9 de abril de 2008

Pensar Portugal no Mundo

Uma reflexão sobre o papel de Portugal no mundo parece-me muito oportuna, porque, com raras e louváveis excepções, em Portugal não há uma tradição de contínua reflexão sobre o papel do país no plano internacional. Fica-se com o sensação, que é completamente falsa, de que todos sabemos o que queremos e para onde vamos em matéria externa, como diria um clássico de alguns.


Mesmo que isso fosse verdade, e não o é, o mundo à nossa volta está a mudar e nós não ponderamos, dia-a-dia, o modo como devemos adaptar o nosso projecto nacional a essa conjuntura em mudança. E, no meio de tudo isso, também esquecemos que o sentido do nosso próprio projecto nacional está, também ele, em rápida mutação, queiramos ou não assumi-lo, e que é forçoso reflectir constantemente sobre o modo como o devemos defender no quadro externo.


Os partidos políticos portugueses também não têm por hábito fazer uma reflexão contínua sobre política externa, salvo sobre questões pontuais, ligada à actualidade ou a episódios de oportunidade. Basta olhar para os programas de Governo para se perceber isso.


Além disso, os escassos “think tanks” que temos em Portugal, alguns dos quais são de grande qualidade, parecem, quase sempre, viver fascinados pela alta política de segurança internacional, em particular pela questão transatlântica, a qual, afinal, nos “passa por cima”, digamos o que dissermos por aqui.


O meu Ministério – o Ministério dos Negócios Estrangeiros – vive tão concentrado nas pressões do quotidiano que dificilmente tem tempo para parar para pensar estrategicamente. Daí que o pouco que se reflecte sobre isto fique nas mãos de uns esforçados intelectuais que vão escrevendo aqui e acolá. Ora isso não chega.


Esta é uma matéria muito ampla e delicada, em que um “civil servant”, como eu sou, corre alguns riscos de entrar por domínios reservados exclusivamente aos políticos ou aos comentadores. Ora como não sou político nem comentador, vou dar uma leitura, à luz da minha própria experiência profissional, feita de mais de três décadas ao serviço do Ministério dos Negócios Estrangeiros,


Para tal organizei este texto em três módulos, cada um deles assente num tempo dessa minha experiência: um primeiro dedicado à Europa, um segundo ao multilateralismo e um terceiro a questões da lusofonia. Nos dois primeiros módulos pretendo, no essencial, abordar a questão do modo como Portugal é visto do exterior, sendo que, no último, a minha perspectiva tem algumas ligeiras diferenças. Logo se verá porquê.


Sei que este é um terreno muito difuso, que se presta a interpretações bastante diversas, que tem algumas dimensões polémicas e que corre, aqui ou ali, o risco de ser visto como algo impressionista. Mas vou arriscar, até porque este é o tipo de questões em que eu próprio tenho necessidade, como diplomata e como português, de arrumar algumas ideias, mesmo que, no final, muita gente acabe por não concordar com elas.


E vamos então à Europa.


Como é que hoje a Europa, a União Europeia, nos olha, 23 anos depois da nossa adesão? Que saldo deixou este quase quarto de século de presença nas instituições comunitárias, com duas presidências pelo meio e alguns protagonistas, com diferente qualidade e visibilidade, que andaram e andam pelos palcos de Bruxelas, de Estrasburgo ou do Luxemburgo ?


Rcuemos uns anos antes da adesão. A imagem que Portugal projectava há três décadas era a de um país que havia passado passou por um choque histórico algo traumático, provocado pelo esboroar de uma ditadura que acabou por ditar um fim trágico e quase patético a uma aventura colonial tardia - com guerras sem sentido, privações, tensões e um saldo de sacrifícios humanos muito pesado, que o país pagou, até pelas consequências no seu tecido económico. Esse era o Portugal que batia à porta da Europa: um país pobre, uma democracia recente, um tecido social e político convulso.


E aqui começou a surpresa para a Europa e para o mundo: o modo muito próprio como Portugal fez a sua Revolução e, em especial, como dela saiu para a democracia e desta para a integração europeia. Aos olhos externos, o nosso país conseguiu, com uma insuspeitada facilidade, instalar e aculturar um regime democrático que se provou funcional e que, sem se afastar da sua herança africana, soube simultaneamente voltar-se, com uma quase naturalidade, para um projecto integrador europeu a que só remotamente estivera ligado, embora já partilhasse a cultura de mercado que lhe estava na génese.


Neste percurso, a Europa poderá ter ficado particularmente impressionada por dois factos.


Em primeiro lugar, pela nossa fantástica capacidade de reconciliação interna, depois de um período revolucionário que, como sempre acontece, teve os seus custos e deixou as suas feridas. A absorção da população que retornou de África, no período pós-descolonização, continua a ser um feito que muitos não entendem bem, em especial alguns Estados, bastante mais ricos, que não souberam resolver o seu próprio problema da forma como os portugueses foram capazes.


Em segundo lugar, terá sido uma surpresa a nossa reconversão rápida ao projecto integrador europeu e, já dentro deste, o modo, competente e dedicado, como nos empenhámos nas tarefas de que fomos incumbidos – de que o excelente exercício das presidências europeias é talvez o exemplo paradigmático.


Sem pretender entrar no terreno da polémica, estou perfeitamente convicto que um cidadão português não poderia, quaisquer que fossem os seus méritos pessoais, ser hoje presidente da Comissão Europeia se o nosso país não tivesse demonstrado, nas quase duas décadas que antecederam esse momento, uma imagem de grande eficácia e empenhamento no processo europeu. Embora só algumas vezes com brilho excepcional, mas sempre com grande seriedade e apreciável sentido de responsabilidade, Portugal conseguiu fornecer pessoal, e até ideias, que contribuiram para lhe garantir uma participação de mérito no projecto integrador.


Verdade seja que este inesperado europeísmo não deixou de ser visto como tendo muito a ver com as vantagens, na paisagem e nos bolsos, que os portugueses pressentiram, e bem, que o projecto europeu lhes podia proporcionar. A Europa percebeu isso muito bem e percebeu também que Portugal soube aproveitar, embora de modo apenas razoável, os benefícios que a pertença ao novo “clube” lhe trouxe. Aos olhos dessa Europa mais desenvolvida, o usufruto dessa dessa oportunidade não terá sido o melhor, porque não estavam superados no país alguns défices de cultura comportamental que eram, de há muito, a imagem de marca da nossa sociedade: compadrios, facilidades, falta de rigor, inconstância, improviso, escassa educação, vícios de gestão, etc.


Estarão já criadas, nos dias de hoje, as condições para melhorar, de forma definitiva, essa imagem? Claro que não. Basta entrarem numa qualquer livraria, numa grande capital europeia, e ir à estante do “business” internacional e lerem o que se diz sobre como fazer negócios em Portugal. A imagem da ficha portuguesa é a de um país com “picos” e quedas no seu desenvolvimento recente, com uma burocracia apenas atenuada pelo “jeitinho”, uma justiça muito lenta embora não corrupta, uma classe empresarial convencida da sua própria importância mas mal qualificada em termos internacionais. A cordialidade e submissão dos portugueses torna-os, nos textos desses livros, fáceis no relacionamento, mas igualmente menos eficazes na constância temporal da sua atitude – e aí está a falta de pontualidade, de rigor, de precisão, os atrasos sistemáticos, enfim, a ausência da “reliability” essencial no exigente mundo contemporâneo dos negócios.


Neste ponto, alguns estarão a perguntar-se: mas, afinal, a imagem de Portugal mede-se apenas pelo critério do sucesso económico? Lamento ter de dizer que, a meu ver, o grande indicador para a aferição da “performance” de um país à escala internacional é, hoje em dia, a sua capacidade de geração de riqueza, de saber distribuí-la sem tensões e proporcionar bem-estar aos seus cidadãos, sempre em liberdade, claro. Talvez seja a conjuntural vitória dos mecanismos de mercado que criou esta percepção, mas não conheço nenhum país pobre que esteja prestigiado à escala global, embora conheça alguns países ricos que, por virtude dos seus sistemas políticos autoritários ou pelas grandes desigualdades sociais internas que mantêm, também não são respeitados, a não ser pelos cultores cínicos da “realpolitik”. Por isso, mais do que nunca, a imagem de um Estado perante o mundo – e perante a Europa, por maioria de razão – depende da eficácia e qualidade das suas políticas públicas, da coragem na execução de reformas essenciais à sua constante melhoria e adequação aos desafios.


E o que é que a sociedade externa valoriza mais ? A preservação do equilíbro macroeconómico, a generalização com qualidade dos sistemas de ensino, saúde e justiça, as práticas de segurança interna com plena preservação de liberdades, os estímulos à afirmação da sociedade civil, o empenhamento oficial na luta contra as discriminações, a cultura ambiental e de desenvolvimento sustentável, a protecção dos consumidores e dos utentes públicos – enfim, todo o vastíssimo conjunto de simbolos de modernidade na formação das sociedades modernas. Esse são os factores que qualificam, contemporaneamente, a imagem dos países.


Neste ponto, alguns poderão estar a pensar: mas, afinal, Portugal tem uma cultura antiga, tem uma História, tem uma imagem com momentos gloriosos na sua muito longa existência como país. Ora isso deve fazer parte, com certeza, do seu reconhecimento exterior. Receio ter de dizer isto, mas um erro muito comum no imaginário português é o de pensar que o mundo continua a lembrar Portugal pela glória histórica das Descobertas, pelos períodos áureos de 500. O facto de termos hiperbolizado, dentro de Portugal, e em especial durante o Estado Novo, essas imagens de grandeza não significa necessariamente que o mundo seja obrigado a medir-nos ainda à luz delas. Sei que não faz bem à nossa auto-estima lembrar isto, mas temos de assumir que essas glórias, embora constitutivas da nossa identidade como nação, são já longínquas no tempo.


Ora os outros já terão notado que, depois de Sagres, passámos por um declínio muito grande como país, com o lento desfazer da aventura imperial, com quebras drásticas no nosso poder económico e na consequente perda de importância da nossa afirmação política à escala global. Além disso, o facto de não sermos hoje um país rico, tem-nos impedido de garantir, no imaginário cultural internacional, um tratamento cuidadoso e prestigiante desses períodos magníficos da nossa História, através de centros culturais, de exposições, de cátedras, de estudos, de filmes, para produção e estímulo académico para aprofundar esses tempos... Até o facto de não termos sabido descolonizar a tempo nos agravou uma imagem de perdedores na História, só atenuada pelo contraponto positivo das liberdades que o 25 de Abril, simultaneamente, nos trouxe.


