16 de abril de 1998

A segurança comum europeia


Antecipando, em síntese, o teor deste artigo, entendemos que os passos dados na última Conferência Intergovernamental, em matéria de defesa e segurança, constituíram apenas pequenos ajustamentos que, a não serem complementados a prazo pela objectivação de uma vontade política concreta, poderão ter limitado significado em termos práticos.

Se bem que o contrário também contenha parte da verdade: se houver mobilização e interesse político por parte dos Estados membros, os instrumentos actualmente ao nosso dispor constituem já um quadro operativo suficiente para se poder actuar eficazmente.

O Tratado de Amesterdão, no relativo minimalismo das suas reformas, tem de ser considerado, muito claramente, um tempo necessário de passagem na construção europeia. Amesterdão estava já anunciado e calendarizado em Maastricht e a perspectiva de um próximo e substancial alargamento da União veio apenas reforçar a importância originária da tarefa. Convém ainda não esquecer que a Conferência Intergovernamental se destinava, no espírito de alguns, a procurar garantir a alteração de alguns equilíbrios ou desequilíbrios - conforme a perspectiva - que não fora possível modificar no anterior exercício. Se isso veio ou não a ser conseguido em Amesterdão é tema para uma análise de outro tipo.

A realidade, porém, é que o Tratado de Amesterdão, nomeadamente no domínio da Defesa e Segurança, fica, como atrás se disse, aquém do que muitos esperariam e até, arriscaria afirmar, bastante aquém daquilo que a maioria dos Estados membros desejaria.

Tendo Maastricht aberto já o caminho para um tratamento comum das questões da política externa e de segurança, embora mantendo-as num “pilar” específico de raiz predominantemente intergovernamental, veio a verificar-se em Amesterdão que não estavam ainda maduras as condições para um qualquer salto qualitativo muito radical neste domínio, embora os termos de referência do quadro global europeu se tenham entretanto alterado substancialmente.

Amesterdão surge num momento em que, no quadro da NATO, se discutiam as questões da partilha de responsabilidades no cenário europeu e, em especial, estavam no seu ponto mais delicado certo tipo de opções estratégicas essenciais, a principal das quais era o próprio alargamento da organização.

Além disso, não podemos esquecer que o percurso de aproximação, em matéria de política de defesa e segurança, por parte de alguns países que recentemente haviam aderido à União Europeia - casos da Áustria, da Finlândia e da Suécia -, estava então, como ainda hoje está, muito longe de percorrido.

O panorama estratégico de Amesterdão combinava, assim, uma  vontade formal no sentido da agregação de países do Centro e do Leste do continente ao projecto que se foi construindo deste lado da Europa, em busca da colmatação de um sentimento de orfandade surgido no período pós-guerra fria, com a definição de um novo padrão organizativo em matéria de segurança e defesa do continente que conseguisse compatibilizar um conceito de identidade europeia nesse domínio com as ainda diversificadas idiossincrasias nacionais que nele se projectavam.

A evolução do tratamento da Política Externa e de Segurança Comum no debate que conduziu a Amesterdão sofreu ainda de uma grande e inultrapassada limitação. Essa limitação tem a ver com aquilo que poderia ser designado como a definição dos patamares psicológicos de cada Estado em matéria de partilha de soberania e a crescente dificuldade de os conjugar temporalmente num processo de revisão do Tratado.

Quero com isto referir a circunstância, que me parece evidente, de ser cada vez mais difícil, num percurso conjunto que sai já para além da mera integração de natureza económica, garantir perspectivas comuns noutras áreas mais sensíveis, que possam ter tradução em letra de Tratado.

Repare-se que estamos, progressivamente, a caminhar em terrenos que tocam de perto o conceito tradicional de soberania, onde a lógica nacional sempre tendeu a prevalecer, e onde, por constrangimentos institucionais internos ou por sensibilidades nacionais diferentemente motivadas, a obtenção de posições comuns entre os Estados membros se torna mais complexa. E isto é tão válido para a PESC como o é para a Justiça e para os Assuntos Internos.

Poderá ser argumentado que, em matéria de segurança e defesa, a nossa cultura comum já ultrapassou essa limitação e que, nomeadamente no quadro da Aliança, muitos dos actuais Estados membros da União têm um percurso de trabalho em conjunto muito concreto, que já não se pauta por quaisquer traumas em matéria de soberania. Embora isso possa ser formalmente verdadeiro, importa ter presentes duas realidades.

A primeira é a de que há parceiros que, por razões muito específicas, entendem que o quadro europeu não pode prevalecer neste domínio sobre o vínculo transatlântico, privilegiando este como espaço de afirmação onde melhor crêem poder e dever consagrar os seus esforços.

A segunda realidade é a de que há países membros da actual União Europeia que, pelo menos por ora, continuam a não se rever numa estrutura de defesa e segurança assente numa partilha global de meios.

Desta forma, poder-se-á concluir que a evolução da dimensão defesa e segurança em Amesterdão acabou por sofrer de uma conjugação perversa de algum atlanticismo radical com a permanência dos efeitos de um passado neutralista de alguns Estados Membros. Esse duplo movimento bloqueador viria a revelar-se o factor essencial que determinou o modelo final saído de Amesterdão neste domínio.

