2 de outubro de 1997

Para além de Amsterdão

À hora a que a maioria dos leitores tiver tido a paciência para iniciar a leitura deste artigo, os ministros dos Negócios Estrangeiros dos países da União Europeia terão, com certeza, assinado já o Tratado de Amesterdão, o resultado dessa laboriosa e, para muitos, pouco produtiva revisão de Maastricht.

Para trás ficaram mais de dois anos de esforços na busca de consensos para dar à União alguma maior operacionalidade em áreas como a segurança interna e a acção diplomática externa, uma maior eficácia funcional com vista a adaptá-la aos futuros alargamentos, uma maior transparência para a tornar mais simples e perceptível aos olhos de uma opinião pública cujo desejo por “mais Europa” hesita no limiar da sua incapacidade de entender o que fazemos de útil com a Europa que já temos.

Ao olhar para o novo Tratado, alguns acabarão por nele reconhecer uma espécie de denominador comum de uma ambição europeia revista em baixa, para além de uma “shopping list” de interesses mais ou menos de capelinha, para contentar franjas de eleitorado ou de grupos de pressão e para evitar imprevisíveis referendos. Outros - e neles nos incluímos - entendem que este Tratado é o salto de qualidade possível num tempo europeu marcado por factores conjunturais bloqueantes, pela crescente prevalência de uma clara lógica de interesses nacionais e da emergência de grupos de países em confronto aberto (e, por vezes, despudorado) pela gestão do poder de influência. Mas, acima de tudo, num momento caracterizado por um horizonte de projecto onde se detecta que a inevitabilidade de novos desafios é paradoxalmente acompanhada por um débito de crença e entusiasmo em todos quantos deveriam a eles responder.

Agora que tudo já passou, talvez se possa revelar que, nas últimas semanas da negociação daquilo que viria a designar-se por Tratado de Amesterdão, algumas reuniões houve em que os representantes de um grupo significativo de Estados de pequena e média dimensão tentaram articular entre si uma estratégia que evitasse o que se temia pudesse vir a ser uma forte pressão para a sua menorização institucional no termo da Conferência.

Embora com um leque de interesses diversificado em muitas áreas - esta Conferência demonstrou claramente que as alianças só podiam ser pontuais -, os representantes desses Estados tinham de comum a percepção de que seria impossível que as respectivas opiniões públicas viessem a aceitar um saldo negocial final em que a sua “quota” de poder no processo decisório da União aparecesse reduzida, isto é, que a sua igualdade de princípio como entidades soberanas no plano internacional viesse a ser afectada no resultado final, nomeadamente em matéria de representação na Comissão Europeia e de um agravamento das diferenças de poder de voto no Conselho de Ministros. O resultado dessas alianças “clandestinas” foi o adiamento da resolução do binómio Comissão/ponderação, uma solução que não nos agradou mas que acabou por ser preferível aos modelos de menorização institucional que andaram no ar.

Isto leva inevitavelmente a interrogarmo-nos sobre se a principal questão divisiva no seio da União Europeia (UE) se reduz à luta de “pequenos” contra “grandes”, se o factor demográfico é o elemento central de afastamento entre os Estados membros e, em especial, se foi isso que marcou o resultado desta Conferência.

Tentemos uma resposta aparentemente simples: essa contradição é mais importante para uns do que para outros mas, para todos, assume um valor simbólico que não é possível ignorar e, como tal, reflecte-se inevitavelmente no exercício total da afirmação política dos Estados membros.

Em nosso entender, o que essencialmente divide ou aproxima os Estados membros da União Europeia é a afinidade ou a divergência face aos interesses, em particular de ordem económica, que estão subjacentes à execução das políticas, muito mais do que as diferenças demográficas que se espelham no poder institucional ou as concepções várias do projecto europeu em confronto. Só que a possibilidade de fazer prevalecer esses interesses depende, em grande escala, do modo como se conseguir influenciar a máquina comunitária - e isso tem muito a ver com a representação nas instituições (e não apenas com o poder de voto). É uma espécie de círculo vicioso de que não é possível sair e que alguns sofrem mais do que outros.

Para melhor entender o cenário em que todos nos movemos na União, convém ainda ter presente que uma das mudanças mais significativas ocorridas nas últimas décadas no processo comunitário resultou daquilo que terá sido o seu mais bem sucedido e fácil alargamento: referimo-nos à entrada da Áustria, da Finlândia e da Suécia. Com a adesão destes Estados, com um padrão económico e tecnológico bem mais próximo dos países mais desenvolvidos da então União a “Doze”, com uma geografia de interesses estratégicos que a evolução recente do Leste europeu veio a revelar complementar de grande parte desses mesmos países, houve como que um subliminar mas expressivo desequilíbrio dentro da União Europeia.

A curto prazo, essa evolução acabou por conduzir à assunção pela Comissão de uma lógica de comportamento maioritariamente reprodutora dos interesses comuns a essa maioria de Estados. Trata-se de uma evolução com alguma legitimidade e até de aparente democraticidade: as iniciativas da Comissão passaram a representar uma maioria de países e, seguramente, uma esmagadora maioria da população comunitária. E as decisões do Conselho que as legitimam passaram a seguir, naturalmente, a mesma lógica, só perturbada por esporádicas divergências, que frequentemente não é possível evitar, entre os interesses concorrenciais existentes mesmo entre Estados que alinham por uma lógica correntemente comum.

Para os Estados que se situam nesse patamar de interesses, a questão da sua presença e influência no mecanismo institucional da União tem, naturalmente, uma dimensão prática muito menos importante do que para países que se confrontam com a realidade de terem de defender padrões de desenvolvimento, e encontrar meios de execução das políticas europeias para os acompanhar, que estão em contraciclo com os interesses maioritários do processo comunitário. Daí resulta a dupla desvantagem que esses últimos sofrem, ao pretenderem fazer vingar interesses marginais aos da maioria e, ao mesmo tempo, terem uma limitada capacidade institucional para o fazer. Este é, inquestionavelmente, o problema português.