E não quero deixar de sublinhar ainda um ponto que aprendi na minha vida de diplomata: o valor fantástico do que Portugal fez pelo mundo, com as Descobertas, foi, no século XX, manchado muito negativamente, no imaginário cultural e político internacional, pela obstinação assumida contra a descolonização, pelo envolvimento do nome de Portugal em guerras coloniais e pela longa colagem da imagem do país ao autoritarismo entorpecente do Estado Novo. Goste-se ou não, a História que verdadeiramente conta, para a imagem dos países, é a História contemporânea ou, pelo menos, a versão contemporânea dessa História. E, nesse retrato, a nossa imagem não é globalmente positiva.


Mas convém não sermos, em absoluto, pessimistas. A imagem dos países também se reverte, com uma maior facilidade do que julgamos. Há alguns bons exemplos europeus: a Irlanda e os países nórdicos.


Recorde-se que a Irlanda renasceu, em poucos anos, depois de longos períodos de crise, com ciclos de fome, com constante saída de populações. E este é um ponto também importante: um país que não consiga garantir condições de vida aos seus cidadãos, que acabe por estimular a sua saída em termos maciços não é um país prestigiado e respeitado no quadro internacional. Por mais orgulho que tenhamos na aventura de sacrifício que sempre foi a nossa emigração, é para mim hoje evidente que um país que condena a sua população a emigrar, por razões económicas. é um país que não se prestigia e que não sobre na consideração dos outros.


Mas também os nórdicos, que hoje são prósperas democracias, provaram que, em escassas décadas, é possível criar sociedades assentes na educação e no conhecimento, em que o empreendedorismo não é incompatível com a solidariedade social, em que se estabeleceu uma cultura comportamental sólida, assente em valores consensualizados pela sociedade. Hoje, os países nórdicos estão no topo das estatísticas de qualidade de vida, de defesa dos direitos das suas populações, da preservação de valores de modernidade, como é o caso das metas ambientais.


Para além dos grandes e mais ricos Estados europeus, que têm uma projecção própria que deriva de uma massa crítica, de múltipla projecção, que lhes dá esporas de poder, é hoje claro que um país de pequena ou média dimensão só pode afirmar-se, aos olhos de terceiros, se mostrar capacidade de gerar, sem grandes desigualdades e em total liberdade, um crescimento sustentado, com constante modernização e actualização do seu tecido produtivo, com pleno respeito pelos padrões de desenvolvimento humano. A prosperidade, em especial se for apoiada numa cultura empresarial sólida, gera auto-confiança nacional, cria uma imagem de independência e de capacidade de livre escolha do destino. E aí, sejamos claros, Portugal ainda está onde está.

Passo agora ao segundo dos três módulos desta minha abordagem, a uma análise do modo como Portugal é percebido, através da sua presença, espaço e actuação, nas organizações multilaterais de carácter intergovernamental – e já não nas dimensões comunitárias europeias. Faço-o, essencialmente, à luz da minha experiência como representante português na ONU, em Nova Iorque, do modo como dirigimos uma organização regional como a OSCE – a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa –, bem como das responsabilidades que tive, durante alguns anos, na chefia de delegações portuguesas junto da OCDE, do Conselho da Europa ou da Organização Mundial de Comércio, entre outras.


Começo por notar que a diplomacia portuguesa, antes de 1974, tinha uma escassa apetência pelo mundo multilateral e a sua cultura era dominada pelo bilateralismo. Portugal converteu-se muito mais tardiamente ao multilateralismo que outros Estados. Adoptou-o em contextos políticos de oportunidade, como foi o caso da NATO durante a Guerra Fria, ou sem uma pressão excessivamente constrangente, como foi o caso da EFTA ou da OCDE. A ONU, para a qual Portugal entrou em 1955, representou, em especial a partir dos anos 60, um inevitável terreno de “massacre” diplomático para o nosso país, que acabaria por se repercutir, paralelamente, nas diversas agências, como a OIT, a OMS e outras. Valha a verdade que se diga: nada que a diplomacia portuguesa de então não tivesse tratado com grande profissionalismo, competência e sentido de Estado, não obstante a causa perdida que titulava.


A partir de 1974, Portugal passou, quase de um dia para o outro, de mal-amado a benquisto membro do mundo multilateral, com a boa vontade e as portas abertas, quer como reconhecimento pela democracia conquistada no plano interno, quer, principalmente, como saudação à vontade descolonizadora afirmada pelo novo regime.


Infelizmente, e contrariamente ao que seria desejável, Portugal não conseguiu aproveitar em pleno essa oportunidade e construir, a partir daí, uma sólida presença nas instâncias multilaterais. Em grande parte, isso ter-se-á ficado a dever a razões orçamentais, que se reflectiam negativamente nas contribuições financeiras e humanas disponibilizadas para essas instituições. Olhando para trás, verificamos que essa foi uma fantástica oportunidade perdida, em muitos casos por uma incompreensão estratégica de que uma rede de pessoal colocada nesses contextos, para além do prestígio automático que acarreta para o país, se bem coordenada, funciona como uma porta para nichos de oportunidade, em matéria de projectos e novos recrutamentos. Uma visão limitada e curta dos nossos interesses conduziu a uma política muito selectiva de apoio à colocação de pessoal, às vezes à luz de critérios exclusivamente políticos, outras vezes por meras teimosias de personalidades, que hoje pagamos fortemente. E essas organizações, e os outros Estados dentro delas, não deixaram de tirar as devidas conclusões dessas nossas fraquezas.


Mas como é que Portugal se comportou nessas instâncias ? Não queria aparecer como negativista, mas, conhecendo bem algum desse tecido de representação, não me parece que, em geral, o olhar dos outros nos fosse muito favorável. Embora não possamos fazer generalizações, o nosso país, por falta de reflexão e de ideias novas, aparecia muitas vezes como mero defensor do “status quo”, ou envolvido na defesa de pontos muito específicos, de interesses próprios frequentemente magnificados e mitificados, que se erigiam como vitais, por mero receio de nos envolvermos num percurso de mudança cuja orientação temíamos não poder influenciar. A exigente tecnicidade de algumas questões, bem como a debilidade das estruturas de coordenação e decisão em Portugal, acabou frequentemente por deixar nas mãos de certos delegados, idos de Lisboa, a responsabilidade última das apções a tomar. Em algumas instâncias multilaterais, alguns funcionários tinham completa luz verde para definir a posição nacional – e, vale a pena dizê-lo, isso também passou a ser válido, a partir da adesão, para o tratamento de questões no âmbito comunitário, como eu próprio tive ocasião de verificar.


Porque quem nos via actuar não era ingénuo, a imagem que projectávamos era muitas vezes de descoordenação, de casuísmo, de irresponsabilidade, da falta de uma linha de orientação central que articulasse os diversos actores negociais, que, algumas vezes, davam nota de fortes incoerências nos vários palcos de actuação. Em algumas organizações internacionais, a coordenação comunitária – ou a própria representação assumida pela presidência de turno ou pela Comissão Europeia, no âmbito das competências próprias – acabou por disfarçar a debilidade técnica das posições nacionais. E acabou por ser a Europa, a participação contínua dos nossos especialistas em contextos técnicos no âmbito europeu, que ajudou a criar a massa crítica necessária, nos diversos ministérios, para uma participação mais capaz nas instâncias multilaterais.


De sublinhar que tudo o que acabei de descrever, talvez com alguma excessiva crueldade para gente muito competente e profissional que conheci, se prende, essencialmente, com áreas técnico-económicas, com as quais lidei de perto durante muitos anos. Com efeito, no âmbito mais político, as dimensões de política externa “pura” foram sempre bastante mais coordenadas – seguindo, aliás, o exemplo que já vinha de antes do 25 de Abril.


Para além da interiorização e respeito pelos princípios que marcam ideologicamente a Revolução de Abril, a questão de Timor Leste acabou por ser o factor decisivo para a gestação, no âmbito da diplomacia portuguesa, de uma filosofia menos casuística e muito mais assente em valores. A mais impressiva marca da nossa política externa, a partir de certa altura, terá sido, porventura, a adesão e o empenhamento naquilo que eu costumo designar por uma diplomacia ética. Quero com este conceito referir a defesa dos Direitos Humanos, a promoção dos valores da democracia e do Estado de direito, a adesão aos projectos internacionais de solidariedade e luta contra a pobreza e exclusão, a vinculação à luta contra o racismo, xenofobia e intolerância, etc. Terá essa linha de actuação tido sequência, com efeitos na cultura diplomática ainda hoje prevalecente nas Necessidades? Tenho dúvidas – e lamento ter de tê-las. A sensação com que fico é que o “template” da União, essa espécie de média aritmética europeia de posições, soprada em especial pelos poderes diplomáticos mais fortes da União e pela mentalidade burocrática de Bruxelas, funciona hoje como uma cómoda escola de atitude, quese expressa numa “langue de bois” onde muitos diplomatas se refugiam.


No plano da segurança internacional, é importante notar que Portugal iniciou, a partir de determinado momento, a prestação de um contributo muito interessante, naturalmente à sua escala, para operações internacionais de paz. Isso permitiu-nos – embora alguns, lá fora, possam não se ter apercebido disto – criar internamente um quadro alternativo e dignificador de tarefas para umas Forças Armadas que haviam sido atravessadas, até muito recentemente, por um processo de muito elevada instabilidade e crise de objectivos. É pena que a escassez de meios não nos permita ir mais longe nesta via, onde temos dado uma imagem de grande profissionalismo, sensibilidade político-social e capacidade de organização e trabalho no terreno.


Como antes disse, neste processo de afirmação de princípios éticos à escala externa, Portugal foi inicialmente muito estimulado pela crise de Timor, por essa espécie de remorso histórico em que, a partir de certo momento, concentrámos muito do nosso empenhamento diplomático. Verdade seja que se torna sempre um pouco muito mais fácil aplicar alguns princípios quando não se tem, na ordem externa, grandes interesses a defender. A experiência veio a demonstrar – e não quero, por razões óbvia, ir muito longe neste assunto – que a ocorrência pontual de alguns desses interesses, ou a ânsia de mostrar algum seguidismo de oportunidade, nomeadamente no quadro transatlântico, levou a escassos, mas muito lamentáveis, desvios desse curso de dignidade à escala internacional.


Mas, em geral, é preciso deixar claro que Portugal tem mostrado ser um país com uma política externa muito responsável e coerente, previsível e assente em bases sólidas, cultor de uma agenda de diplomacia ética que nos garante respeito e crédito no cenário internacional. O modo como nos comportámos nas presenças nos biénios no Conselho de Segurança da ONU, o nosso trabalho na área dos Direitos Humanos, várias participações individuais em áreas delicadas de estruturas internacionais, tudo isso acabou por dignificar a imagem portuguesa.

