31 de dezembro de 2005

Saudades de Kofi Annan

Dos tempos em que a trabalhei em instituições multilaterais retirei duas lições fundamentais.

A primeira foi a de que as pessoas que as titulam têm um peso muito importante na definição do perfil comportamental dessas mesmas instituições e, em casos muito particulares, podem converter-se mesmo num factor de mudança da sua cultura funcional. A lição mais evidente veio da União Europeia, onde uma personalidade como Jacques Delors provou ser possível, numa conjuntura histórica específica, converter-se num factor de uma dinâmica que mudou o rumo da Europa. Não é por acaso que os Estados membros escolheram, depois dele, os sucessores que a União teve.

A segunda lição, prende-se com com esta última constatação, isto é, com o facto da evolução das estruturas multilaterais depender, na maioria das vezes, da afirmação de orientações que conseguirem prevalecer no seu seio. Essa linha pode corresponder à prevalência de uma conjugação de vontades, traduzida num condomínio intergovernamental (como sucede com a UE de hoje) ou à preeminência desproporcionada de uma única potência, a que a conjuntura deu oportunidade de se tornar hegemónica no seu seio ou, não o conseguindo, a tornar inoperante esse mesmo mecanismo multilateral (como é o caso da ONU).

Vem isto a propósito da sucessão de titulares a que hoje assistimos na ONU.

O processo de descredibilização pelo qual a ONU passou nos últimos anos não foi inocente. E uma pessoa como Kofi Annan entendeu-o bem, sabendo embora que tinha meios limitados para o evitar e, em especial, que a eficácia mínima da sua acção estaria condenada se e quando passasse determinadas “red lines”. Annan foi tão longe quanto lhe seria humanamente exigível na salvaguarda da autonomia da organização, ciente de que não poderia contar nunca com uma coligação virtuosa e coerente de vontades, capaz de assegurar uma força alternativa às pressões insuportáveis que se exerciam sobre a ONU.

Sou testemunha, antes e depois do 11 de Setembro, do seu desesperado esforço no sentido de procurar garantir uma centralidade operativa à organização, no seu insubstituível papel de garante da regulação da sociedade internacional, em especial resistindo aos “powers that be” que a procuravam instrumentalizar. E, lamento constatá-lo, fui igualmente observador desiludido do modo como nunca pôde contar com uma unidade europeia para o apoiar. Julgo que só a História lhe fará a necessária justiça – e um país como Portugal não deixará de lhe prestar justo tributo, que o seu papel na questão de Timor Leste amplamente justifica.