16 de abril de 2017

Saudades nossas


Tinha um pequeno batente, nunca houve qualquer campainha. A porta era envidraçada, com portadas de madeira, idêntica às janelas que, na zona lateral, davam para uma estreita passagem exterior que levava à cozinha. Eu tinha por hábito anunciar a minha chegada de outra forma: batia nos vidros da porta ou na madeira adjacente. Instantes depois, um olhar inquisitivo de uma senhora idosa surgia por detrás dos vidros, logo transformado, à minha vista, num amplo e alegre sorriso. Foi assim durante anos. Bastantes, felizmente.

Isto passava-se na “casa das tias”, e as tias de que vou falar eram irmãs da minha avó materna. A casa era nas Pedras Salgadas, numa das esquinas do cruzamento que constitui o eixo daquela aldeia que agora já é vila. Mesmo em frente, em paralelo com a estrada, passava nesse tempo o comboio da linha do Corgo.


O comboio já acabou há muito, a casa ainda lá está, mas já não é a mesma. Quem hoje sobe para a igreja de S. Martinho, encontra-a na esquina do lado esquerdo. Noutros tempos, a casa – na realidade, um primeiro andar, com um estabelecimento comercial por baixo - era bordejada por um belo terraço de contorno curvo, com um muro caiado de branco, encimado por uma pérgula que cobria de plantas quase metade desse espaço. Nos verões, cadeiras de verga e madeira almofadada serviam de pouso e cenário a amenas conversas.

O terraço foi sempre imenso, mas apenas na minha memória: na realidade, ocupava uns escassos metros, tornados gigantescos pela minha pequenez de infância. Acedia-se a ele da rua por um pequeno portão vermelho, de madeira, seguido de um curto lanço de escadas. Passado este, à direita, havia o “barraco”, com porta também vermelha (ou seria castanha?), atulhado de coisas imprestáveis que, num vício comum nas aldeias, se guardam sempre, vá lá saber-se para quê.

Tenho fotografias minhas nesse terraço, em diversos tempos, de criança a adolescente, com várias pessoas da família, e por elas meço as idades de quem fui, entretanto, perdendo. Numas, vejo-me no chão, a brincar com um cão de borracha; noutras, estou ao colo ou ao lado de primos, tios, avós e pais. Até enfarpelado e de laço, portador de alianças num casamento feliz, surjo retratado por ali, de braço dado com uma prima que já não vejo há décadas. Daquele terraço, então imenso, olhava a mulher do alguidar dos tremoços que oficiava na esquina em frente e encantava-me com a coreografia das bandeiras da guarda da passagem de nível. Aquele terraço foi um dos meus cenários dos tempos da vida que tenho por muito bons.

***

Voltemos à porta. Era quase sempre uma das tias que nela nos acolhia. Mas, afinal, quantas e quem eram essas tias?, perguntar-se-á o leitor não iniciado. Vou tentar simplificar a resposta.

A família da minha avó materna e dessas suas irmãs era originária de uma localidade não muito longe dali, de Soutelinho do Monte, perto de Sabroso de Aguiar, na estrada para Chaves. Por lá nasceu a minha mãe, segundo rebento do casamento da avó Olívia, irmã das tais tias, com o meu avô Francisco. Desse casamento, que teve lugar no virar da Monarquia para a República, iria resultar um total de cinco filhos – duas raparigas e três rapazes.

Em data que não consigo precisar, mas que se situa algures nos anos 20 do século passado, a casa e as propriedades de Soutelinho do Monte foram vendidas. Os meus avós, que ali tinham ficado a viver depois de casados, mudaram-se para a casa que o meu avô, entretanto, herdara da sua mãe, e minha bisavó, em Bornes de Aguiar, também a dois passos dali.

Como era muito comum à época, quer o meu avô, quer a minha avó tinham imensos irmãos. É sobre os irmãos e irmãs da minha avó que quero falar, porque é destes que fazem parte as tias que quero recordar neste texto.

O destino dos dez irmãos da minha avó foi distinto entre si. Dos irmãos, já só conheci um, o tio João, de que falarei adiante. Dos restantes, ouvi falar do tio Cândido, farmacêutico no Vidago (quem é da região diz “no Vidago”, quem não é diz “em Vidago”), do tio Armando, proprietário em Oura, às portas do Vidago, e do tio Acácio.  

O tio Acácio era médico e foi diretor clínico das Termas das Pedras Salgadas e da companhia que as geria. Por algum tempo, foi governador civil de Vila Real. Vivia em Vila Meã, a caminho de Vila Pouca de Aguiar. Conheci bem a viúva, a tia Elvira, de forte personalidade e génio, que se revelou por vezes menos compatível com as cunhadas.