Mas, uma vez mais, e nesses mesmos âmbitos, o mundo também repara que, por vezes, sendo um funcionário substituído, cai, em absoluto, a presença portuguesa na área que ele tratava – precisamente porque era esse mesmo funcionário, com ou sem “backing” da sua missão ou da sua capital, que tinha o pleno conhecimento do dossiê e que era, ele próprio, o criador da posição portuguesa. Infelizmente, isto passa-se, ainda hoje, muitas mais vezes do que o que se julga – com efeitos negativos sensíveis na nossa imagem como país no campo multilateral.


Uma última nota para registar que, também algumas vezes, o investimento feito por Portugal em alguns exercícios multilaterais, com esforço, dedicação e preparação de pessoal nesses domínios, acaba por ser completamente desperdiçado pela inexistência de um trabalho de “follow-up”. Um exemplo que me vem à memória, porque trabalhei nele com intensidade, foi a presidência portuguesa da Organização de Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), em 2002, organismo em que Portugal também havia estado envolvido pela preparação da Cimeira de Lisboa, em 1996. A OSCE, em si, vale o que vale, mas o esforço de aproximação e diálogo que, no seu contexto, fizémos com países que estavam fora da órbita normal da nossa esfera de actividade, e perante os quais criámos então uma imagem dialogante e construtiva, acabou por não ter grande sequência, desbaratando-se, ingloriamente, um importante esforço, financeiro e humano, que o país realizou durante alguns anos.


É por essa razão que volto a dizer que Portugal ainda projecta uma imagem irregular, de entusiasmo sectorial súbito, logo seguido de grandes quebras de empenhamento, voltando-se, transitória e subitamente, para outros pontos alternativos de interesse, num zig-zag sem sentido óbvio. Para além daqueles que são temas centrais da nossa diplomacia – Europa, relações transatlânticas, NATO, países de língua portuguesa –, em tudo o resto como que funcionamos um pouco “à la carte”, ao sabor das vontades políticas conjunturais. Ou de entusiasmos pouco respeitáveis. Como é evidente, esta é uma crítica geral, dirigida aos últimos 30 anos e, no fundo, pretende ser um alerta para o futuro, um apelo a que consensualizem rumos, se instituam mecanismos alargados de revisão periódica de políticas, deixando de vogar apenas ao sabor das conjunturas políticas.


E termino com algumas considerações sobre a questão da lusofonia e do papel de Portugal nesse contexto.


Julgo que é óbvio para todos – e quando digo todos, refiro-me também aos países lusófonos – que Portugal tem tido uma permanente acção em favor da densificação do relacionamento, em todas as áreas, dentro do espaço de Língua Portuguesa. Vale a pena olhar atrás e atentar num aspecto: Portugal e a diplomacia portuguesa, com persistência e com constância, conseguiram reverter, nestas últimas décadas, uma atitude de alguma “lusofobia” que se havia criado em sectores de algumas das suas antigas colónias, no período posterior à descolonização, quase sempre como saldo dos traumas dos conflitos armados. Embora cada caso fosse um caso, tivemos que gerir, durante bastante tempo, uma diplomacia de tensão, que tinha que se confrontar com desconfianças, preconceitos e agravos fáceis, que só foi possível ultrapassar com muito e árduo trabalho político e diplomático. Esse trabalho acabou por compensar, porque alguns desses países vieram a der-se conta que, de facto, estávamos a ser sinceros quando afirmávamos querer colaborar nos seus processos internos de reconciliação, contribuir para a sua recuperação económica e social e ajudar à sua promoção, à escala das nossas possibilidades, no campo externo. Com avanços e recuos, muitas vezes ao sabor das conjunturas internas desses Estados, a diplomacia portuguesa face à África lusófona tem hoje um saldo global de êxitos, que só não é mais evidente porque factores externos de circunstância impediram, frequentemente, a maturação de muitas das soluções em nos empenhámos.


Esse trabalho acabou por redundar, em Portugal, na criação de uma importante massa crítica de “expertise” africana que, por exemplo, nos colocou no centro de duas Cimeiras UE-África, a última das quais – e talvez as pessoas não se tenham dado bem conta disso – trouxe um modelo novo de articulação (como antigamente se dizia) “Norte-Sul”, cuja conceptualização muito prestigia Portugal aos olhos da África e da Europa. Por essa e por outras razões, a África de lingua portuguesa olha-nos hoje de forma muito diferente: Portugal é visto genericamente como um país consistente com as suas promessas, determinado na promoção internacional dos interesses comuns e de cada um dos seus parceiros africanos.


E que dizer de Timor-Leste? Vou ser muito parco num terreno em que a resposta é óbvia: Portugal foi e é o mais consistente parceiro internacional de Timor-Leste, em todos os momentos e por várias formas. A imagem de Portugal em Timor-Leste é, em geral, a de um país amigo e seguro, sem interesses a defender que não sejam os que derivam do nosso empenhamento em desenvolver a herança cultural de um passado comum.


O que falta, então, para que as coisas possam dar certo na lusofonia, para que a CPLP deixe, mais de uma década depois da sua criação, de ser apenas um embrião de uma organização com expressão à escala global? A chave dessa questão chama-se Brasil.


Não vale a pena elaborar muito sobre isto, mas a realidade dos factos deixa claro que a CPLP começou mal, porque, por motivos próprios, não foi possível ao Brasil assegurar um papel central, desde o início, no seio da organização. Ora o Brasil é o maior Estado da CPLP. Nas comunidades internacionais desta natureza costuma haver uma coincidência entre o Estado descolonizador e o maior país da organização: não é esse o caso da CPLP, bem pelo contrário. E talvez não seja por acaso que um país como os Estados Unidos não faz parte da Comunidade Britânica, embora fosse uma antiga colónia britânica...


Depois de viver há mais de três anos no Brasil, tenho a sensação – mas concedo que posso estar enganado – que o Brasil só agora começa a interessar-se verdadeiramente pela CPLP e a testar em pleno as suas possibilidades. Porque só agora, envolvido que está numa batalha positiva para consagrar, à escala global, a sua força regional e o seu poderio económico e demográfico, o Brasil começa a perceber a vantagem de utilizar a sua posição na CPLP como um instrumento mais da sua própria política externa. Este aparente avanço político – mais do que bem-vindo – parece somar-se à consciência crescente no Brasil de que a Língua Portuguesa pode e deve converter-se num importante utensílio de poder para quantos a falam e escrevem. A criação, há dois anos, do Museu da Língua Portuguesa, a negociação de acordos com países vizinhos com vista a colocar o Português como segunda língua na América do Sul, tudo isso são sinais claros de que uma política da língua já começa a ser percebida como uma política de Estado no Brasil.


Ora a promoção da Língua Portuguesa à escala internacional foi, é e será sempre um dos objectivos centrais da nossa própria acção externa. Por isso, estamos abertamente com o Brasil nesse objectivo e estaremos também com o Brasil, de forma muito óbvia, em tudo quanto possa afirmar esse país no quadro global. O Brasil sabe isso. Sabe que nenhuma dimensão da sua afirmação externa é contraditória com os nossos interesses estratégicos nacionais e, bem pelo contrário, se trata de um jogo de soma múltipla. Por isso, o Brasil entende que Portugal é um parceiro certo e quase automático, quando interesses seus podem cruzar-se no nosso horizonte de acção diplomática. O Brasil vê isso, com regularidade, nas eleições nas estruturas multilaterais, como viu no esforço que fizemos, contra ventos e algumas marés passageiras, ao conseguir conferir-lhe o estatuto de Parceiro Estratégico da União Europeia, durante a nossa recente Presidência.


Como prometido, abordei três dimensões da nossa acção externa: a Europa, a acção multilateral e o espaço da lusofonia.


Alguns estarão, com certeza, a perguntar-se por que razão, a parte relativa ao Brasil foi a única em que não referi nem comentei, em detalhe, o modo como o outro lado nos olha. A explicação é muito simples: eu sou actualmente embaixador de Portugal no Brasil e todos sabem que não se podem tirar retratos de muito perto, porque as imagens saem quase sempre desfocadas...

Pensar Portugal no mundo

Uma reflexão sobre o papel de Portugal no mundo, como a que hoje é feita neste contexto parlamentar, parece-me muito oportuna, porque, com raras e louváveis excepções, não há, entre nós, uma tradição de contínua análise sobre o papel do país no plano internacional. Fica-se com o sensação, que é completamente falsa, de que todos sabemos o que queremos e para onde vamos em matéria externa, como diria um clássico de alguns.
Mesmo que isso fosse verdade, e não o é, o mundo à nossa volta está a mudar e nós não ponderamos, dia-a-dia, o modo como devemos adaptar o nosso projecto nacional a essa conjuntura em mudança. E, no meio de tudo isso, também esquecemos que o sentido do nosso próprio projecto nacional está, também ele, em rápida mutação, queiramos ou não assumi-lo, e que é forçoso reflectir constantemente sobre o modo como o devemos defender no quadro externo.
Os partidos políticos portugueses também não têm por hábito fazer uma reflexão contínua sobre política externa, salvo sobre questões pontuais, ligada à actualidade ou a episódios de oportunidade. Basta olhar para os programas de Governo para se perceber isso. Além disso, os escassos think tanks que temos em Portugal, alguns dos quais são de grande qualidade, parecem, quase sempre, viver fascinados pela alta política de segurança internacional, em particular pela questão transatlântica, a qual, afinal, nos “passa por cima”, digamos o que dissermos por aqui.
O meu Ministério – o Ministério dos Negócios Estrangeiros – vive tão concentrado nas pressões do quotidiano que dificilmente tem tempo para parar para pensar estrategicamente. Daí que o pouco que se reflecte sobre isto fique nas mãos de uns esforçados intelectuais que vão escrevendo aqui e acolá. Ora isso não chega.
Esta é uma matéria muito ampla e delicada, em que um civil servant, como eu sou, corre alguns riscos de entrar por domínios reservados exclusivamente aos políticos ou aos comentadores. Ora como não sou político nem comentador, vou dar uma leitura, à luz da minha própria experiência profissional, feita de mais de três décadas ao serviço do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Para tal organizei este texto em três módulos, cada um deles assente num tempo dessa minha experiência: um primeiro dedicado à Europa, um segundo ao multilateralismo e um terceiro a questões da lusofonia. Nos dois primeiros módulos pretendo, no essencial, abordar a questão do modo como Portugal é visto do exterior.
Sei que este é um terreno muito difuso, que se presta a interpretações bastante diversas, que tem algumas dimensões polémicas e que corre, aqui ou ali, o risco de ser visto como algo impressionista. Mas vou arriscar, até porque este é o tipo de questões em que eu próprio tenho necessidade, como diplomata e como português, de arrumar algumas ideias, mesmo que, no final, muita gente acabe por não concordar com elas.