Simplificando um pouco, poder-se-ia dizer que durante os debates da Conferência Intergovernamental puderam detectar-se duas linhas essenciais.

Uma primeira linha tinha, como elemento central, a ideia de que a União da Europa Ocidental (UEO) deveria permanecer praticamente intocada no seu quadro funcional e de articulação com a União Europeia (UE). Esta orientação tinha como objectivo preservar, em absoluto, a autonomia da UEO face à União Europeia, que o mesmo é dizer garantir a manutenção do seu laço essencial com a NATO, sem a fazer evoluir para uma dependência político-estratégica das opções comunitárias em termos de PESC.

No outro extremo, situava-se uma linha integracionista, promotora de uma leitura radical do processo de aproximação UE-UEO esquissado no Tratado de Maastricht que, nomeadamente, permitisse explorar o sentimento de frustração europeia gerado em crises como a da ex-Jugoslávia, através da promoção de um modelo de gestão política que se afirmasse como complementar da identidade europeia de defesa e segurança em construção no âmbito da NATO.

No espaço entre estas duas posições limite situou-se outra perspectiva, titulada inicialmente por países de tradição neutralista, e que apostava numa vinculação limitada em termos de objectivos e partilha de meios. Essa terceira linha considerava que a assunção pela União Europeia das chamadas “tarefas de Petersberg” era o quadro limite para a sua intervenção, criando desta forma dois tempos operativos autónomos entre si no quadro da UEO, aos quais ficariam desigualmente ligados os Estados Membros da União Europeia.

A solução encontrada, e que se acabou por fazer em torno desta última orientação, foi, por assim dizer, salomónica e terá correspondido à evolução possível no quadro actual de vontades políticas e de apetência por modelos integrados, devendo ser reconhecido que dificilmente seria então viável ir mais longe neste domínio. A circunstância de estar prevista uma reanálise a prazo do problema poderá vir a alterar esta perspectiva, embora se pressinta que continuam a não estar reunidas as condições necessárias para uma alteração substancial de vontades nos dois elementos extremos bloqueadores atrás referidos.

Mas vejamos, mais em concreto, alguns aspectos do que ficou consagrado.

Com a integração das “tarefas de Petersberg” nos objectivos da União Europeia, o conjunto dos Estados membros da União, mesmo os que não são hoje membros da NATO, reconhecem a sua responsabilidade comum na manutenção de um sistema internacional de segurança. Se bem que reduzida, esta evolução não pode ser considerada despicienda, num tempo em que as ameaças de conflito militar de grande escala diminuíram flagrantemente e onde as principais e mais óbvias ameaças se situam em conflitos locais, de amplitude muito mais limitada, conflitos esses para os quais as “tarefas de Petersberg” parece constituírem a resposta mais adequada.

Alguns dirão que a preservação da decisão por unanimidade neste domínio retira eficácia aos mecanismos delineados no Tratado, tornando plausíveis cenários de bloqueio - ou de pesada negociação, o que vem dar ao mesmo - que podem inviabilizar intervenções concretas.

Mas sejamos realistas: colocar meios de intervenção militar na dependência de decisões por maioria parece-nos, por ora, um cenário sem sentido. Aliás, mesmo em dimensões de natureza puramente diplomática, sem implicações militares, a linguagem consensualizada em Amesterdão não se afastou muito desta perspectiva.

A questão, como antes se referiu, continua a estar sempre na formação de uma vontade política comum e se essa não existir, em domínios tão sensíveis como estes, não vale a pena termos a ilusão de que é possível instituir modelos de decisão que possam acabar por menorizar alguns Estados, se essa não for a sua vontade e se não for criado um quadro de exclusão automática de responsabilidades para quem se não queira sentir vinculado às decisões.

Mas vejamos um pouco a questão da evolução da relação UE-UEO no novo Tratado.

Esta relação havia sido já estabelecida em Maastricht, numa formulação muito burilada, com o óbvio objectivo de poder comportar todas as sensibilidades. Em Amesterdão foi-se um pouco mais longe, através de ligeiras alterações, que levam a PESC a incluir “a definição progressiva de uma política de defesa”, a qual “poderá conduzir a uma defesa comum, se o Conselho Europeu assim o decidir”.

Com o objectivo de dar um impulso a este movimento, seis Estados membros, a que Portugal veio posteriormente a associar-se, propuseram integrar a UEO em três fases - hipótese que não veio a ter consagração. Ficou apenas no Tratado uma intenção geral, através da seguinte formulação: “A União encoraja o estabelecimento de relações institucionais mais estreitas com a UEO com vista à integração eventual da UEO na União, se o Conselho assim o decidir”.

Deixou-se, assim, expressa uma perspectiva de aproximação entre as duas organizações. Mas, para alguns defensores da fusão, ainda que a prazo, acaba por se suscitar a questão de saber se a integração final da UEO, a vir a acontecer após uma laboriosa cumulação de compromissos, não acabará por ter lugar de uma forma diluída, isto é, se a vocação de defesa prevalecente actualmente na UEO não se perderá no processo de aproximação com a União Europeia. E, a este preço, há mesmo quem pense se valerá a pena alterar o quadro actual.