Com ele viveu, por algum tempo, uma irmã da minha avó, a tia Aninhas (Ana), que casou muito jovem e enviuvou cedo. Tendo-se depois apaixonado por um rapaz de Ribeira de Pena, numa ligação que, por qualquer razão, não terá agradado à família, sobre ela caiu uma espécie de “fatwa” familiar, só quebrada nos anos sessenta, quando um imenso piquenique de reconciliação foi organizado por um dos irmãos da minha mãe, o tio Rogério, que, entretanto, tinha restabelecido a ligação com esse ramo da família. Lembro-me bem dessa alegre ocasião, em Ribeira de Pena, em que todas as irmãs então vivas caíram chorosas nos braços da tia Aninhas, pondo termo àquela ridícula separação. A tia Aninhas era uma senhora encantadora, que nos recebia com extrema generosidade e alegria e com cuja simpática descendência, em especial desde então, todos viemos a estabelecer uma forte e duradoura relação.

Tenho uma imagem fugaz de outra tia, de seu nome Palmira, também irmã da minha avó. Guardei dela uma cara sofrida e, muito em especial, tempos mais tarde, a evocação difusa do dia chuvoso da sua morte, nas Pedras Salgadas, na “casa das tias”, onde viera despedir-se da vida e da família. Foi num ambiente tenso e que imagino que deva ter sido difícil para a criança muito pequena que eu então era, mas a que os meus pais não terão podido poupar-me, nessa que, seguramente, foi a primeira vez que me confrontei com a ideia da morte de alguém.

Três outras tias – Tininha (Albertina), Helena e Maria – tinham ido viver para as Pedras Salgadas, nesses anos 20, depois da divisão das propriedades de Soutelinho do Monte. A data da chegada dessas três senhoras coincidiu com uma época áurea das termas. As Pedras, as suas águas medicinais, o seu parque, o hipismo e os seus muitos hotéis e pensões eram um sucesso, em especial entre maio e outubro, arrastando gente abastada de todo o país.

As três irmãs decidiram abrir um novo hotel. A casa em que ele foi criado ainda lá está, em frente à “casa das tias”, um interessante prédio com um terraço de colunas que, desde há muito, abriga serviços oficiais.

O Hotel Colonial, como foi chamado, não terá sido, de acordo com a história oral familiar, um empreendimento de grande sucesso. O conhecimento do negócio, por parte das tias, não foi suficiente. A sua extrema generosidade terá contribuído para esse fracasso: consta que muitos familiares e amigos, alguns vindos de longe, se iam acolhendo por lá, por temporadas, sem que isso se refletisse necessariamente a crédito na contabilidade da operação hoteleira. Um dia, foi declarada uma inevitável falência. O Colonial, como sempre o ouvi referir, foi sido vendido e, talvez com esse valor, foi adquirida, em frente, aquela que passou a ser a “casa das tias”.

Um episódio dessa aventura hoteleira ficou para sempre na nossa memória coletiva. Por alguns meses, durante a Guerra Civil de Espanha, um “rojo”, por indicação de alguém da família, obteve refúgio no Colonial. Durante o dia, permanecia dentro de um grande armário de parede, onde lhe eram servidas as refeições, só regressando ao quarto à noite. Não sendo essa geração da minha família materna conhecida por qualquer inclinação antifascista e, ao que julgo saber, não sendo de considerar a relevância da questão pecuniária, ficam por explicar, embora sendo desde logo de louvar, as razões que terão levado as minhas tias a tão arriscado gesto. A verdade é que, para sempre, Avelino Sola Castro, mais tarde um bem-sucedido empresário em Chaves, ficou um bom amigo de toda a nossa família.

Entretanto, ainda o Colonial funcionava, uma das três irmãs que o geria, a tia Maria, ter-se-á encantado com um oficial do Exército que por ali se hospedou. Casou com ele e foi viver para o Porto. Com o marido, o tio Óscar, a tia Maria regressava anualmente às Pedras Salgadas, para o que me recordo ser uma longa jornada estival, em casa das irmãs.

Resta ainda falar de uma outra tia, a tia Alcina, que desempenha também nesta história um papel central. Fora casada com um para mim misterioso Castro, figura que ornava uma moldura oval numa parede da sala, cavalheiro de fartos bigodes e que, ao que me recordo, era originário de Murça. Nunca percebi bem o que teria feito na vida esse tio, que já não conheci, mas rezavam as crónicas que a tia Alcina viveu com ele no Porto e, creio, em Lisboa. Depois da morte do Castro, sem filhos, a tia Alcina viria a regressar às Pedras Salgadas, indo viver com as duas irmãs que aí tinham ficado.