Na Europa

Vamos então à Europa.
Como é que hoje a Europa, a União Europeia, nos olha, mais de duas décadas depois da nossa adesão? Que saldo deixou este quase quarto de século de presença nas instituições comunitárias, com duas presidências pelo meio e alguns protagonistas, com diferente qualidade e visibilidade, que andaram e andam pelos palcos de Bruxelas, de Estrasburgo ou do Luxemburgo ?
Recuemos uns anos antes da adesão. A imagem que Portugal projectava há três décadas era a de um país que havia passado passou por um choque histórico algo traumático, provocado pelo esboroar de uma ditadura que acabou por ditar um fim trágico e quase patético a uma aventura colonial tardia – com guerras sem sentido, privações, tensões e um saldo de sacrifícios humanos muito pesado, que o país pagou, até pelas consequências no seu tecido económico. Esse era o Portugal que batia à porta da Europa: um país pobre, uma democracia recente, um tecido social e político convulso.
E aqui começou a surpresa para a Europa e para o mundo: o modo muito próprio como Portugal fez a sua revolução e, em especial, como dela saiu para a democracia e desta para a integração europeia. Aos olhos externos, o nosso país conseguiu, com uma insuspeitada facilidade, instalar e aculturar um regime democrático que se provou funcional e que, sem se afastar da sua herança africana, soube simultaneamente voltar-se, com uma quase naturalidade, para um projecto integrador europeu a que só remotamente estivera ligado, embora já partilhasse a cultura de mercado que lhe estava na génese.
Neste percurso, a Europa poderá ter ficado particularmente impressionada por dois factos.
Em primeiro lugar, pela nossa fantástica capacidade de reconciliação interna, depois de um período revolucionário que, como sempre acontece, teve os seus custos e deixou as suas feridas. A absorção da população que retornou de África, no período pós-descolonização, continua a ser um feito que muitos não entendem bem, em especial alguns Estados, bastante mais ricos, que não souberam resolver o seu próprio problema da forma como os portugueses foram capazes.
Em segundo lugar, terá sido uma surpresa a nossa reconversão rápida ao projecto integrador europeu e, já dentro deste, o modo, competente e dedicado, como nos empenhámos nas tarefas de que fomos incumbidos – de que o excelente exercício das presidências europeias é talvez um exemplo paradigmático.
Sem pretender entrar no terreno da polémica, estou perfeitamente convicto que um cidadão português não poderia, quaisquer que fossem os seus méritos pessoais, ser hoje presidente da Comissão Europeia se o nosso país não tivesse demonstrado, nas quase duas décadas que antecederam esse momento, uma imagem de grande eficácia e empenhamento no processo europeu. Desde 1986, embora só algumas vezes com brilho excepcional, mas sempre com grande seriedade e apreciável sentido de responsabilidade, Portugal conseguiu fornecer pessoal, e até ideias, que contribuiram para lhe garantir uma participação de mérito no projecto integrador.

A imagem de Portugal

Verdade seja que este inesperado europeísmo não deixou de ser visto como tendo muito a ver com as vantagens, na paisagem e nos bolsos, que os portugueses pressentiram, e bem, que o projecto europeu lhes podia proporcionar. A Europa percebeu isso muito bem e percebeu também que Portugal soube aproveitar, embora de modo apenas razoável, os benefícios que a pertença ao novo “clube” lhe trouxe. Aos olhos dessa Europa mais desenvolvida, o usufruto dessa dessa oportunidade não terá sido o melhor, porque não estavam superados no país alguns défices de cultura comportamental que eram, de há muito, a imagem de marca da nossa sociedade - compadrios, facilidades, falta de rigor, inconstância, improviso, escassa educação, vícios de gestão, etc.
Estarão já criadas, nos dias de hoje, as condições para melhorar, de forma definitiva, essa imagem? Claro que não. Basta entrarem numa qualquer livraria, numa grande capital europeia, e ir à estante do business internacional e lerem o que se diz sobre como fazer negócios em Portugal. A imagem da ficha portuguesa é a de um país com “picos” e quedas no seu desenvolvimento recente, com uma burocracia apenas atenuada pelo “jeitinho”, uma justiça muito lenta embora não corrupta, uma classe empresarial convencida da sua própria importância mas mal qualificada em termos internacionais. A cordialidade e submissão dos portugueses torna-os, nos textos desses livros, fáceis no relacionamento, mas igualmente menos eficazes na constância temporal da sua atitude – e aí está a falta de pontualidade, de rigor, de precisão, os atrasos sistemáticos face aos compromissos assumidos, enfim, a ausência da reliability essencial no exigente mundo contemporâneo dos negócios.
Neste ponto, alguns estarão a perguntar-se: mas, afinal, a imagem de Portugal mede-se apenas pelo critério do sucesso económico? Lamento ter de dizer que, a meu ver, o grande indicador para a aferição da performance de um país à escala internacional é, hoje em dia, a sua capacidade de geração de riqueza, de saber distribuí-la sem tensões e proporcionar bem-estar aos seus cidadãos, sempre em liberdade, claro. Talvez seja a conjuntural vitória dos mecanismos de mercado que criou esta percepção, mas não conheço nenhum país pobre que esteja prestigiado à escala global, embora conheça alguns países ricos que, por virtude dos seus sistemas políticos autoritários ou pelas grandes desigualdades sociais internas que mantêm, também não são respeitados, a não ser pelos cultores cínicos da realpolitik.
Por isso, mais do que nunca, a imagem de um Estado perante o mundo – e perante a Europa, por maioria de razão – depende da eficácia e qualidade das suas políticas públicas, da coragem na execução de reformas essenciais à sua constante melhoria e adequação aos desafios. E o que é que a sociedade externa valoriza mais? Valoriza a preservação do equilíbro macroeconómico, a generalização com qualidade dos sistemas de ensino, saúde e justiça, as práticas de segurança interna com plena preservação de liberdades, os estímulos à afirmação da sociedade civil, o empenhamento oficial na luta contra as discriminações, a cultura ambiental e de promoção de um desenvolvimento sustentável, a protecção dos consumidores e dos utentes públicos – enfim, todo o vastíssimo conjunto de simbolos de modernidade na formação das sociedades modernas. Esse são alguns dos principais factores que qualificam, contemporaneamente, a imagem dos países.
Neste ponto, alguns poderão estar a pensar: mas, afinal, Portugal tem uma cultura antiga, tem uma História, tem uma imagem com momentos gloriosos na sua muito longa existência como país. Ora isso deve fazer parte, com certeza, do seu reconhecimento exterior. Receio ter de dizer isto, mas um erro muito comum no imaginário português é o de pensar que o mundo continua a lembrar Portugal pela glória histórica das Descobertas, pelos períodos áureos de “quinhentos”. O facto de termos hiperbolizado, dentro de Portugal, e em especial durante o Estado Novo, essas imagens de grandeza não significa necessariamente que o mundo seja obrigado a medir-nos ainda à luz delas. Sei que não faz bem à nossa auto-estima lembrar isto, mas temos de assumir que essas glórias, embora constitutivas da nossa identidade como nação, são já longínquas no tempo.
Ora os outros já terão notado que, depois de Sagres, passámos por um declínio muito grande como país, com o lento desfazer da aventura imperial, com quebras drásticas no nosso poder económico e na consequente perda de importância da nossa afirmação política à escala global. Além disso, o facto de não sermos hoje um país rico, tem-nos impedido de garantir, no imaginário cultural internacional, um tratamento cuidadoso e prestigiante desses períodos magníficos da nossa História, através de centros culturais, de exposições, de cátedras, de estudos, de filmes, para produção e estímulo académico para aprofundar esses tempos... Até o facto de não termos sabido descolonizar a tempo nos agravou uma imagem de perdedores na História, só atenuada pelo contraponto positivo das liberdades que o 25 de Abril, simultaneamente, nos trouxe.
E não quero deixar de sublinhar ainda um ponto que aprendi na minha vida de diplomata: o valor fantástico do que Portugal fez pelo mundo, com as Descobertas, foi, no século XX, manchado muito negativamente, no imaginário cultural e político internacional, pela obstinação assumida contra a descolonização, pelo envolvimento do nome de Portugal em guerras coloniais e pela longa colagem da imagem do país ao autoritarismo entorpecente do Estado Novo. Goste-se ou não, a História que verdadeiramente conta, para a imagem dos países, é a História contemporânea ou, pelo menos, a versão contemporânea dessa História. E, nesse retrato, a nossa imagem não é globalmente positiva.
Mas convém não sermos, em absoluto, pessimistas. A imagem dos países também se reverte, com uma maior facilidade do que julgamos. Há alguns bons exemplos europeus: a Irlanda e os países nórdicos.
Recorde-se que a Irlanda renasceu, em poucos anos, depois de longos períodos de crise, com ciclos de fome, com constante saída de populações. E este é um ponto também importante: um país que não consiga garantir condições de vida aos seus cidadãos, que acabe por estimular a sua saída em termos maciços, não é um país prestigiado e respeitado no quadro internacional. Por mais orgulho que tenhamos na aventura de sacrifício que sempre foi a nossa emigração, é para mim hoje evidente que um país que condena a sua população a emigrar, por razões económicas. é um país que não se prestigia e que não sobe na consideração dos outros.
Mas também os nórdicos, que hoje são prósperas democracias, provaram que, em escassas décadas, é possível criar sociedades assentes na educação e no conhecimento, em que o empreendedorismo não é incompatível com a solidariedade social, em que se estabeleceu uma cultura comportamental sólida, assente em valores consensualizados pela sociedade. Hoje, os países nórdicos estão no topo das estatísticas de qualidade de vida, de defesa dos direitos das suas populações, da preservação de valores de modernidade, como é o caso das metas ambientais.
Para além dos grandes e mais ricos Estados europeus, que têm uma projecção própria que deriva de uma massa crítica, de múltipla projecção, que lhes dá esporas de poder, é hoje claro que um país de pequena ou média dimensão só pode afirmar-se, aos olhos de terceiros, se mostrar capacidade de gerar, sem grandes desigualdades e em total liberdade, um crescimento sustentado, com constante modernização e actualização do seu tecido produtivo, com pleno respeito pelos padrões de desenvolvimento humano. A prosperidade, em especial se for apoiada numa cultura empresarial sólida, gera auto-confiança nacional, cria uma imagem de independência e de capacidade de livre escolha do destino. E aí, sejamos claros, Portugal ainda está onde está.

