na União Europeia as coisas acabam por ser bastante simples. Mas muitos consideram que esta é apenas uma questão de eficácia.

Mas a paralela questão da legitimidade das decisões, que se liga muito à sua aceitabilidade, é também uma preocupação constante da vida europeia. Daí que, ao longo dos anos, o chamado “défice democrático” nas instituições europeias tenha vindo a ser constatado como uma evidência, percecionada como tal pelas opiniões públicas. Muito do trabalho em torno da revisão dos tratados não deixou de ter como objetivo procurar colmatar essa falha.

O crescente reforço do Parlamento Europeu vai nessa direção, mas a necessidade de o compatibilizar com a preservação dos poderes constitucionais dos parlamentos nacionais não deixa também de estar presente nesse debate - um debate que nunca terá fim, tanto mais que se faz num mercado opinativo marcado pela sensibilidade diferenciada existente sobre o assunto no seio dos diversos Estados.


O papel do Conselho

Na constelação de poderes que se refletem no processo legislativo em Bruxelas, os governos dos Estados-membros, sob uma lógica irrecusável, nunca deixaram de reivindicar para si o papel central, atenta a legitimidade decorrente do voto nacional que lhes garante o lugar à mesa decisória.

Ao longo dos anos, foram acordando no seu poder relativo: no início, as diferenças entre si não eram tão acentuadas, mais recentemente os tratados vieram a consagrar um fosso maior entre eles, com a chamada “ponderação” de voto - isto é, o seu multiplicador de força - a ficar ligado ao próprio peso demográfico, o qual, aliás, tinha já no Parlamento Europeu uma área de forte expressão. A ideia teórica da igualdade dos Estados, que decorria do Direito Internacional, era cada vez mais isso mesmo: teórica.

A perda do direito a uma indigitação desigual de membros para a Comissão Europeia - lembremos que, no passado, cada Estado “grande” podia indicar dois comissários - a que o Tratado de Nice pôs termo, com compensação no poder de voto nacional no Conselho e no número de deputados no areópago de Estrasburgo, atenuou, de certo modo, a possibilidade dos Estados utilizarem a Comissão como terreno de barganha de poder. Todos sabemos, no entanto, que, mesmo aí, os poderes “de facto” continuam a ter desigual influência, mas, pelo menos, ficou atenuada, no plano formal, essa diferenciação.


A rotação das presidências

Dentro da afirmação da legitimidade e representatividade dos Estados, fez sempre parte integrante o exercício semestral da presidência do Conselho de Ministros.

Dar a cada Estado-membro a possibilidade de, rotativamente, ser visto “à frente” das instituições comunitárias confere a estas um sentido mais democrático, tanto mais que nesse exercício os pequenos Estados surgem lado a lado com outros mais poderosos, numa aparente paridade. Esta coreografia tem, ainda hoje, reflexos no modo como, em alguns países, a Europa é percebida. Funciona, no fundo, como um instrumento de proselitismo europeísta, como um fator de mobilização para o projeto.

Mas começou a ser claro que, ao lado desses aspetos positivos, as instituições podiam vir a sofrer consequências negativas dessa cíclica rotação, que podia conduzir a máquina comunitária a ficar sob uma deficiente liderança por um período de meio ano. Podemos imaginar que o grande alargamento terá sido a pedra de toque para tentar dar maior continuidade à liderança do Conselho Europeu.

Com o Tratado de Lisboa, surge assim a criação da figura de um presidente do Conselho Europeu, estabelecendo uma bicefalia de poder com a chefia da Comissão Europeia, e, no plano institucional, tendo como outro parceiro o presidente do Parlamento Europeu.

Ao líder do Estado-membro que tem a presidência rotativa é dado, naturalmente, um papel de destaque, mas essa mesma tarefa está a anos-luz daquilo que era a sua posição no passado. Dir-se-á que muito se ganhou em eficácia, mas algo se perdeu na legitimidade da União, aos olhos dos cidadãos nacionais.


Os derrotados institucionais

Mas os maiores perdedores institucionais são, sem a menor dúvida, os ministros dos Negócios Estrangeiros.

Antes dos atuais Conselhos Europeus existirem, ou quando apenas funcionavam como reunião informal orientadora, o papel decisório central nas instituições comunitárias era cometido aos ministros dos Negócios Estrangeiros - a quem era atribuído o título de “presidente do Conselho”.

Era nas suas reuniões, em geral mensais, que desembocava, para ratificação final, tudo o que emanava dos Conselhos sectoriais de ministros, muito embora, desde muito cedo, áreas como a Agricultura ou a Economia e Finanças tivessem marcado uma forte autonomia.

Contudo, o caráter central dos Conselhos de ministros “Assuntos Gerais”, onde tinham assente os chefes das diplomacias, manteve-se por muito tempo no patamar supremo do processo de decisão. Além disso, os ministros dos Negócios Estrangeiros passaram a ter lugar cativo nos Conselhos Europeus, ao lado dos chefes do Estado ou de governo. Se pensarmos bem, essa posição correspondia, na dimensão interna dos Estados, ao imenso papel coordenador, com o direito à última palavra, que os ministérios dos Negócios Estrangeiros, por muito tempo, tiveram sobre as questões europeias. Curiosamente, a avaliar apenas pelo caso português, isso nem sempre se refletia no lugar do ministro dos Negócios Estrangeiros na hierarquia governamental interna.

Um dia, porém, esse mundo, quase impercetivelmente, desvaneceu-se. Aquilo a que a linguagem das Necessidades chama de “ministérios sectoriais” ganhou asas próprias, reforçou fortemente a sua presença direta em Bruxelas, através de gente sua colocada nas Representações Permanentes junto da União Europeia, em claro detrimento da coordenação feita nas capitais.