***

É esse trio de tias-avós – tia Alcina, tia Tininha e tia Helena – que integra a minha mais viva memória de infância e adolescência. Não me conheço sem elas, tive-as por perto em todos os tempos, e a sua progressiva saída da paisagem da vida significou o meu confronto definitivo com uma espécie de fim da inocência, o acordar para o mundo das perdas irreversíveis que acabam por fazer parte do nosso crescimento.

Em certos anos, ainda na minha juventude, fui várias vezes passar alguns dias, em tempo de férias, às Pedras Salgadas, para casa das tias.

A primeira dessas experiências individuais, fora do controlo dos meus pais, com nove ou dez anos, ficou marcada pela minha queda acidental de um barco, no lago do parque das Pedras. Molhado que nem um pinto, refugiei-me no canavial, sem coragem de seguir naquele estado até à residência das minhas tias. Avisado o meu avô, ele negociou com um dos rapazes que faziam assistência ao jogo do “golfinho” o empréstimo do seu traje de trabalho. E o rapaz lá ficou, em cuecas, também no meio das canas, enquanto eu seguia para casa, pela artéria central da aldeia, imagino que escondendo a cara, vestido com o macacão cinzento de serviço desses apanha-bolas. Depois de um banho, sabe-se que as tias me esfregaram o corpo a álcool, não fosse a água do lago ter-me deixado impurezas na pele…

Em outros anos mais tarde, já adolescente, fui duas ou três vezes, em férias, passar uma semana por lá. Porém, como já tinha encetado o meu vício de ler pela madrugada dentro, as minhas manhãs de sono eram trágicas. O quarto que ocupava dava para a estrada nacional e para a linha férrea paralela, pelo que era invariavelmente acordado pelo trânsito da manhã, automóvel ou ferroviário, entre Vila Real e Chaves. Acrescia que, sob a casa, havia a “venda” do senhor Marçal, inquilino das tias, e, desde muito cedo, através do soalho, chegava a essa zona da casa uma perturbadora vozearia, acompanhada pelo odor dos eflúvios do vinho que se vendia ao balcão. E havia também os mosquitos que se infiltravam pelas frinchas das janelas e me arruinavam as leituras noturnas. A isso se somava, finalmente, um relógio na sala anexa, que me irritava os ouvidos, de hora a hora. Hoje, pensando bem, devem ter sido estas circunstâncias, inconformes com os meus incorrigíveis hábitos horários, que terão limitado uma maior frequência minha em férias na “casa das tias”.

Marcante na minha memória foi um dia em que, de surpresa, aportei à “casa das tias”, de mochila às costas. Tinha andado mais de um mês à boleia pela Europa, de Lisboa à Suécia. Numa tarde, em França, à saída de Bordéus, numa paragem do trânsito na velha N10, consegui boleia com o condutor de um táxi português. Ele ia para Ribeira de Pena, passava mesmo à porta da “casa das tias”! Até lhe fui útil, para o entreter com conversa, evitando o perigoso sono da noite, na estrada de Tordesilhas a Verín, por Puebla de Sanabria. Aguardámos em Feces de Abajo a abertura da fronteira (é verdade: fechava à noite, como a “guerra” do Solnado) e, bem cedo, de manhã, bati àquela “santa” casa. Dessa vez, nem a barulheira da “venda” do Alcino nem os carros ou os comboios ou o relógio perturbaram uma dúzia de horas seguidas de sono, numa cama a sério, com que me desforrei de uma noite em branco e do bom cansaço acumulado da alegre jornada europeia.

Os quartos da casa das tias eram impressionantes de organização. Recordo a garrafa de água com copo a tapar que era regra na mesa-de-cabeceira, a bacia de louça com jarro e a toalha de linho, bem como, na casa de banho coletiva, os tapetes brancos ainda com os dizeres Hotel Colonial, a recordar uma experiência que, talvez por trauma, nunca as ouvi a elas abordar.

A frustrada experiência do Colonial não anulara, contudo, por completo a vocação hoteleira das tias. Por alguns anos, entre maio e outubro, dois ou três quartos da casa eram alugados a pessoas que ali chegavam por recomendação, que ficavam por períodos “a águas” e que, com o tempo, acabavam por converter-se em amigos da família. Os meios nunca foram muito fartos na vida modesta daquelas senhoras e, estou certo, esse contributo sazonal devia ser interessante para o seu orçamento.

***

As tias, essas três tias, eram bastante diferentes entre si.