No mundo multilateral

Passo agora ao segundo dos três módulos desta minha abordagem, a uma análise do modo como Portugal é percebido, através da sua presença, espaço e actuação, nas organizações multilaterais de carácter intergovernamental – e já não nas dimensões comunitárias europeias. Faço-o, essencialmente, à luz da minha experiência como representante português na ONU, em Nova Iorque, do modo como dirigimos uma organização regional como a OSCE – a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa –, bem como das responsabilidades que tive, durante alguns anos, na chefia de delegações portuguesas junto da OCDE, do Conselho da Europa ou da Organização Mundial de Comércio, entre outras.
Começo por notar que a diplomacia portuguesa, antes de 1974, tinha uma escassa apetência pelo mundo multilateral e a sua cultura era dominada pelo bilateralismo. Portugal converteu-se muito mais tardiamente ao multilateralismo que outros Estados. Adoptou-o em contextos políticos de oportunidade, como foi o caso da NATO durante a Guerra Fria, ou sem uma pressão excessivamente constrangente, como foi o caso da EFTA ou da OCDE. A ONU, para a qual Portugal entrou em 1955, representou, em especial a partir dos anos 60, um inevitável terreno de “massacre” diplomático para o nosso país, que acabaria por se repercutir, paralelamente, nas diversas agências, como a OIT, a OMS e outras. Valha a verdade que se diga: nada que a diplomacia portuguesa de então não tivesse tratado com grande profissionalismo, competência e sentido de Estado, não obstante a causa perdida que titulava.
A partir de 1974, Portugal passou, quase de um dia para o outro, de mal-amado a benquisto membro do mundo multilateral, com a boa vontade e as portas abertas, quer como reconhecimento pela democracia conquistada no plano interno, quer, principalmente, como saudação à vontade descolonizadora afirmada pelo novo regime. Infelizmente, e contrariamente ao que seria desejável, Portugal não conseguiu aproveitar em pleno essa oportunidade e construir, a partir daí, uma sólida presença nas instâncias multilaterais. Em grande parte, isso ter-se-á ficado a dever a razões orçamentais, que se reflectiam negativamente nas contribuições financeiras e humanas disponibilizadas para essas instituições. Olhando para trás, verificamos que essa foi uma fantástica oportunidade perdida, em muitos casos por uma incompreensão estratégica de que uma rede de pessoal colocada nesses contextos, para além do prestígio automático que acarreta para o país, se bem coordenada, funciona como uma porta para nichos de oportunidade, em matéria de projectos e novos recrutamentos. Uma visão limitada e curta dos nossos interesses conduziu a uma política muito selectiva de apoio à colocação de pessoal, às vezes à luz de critérios exclusivamente políticos, outras vezes por meras teimosias de personalidades, que hoje pagamos fortemente. E essas organizações, e os outros Estados dentro delas, não deixaram de tirar as devidas conclusões dessas nossas fraquezas.
Mas como é que Portugal se comportou nessas instâncias? Não queria aparecer como negativista, mas, conhecendo bem algum desse tecido de representação, não me parece que, em geral, o olhar dos outros nos fosse muito favorável. Embora não possamos fazer generalizações, o nosso país, por falta de reflexão e de ideias novas, aparecia muitas vezes como mero defensor do statu quo, ou envolvido na defesa de pontos muito específicos, de interesses próprios frequentemente magnificados e mitificados, que se erigiam como vitais, por mero receio de nos envolvermos num percurso de mudança cuja orientação temíamos não poder influenciar. A exigente tecnicidade de algumas questões, bem como a debilidade das estruturas de coordenação e decisão em Portugal, acabou frequentemente por deixar nas mãos de certos delegados, idos de Lisboa, a responsabilidade última das apções a tomar. Em algumas instâncias multilaterais, alguns funcionários tinham completa luz verde para definir a posição nacional – e, vale a pena dizê-lo, isso também passou a ser válido, a partir da adesão, para o tratamento de questões no âmbito comunitário, como eu próprio tive ocasião de verificar.
Porque quem nos via actuar não era ingénuo, a imagem que projectávamos era muitas vezes de descoordenação, de casuísmo, de irresponsabilidade, da falta de uma linha de orientação central que articulasse os diversos actores negociais, que, algumas vezes, davam nota de fortes incoerências nos vários palcos de actuação. Em algumas organizações internacionais, a coordenação comunitária – ou a própria representação assumida pela presidência de turno ou pela Comissão Europeia, no âmbito das competências próprias – acabou por disfarçar a debilidade técnica das posições nacionais. E acabou por ser a Europa, a participação contínua dos nossos especialistas em contextos técnicos no âmbito europeu, que ajudou a criar a massa crítica necessária, nos diversos ministérios, para uma participação mais capaz nas instâncias multilaterais.
De sublinhar que tudo o que acabei de descrever, talvez com alguma excessiva crueldade para gente muito competente e profissional que conheci, se prende, essencialmente, com áreas técnico-económicas, com as quais lidei de perto durante muitos anos. Com efeito, no âmbito mais político, as dimensões de política externa “pura” foram sempre bastante mais coordenadas – seguindo, aliás, o exemplo que já vinha de antes do 25 de Abril. Porque essa era já uma “escola” que, no Palácio das Necessidades, se tinha desenvolvido e, há muito, aperfeiçoado.
Para além da interiorização e respeito pelos princípios que marcam ideologicamente a Revolução de Abril, a questão de Timor Leste acabou por ser o factor decisivo para a gestação, no âmbito da diplomacia portuguesa, de uma filosofia menos casuística e muito mais assente em valores. A mais impressiva marca da nossa política externa, a partir de certa altura, terá sido, porventura, a adesão e o empenhamento naquilo que eu costumo designar por uma diplomacia ética. Quero com este conceito referir a defesa dos Direitos Humanos, a promoção dos valores da democracia e do Estado de direito, a adesão aos projectos internacionais de solidariedade e luta contra a pobreza e exclusão, a vinculação à luta contra o racismo, xenofobia e intolerância, etc. Terá essa linha de actuação tido sequência, com efeitos na cultura diplomática ainda hoje prevalecente nas Necessidades? Tenho dúvidas – e lamento ter de tê-las. A sensação com que fico é que o template da União, essa espécie de média aritmética europeia de posições, soprada em especial pelos poderes diplomáticos mais fortes da União e pela mentalidade burocrática de Bruxelas, funciona hoje como uma cómoda escola de atitude, quase expressa numa langue de bois onde muitos diplomatas ainda se refugiam.
No plano da segurança internacional, é importante notar que Portugal iniciou, a partir de determinado momento, a prestação de um contributo muito interessante, naturalmente à sua escala, para operações internacionais de paz. Isso permitiu-nos – embora alguns, lá fora, possam não se ter apercebido disto – criar internamente um quadro alternativo e dignificador de tarefas para umas Forças Armadas que haviam sido atravessadas, até muito recentemente, por um processo de muito elevada instabilidade e crise de objectivos. É pena que a escassez de meios não nos permita ir mais longe nesta via, onde temos dado uma imagem de grande profissionalismo, sensibilidade político-social e capacidade de organização e trabalho no terreno.
Como antes disse, neste processo de afirmação de princípios éticos à escala externa, Portugal foi inicialmente muito estimulado pela crise de Timor, por essa espécie de remorso histórico no qual, a partir de certo momento, concentrámos muito do nosso empenhamento diplomático. Verdade seja que se torna sempre um pouco muito mais fácil aplicar alguns princípios quando não se tem, na ordem externa, grandes interesses a defender. A experiência veio a demonstrar – e não quero, por razões óbvia, ir muito longe neste assunto – que a ocorrência pontual de alguns desses interesses, ou a ânsia de mostrar algum seguidismo de oportunidade, nomeadamente no quadro transatlântico, levou a escassos, mas muito lamentáveis, desvios desse curso de dignidade à escala internacional.
Mas, em geral, é preciso deixar claro que Portugal tem mostrado ser um país com uma política externa muito responsável e coerente, previsível e assente em bases sólidas, cultor de uma agenda de diplomacia ética que nos garante respeito e crédito no cenário internacional. O modo como nos comportámos nas presenças nos biénios no Conselho de Segurança da ONU, o nosso trabalho na área dos Direitos Humanos, várias participações individuais em áreas delicadas de estruturas internacionais, tudo isso acabou por dignificar a imagem portuguesa.
Mas, uma vez mais, e nesses mesmos âmbitos, o mundo também repara que, por vezes, sendo um funcionário substituído, cai, em absoluto, a presença portuguesa na área que ele tratava – precisamente porque era esse mesmo funcionário, com ou sem backing da sua missão ou da sua capital, que tinha o pleno conhecimento do dossiê e que era, ele próprio, o criador da posição portuguesa. Infelizmente, isto passa-se, ainda hoje, muitas mais vezes do que o que se julga – com efeitos negativos sensíveis na nossa imagem como país no campo multilateral.
Uma última nota para registar que, também algumas vezes, o investimento feito por Portugal em alguns exercícios multilaterais, com esforço, dedicação e preparação de pessoal nesses domínios, acaba por ser completamente desperdiçado pela inexistência de um trabalho de follow-up. Um exemplo que me vem à memória, porque trabalhei nele com intensidade, foi a presidência portuguesa da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), em 2002, organismo em que Portugal também havia estado envolvido pela preparação da Cimeira de Lisboa, em 1996. A OSCE, em si, vale o que vale, mas o esforço de aproximação e diálogo que, no seu contexto, fizémos com países que estavam fora da órbita normal da nossa esfera de actividade, e perante os quais criámos então uma imagem dialogante e construtiva, acabou por não ter grande sequência, desbaratando-se, ingloriamente, um importante esforço, financeiro e humano, que o país realizou durante alguns anos.
É por essa razão que volto a dizer que Portugal ainda projecta uma imagem irregular, de entusiasmo sectorial súbito, logo seguido de grandes quebras de empenhamento, voltando-se, transitória e subitamente, para outros pontos alternativos de interesse, num zig-zag sem sentido óbvio. Para além daqueles que são temas centrais da nossa diplomacia – Europa, relações transatlânticas, NATO, países de língua portuguesa –, em tudo o resto como que funcionamos um pouco à la carte, ao sabor das vontades políticas conjunturais. Ou de entusiasmos pouco respeitáveis. Como é evidente, esta é uma crítica geral, dirigida aos últimos 30 anos e, no fundo, pretende ser um alerta para o futuro, um apelo a que consensualizem rumos, se instituam mecanismos alargados de revisão periódica de políticas, deixando de vogar apenas ao sabor das conjunturas políticas.