Dir-se-á que esta é uma situação inevitável, inerente à própria filosofia de um processo de conciliação internacional que se resolve em favor do maior número. Só aparentemente isto é verdade, dado que a UE está longe de corresponder ao modelo tradicional das organizações internacionais e da sua essência constitutiva resulta precisamente uma dimensão sui generis de projecto colectivo que, pelo menos na teoria, deveria encerrar uma lógica distintiva, assente num modelo de solidariedade e de ajuda intraeuropeia que assegurasse uma evolução num sentido de coesão de todo o seu espaço e de tendencial aproximação no mesmo dos padrões médios de desenvolvimento. Tudo isto no pressuposto que o crescimento e o bem-estar colectivos são um interesse comum, que dele decorrem vantagens gerais da estabilização social e económica criada e, num plano muito mais prático, que da criação de mercados mais poderosos e sólidos, dotados de infraestruturas de que todos beneficiam, todos lucram, numa perspectiva de regular “retorno” financeiro e numa leitura das contribuições líquidas numa lógica de investimento que é perfeitamente possível fundamentar.

A preservação desse interesse comum, a descoberta de modos de o objectivar e a propositura de formas de compensação para garantir que a diversidade de interesses não deriva numa inevitável disfunção, compete, no figurino teórico europeu, à Comissão - dita “guardiã” dos Tratados e, nessa qualidade, alheia às diversas pressões nacionais que o Conselho ou o Parlamento obviamente têm que reflectir. Só que, na vida, as coisas são o que são e nós sabemos que a Comissão é um reflexo, infelizmente perfeito, desse estado de coisas.

Marcada por uma preeminência dos interesses nacionais, dotada de instituições fragilizadas perante a pressão desses mesmos interesses, a pergunta pode colocar-se: vale a pena uma União deste tipo, compensa o empenhamento num projecto que parece tender à dualização da Europa, em lugar de aproximar as suas diversas componentes ? A resposta é obviamente sim e as razões subjectivas da crítica não se podem sobrepor às virtualidades objectivas do projecto.

A Europa que temos perante nós é, muito provavelmente, uma Europa muito diferente daquela a que aderimos em 1986 - essa mesma diferente da Europa do Tratado de Roma. Durante uma década tivemos uma oportunidade, porventura única na história contemporânea do nosso país, de usufruir em pleno de um processo de articulação política e económica com o centro europeu. Tivemos o ensejo de acumular mecanismos de fuga à perifericidade e tivemos ao nosso dispor meios para o reforço das infraestruturas, para a melhoria da qualificação profissional que nos garantisse a maturação dos factores de produção e para a reconversão de sectores em perca de competitividade no plano externo. De que maneira aproveitámos essas ajudas? Se querem uma resposta, ela está na radiografia sectorial e tecnológica do nosso tecido produtivo, na estrutura das nossas exportações e, muito em particular, na nossa produtividade relativa no quadro europeu. À bon entendeur...

Acresce a esta realidade que, como dissemos, o processo de integração que, em 1986, se iniciou em Portugal, que Maastricht reforçou pela adopção do conceito de coesão económica e social, não vai completar-se no modelo previsto. As exigências estratégicas provocadas pela necessidade de garantir uma acomodação das novas democracias emergentes no centro e leste do continente acabaram por forçar os Quinze a redesenhar as suas prioridades e elas passam agora pela definição de um padrão médio de integração mais baixo, pela diferenciação nos diversos modelos dessa mesma integração e, naturalmente, por um repensar das políticas que sustentavam o anterior projecto. A circunstância de a Europa ser, em grande parte, atravessada por uma onda de desemprego que reforça o egoísmo nacional e limita a vontade em reforçar modelos de solidariedade, a que acrescem os rigores macroeconómicos do processo colectivo de convergência nominal, tudo isso contribuiu para o estabelecimento de um ambiente europeu qualitativamente diferente, com consequências visíveis nas propostas, em discussão, do próximo quadro financeiro comunitário.

A saída deste tempo de redução de ambições, de alguma indefinição sobre os novos modelos de integração e sobre a
(
própria) nova filosofia que prevalecerá na Europa só poderá fazer-se, a nosso ver, através do sucesso do projecto da União Económica e Monetária. E aí Portugal terá que estar presente, para garantir a sua inserção no centro decisório e no quadro de estabilidade e crescimento que a Moeda Única vai proporcionar.

Em todo este contexto, o Tratado que hoje se assina em Amesterdão é um compromisso de passagem entre dois tempos da Europa comunitária. E é também a consensualização possível da vontade média de integração em áreas que, para muitos, roçam já os limites da sua soberania tradicional. Além de outras óbvias virtualidades, comporta os elementos de esperança no aprofundamento em dimensões próximas de algumas das grandes preocupações dos cidadãos europeus, abre caminho ao reforço da vertente social que entendemos essencial para acompanhar o projecto de integração económico-monetária, facilita os instrumentos para a afirmação externa da União. Prolonga, contudo, a indecisão sobre o formato definitivo dos processos de decisão, esses mesmos entretanto mais simplificados.

É um Tratado que fica à espera da UEM, do impulso desta para se determinar se é possível e necessário ir mais longe, na certeza de que qualquer evolução tem de se fazer para além do presente quadro institucional, de uma união híbrida de países onde a permanência dos excessos de intergovernamentalidade acaba frequentemente por agravar os riscos que, precisamente com a insistência nela, se pretendia evitar.


(Publicado no “Público”, em 2 de Outubro de 1997)