A tia Alcina tinha um evidente ascendente sobre as outras duas, por ser a mais velha e quiçá (estas coisas não se pressentiam, ao tempo) por dar um contributo financeiro importante para a gestão da casa, fruto da herança de viuvez do Castro (ela e as irmãs referiam-se-lhe sempre como “o Castro”, pelo que fiquei sem saber o primeiro nome desse meu tio). O seu caráter um pouco cerimonioso ungia-a de uma imagem de distinção. Era uma figura de modos requintados e voz pausada, levantava o dedo mindinho quando erguia a chávena de chá e dava ares de ter uma educação formal muito elaborada. Lia as Seleções (do Reader’s Digest) e romances, de óculos na ponta do nariz. Um dia, contou-me que, quando se deslocava de comboio ao médico, a Vila Pouca de Aguiar, o chefe da estação fazia sempre questão de ir buscar um pequeno banco para a ajudar a subir à carruagem.

Das outras duas tias, a que sempre me foi mais próxima, sendo-o também da minha mãe, era a tia Tininha. Desde muito pequeno, era com ela que eu tinha as brincadeiras, é da sua constante companhia que rezam as minhas memórias mais antigas. Uma ida com ela ao Teatro-Circo, em Vila Real, para uma longa-metragem infantil, antecedida pelo filme da coroação de Isabel II, comigo com cinco anos, é um desses momentos impressivos. Era uma mulher de uma suavidade extrema, incapaz de dizer uma palavra mais alta, com um sorriso bondoso que rimava com a sua maneira de ser. O meu pai, que tinha pelas minhas tias uma dedicação e uma amizade que iam muito para além do seu vínculo por afinidade, dizia que ela “viveu para ser útil e agradável aos outros”. E assim era. Adorava a minha mãe e todos os meus tios, como se fossem os filhos que não teve. Nunca entendi por que nunca casou. Nunca percebi também se era apenas uma brincadeira o rumor de que um galante e aventureiro irmão do meu avô, o tio Filipe, lhe tinha, em tempos, andado a “arrastar a asa”.

A outra tia era a Helena. Era uma figura com um toque muito particular, que às vezes parecia um pouco ausente, distante. Na cara trazia um sorriso que era um permanente esgar, com umas maçãs do rosto salientes e rosadas. Lembro-me bem do cheiro do seu pó de arroz, o invariável “Maderas de Oriente”, com que vivia sempre muito empoada. Quando a casa passou a ter televisão, passava horas deliciadas em frente ao aparelho, “do hino de abertura à Meditação”, como ironizava o meu pai. Cozinhava lindamente e era seu um irrevogável “pelouro”: fazer o chá. Tinha o que se chama um “feitiozinho” e, não raramente, implicava com as irmãs. Mas, valha a verdade, aquela casa era um oásis de calma e bom entendimento.

***

Creio que, com o seu irmão, e meu tio, Fernando, que as visitava com grande frequência, a minha mãe era talvez, em toda a família, a pessoa mais intimamente ligada às tias. Talvez por isso eu tenha herdado algo dessa sua muito forte relação. Por uma razão para a qual nunca obtive uma explicação muito concreta, a minha mãe fora, desde muito nova, criada na casa dessas senhoras, que distava pouco mais de um quilómetro da Casa do Pereiro, onde o meu avô Francisco e a minha avó Olívia, em Bornes de Aguiar, viviam com os restantes quatro filhos. Essa circunstância, contudo, não conduziu à mais leve distância entre ela, os pais e os irmãos e talvez tenha mesmo contribuído para que uma relação muito forte existisse entre os meus avós e aquelas minhas tias.

De facto, elas eram como que um prolongamento natural dos meus avós, figuras presentes, a toda a hora e sem exceção, nas ocasiões que reuniam a família, como o demonstra a imensidão de fotografias de encontros e picnics em que todos sempre participavam.

O meu avô, que se licenciara em Direito em Coimbra no fim da Monarquia, decidiu desistir da carreira judicial que iniciara, por não querer “circular” pelo país e por desejar ficar perto da sua terra de origem, Bornes. No final dos anos 30, foi viver para Vila Real, aí ocupando o cargo de Conservador do Registo Predial. Sempre que podia, “fugia” para a casa de Bornes, tomando o comboio da linha do Corgo para as Pedras Salgadas, em viagens em que me recordo de algumas vezes o ter acompanhado.

Desde sempre, criou-se o hábito de essas irmãs da minha avó passarem a ficar, por largos períodos, em Vila Real, naquilo que, nas casas onde por lá vivi, sempre se chamou “o quarto das tias”.