Nestas questões de defesa e segurança continua a ser patente uma grande preocupação com a ambição dos textos, havendo frequentemente o risco de nos estarmos a afastar das dimensões reais que estão no terreno. E essas dimensões obrigam ao exercício de alguma modéstia.

Terá interesse ter presente que, após 1989, os Estados europeus reduziram em geral os seus orçamentos militares, os produtores europeus de armamento perderam parcelas importantes dos seus mercados tradicionais e, no plano técnico-científico, verifica-se um agravamento da capacidade competitiva europeia nos equipamentos mais sofisticados, nomeadamente face aos Estados Unidos.

Além disso, não vale a pena esconder uma realidade: a capacidade de defesa autónoma da Europa recua actualmente de forma muito significativa, o que nomeadamente ficou claro nas intervenções da Aliança na ex-Jugoslávia.

Os factos, neste domínio, são indiscutíveis: fora do quadro da NATO, os Estados europeus têm apenas uma capacidade de acção limitada, mesmo contra adversários dotados de meios modestos. Isto é patente, por exemplo, nos seus recursos em termos de informações e nas suas capacidades em matéria de transportes rápidos.

O retrato actual da UEO não faz, aliás, mais do que sublinhar esta realidade. A UEO não dispõe de meios operacionais suficientes para levar a cabo operações que se situem para além da manutenção da paz (operações de “peace-keeping”) e, quando se torna necessário desencadear operações de restabelecimento de paz (operações de “peace-making”), tem que recorrer obrigatoriamente aos meios NATO. 

A contradição é óbvia: a UE inclui, nas finalidades da sua PESC, o desenvolvimento das “tarefas de Petersberg” mas, na realidade, não tem, por ora, meios operacionais autónomos para as realizar em pleno. Da constatação dessa situação parte, aliás, muito do interesse em conseguir estabelecer as CJTF (“combined joint task forces”), projecto que permitiria dispor de meios militares NATO “não separados, mas separáveis”.

Mas há uma linha irónica de raciocínio que não queremos deixar de testar neste texto: ao alargar as ambições da sua própria PESC, ao dar-lhe objectivos que só é possível realizar com meios UEO, ao reconhecer que estes meios, a partir de certa dimensão, têm forçosamente de ser de origem NATO, logo, ao fazer depender a sua utilização da “luz verde” americana, não estará a União Europeia a caminhar para uma ainda maior dependência, em termos da formulação da sua política de segurança (e, por essa via, da sua própria política externa comum) da vontade americana ? Não funcionará este suposto reforço da dimensão europeia em matéria de defesa e segurança, através da articulação mais íntima entre a UE e a UEO, num sentido ironicamente contrário ao da plena autonomização face aos EUA, que alguns preconizam como linha mais desejável de evolução ?

Esta é uma interrogação que deixamos, com a consciência que tenho de que, muito provavelmente, quaisquer que sejam os riscos, outra alternativa seria sempre impossível de encarar.

Mas há uma segunda fraqueza evidente em matéria de política europeia de defesa que Amesterdão não colmatou e essa diz respeito ao crescente atraso das indústrias europeias de armamento, em especial face às suas congéneres do outro lado do Atlântico.

Como é sabido, na última década os fabricantes americanos levaram a cabo reestruturações muito ambiciosas, com concentração empresarial, com racionalização produtiva e, em especial, com uma reorientação tanto para novos produtos como para novos mercados.

Ora, na Europa Ocidental nada de similar sucedeu. Para muitos, Amesterdão acabou por perder uma oportunidade para dar à Europa uma maior solidez neste domínio, ao manter o sector do armamento fora da lógica do mercado único (art. 223º), evitando a liberalização, e ao não introduzir o conceito de uma política comum de aquisições, particularmente no quadro da UEO.

Não queremos fazer juízos de valor sobre estas opções, tanto mais que, por razões específicas por todos conhecidas, Portugal pode ter vantagens pontuais em preservar por ora um estatuto autónomo, nomeadamente em função da sua dependência face a certos tipos de equipamento. Mas não podemos deixar de reconhecer que há aqui um terreno de óbvia debilidade global europeia a que Amesterdão esteve longe de responder.

Julgamos ter deixado clara a ideia de que o Tratado de Amesterdão pouco mais fez, no domínio que aqui abordamos, do que reduzir alguma da linguagem complexa de Maastricht, ficando, porém, muito aquém da definição de novas linhas de trabalho em comum, salvo no tocante às “tarefas de Petersberg” e, mesmo estas, com as limitações assinaladas.

Ficou também evidente que, na óbvia inexistência de uma vontade comum susceptível de permitir reforçar os instrumentos ao nível do Tratado, há um espaço para poder utilizar o que já existe, desde que pontualmente haja interesse político para actuar em comum - o que, aliás, poderia mesmo dispensar alterações ao Tratado. A questão está em saber se e quando vamos sair do ponto em que estamos.

É neste contexto que cremos útil deixar algumas reflexões mais gerais, que melhor enquadram aquilo que atrás referimos.

O futuro político da União Europeia apresenta, neste momento, algumas incógnitas, embora este conceito não tenha necessariamente de ser lido de uma forma preocupante.

Temos perante nós um esforço de alargamento da área da União com uma dimensão sem paralelo no passado, o que naturalmente exige recursos e/ou adaptação de políticas, o que implica uma reflexão profunda sobre o essencial a preservar no actual tecido integrador.