A lusofonia

E termino com algumas considerações sobre a questão da lusofonia e do papel de Portugal nesse contexto.
Julgo que é óbvio para todos – e quando digo todos, refiro-me também aos países lusófonos – que Portugal tem tido uma permanente acção em favor da densificação do relacionamento, em todas as áreas, dentro do espaço de língua portuguesa. Vale a pena olhar atrás e atentar num aspecto: Portugal e a diplomacia portuguesa, com persistência e com constância, conseguiram reverter, nestas últimas décadas, uma atitude de alguma “lusofobia” que se havia criado em sectores de algumas das suas antigas colónias, no período posterior à descolonização, quase sempre como saldo dos traumas dos conflitos armados. Embora cada caso fosse um caso, tivemos que gerir, durante bastante tempo, uma diplomacia de tensão, que tinha que se confrontar com desconfianças, preconceitos e agravos fáceis, que só foi possível ultrapassar com muito e árduo trabalho político e diplomático. Esse trabalho acabou por compensar, porque alguns desses países vieram a der-se conta que, de facto, estávamos a ser sinceros quando afirmávamos querer colaborar nos seus processos internos de reconciliação, contribuir para a sua recuperação económica e social e ajudar à sua promoção, à escala das nossas possibilidades, no campo externo. Com avanços e recuos, muitas vezes ao sabor das conjunturas internas desses Estados, a diplomacia portuguesa face à África lusófona tem hoje um saldo global de êxitos, que só não é mais evidente porque factores externos de circunstância impediram, frequentemente, a maturação de muitas das soluções em nos empenhámos.
Esse trabalho acabou por redundar, em Portugal, na criação de uma importante massa crítica de expertise africana que, por exemplo, nos colocou no centro de duas cimeiras entre a União Europeia e a África, a última das quais, em 2007 – e talvez as pessoas não se tenham dado bem conta disso –, trouxe um modelo novo de articulação (como antigamente se dizia) “Norte-Sul”, cuja conceptualização muito prestigia Portugal aos olhos da África e da própria Europa. Por essa e por outras razões, a África de lingua portuguesa olha-nos hoje de forma muito diferente: Portugal é visto genericamente como um país consistente com as suas promessas, determinado na promoção internacional dos interesses comuns e de cada um dos seus parceiros africanos.
E que dizer de Timor-Leste? Vou ser muito parco num terreno em que a resposta é óbvia: Portugal foi e é o mais consistente parceiro internacional de Timor-Leste, em todos os momentos e por várias formas. A imagem de Portugal em Timor-Leste é, em geral, a de um país amigo e seguro, sem interesses a defender que não sejam os que derivam do nosso empenhamento em desenvolver a herança cultural de um passado comum.
O que falta, então, para que as coisas possam dar certo na lusofonia, para que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) deixe, mais de uma década depois da sua criação, de ser apenas um embrião de uma organização com expressão à escala global? A chave dessa questão chama-se Brasil. Não posso aqui elaborar muito sobre isto, mas a realidade dos factos deixa claro que a CPLP começou mal, porque, por motivos próprios, não foi possível ao Brasil assegurar um papel central, desde o início, no seio da organização. Ora o Brasil é o maior Estado da CPLP. Nas comunidades internacionais desta natureza costuma haver uma coincidência entre o Estado descolonizador e o maior país da organização: não é esse o caso da CPLP, bem pelo contrário. E talvez não seja por acaso que um país como os Estados Unidos não faz parte da Comunidade Britânica, embora fosse uma antiga colónia britânica...
Depois de viver há alguns anos no Brasil, tenho a sensação – mas concedo que posso estar enganado – que o Brasil só agora começa a interessar-se verdadeiramente pela CPLP e a testar em pleno as suas possibilidades. Porque só agora, envolvido que está numa batalha positiva para consagrar, à escala global, a sua força regional e o seu poderio económico e demográfico, o Brasil começa a perceber a vantagem de utilizar a sua posição na CPLP como um instrumento mais da sua própria política externa. Este aparente avanço político – mais do que bem-vindo – parece somar-se à consciência crescente no Brasil de que a língua portuguesa pode e deve converter-se num importante utensílio de poder para quantos a falam e escrevem. A criação, há dois anos, do Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, a negociação de acordos com países vizinhos com vista a colocar o Português como segunda língua na América do Sul, tudo isso são sinais claros de que uma política da língua já começa a ser percebida como uma política de Estado no Brasil.
Ora a promoção da Língua Portuguesa à escala internacional foi, é e será sempre um dos objectivos centrais da nossa própria acção externa. Por isso, estamos abertamente com o Brasil nesse objectivo e estaremos também com o Brasil, de forma muito óbvia, em tudo quanto possa afirmar esse país no quadro global. O Brasil sabe isso. Sabe que nenhuma dimensão da sua afirmação externa é contraditória com os nossos interesses estratégicos nacionais e, bem pelo contrário, se trata de um jogo de sinergias. Por isso, o Brasil entende que Portugal é um parceiro certo e quase automático, quando interesses seus podem cruzar-se no nosso horizonte de acção diplomática. O Brasil vê isso, com regularidade, nas eleições nas estruturas multilaterais, como viu no esforço que fizemos, contra ventos e algumas marés passageiras, ao conseguir conferir-lhe o estatuto de Parceiro Estratégico da União Europeia, durante a nossa recente Presidência.
Como prometido, abordei três dimensões da nossa acção externa: a Europa, a acção multilateral e o espaço da lusofonia.
Alguns estarão, com certeza, a perguntar-se por que razão, a parte relativa ao Brasil foi a única em que não referi nem comentei, em detalhe, o modo como o outro lado nos olha. A explicação é muito simples: eu sou actualmente embaixador de Portugal no Brasil e todos sabem que não se podem tirar retratos de muito perto, porque as imagens saem quase sempre desfocadas...

Pensar Portugal no mundo

       Uma reflexão sobre o papel de Portugal no mundo, como a que hoje é feita neste contexto parlamentar, parece-me muito oportuna, porque, com raras e louváveis excepções, não há, entre nós, uma tradição de contínua análise sobre o papel do país no plano internacional. Fica-se com o sensação, que é completamente falsa, de que todos sabemos o que queremos e para onde vamos em matéria externa, como diria um clássico de alguns.
       Mesmo que isso fosse verdade, e não o é, o mundo à nossa volta está a mudar e nós não ponderamos, dia-a-dia, o modo como devemos adaptar o nosso projecto nacional a essa conjuntura em mudança. E, no meio de tudo isso, também esquecemos que o sentido do nosso próprio projecto nacional está, também ele, em rápida mutação, queiramos ou não assumi-lo, e que é forçoso reflectir constantemente sobre o modo como o devemos defender no quadro externo.
       Os partidos políticos portugueses também não têm por hábito fazer uma reflexão contínua sobre política externa, salvo sobre questões pontuais, ligada à actualidade ou a episódios de oportunidade. Basta olhar para os programas de Governo para se perceber isso. Além disso, os escassos think tanks que temos em Portugal, alguns dos quais são de grande qualidade, parecem, quase sempre, viver fascinados pela alta política de segurança internacional, em particular pela questão transatlântica, a qual, afinal, nos “passa por cima”, digamos o que dissermos por aqui.
       O meu Ministério – o Ministério dos Negócios Estrangeiros – vive tão concentrado nas pressões do quotidiano que dificilmente tem tempo para parar para pensar estrategicamente. Daí que o pouco que se reflecte sobre isto fique nas mãos de uns esforçados intelectuais que vão escrevendo aqui e acolá. Ora isso não chega.
       Esta é uma matéria muito ampla e delicada, em que um civil servant, como eu sou, corre alguns riscos de entrar por domínios reservados exclusivamente aos políticos ou aos comentadores. Ora como não sou político nem comentador, vou dar uma leitura, à luz da minha própria experiência profissional, feita de mais de três décadas ao serviço do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Para tal organizei este texto em três módulos, cada um deles assente num tempo dessa minha experiência: um primeiro dedicado à Europa, um segundo ao multilateralismo e um terceiro a questões da lusofonia. Nos dois primeiros módulos pretendo, no essencial, abordar a questão do modo como Portugal é visto do exterior.
       Sei que este é um terreno muito difuso, que se presta a interpretações bastante diversas, que tem algumas dimensões polémicas e que corre, aqui ou ali, o risco de ser visto como algo impressionista. Mas vou arriscar, até porque este é o tipo de questões em que eu próprio tenho necessidade, como diplomata e como português, de arrumar algumas ideias, mesmo que, no final, muita gente acabe por não concordar com elas.

Na Europa

       Vamos então à Europa.
       Como é que hoje a Europa, a União Europeia, nos olha, mais de duas décadas depois da nossa adesão? Que saldo deixou este quase quarto de século de presença nas instituições comunitárias, com duas presidências pelo meio e alguns protagonistas, com diferente qualidade e visibilidade, que andaram e andam pelos palcos de Bruxelas, de Estrasburgo ou do Luxemburgo ?
       Recuemos uns anos antes da adesão. A imagem que Portugal projectava há três décadas era a de um país que havia passado passou por um choque histórico algo traumático, provocado pelo esboroar de uma ditadura que acabou por ditar um fim trágico e quase patético a uma aventura colonial tardia – com guerras sem sentido, privações, tensões e um saldo de sacrifícios humanos muito pesado, que o país pagou, até pelas consequências no seu tecido económico. Esse era o Portugal que batia à porta da Europa: um país pobre, uma democracia recente, um tecido social e político convulso.
       E aqui começou a surpresa para a Europa e para o mundo: o modo muito próprio como Portugal fez a sua revolução e, em especial, como dela saiu para a democracia e desta para a integração europeia. Aos olhos externos, o nosso país conseguiu, com uma insuspeitada facilidade, instalar e aculturar um regime democrático que se provou funcional e que, sem se afastar da sua herança africana, soube simultaneamente voltar-se, com uma quase naturalidade, para um projecto integrador europeu a que só remotamente estivera ligado, embora já partilhasse a cultura de mercado que lhe estava na génese.
       Neste percurso, a Europa poderá ter ficado particularmente impressionada por dois factos.
       Em primeiro lugar, pela nossa fantástica capacidade de reconciliação interna, depois de um período revolucionário que, como sempre acontece, teve os seus custos e deixou as suas feridas. A absorção da população que retornou de África, no período pós-descolonização, continua a ser um feito que muitos não entendem bem, em especial alguns Estados, bastante mais ricos, que não souberam resolver o seu próprio problema da forma como os portugueses foram capazes.
       Em segundo lugar, terá sido uma surpresa a nossa reconversão rápida ao projecto integrador europeu e, já dentro deste, o modo, competente e dedicado, como nos empenhámos nas tarefas de que fomos incumbidos – de que o excelente exercício das presidências europeias é talvez um exemplo paradigmático.
       Sem pretender entrar no terreno da polémica, estou perfeitamente convicto que um cidadão português não poderia, quaisquer que fossem os seus méritos pessoais, ser hoje presidente da Comissão Europeia se o nosso país não tivesse demonstrado, nas quase duas décadas que antecederam esse momento, uma imagem de grande eficácia e empenhamento no processo europeu. Desde 1986, embora só algumas vezes com brilho excepcional, mas sempre com grande seriedade e apreciável sentido de responsabilidade, Portugal conseguiu fornecer pessoal, e até ideias, que contribuiram para lhe garantir uma participação de mérito no projecto integrador.