Iam para o Natal, em meados de dezembro, e só regressavam às Pedras com fevereiro à vista, depois do meu aniversário. Antes da Páscoa, voltavam a tomar o comboio até Vila Real e aí ficavam por cerca de um mês. Depois, insistiam em regressar às Pedras Salgadas, para o período termal.

Todas essas tias tinham uma adoração pelo meu avô, seu cunhado, que as tratava, coletivamente, pelo nome carinhoso de “as pequenas”, talvez justificado por alguma diferença de idade que entre eles existia. O meu avô Francisco, que tinha grande sentido de humor, era um patriarca que adorava ter a família à sua volta. E as “pequenas” eram parte desse cenário, com todas elas a tratarem-no, invariavelmente, por “Chiquinho”.

Uma noite, nos anos 50, depois de jantar, em Vila Real, saído para o café Excelsior com o meu pai, como costumava fazer em muitas ocasiões, o meu avô decidiu improvisar uma falsa chamada telefónica para uma das tias, que, com a minha mãe e a minha avó, tinham ficado em casa. Fingindo a voz de um genro que se tinha deslocado ao Brasil – e que era então presidente do município de Vila Real, casado com a única irmã da minha mãe, Benedita (a tia Zinha) -, criou uma falsa chamada internacional, coisa muito rara à época, pedindo para falar com a tia Alcina, a mais velha das tias. Não se sabe como foi a conversa, só sei que, no regresso do meu avô a casa, a tia Alcina contava, deliciada, a conversa que tinha tido com o Humberto, esse genro do meu avô, tendo o que então disse ficado na memória divertida de todos nós: “Ó Chiquinho! Ouvia-se tão bem! Até parecia que era daqui!” A revelação do logro deixou a tia Alcina encavacada e a sala num riso que se prolongou nos dias seguintes, nesse tempo em que as coisas simples podiam ser interessantes.

O prazer do meu avô de brincar com a tia Alcina, talvez por ser a mais sénior das três, assumiu o ponto supremo quanto um dia esta recebeu, durante uma estada em Vila Real, uma carta enviada das Pedras Salgadas, assinada pelo padre Domingos, o pároco da freguesia, convidando-a, “com outras três distintas senhoras das Pedras”, a integrar a procissão anual, carregando ao ombro um inédito “andor feminino”, já não sei com que santa ou santo.

Eu fora, dias antes, com o meu avô à tipografia do senhor Agostinho, na esquina da rua das Pedrinhas, quase em frente à casa onde então vivíamos, para a impressão do papel timbrado “da Paróquia”. O meu avô tivera o cuidado de pedir a alguém, que entretanto se deslocava às Pedras, para enviar a carta de forma a poder ter o credibilizante carimbo dos correios local. Contava-me o meu pai que o embaraço da tia Alcina, quando abriu a carta e se confrontou com o “pedido”, foi imenso. Por um lado, não queria afrontar com uma recusa o “gesto simpático do senhor padre Domingos”, mas, por outro, a ideia bizarra de carregar um andor, tarefa até ali inédita para senhoras nas Pedras, deixava-a mais do que perplexa e dividida. O seu avô, com ar sério, apelava ao seu “sentido de responsabilidade, até para a imagem da família…”. A santa senhora só sossegou quando, passadas muitas horas, lhe foi revelada a patranha.

É ainda a tia Alcina quem me oferece o título que dei a este texto. O único filho do meu avô que vivia fora de Vila Real, o tio Luís, tinha por hábito telefonar todas as noites, de Lisboa, ao pai. No final desses telefonemas, as tias, sentadas ali ao lado, queriam enviar ao “nosso Luizinho” o seu carinho e, representando as irmãs, a tia Alcina deixava sempre, alto, para que o meu avô se não esquecesse: “Saudades nossas!”  

 ***

Até aos 13 anos, vivi, com os meus pais, em casa dos meus avós. A vinda das tias era, para mim, um momento de satisfação e, como criança única a vaguear e a crescer pela casa, neto único por muitos anos, imagino-me privilegiado pelo ambiente afetivo que se criava à minha volta. As tias adoravam-me e eu retribuía-lhes. Um dia em que estava previsto o regresso delas às Pedras Salgadas, depois de um desses períodos em Vila Real, rezam as crónicas familiares que as deixei fechadas no quarto que ocupavam e saí com a chave para a rua. Terão perdido o comboio e imagino a imensa confusão que se deve ter criado. Eu teria quatro ou cinco anos, mas essa nota de carinho exagerado pelas tias ficou para sempre inscrita nas histórias da família.