Estamos, simultaneamente, perante passos decisivos num projecto de União Económica e Monetária que pode, se suceder em pleno, trazer como que um sopro de entusiasmo e um dinamismo renovado ao projecto europeu.

Para alguns, uma evolução positiva deste duplo desiderato tem condições para se transformar num elemento catalizador da integração, o que significa que poderá vir a justificar novos passos em áreas adjacentes à mera dimensão económica. Isto pode traduzir-se, num cenário optimista, na criação de condições para um reforço da União Política, o que, sem qualquer dúvida, criaria uma apetência por uma maior densificação da PESC, em todas as suas dimensões.

Não temos ilusões de que este movimento não deixará de ser polémico, porque, num médio prazo, continua a não haver condições para evitar que nesse projecto futuro se projectem, com força diferenciada, as ambições de alguns Estados que, à escala europeia, têm tentações de potência.

Resta saber se o movimento integrador de natureza económico-monetária, cumulado com o sucesso do alargamento, não poderá induzir factores de apetência por um reforço da imagem externa da Europa que tornem inevitável tal evolução e acabem por diluir as reticências de alguns países para essa solução.

Em aberto continua, a nosso ver, a questão, que parece incontornável, de saber se é possível a uma União alargada garantir, no futuro, um caminho conjunto de todos os Estados Membros dentro do próprio projecto europeu.

Um cenário cada vez mais possível, e que pode ser irrecusável em diversos contextos comunitários, aponta no sentido de um recurso mais frequente à integração diferenciada, isto é, à vinculação de apenas alguns Estados ao exercício de certas políticas. Essa é, muito provavelmente, a solução que o futuro próximo acabará por justificar face aos desafios novos que o alargamento forçosamente trará em diversos domínios da actividade da União - e não cremos que as áreas de segurança e defesa possam escapar a essa realidade.

Se pensarmos em situações como a de novos Estados membros aos quais, por algum tempo, está vedado o acesso à NATO, bem como a provável manutenção de alguma singularidade de raiz neutralista noutros parceiros, julgamos que não será difícil prever que o futuro da União neste domínio pode, muito facilmente, caminhar no sentido de um reforço de integração que envolva apenas um grupo de Estados e deixe os restantes em modelos de articulação diferenciada, com responsabilidades, mas também com vantagens, proporcionais ao seu grau de adesão.

Neste contexto, Portugal tem de fazer um esforço, porventura algo voluntarista e com consequência financeiras, no sentido de uma maior centralidade das suas opções, sem o que poderá caminhar no sentido de mais um dos ciclos de periferização a que historicamente tem estado associado, com desvantagens que são óbvias.

Se é um facto que devemos ser tão europeus quanto os interesses de Portugal o justifiquem, uma leitura das virtualidades do processo integrador que vivemos desde 1986 leva a considerar que esses interesses apontam para que não percamos as carruagens dianteiras do comboio para a União Europeia do futuro. Até porque fica a sensação que, com o aumento da composição, algumas das últimas carruagens poderão acabar por ficar de fora da estação.




(Publicado em “Europa – Novas Fronteiras” (nº 3, 1998), Centro Jacques Delors, Lisboa. Baseado na comunicação “Perspectivas para a Europa após a revisão do Tratado da União Europeia - Consequências e responsabilidades em matéria de segurança comum”, apresentada no Seminário “O Tratado de Amesterdão e a PESC”, organizado pelo Instituto Superior Naval de Guerra, em 16 de Abril de 1998.)

5 de abril de 1998

O desafio do alargamento


Quando hoje tentamos projectar a agenda europeia dos próximos anos, cometemos por vezes o erro de seccionar a realidade e ver os futuros alargamentos da União apenas como um dos temas, embora dentre os principais, que avultam nessa mesma agenda. Essa visão não tem em conta que é precisamente o processo de admissão dos novos candidatos que está por detrás de todo o conjunto de passos que a Europa a Quinze se propõe dar e que é esse mesmo alargamento que está a sobredeterminar todo o debate europeu.

A reflexão em torno do modo como a Europa se deve organizar para o futuro tem conduzido a um interessante confronto de perspectivas que, a nosso ver, prefigura mesmo uma alteração da filosofia integradora que marcou os últimos tempos. Essa mudança qualitativa, que tem riscos e oportunidades conjugados, assenta sempre na necessidade de ponderação do choque que a entrada, embora faseada, de um conjunto de novos países vai trazer para a União.

Numa perspectiva histórica, nada disto é novo. Sem excepção, todos os anteriores alargamentos da Europa comunitária introduziram pressões diferenciadas no respectivo tecido político e económico e, a prazo mais ou menos curto, acabaram por redefinir o padrão de interesses que se projecta no modelo institucional. Só que o processo que temos perante nós tem uma dimensão e comporta um conjunto de exigências muito diverso de qualquer exercício similar no passado.

Para melhor situar o actual processo de alargamento da União Europeia, será importante, antes de mais, recuar um pouco no tempo, até à negociação do Tratado de Maastricht.