Essa evolução não se fez da mesma forma em todos os países, mas é detetável uma tendência geral nesse sentido. Na perspetiva de alguns observadores, as questões europeias deixaram, em muitos casos, de ser vistas como do foro da política externa, para passarem a ser temas de natureza interna, que os ministérios técnicos discutem com os seus pares europeus e com as instituições, tendo pouco sentido continuar a tentar comportá-los num quadro diplomático tradicional. Essa leitura, segundo outros, esquece a importância da coordenação de posições, por forma a garantir a coerência global da atitude do país no quadro europeu.

Mas se o papel coordenador dos ministérios dos Negócios Estrangeiros se foi diluindo, alguns terão pensado que, pelo menos, aquilo que é o “core” da atividade das máquinas diplomáticas pudesse ser preservado nas mãos dos gestores da política externa, os ministros dos Negócios Estrangeiros. Mas, também aí, o mundo mudou bastante.

O crescente papel dos chefes do Estado ou de governo na vida europeia levou para as suas reuniões, para os Conselhos Europeus, o essencial das grandes decisões. E o Tratado de Lisboa, quase sem se dar por isso, consagrou a saída dos ministros dos Negócios Estrangeiros do lugar, no sentido físico da expressão, que tinham nos Conselhos Europeus. Agora, quando em Bruxelas se reúnem as figuras de topo dos executivos nacionais, vão acompanhadas com os membros do governo que têm a seu cargo os Assuntos Europeus, que obviamente não têm lugar na sala e que ficam num “backstage” de mero suporte. Aqueles de quem esses “junior ministers” politicamente dependem, os ministros dos Negócios Estrangeiros, esses ou ficam nas capitais ou dedicam-se a outras tarefas.

Mas a Europa, para os chefes das diplomacia, acabou? Claro que não. Os ministros dos Negócios Estrangeiros continuam a reunir com regularidade, mas com uma pequena-grande diferença: enquanto cerca de uma dezena de formações ministeriais, mais técnicas, têm reuniões presididas pelos ministros do país que exerce a presidência semestral, as reuniões dos chefes das diplomacias passaram a ser tituladas pelo Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, dependente do Conselho e que é, simultaneamente, vice-presidente da Comissão Europeia. Os chefes das diplomacias nacionais são “coordenados” pelo chefe da diplomacia europeia, assuma-se ou não isto abertamente.

Mas não só: por todo o mundo, a ação dos embaixadores dos Estados-membros passou a ser coordenada pelo representante diplomático da União, pertencente ao Serviço Europeu de Ação Externa, acreditado como embaixador da União Europeia. É ele quem reúne os embaixadores nacionais, quem fala localmente em nome da União. A mudança foi muito significativa.


Presidências condicionadas

As presidências semestrais tiveram sempre condicionantes, que limitavam a liberdade dos Estados que as assumiam para desenharem um programa à sua exclusiva vontade.

Desde logo, porque estavam dependentes da conjuntura e não podiam estabelecer uma agenda que a não tivesse em conta. Depois, porque havia que respeitar o que estivesse no “pipeline” legislativo da União, sob proposta da Comissão. Finalmente, em especial tratando-se de Estados menos poderosos, porque era sempre necessário negociar a colocação na agenda semestral de iniciativas que pudessem ser vistas como abalando a rotina e os ritmos marcados pelos “powers that be” dentro da máquina.

Acresce que, para evitar grandes surpresas, mas igualmente para garantir alguma uniformidade e sentido de continuidade, foi criado o chamado “trio” de presidências, que desenha um programa comum. E, não por acaso, foi alterada a ordem de exercício das presidências semestrais de forma a garantir que, nesse trio, há sempre um estado “grande” da União.

Nada acontece por acaso nesta Europa...


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Uma presidência atípica

A presidência de 2021 é a primeira que Portugal exerce sob o modelo criado pelo último Tratado europeu: o Tratado de Lisboa, finalizado precisamente durante a nossa última presidência, em 2007.

Portugal tem perante si um tempo europeu de grande exigência, seja na gestão das questões decorrentes da pandemia, como a distribuição das vacinas, seja nos efeitos do Brexit nos diversos aspetos da vida europeia. Mas, igualmente, espera-se da presidência um trabalho de impulso para acelerar o calendário das ajudas financeiras decididas durante a presidência alemã. O facto da Comissão Europeia ter um papel central na execução prática de muitas destas dimensões, não dispensa o Estado-membro que exerce a presidência da necessidade de intervir nas arbitragens que vierem a ser entendidas por necessárias.

Dois pontos se destacam, entre outros, naquilo que a presidência portuguesa quer deixar como sua marca no semestre: a realização da cimeira europeia com a Índia e um Conselho Europeu dedicado a consagrar um conjunto de decisões, que anuncia como muito significativo, na área social. No primeiro caso, estamos perante o diálogo com uma potência emergente com uma posição determinante na área indo-pacífica. No segundo, numa União marcada por um crescente afastamento dos cidadãos, o reforço da dimensão social pode ser uma chave determinante para mudar algumas perceções negativas e dar um novo impulso à agenda europeia.

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Francisco Seixas da Costa é investigador do “Observare” - Observatório de Relações Exteriores da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), onde também é docente. Foi embaixador português no Brasil, em França e em organizações internacionais (ONU, OSCE e UNESCO) e secretário de Estado dos Assuntos Europeus (1995/2001). É atualmente gestor e consultor de empresas, colunista na imprensa e comentador de temas internacionais. É presidente do “Clube de Lisboa”.


(Texto publicado no Anuário Janus 2020/2021)





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