Os meus avós morreram, entretanto, com escassa diferença de tempo. As tias continuaram a ir passar os Natais connosco, na casa dos meus pais, em Vila Real. E a minha forte relação afetiva com elas mantinha-se. Talvez porque então vivia mais longe, um qualquer regresso a Trás-os-Montes, mesmo que por escassos dias, levava à quase imediata questão por parte da minha mãe: “Quando vais às tias?” E eu ia, sem custo, a gosto, pelo prazer de estar uma boa hora de conversa com aquelas senhoras, numa intimidade única, serena e carinhosa. Ela mostravam-me então, orgulhosas, a coleção dos postais que eu lhes enviara de todos os locais por onde viajava pelo mundo. Até muito tarde, até elas começarem a desaparecer, mantive o hábito dessa correspondência que, no fundo, sinalizava a sua permanente lembrança em mim.

Quando casei, as tias adotaram a minha mulher, que passou a devotar-lhe uma dedicação em tudo similar à minha. Na modéstia de meios que era a sua, ofereceram-nos, como prenda de casamento, uma pequena cafeteira que só fazia dois cafés, acompanhada de duas chávenas e de um comovente pedido de desculpas por não poderem ser mais generosas.

Um dia, levei-lhes, para uma tarde de convívio que ficou memorável, uma simpática tia da minha mulher que tinha uma idade próxima da delas: E por ali ficámos, a ouvir desfiar conversas e memórias, de mundos próximos embora distantes. As tias eram de uma gentileza e de uma atenção sem par para os outros e recebiam todos os nossos amigos com imensa generosidade, como se da sua própria família se tratasse.

***

Volto, por uma última vez, à porta da “casa das tias”, nas Pedras. Eram a tia Tininha ou a Tia Helena quem nos abria a porta. Nunca essa tarefa foi, que me recorde, da tia Alcina, que usufruía do seu estatuto etário.

Não se ficava na sala envidraçada de entrada, uma espécie de antecâmara que dava acesso à sala de estar. Esse era o lugar para receber alguém menos íntimo, pessoas da aldeia, a quem, pela certa, acabava por ser oferecido um cálice de “vinho fino”.

Por lá, havia uma estante que recordo ter Almanaques Bertrand, romances já sem capa e, sempre, exemplares antigos da Modas & Bordados, leitura regular lá de casa, a par da Flama e das Seleções. Numa das paredes, havia uma gravura, representando a sequência majestosa das palmeiras do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, talvez oferta de algum dos membros da família que tiveram o Brasil como destino de vida.

A sala adjacente, a “saleta”, era, na realidade, o centro da vida da casa. Tinha a inevitável mesa com braseira, por muitos anos a brasas e que, numa tarde de salto tecnológico, vi passar a elétrica. Havia um móvel com um imenso espelho, cobrindo grande parte da parede, o que dava profundidade à divisão. Além de um relógio de cuco e da fotografia do já referido Castro, por lá estava um retrato dos meus bisavôs, pais das tias e da minha avó.

Entrados para essa sala, sentados à volta da braseira, trocadas as primeiras histórias, um momento inevitável seguia-se, como ao dia se segue a noite: a vinda do chá. Discretamente, a tia Helena, minutos depois da nossa chegada, deslizava do banco almofadado junto à janela e encaminhava-se para a cozinha, para preparar a “chazada”, como eu jocosamente qualificava o momento. Quantas vezes, mal entrado na sala, as arreliava com um “hoje não quero chazada!”, pretextando com um almoço tardio ou algo que pudesse impedir essa rotina. Qual quê! O servir um chá era sagrado naquela casa, que vinha sempre com pão, marmelada (as tias faziam ótima marmelada!) e queijo flamengo. E eu, que afivelara por rabugice a inicial recusa da “chazada”, quase sempre acabava por me alambazar com um lanche completo.

A casa das tias era grande. Tinha um longo corredor, com quatro quartos, que partia da cozinha e desembocava na sala de jantar. A cozinha era um espaço com um cheiro inesquecível, confortável, um misto de mercearias e legumes. O chão do corredor rangia, no caminho para a sala de jantar. Aí, onde as refeições eram servidas num belo serviço que tinha vindo do Colonial, havia um relógio “de violão”, entre duas varandas.

Para a sala de jantar, davam ainda mais dois quartos. Um deles era aquele em que eu tentava, debalde, dormir nas manhãs barulhentas de férias, o outro era conhecido como o “quarto do Óscar”. Era ocupado pela tia Maria e pelo seu marido, o tio Óscar, o tal militar que desencaminhara essa irmã mais nova, quando vinham do Porto para a vilegiatura anual. Nesse período, “o Óscar”, como era referido pelas cunhadas, ocupava o papel do homem da casa.