Perante a simbólica queda do muro de Berlim e o desmembramento dos mecanismos de articulação do então bloco de Leste, a Europa comunitária cedo se apercebeu da necessidade de prestar uma urgente contribuição para a solidificação das democracias emergentes nesses países. Tratava-se de aproveitar o momento para a fixação de uma nova geografia estratégica da Europa que, assente num processo de desenvolvimento económico e no estabelecimento de modelos políticos de natureza democrática, pudesse vir a criar um novo tempo de paz e de estabilidade, isento das tensões da Guerra Fria, com uma ancoragem sólida à filosofia de sociedade que prevalece neste lado do continente.

Este sentimento, ainda que de alguma forma estivesse já reflectido no ambiente que precedeu a assinatura do Tratado da União Europeia, em Fevereiro de 1992, não foi, porém, suficiente para influir decisivamente sobre aquilo em que então se acordou. Com efeito, convém lembrar que Maastricht representou, para o projecto comunitário, um elemento de maturação integradora extremamente significativo em si mesmo e foi nisso que se concentraram as atenções. O ponto de partida era uma Comunidade Económica Europeia (CEE), complementada com o Acto Único Europeu, de facetas maioritariamente económico-sociais e marcada ainda por uma grande preponderância da intergovernamentalidade; chegou-se a uma União Europeia incomparavelmente mais aprofundada, em que se cumularam novas áreas de integração, em que se deram passos muito importantes em sectores como a Política Externa e de Segurança Comum (PESC) e a Justiça e Assuntos Internos (JAI). De certa forma, começou mesmo a delinear-se como que uma União Política, assente num projecto União Económica e Monetária (UEM) que Maastricht calendarizou e faseou.

O novo Tratado acabou por reflectir a prioridade por essa nova Europa mais integrada, mais ao encontro do cidadãos e das suas principais preocupações, embora tivesse já aberto caminho para algumas exigências do alargamento que se adivinhava. A circunstância do próprio Tratado prever a realização de uma nova Conferência Intergovernamental (CIG), a iniciar-se em 1996, tinha a ver, não apenas com o facto de a União dever, a prazo, garantir melhorias em termos de eficácia, de democraticidade e de transparência, mas igualmente com a necessidade de repensar as próprias estruturas institucionais e o seu corpo de políticas, tendo em vista um alargamento futuro, que todos sabiam iria ter uma dimensão inédita, qualitativa e quantitativamente.

É no seguimento do encerramento dos trabalhos da CIG que, em Julho de 1997, a Comissão, no cumprimento do mandato que lhe fora atribuído pelo Conselho Europeu de Madrid, em Dezembro de 1995, apresentou os pareceres sobre os pedidos de adesão e uma comunicação denominada Agenda 2000, englobando, num quadro único, as grandes perspectivas de desenvolvimento da União e das suas políticas para o início do próximo milénio, numa análise das questões horizontais ligadas ao alargamento e ao futuro quadro financeiro da União, a vigorar após 1999.

No que diz respeito ao alargamento, a abordagem da Comissão assentou no pressuposto de que o cumprimento dos critérios políticos por parte dos países candidatos, que haviam sido definidos em Copenhaga em 1993, constituía condição essencial, mas não suficiente, para a recomendação de início imediato de negociações. No seu texto, a Comissão optou, no domínio económico, por privilegiar uma análise prospectiva que lhe permitia valorizar as opções seguidas pelos candidatos em matéria da sua reconversão interna, mesmo que estas não houvessem produzido integralmente os seus efeitos.

Da aplicação desta metodologia, a Comissão concluiu que apenas um país -  a Eslováquia - não preenchia os requisitos de natureza política, não sendo, por isso, elegível para início imediato de negociações. Igualmente considerou que, embora nenhum dos restantes candidatos cumprisse todos os critérios de natureza económica, cinco dentre eles - Hungria, Polónia, República Checa, Estónia e Eslovénia - estavam em condições de os observar, a médio prazo.

Em consonância com esta avaliação, a Comissão Europeia assumiu um modelo de distinção sem discriminação para o processo de alargamento. Nessa estratégia, a decisão politicamente mais controversa - o estabelecimento de uma clara diferenciação entre os candidatos - era matizada por uma garantia de reavaliação anual dos progressos realizados no cumprimento dos critérios político-económicos por todos os candidatos, o que lhe permitiria recomendar a abertura de negociações com os candidatos excluídos da primeira fase, desde que viesse a considerar estarem reunidas, em qualquer momento futuro, as condições necessárias.

Para além disso, efectuar-se-ia também um reforço global da estratégia de pré-adesão para todos os candidatos, a qual deveria passar a ser centrada nas dificuldades específicas de cada processo, através do estabelecimento de um acordo de parceria entre a União e cada um desses Estados.

As opções metodológicas retidas pela Comissão, para a concretização dos critérios de Copenhaga, não sofreram particular contestação, quer por parte dos Estados-membros, quer por parte da generalidade dos países candidatos, até porque estavam formuladas em termos que eram, indubitavelmente, favoráveis aos anseios destes últimos. Porém, os efeitos políticos delas retiradas foram verberados pelo grupo de países excluídos, que entendeu a diferenciação das candidaturas à partida como injusta e algo arbitrária, não reflectindo a dinâmica dos respectivos processos de reforma, nem constituindo uma resposta correcta aos progressos económicos verificados.