A imagem de Portugal

       Verdade seja que este inesperado europeísmo não deixou de ser visto como tendo muito a ver com as vantagens, na paisagem e nos bolsos, que os portugueses pressentiram, e bem, que o projecto europeu lhes podia proporcionar. A Europa percebeu isso muito bem e percebeu também que Portugal soube aproveitar, embora de modo apenas razoável, os benefícios que a pertença ao novo “clube” lhe trouxe. Aos olhos dessa Europa mais desenvolvida, o usufruto dessa dessa oportunidade não terá sido o melhor, porque não estavam superados no país alguns défices de cultura comportamental que eram, de há muito, a imagem de marca da nossa sociedade - compadrios, facilidades, falta de rigor, inconstância, improviso, escassa educação, vícios de gestão, etc.
       Estarão já criadas, nos dias de hoje, as condições para melhorar, de forma definitiva, essa imagem? Claro que não. Basta entrarem numa qualquer livraria, numa grande capital europeia, e ir à estante do business internacional e lerem o que se diz sobre como fazer negócios em Portugal. A imagem da ficha portuguesa é a de um país com “picos” e quedas no seu desenvolvimento recente, com uma burocracia apenas atenuada pelo “jeitinho”, uma justiça muito lenta embora não corrupta, uma classe empresarial convencida da sua própria importância mas mal qualificada em termos internacionais. A cordialidade e submissão dos portugueses torna-os, nos textos desses livros, fáceis no relacionamento, mas igualmente menos eficazes na constância temporal da sua atitude – e aí está a falta de pontualidade, de rigor, de precisão, os atrasos sistemáticos face aos compromissos assumidos, enfim, a ausência da reliability essencial no exigente mundo contemporâneo dos negócios.
       Neste ponto, alguns estarão a perguntar-se: mas, afinal, a imagem de Portugal mede-se apenas pelo critério do sucesso económico? Lamento ter de dizer que, a meu ver, o grande indicador para a aferição da performance de um país à escala internacional é, hoje em dia, a sua capacidade de geração de riqueza, de saber distribuí-la sem tensões e proporcionar bem-estar aos seus cidadãos, sempre em liberdade, claro. Talvez seja a conjuntural vitória dos mecanismos de mercado que criou esta percepção, mas não conheço nenhum país pobre que esteja prestigiado à escala global, embora conheça alguns países ricos que, por virtude dos seus sistemas políticos autoritários ou pelas grandes desigualdades sociais internas que mantêm, também não são respeitados, a não ser pelos cultores cínicos da realpolitik.
       Por isso, mais do que nunca, a imagem de um Estado perante o mundo – e perante a Europa, por maioria de razão – depende da eficácia e qualidade das suas políticas públicas, da coragem na execução de reformas essenciais à sua constante melhoria e adequação aos desafios. E o que é que a sociedade externa valoriza mais? Valoriza a preservação do equilíbro macroeconómico, a generalização com qualidade dos sistemas de ensino, saúde e justiça, as práticas de segurança interna com plena preservação de liberdades, os estímulos à afirmação da sociedade civil, o empenhamento oficial na luta contra as discriminações, a cultura ambiental e de promoção de um desenvolvimento sustentável, a protecção dos consumidores e dos utentes públicos – enfim, todo o vastíssimo conjunto de simbolos de modernidade na formação das sociedades modernas. Esse são alguns dos principais factores que qualificam, contemporaneamente, a imagem dos países.
       Neste ponto, alguns poderão estar a pensar: mas, afinal, Portugal tem uma cultura antiga, tem uma História, tem uma imagem com momentos gloriosos na sua muito longa existência como país. Ora isso deve fazer parte, com certeza, do seu reconhecimento exterior. Receio ter de dizer isto, mas um erro muito comum no imaginário português é o de pensar que o mundo continua a lembrar Portugal pela glória histórica das Descobertas, pelos períodos áureos de “quinhentos”. O facto de termos hiperbolizado, dentro de Portugal, e em especial durante o Estado Novo, essas imagens de grandeza não significa necessariamente que o mundo seja obrigado a medir-nos ainda à luz delas. Sei que não faz bem à nossa auto-estima lembrar isto, mas temos de assumir que essas glórias, embora constitutivas da nossa identidade como nação, são já longínquas no tempo.
       Ora os outros já terão notado que, depois de Sagres, passámos por um declínio muito grande como país, com o lento desfazer da aventura imperial, com quebras drásticas no nosso poder económico e na consequente perda de importância da nossa afirmação política à escala global. Além disso, o facto de não sermos hoje um país rico, tem-nos impedido de garantir, no imaginário cultural internacional, um tratamento cuidadoso e prestigiante desses períodos magníficos da nossa História, através de centros culturais, de exposições, de cátedras, de estudos, de filmes, para produção e estímulo académico para aprofundar esses tempos... Até o facto de não termos sabido descolonizar a tempo nos agravou uma imagem de perdedores na História, só atenuada pelo contraponto positivo das liberdades que o 25 de Abril, simultaneamente, nos trouxe.
       E não quero deixar de sublinhar ainda um ponto que aprendi na minha vida de diplomata: o valor fantástico do que Portugal fez pelo mundo, com as Descobertas, foi, no século XX, manchado muito negativamente, no imaginário cultural e político internacional, pela obstinação assumida contra a descolonização, pelo envolvimento do nome de Portugal em guerras coloniais e pela longa colagem da imagem do país ao autoritarismo entorpecente do Estado Novo. Goste-se ou não, a História que verdadeiramente conta, para a imagem dos países, é a História contemporânea ou, pelo menos, a versão contemporânea dessa História. E, nesse retrato, a nossa imagem não é globalmente positiva.
       Mas convém não sermos, em absoluto, pessimistas. A imagem dos países também se reverte, com uma maior facilidade do que julgamos. Há alguns bons exemplos europeus: a Irlanda e os países nórdicos.
       Recorde-se que a Irlanda renasceu, em poucos anos, depois de longos períodos de crise, com ciclos de fome, com constante saída de populações. E este é um ponto também importante: um país que não consiga garantir condições de vida aos seus cidadãos, que acabe por estimular a sua saída em termos maciços, não é um país prestigiado e respeitado no quadro internacional. Por mais orgulho que tenhamos na aventura de sacrifício que sempre foi a nossa emigração, é para mim hoje evidente que um país que condena a sua população a emigrar, por razões económicas. é um país que não se prestigia e que não sobe na consideração dos outros.
       Mas também os nórdicos, que hoje são prósperas democracias, provaram que, em escassas décadas, é possível criar sociedades assentes na educação e no conhecimento, em que o empreendedorismo não é incompatível com a solidariedade social, em que se estabeleceu uma cultura comportamental sólida, assente em valores consensualizados pela sociedade. Hoje, os países nórdicos estão no topo das estatísticas de qualidade de vida, de defesa dos direitos das suas populações, da preservação de valores de modernidade, como é o caso das metas ambientais.
       Para além dos grandes e mais ricos Estados europeus, que têm uma projecção própria que deriva de uma massa crítica, de múltipla projecção, que lhes dá esporas de poder, é hoje claro que um país de pequena ou média dimensão só pode afirmar-se, aos olhos de terceiros, se mostrar capacidade de gerar, sem grandes desigualdades e em total liberdade, um crescimento sustentado, com constante modernização e actualização do seu tecido produtivo, com pleno respeito pelos padrões de desenvolvimento humano. A prosperidade, em especial se for apoiada numa cultura empresarial sólida, gera auto-confiança nacional, cria uma imagem de independência e de capacidade de livre escolha do destino. E aí, sejamos claros, Portugal ainda está onde está.