***

Sou suspeito ao falar do tio Óscar. Criei com ele, desde a minha infância até à sua morte, uma relação magnífica e dele recebia um tratamento ímpar. Com ele e com a tia Maria, passei férias na casa em que viviam no Porto, à Ramada Alta. Da sua janela, via passar o comboio para a Póvoa e, ao longe, vislumbrava o monumento da Boavista. O tio Óscar levava-me a passear de elétrico até à Foz, mostrava-me com cuidado a Baixa, sentava-me, junto aos seus camaradas “na reserva”, no Rialto, aos domingos eu acompanhava o casal aos almoços na messe da Batalha. O meu gosto pelo Porto começou aí.

O tio Óscar tinha, recordo, a coleção completa encadernada da revista oficiosa do Porto, O Tripeiro, lia O Primeiro de Janeiro e assinava a Vida Mundial, quando aquela publicação era, apenas, uma folha impressa sem imagens, com tradução de artigos publicados na imprensa estrangeira. Interessava-se por temas internacionais e despertou a minha curiosidade por questões militares – ele que fora oficial em África, durante o primeiro conflito mundial. Era um homem com uma cultura de factos e eventos, a depreciativamente chamada cultura “de almanaque”, dado às vezes a conclusões simples sobre temas complexos. Conservador e julgo que salazarista, recordo-me de ter assistido à emergência de algumas contradições suaves, em conversas com o meu pai, que nunca escondia as suas convicções democráticas.

O tio Óscar, na imagem que dele guardo, era uma figura baixa, com proeminente barriga. Todos os anos, fazia uma varinha tirada de uma cana que cortava no parque das Pedras e ela acompanhava-o durante todo o resto das férias. Dava um passeio “higiénico” após cada refeição, pela avenida e pelo parque, em passo próximo do militar, com a minha tia ao lado e o chapéu na cabeça. Pela tarde, não dispensava uma sesta sob a pérgula do terraço da casa das tias. Eu invejava-lhe a disciplina de rotina que se autoimpunha e pensava que um dia, quando “fosse grande”, conseguiria essa capacidade de regrar a vida. Enganei-me redondamente: nunca consegui e, valha a verdade, nunca tentei. O tio Óscar era um homem bom, de gostos simples e de uma grande bonomia.

***

Conheci o tio João, irmão das tias, muito menos do que desejaria. Porquê? Porque era uma personalidade muito simpática, suave, um homem pesado, com uma maneira pausada de falar, muito marcada pelo inconfundível sotaque de Chaves, onde era secretário da Câmara municipal e onde vivia há muito. Tinha um grande carinho por mim e dava-me uma atenção especial, num mundo de adultos onde, muitas vezes, eu era a única criança.

Vinha, em algumas épocas, em especial nas vindimas, passar semanas para uma bela casa que tinha à entrada de Bornes. Ia visitá-lo com os meus pais, e tenho na memória os refrescos oferecidos pela sua mulher, a tia Tininha (não confundir com a homónima irmã da minha avó, de quem tenho falado), uma mulher culturalmente interessante e com uma forte personalidade, que parecia (mas só parecia) contrastar com o carater mais sereno do marido.

O tio João era um caçador emérito e recordo, muito miúdo, a imagem de o ver embarcar numa camioneta, com outros parceiros, para uma jornada cinegética. Dizem-me que era um bom garfo, qualidade sempre estimável que, com o tempo, me faz apreciá-lo ainda mais.

Há uma história deliciosa, passada numa tarde, no terraço das tias. O tio João devia regressar a Chaves, ainda nesse dia. A certa altura, as “cancelas” fecharam-se e o comboio, vindo da Régua e de Vila Real, entrou, fumegante, na estação, com os apitos da praxe. Velho habitué daquele meio de transporte, o tio João, fiando-se na sua intuição do tempo, prolongou a conversa por um período para além do prudente. A certo passo, ofegante, entrou pelo portão um funcionário da CP: “Senhor Joãozinho, o senhor chefe da estação diz que o comboio está pronto para partir e pediu para o senhor se apressar.” O tio João (o “Joãozinho” é o diminutivo que, nas aldeias transmontanas, se dá a quem é querido por lá) lá se despediu e, nos seus vagares, desceu para a estação. Era assim a vida, por esses tempos.

***

Nos últimos anos da vida das tias, a sua existência pelas Pedras Salgadas manteve-se muito simples. Como destino termal, as Pedras eram cada vez menos procuradas. Os hóspedes feitos amigos, que tinham chegado a dar alguma animação à casa, deixaram de aparecer. Com a morte sucessiva do meu avô e da minha avó, bem como do seu irmão João, em Chaves, elas passaram a ter como laço familiar, essencial e constante, a nossa família de Vila Real.