Entre os actuais Quinze, as opiniões quanto a esta questão também se dividiram. No âmbito deste debate, o Governo português, tendo em conta as expectativas criadas em todos os Estados candidatos com vista à sua futura integração na União, privilegiou, desde o início, uma abordagem global do processo do alargamento, que evitasse a criação de sentimentos de exclusão e de frustração nos Estados candidatos preteridos pela estratégia delineada pela Comissão. Evidenciando os pareceres da Comissão que nenhum dos candidatos reunia a totalidade das condições estabelecidas em Copenhaga, Portugal considerou que, tal como era proposta, a diferenciação à partida não deixaria de ser percebida pelos candidatos excluídos como discriminatória, atenta a mutabilidade e a fluidez que caracteriza as situações políticas e económicas de todos eles. Não obstante, o nosso país não deixou sempre de sublinhar que o facto de se poder vir a adoptar um processo de alargamento inclusivo não quereria, de forma alguma, significar que todos aqueles Estados viessem a aderir conjuntamente, pois a evolução do processo negocial deveria sempre ter lugar de acordo com os méritos próprios do processo de cada candidato.

O posicionamento assumido por Portugal decorreu de considerações de cariz político e económico.

Em primeiro lugar, porque tinha presente a importância de garantir a segurança e estabilidade na Europa como um todo e de assegurar o prosseguimento do empenho político no processo de reforma das sociedades e das economias do conjunto dos Estados candidatos, pelo que seria vital concitar o apoio dos respectivos cidadãos a esse mesmo processo. Aliás, essa perspectiva não poderia ser desligada do paralelo debate em curso sobre o alargamento da NATO, correndo-se o risco das opções a tomar neste último domínio acabarem por redundar num modelo cumulativo de exclusão, com consequências políticas muito negativas.

Em segundo lugar, as ideias por nós propostas visavam obviar a possíveis reacções negativas por parte dos agentes económicos internacionais, traduzidas nomeadamente em desinteresse progressivo dos investidores, com efeitos desestabilizadores que poderiam assumir grande relevância, atenta a fragilidade de muitas das economias dos candidatos, muito vulneráveis a choques externos e altamente dependentes do investimento directo estrangeiro.

A perspectiva defendida por Portugal no Conselho Europeu, apoiada por outros países, acabou por fazer algum caminho – embora de um modo limitado. Do lado da União veio progressivamente a emergir uma percepção generalizada quanto à necessidade de uma releitura política da problemática do alargamento, que sublinhasse o imperativo do seu carácter abrangente e evolutivo, afastando dúvidas quanto à igualdade de princípio no tratamento das diversas candidaturas, desta forma garantindo que a metodologia seguida nos pareceres apresentados no âmbito da “Agenda 2000” viria a projectar-se em futuras reavaliações destes. Na meta final dos trabalhos que antecederam o Conselho Europeu do Luxemburgo, em Dezembro de 1997, assistiu-se a uma evolução das posições de alguns Estados membros, o que permitiu a obtenção do consenso consagrado nas conclusões da Cimeira. Elas vieram garantir o que ficou consagrado como o carácter global, integrador e dinâmico do exercício de alargamento. Esse exercício iniciar-se-ia pelo lançamento, em Março de 1998, de um processo de adesão englobando os dez candidatos do Centro e Leste da Europa, bem como de Chipre - cuja elegibilidade e inclusão no primeiro ciclo de negociações de adesão já haviam sido anteriormente confirmadas[1].

Como elemento complementar do processo negocial, a União Europeia decidiu-se igualmente pela criação de uma Conferência Europeia, englobando os Quinze e todos os actuais candidatos, para a qual seriam elegíveis outros países com vocação para se associarem a uma perspectiva de futura integração (a Noruega e a Suiça estão neste caso). Esta Conferência, com uma agenda a definir à medida do tempo, mas tendo as questões PESC e da JAI no eixo das sua preocupações, tinha um objectivo político iniludível - assegurar a preservação de um modelo de relacionamento específico com a Turquia.

O caso turco foi sempre visto como uma figura especial dentre os países que haviam manifestado interesse em integrar a União Europeia. Com um modelo de sociedade política onde prevalecem elementos que oferecem dúvidas a muitos Estados membros quanto à respectiva consonância com os valores democráticos e do Estado de Direito, a Turquia tem uma dimensão e um tecido económico e social que não podem deixar de ser tidos em importante conta na avaliação da plausibilidade do seu processo de aproximação completa à União. Para além disso, a Turquia mantém um, até agora, insanável conflito político com um actual Estado membro - a Grécia - e ocupa ilegalmente uma parte de um dos candidatos à adesão - Chipre. Para muitos Estados europeus, entre os quais Portugal se inclui, o processo de alargamento poderá representar um momento único para se tentar resolver o problema cipriota.

Não sendo um espaço negocial, a Conferência Europeia foi o modelo mais avançado de ligação da União à Turquia que foi possível consensualizar entre os Quinze. Esse modelo não foi, contudo, aceite por Ancara, que continua a desejar um estatuto em tudo similar àquele que a União ofereceu aos outros candidatos. Daí o impasse a que se chegou e que, tudo o indica, poderá acabar por ter repercussões muito sérias em todo o processo futuro de alargamento e em outras dimensões do relacionamento turco com os Estados membros.

Com o processo de alargamento em andamento, poder-se-á legitimamente colocar ainda a questão de saber a amplitude do seu impacto no projecto integrador que a União Europeia de hoje constitui. Com efeito, enquanto o projecto até agora prevalecente representou uma tentativa de criar um modelo europeu relativamente homogéneo, num grupo de países com uma matriz de desenvolvimento com um grau substancial de identidade, a hipótese de uma União alargada traz novas exigências que, no contexto actual, poderão pôr em causa a coerência e solidez do anterior processo.

Desde logo, isso poderá suceder ao nível do actual padrão das políticas comuns. Dada a indisponibilidade, manifestada pela maioria dos Quinze, para aumentar o actual “plafond” de recursos próprios da União, fixado para 1999 em 1.27% do seu PIB, surgem naturalmente interrogações sobre se existirão condições para a concretização de um espaço alargado de articulação político-económica entre um conjunto tão heterogéneo de países, que seja susceptível de garantir, simultaneamente, o aprofundamento de um corpo de políticas comuns que mantenha esses Estados num curso de integração tendencialmente convergente.

Este é o problema básico com que se defronta a proposta da “Agenda 2000”, na sua vertente das Perspectivas Financeiras para vigorarem entre 2000 e 2006. Se recordarmos que, no passado, a movimentos de alargamento a países que se situassem abaixo do padrão médio de rendimento dentro da União correspondeu sempre um reforço financeiro suplementar, num caso traduzido mesmo em mecanismos de compensação para os efeitos diferenciados que esse alargamento teve no seio da então CEE, verificamos que o nível de ambição da União desde essa altura terá decrescido fortemente. 

A situação actual é, nessa perspectiva, ainda mais difícil, por se tratar, em geral, de economias num estado de muito maior debilidade e, por esse motivo, com maiores carências que a União será chamada a procurar colmatar.

A  adicionar a esta fragilidade, a Comissão advoga uma divisão dos custos do alargamento claramente desequilibrada, ao propor que seja a política estrutural - que apoia os esforços de desenvolvimento dos países e regiões mais pobres da União - a suportar os custos de um processo de alargamento de que serão principais beneficiários, como é de meridiana evidência, os actuais Estados membros mais ricos.

A implícita desvalorização do conceito de Coesão intracomunitária, que parece ser a mensagem subliminar por detrás desta opção, vai em sentido inverso ao próprio espírito dos Tratados e constitui um verdadeiro risco para a preservação e aceitabilidade da própria ideia de Europa, não apenas em alguns dos actuais Estados membros, mas principalmente nos futuros aderentes, que dificilmente verão com agrado uma diminuição do elemento de solidariedade que constitui um dos eixos programáticos do processo europeu.

Aliás, se o alargamento vier a ser feito à custa de uma diluição do actual grau de coesão intracomunitária, certamente que os desígnios dos novos parceiros sairão frustrados, na medida em que estes se sentiram atraídos por uma União com um corpo sólido de políticas e com um projecto de progressiva aproximação dos níveis de desenvolvimento dos seus membros. E seria irónico que fosse a sua própria entrada o factor desagregador do modelo que desejam adoptar.

Mas uma expansão da União com as dimensões inéditas que se prevê que os próximos alargamentos venham a gerar, colocará ainda outras interrogações, nomeadamente ao nível do modelo institucional. Esta questão esteve subjacente a toda a negociação do Tratado de Amesterdão, no qual foram já dados alguns passos no sentido de preparar a União para comportar o alargamento. Há quem pense, no entanto, que não se terá ido suficientemente longe, pretendendo, por isso, precipitar a curto prazo uma reforma mais profunda do tecido institucional, que vá mesmo para além da que está prevista no próprio Tratado de Amesterdão.

Consideramos natural que se encarem algumas adaptações institucionais com o intuito de obter melhorias no sistema de trabalho e no processo de decisão comunitários, nomeadamente tendo em conta que o aumento do número de Estados membros poderá levar a uma maior lentidão e menor eficácia desses mesmos procedimentos.

No entanto, não se crê ser apenas esta a motivação por detrás da pressa evidenciada por alguns países em reformar as instituições da União. O que parece preparar-se é a tentativa, por parte de alguns Estados membros, de assegurar que, com os futuros alargamentos, o nível médio dos interesses na União, que actualmente lhes é favorável, se mantenha predominante. Por outras palavras, os Estados membros mais desenvolvidos pretendem garantir um modelo de gestão das decisões que não dê a possibilidade potencial a que os países com grau inferior de desenvolvimento, nomeadamente os próximos aderentes, se conjuguem para impedir a sua actual liberdade de gestão orçamental, das políticas e da produção legislativa. Esta lógica, que tem sentido numa organização de tipo intergovernamental, não pode transpor-se para um modelo organizativo como é o da União, onde, por virtude das transferências de soberania já efectuadas, há uma responsabilidade solidária comum na consideração de todos os legítimos interesses, ainda que minoritários.

Portugal estará, como sempre esteve, aberto a estudar as mudanças institucionais que se impuserem face à previsível expansão futura da União. Mas o nosso país não pactuará, todavia, com aproveitamentos do processo de alargamento como argumento para subverter alguns equilíbrios que vinham sendo preservados e que, a nosso ver, configuram elementos muito positivos do modelo sui generis que a União Europeia representa.
 