A minha mãe e o seu irmão, o meu tio Fernando, eram, como disse, as âncoras mais regulares dessa existência, mas valha a verdade que toda a família, de Chaves a Lisboa, visitava-as com a frequência que a respetiva vida permitia.

A tia Maria, uns anos depois de enviuvar, saiu do Porto e juntou-se às restantes três irmãs. O agora “quarteto” desenhou, por alguns anos, a nova paisagem humana da casa (“Do alto desta braseira, bem mais de três séculos nos contemplam", napoleanizava o meu pai). As “senhoras”, como eram chamadas na aldeia, tinham frequentes visitas de figuras femininas das suas relações, muitas delas mais novas, o que induzia alguma animação às suas tardes – e aos seus chás (que eu passei a trazer-lhes da Twinings).

Um dia, chegou o 25 de abril. A Revolução não era, com certeza, algo que as sossegasse, tanto mais que, na nossa família, acarretara algumas consequências pessoais menos agradáveis e, em outros casos, suscitara temores exagerados, que eu me divertia sempre em tentar amenizar.

Um dia de 1975, antes das eleições para a Assembleia Constituinte, numa "saltada" de Lisboa a Vila Real, fiz a minha visita habitual às tias, nas Pedras. Que me recorde, a política nunca havia sido tema de conversa entre nós. Mais por curiosidade do que por outra coisa, perguntei-lhes se já tinham decidido em que partido ou partidos tencionavam votar, nas eleições que estavam à porta, de que tanto então se falava.

Com exceção da tia Maria, a mais nova, regressada pouco antes do Porto, que talvez votasse no PS, eu estava em absoluto convicto de que o CDS ou o então PPD seriam o destino normal dos votos das outras minhas tias. Talvez tivessem mesmo sido já "apalavradas" pelo prior da freguesia, o excelente e simpático padre Domingos, o homem que me batizara, que fizera casamentos e todos os funerais da nossa família. Embora ele fosse liberal noutros domínios, suspeitava que seguia a onda do clero nortenho que, à época, "diabolizava" fortemente a esquerda.

As tias mostraram-se muito hesitantes, julgo que chegaram a perguntar-me a minha opinião (eu ia votar no MES, mas não tinha coragem de as tentar convencer...), embora sem necessariamente prometerem seguir o que eu lhes dissesse, claro. Até que uma delas contou: “Esteve cá, há dias a dona Albertina - que tu conheces! - e falou-nos das eleições, dos comunistas e coisas assim. Deu-nos um conselho...”

Fiquei imensamente curioso sobre qual teria sido o "conselho" da dona Albertina, uma senhora bastante mais nova, que tinha vivido até há pouco em Lisboa, que devia andar a fazer proselitismo conservador, pela certa. A minha curiosidade foi logo saciada: “Ela disse-nos que não se deve votar nos partidos que tenham ferramenta no emblema...”

Dei uma imensa gargalhada, lembrei-me da imensidão de foices e martelos que adornavam as imagens dos partidos, bem como de enxadas e rodas dentadas que ilustravam outras formações. O conservadorismo da dona Albertina, afinal, era muito moderado. Aliás, a senhora informara-as de que ia votar no "partido da mãozinha", do Mário Soares, que "parecia boa pessoa e que não gostava dos comunistas". Nunca soube ao certo em quem votaram as minhas queridas tias. Essa era, aliás, a minha última preocupação.
               

***

Os anos foram passando. As quatro tias, uma a uma, foram desaparecendo. Eu vivia então longe, no estrangeiro e da morte de cada uma ia tendo notícia pelos meus pais, sempre tardia, porque o dar com tempo as novidades desagradáveis faz parte dos hábitos da nossa família. Quando, numa visita às Pedras, voltava a bater no vidro daquela porta, sabia que faltaria mais alguém, pelo que os sorrisos que nos recebiam passaram a ser cada vez mais tristes. Eu fazia boa cara, dizia umas patetices, para animar os espíritos, entregava a lembrança que trazia, falava por algum tempo, bebia o chá da praxe, mas, em cada minuto que passava, ia-me invadindo uma insuperável nostalgia. Eram, são as saudades nossas.

Vila Real, Natal de 2016
  
Dedico estas recordações, muito pessoais, aos meus primos, a todos eles. Os mais velhos terão, das tias, as suas memórias próprias, que cruzarão com as minhas. Aos mais novos, hoje ou no futuro, o que ficou escrito pode ajudar a entender que todos somos felizes herdeiros de um mundo ímpar de afetividade, criado por umas senhoras que viveram para os outros e que, talvez sem o saberem, ajudaram muito àquilo que somos como família.