Em presença do cenário que nos é colocado com o alargamento, há uma última questão que, na perspectiva nacional, inevitavelmente surge: a da aparente contradição entre os potenciais efeitos negativos do alargamento em Portugal e o posicionamento abertamente favorável que o nosso país tem adoptado relativamente à concretização desse desafio.

De facto, em face das características do desenvolvimento económico português, nomeadamente no quadro da União Europeia, ter-se-á, à partida, que admitir que os próximos alargamentos possam gerar algumas situações de concorrência em diversos domínios económicos, em particular no âmbito de certos produtos industriais, tendo em conta a oferta de produções similares, que beneficiam de salários inferiores aos praticados em Portugal, de uma mão-de-obra mais qualificada e de uma localização geográfica central face aos principais mercados europeus. Isto independentemente de, no quadro dos actuais Acordos Europeus, esses países beneficiarem já hoje de apreciáveis vantagens neste domínio, sem que se tenham registado efeitos graves.

Além disso, e não obstante algumas acções de implantação económica nos mercados de alguns dos candidatos bem sucedidas, é evidente, por um conjunto variado de razões, que a capacidade potencial do nosso país de aproveitar as oportunidades abertas nesses Estados é diminuta, em especial se comparada com parceiros com uma capacidade ofensiva no domínio económico muito mais evidente, a que acrescem razões de proximidade geográfica que funcionam como factores positivos cumulativos.

É ainda óbvio que, no tocante à captação do investimento directo estrangeiro e à potenciação de condições apelativas para a deslocalização empresarial, alguns efeitos serão de esperar, em Portugal como em outros Estados membros.

Mas, naturalmente, a resposta a este desafio não reside na preservação de um ambiente económico protegido. Só uma internacionalização agressiva e a rápida maturação dos nossos factores de competitividade pode contribuir para atenuar estes impactos, aliás similares e complementares daqueles que a globalização tem vindo a desencadear. Neste particular, é importante ter sempre presente que a pertença à zona Euro, com as vantagens correlativas daí decorrentes em termos de optimização de custos e de segurança do investimento, é um elemento compensador da maior importância e uma vantagem comparativa substancial de que Portugal passará a dispor.

Como a própria discussão em torno da “Agenda 2000” já indicia, será, também, natural que, dado o seu mais baixo nível de desenvolvimento económico, aqueles países tendam a tornar-se os destinos privilegiados dos apoios comunitários, originando um “enriquecimento” estatístico do nosso país no novo contexto comunitário. É, aliás, a necessidade de garantir que o processo de apoio estrutural se manterá por algum tempo mais que constitui a linha de trabalho portuguesa no actual debate em torno do futuro quadro financeiro, procurando assegurar que o esforço de criação de infraestruturas e as acções de reconversão em curso têm um tempo mínimo de maturação, e que outras áreas do orçamento comunitário contribuam de forma equitativa para o encargo financeiro que o alargamento implica.

Contudo, perante estas dificuldades, o bom senso aponta no sentido de que seria de uma enorme cegueira histórica e política qualquer atitude de oposição do nosso país ao processo de alargamento da União.

Por um lado, significaria esquecer a nossa própria adesão à CEE e o decorrente choque de desenvolvimento, de sedimentação da democracia e de uma cultura de modernidade que veio a revelar-se essencial para o presente e para o futuro do país. Afirmar uma atitude egoísta perante países que hoje pretendem ter essa mesma oportunidade seria, no mínimo, um acto de cinismo político que um país como o nosso não pode correr o risco de assumir.

Para além disso, não podemos deixar de partilhar a importância estratégica e geopolítica que constitui para o continente europeu a oportunidade de levar a cabo a estabilização da periferia oriental da própria União, sob o modelo económico-social criado neste lado do continente, reforçando paralelamente a própria capacidade da Europa de se projectar externamente como um todo cada vez mais forte, de que todos beneficiaremos. Se, no passado, nos esforçámos no seio da NATO para garantir uma dissuasão que permitisse garantir a paz na Europa, seria inconsciência não aproveitar este ensejo para consolidar, por via pacífica, um quadro político-económico que pode contribuir decisivamente para a mesma finalidade.

Qualquer outra atitude, para além de irresponsável em termos políticos globais, emitiria um sinal reconhecedor de uma eventual incapacidade de proceder à regeneração e à modernização do tecido económico português e quebraria o esforço de recentragem na Europa que o país tem vindo a prosseguir. Um esforço que combina a assunção de uma legítima agenda nacional de interesses, preservados e defendidos com firmeza e determinação, com uma partilha efectiva das grandes preocupações que hoje atravessam transversalmente todas as sociedades europeias e que, no essencial, unem os cidadãos do continente.


(Publicado em “O Desafio Europeu - Passado, Presente e Futuro”, Fundação de Serralves, Porto, 1998)



[1]O Conselho Europeu de Helsínquia, em Dezembro de 1999, viria a reforçar o carácter inclusivo do processo de alargamento, ao decidir negociações simultâneas com os 12 países candidatos, a iniciarem-se sob a Presidência portuguesa da União Europeia, no primeiro semestre de 2000 (cf. o texto “Reunificar a Europa”).