No mundo multilateral

       Passo agora ao segundo dos três módulos desta minha abordagem, a uma análise do modo como Portugal é percebido, através da sua presença, espaço e actuação, nas organizações multilaterais de carácter intergovernamental – e já não nas dimensões comunitárias europeias. Faço-o, essencialmente, à luz da minha experiência como representante português na ONU, em Nova Iorque, do modo como dirigimos uma organização regional como a OSCE – a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa –, bem como das responsabilidades que tive, durante alguns anos, na chefia de delegações portuguesas junto da OCDE, do Conselho da Europa ou da Organização Mundial de Comércio, entre outras.
       Começo por notar que a diplomacia portuguesa, antes de 1974, tinha uma escassa apetência pelo mundo multilateral e a sua cultura era dominada pelo bilateralismo. Portugal converteu-se muito mais tardiamente ao multilateralismo que outros Estados. Adoptou-o em contextos políticos de oportunidade, como foi o caso da NATO durante a Guerra Fria, ou sem uma pressão excessivamente constrangente, como foi o caso da EFTA ou da OCDE. A ONU, para a qual Portugal entrou em 1955, representou, em especial a partir dos anos 60, um inevitável terreno de “massacre” diplomático para o nosso país, que acabaria por se repercutir, paralelamente, nas diversas agências, como a OIT, a OMS e outras. Valha a verdade que se diga: nada que a diplomacia portuguesa de então não tivesse tratado com grande profissionalismo, competência e sentido de Estado, não obstante a causa perdida que titulava.
       A partir de 1974, Portugal passou, quase de um dia para o outro, de mal-amado a benquisto membro do mundo multilateral, com a boa vontade e as portas abertas, quer como reconhecimento pela democracia conquistada no plano interno, quer, principalmente, como saudação à vontade descolonizadora afirmada pelo novo regime. Infelizmente, e contrariamente ao que seria desejável, Portugal não conseguiu aproveitar em pleno essa oportunidade e construir, a partir daí, uma sólida presença nas instâncias multilaterais. Em grande parte, isso ter-se-á ficado a dever a razões orçamentais, que se reflectiam negativamente nas contribuições financeiras e humanas disponibilizadas para essas instituições. Olhando para trás, verificamos que essa foi uma fantástica oportunidade perdida, em muitos casos por uma incompreensão estratégica de que uma rede de pessoal colocada nesses contextos, para além do prestígio automático que acarreta para o país, se bem coordenada, funciona como uma porta para nichos de oportunidade, em matéria de projectos e novos recrutamentos. Uma visão limitada e curta dos nossos interesses conduziu a uma política muito selectiva de apoio à colocação de pessoal, às vezes à luz de critérios exclusivamente políticos, outras vezes por meras teimosias de personalidades, que hoje pagamos fortemente. E essas organizações, e os outros Estados dentro delas, não deixaram de tirar as devidas conclusões dessas nossas fraquezas.
       Mas como é que Portugal se comportou nessas instâncias? Não queria aparecer como negativista, mas, conhecendo bem algum desse tecido de representação, não me parece que, em geral, o olhar dos outros nos fosse muito favorável. Embora não possamos fazer generalizações, o nosso país, por falta de reflexão e de ideias novas, aparecia muitas vezes como mero defensor do statu quo, ou envolvido na defesa de pontos muito específicos, de interesses próprios frequentemente magnificados e mitificados, que se erigiam como vitais, por mero receio de nos envolvermos num percurso de mudança cuja orientação temíamos não poder influenciar. A exigente tecnicidade de algumas questões, bem como a debilidade das estruturas de coordenação e decisão em Portugal, acabou frequentemente por deixar nas mãos de certos delegados, idos de Lisboa, a responsabilidade última das apções a tomar. Em algumas instâncias multilaterais, alguns funcionários tinham completa luz verde para definir a posição nacional – e, vale a pena dizê-lo, isso também passou a ser válido, a partir da adesão, para o tratamento de questões no âmbito comunitário, como eu próprio tive ocasião de verificar.
       Porque quem nos via actuar não era ingénuo, a imagem que projectávamos era muitas vezes de descoordenação, de casuísmo, de irresponsabilidade, da falta de uma linha de orientação central que articulasse os diversos actores negociais, que, algumas vezes, davam nota de fortes incoerências nos vários palcos de actuação. Em algumas organizações internacionais, a coordenação comunitária – ou a própria representação assumida pela presidência de turno ou pela Comissão Europeia, no âmbito das competências próprias – acabou por disfarçar a debilidade técnica das posições nacionais. E acabou por ser a Europa, a participação contínua dos nossos especialistas em contextos técnicos no âmbito europeu, que ajudou a criar a massa crítica necessária, nos diversos ministérios, para uma participação mais capaz nas instâncias multilaterais.
       De sublinhar que tudo o que acabei de descrever, talvez com alguma excessiva crueldade para gente muito competente e profissional que conheci, se prende, essencialmente, com áreas técnico-económicas, com as quais lidei de perto durante muitos anos. Com efeito, no âmbito mais político, as dimensões de política externa “pura” foram sempre bastante mais coordenadas – seguindo, aliás, o exemplo que já vinha de antes do 25 de Abril. Porque essa era já uma “escola” que, no Palácio das Necessidades, se tinha desenvolvido e, há muito, aperfeiçoado.
       Para além da interiorização e respeito pelos princípios que marcam ideologicamente a Revolução de Abril, a questão de Timor Leste acabou por ser o factor decisivo para a gestação, no âmbito da diplomacia portuguesa, de uma filosofia menos casuística e muito mais assente em valores. A mais impressiva marca da nossa política externa, a partir de certa altura, terá sido, porventura, a adesão e o empenhamento naquilo que eu costumo designar por uma diplomacia ética. Quero com este conceito referir a defesa dos Direitos Humanos, a promoção dos valores da democracia e do Estado de direito, a adesão aos projectos internacionais de solidariedade e luta contra a pobreza e exclusão, a vinculação à luta contra o racismo, xenofobia e intolerância, etc. Terá essa linha de actuação tido sequência, com efeitos na cultura diplomática ainda hoje prevalecente nas Necessidades? Tenho dúvidas – e lamento ter de tê-las. A sensação com que fico é que o template da União, essa espécie de média aritmética europeia de posições, soprada em especial pelos poderes diplomáticos mais fortes da União e pela mentalidade burocrática de Bruxelas, funciona hoje como uma cómoda escola de atitude, quase expressa numa langue de bois onde muitos diplomatas ainda se refugiam.
       No plano da segurança internacional, é importante notar que Portugal iniciou, a partir de determinado momento, a prestação de um contributo muito interessante, naturalmente à sua escala, para operações internacionais de paz. Isso permitiu-nos – embora alguns, lá fora, possam não se ter apercebido disto – criar internamente um quadro alternativo e dignificador de tarefas para umas Forças Armadas que haviam sido atravessadas, até muito recentemente, por um processo de muito elevada instabilidade e crise de objectivos. É pena que a escassez de meios não nos permita ir mais longe nesta via, onde temos dado uma imagem de grande profissionalismo, sensibilidade político-social e capacidade de organização e trabalho no terreno.
       Como antes disse, neste processo de afirmação de princípios éticos à escala externa, Portugal foi inicialmente muito estimulado pela crise de Timor, por essa espécie de remorso histórico no qual, a partir de certo momento, concentrámos muito do nosso empenhamento diplomático. Verdade seja que se torna sempre um pouco muito mais fácil aplicar alguns princípios quando não se tem, na ordem externa, grandes interesses a defender. A experiência veio a demonstrar – e não quero, por razões óbvia, ir muito longe neste assunto – que a ocorrência pontual de alguns desses interesses, ou a ânsia de mostrar algum seguidismo de oportunidade, nomeadamente no quadro transatlântico,  levou a escassos, mas muito lamentáveis, desvios desse curso de dignidade à escala internacional.
       Mas, em geral, é preciso deixar claro que Portugal tem mostrado ser um país com uma política externa muito responsável e coerente, previsível e assente em bases sólidas, cultor de uma agenda de diplomacia ética que nos garante respeito e crédito no cenário internacional. O modo como nos comportámos nas presenças nos biénios no Conselho de Segurança da ONU, o nosso trabalho na área dos Direitos Humanos, várias participações individuais em áreas delicadas de estruturas internacionais, tudo isso acabou por dignificar a imagem portuguesa.
       Mas, uma vez mais, e nesses mesmos âmbitos, o mundo também repara que, por vezes, sendo um funcionário substituído, cai, em absoluto, a presença portuguesa na área que ele tratava – precisamente porque era esse mesmo funcionário, com ou sem backing da sua missão ou da sua capital, que tinha o pleno conhecimento do dossiê e que era, ele próprio, o criador da posição portuguesa. Infelizmente, isto passa-se, ainda hoje, muitas mais vezes do que o que se julga – com efeitos negativos sensíveis na nossa imagem como país no campo multilateral.
       Uma última nota para registar que, também algumas vezes, o investimento feito por Portugal em alguns exercícios multilaterais, com esforço, dedicação e preparação de pessoal nesses domínios, acaba por ser completamente desperdiçado pela inexistência de um trabalho de follow-up. Um exemplo que me vem à memória, porque trabalhei nele com intensidade, foi a presidência portuguesa da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), em 2002, organismo em que Portugal também havia estado envolvido pela preparação da Cimeira de Lisboa, em 1996. A OSCE, em si, vale o que vale, mas o esforço de aproximação e diálogo que, no seu contexto, fizémos com países que estavam fora da órbita normal da nossa esfera de actividade, e perante os quais criámos então uma imagem dialogante e construtiva, acabou por não ter grande sequência, desbaratando-se, ingloriamente, um importante esforço, financeiro e humano, que o país realizou durante alguns anos.
       É por essa razão que volto a dizer que Portugal ainda projecta uma imagem irregular, de entusiasmo sectorial súbito, logo seguido de grandes quebras de empenhamento, voltando-se, transitória e subitamente, para outros pontos alternativos de interesse, num zig-zag sem sentido óbvio. Para além daqueles que são temas centrais da nossa diplomacia – Europa, relações transatlânticas, NATO, países de língua portuguesa –, em tudo o resto como que funcionamos um pouco à la carte, ao sabor das vontades políticas conjunturais. Ou de entusiasmos pouco respeitáveis. Como é evidente, esta é uma crítica geral, dirigida aos últimos 30 anos e, no fundo, pretende ser um alerta para o futuro, um apelo a que consensualizem rumos, se instituam mecanismos alargados de revisão periódica de políticas, deixando de vogar apenas ao sabor das conjunturas políticas.

A lusofonia

       E termino com algumas considerações sobre a questão da lusofonia e do papel de Portugal nesse contexto.
       Julgo que é óbvio para todos – e quando digo todos, refiro-me também aos países lusófonos – que Portugal tem tido uma permanente acção em favor da densificação do relacionamento, em todas as áreas, dentro do espaço de língua portuguesa. Vale a pena olhar atrás e atentar num aspecto: Portugal e a diplomacia portuguesa, com persistência e com constância, conseguiram reverter, nestas últimas décadas, uma atitude de alguma “lusofobia” que se havia criado em sectores de algumas das suas antigas colónias, no período posterior à descolonização, quase sempre como saldo dos traumas dos conflitos armados. Embora cada caso fosse um caso, tivemos que gerir, durante bastante tempo, uma diplomacia de tensão, que tinha que se confrontar com desconfianças, preconceitos e agravos fáceis, que só foi possível ultrapassar com muito e árduo trabalho político e diplomático. Esse trabalho acabou por compensar, porque alguns desses países vieram a der-se conta que, de facto, estávamos a ser sinceros quando afirmávamos querer colaborar nos seus processos internos de reconciliação, contribuir para a sua recuperação económica e social e ajudar à sua promoção, à escala das nossas possibilidades, no campo externo. Com avanços e recuos, muitas vezes ao sabor das conjunturas internas desses Estados, a diplomacia portuguesa face à África lusófona tem hoje um saldo global de êxitos, que só não é mais evidente porque factores externos de circunstância impediram, frequentemente, a maturação de muitas das soluções em nos empenhámos.
       Esse trabalho acabou por redundar, em Portugal, na criação de uma importante massa crítica de expertise africana que, por exemplo, nos colocou no centro de duas cimeiras entre a União Europeia e a África, a última das quais, em 2007 – e talvez as pessoas não se tenham dado bem conta disso –, trouxe um modelo novo de articulação (como antigamente se dizia) “Norte-Sul”, cuja conceptualização muito prestigia Portugal aos olhos da África e da própria Europa. Por essa e por outras razões, a África de lingua portuguesa olha-nos hoje de forma muito diferente: Portugal é visto genericamente como um país consistente com as suas promessas, determinado na promoção internacional dos interesses comuns e de cada um dos seus parceiros africanos.
       E que dizer de Timor-Leste? Vou ser muito parco num terreno em que a resposta é óbvia: Portugal foi e é o mais consistente parceiro internacional de Timor-Leste, em todos os momentos e por várias formas. A imagem de Portugal em Timor-Leste é, em geral, a de um país amigo e seguro, sem interesses a defender que não sejam os que derivam do nosso empenhamento em desenvolver a herança cultural de um passado comum.
       O que falta, então, para que as coisas possam dar certo na lusofonia, para que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) deixe, mais de uma década depois da sua criação, de ser apenas um embrião de uma organização com expressão à escala global? A chave dessa questão chama-se Brasil. Não posso aqui elaborar muito sobre isto, mas a realidade dos factos deixa claro que a CPLP começou mal, porque, por motivos próprios, não foi possível ao Brasil assegurar um papel central, desde o início, no seio da organização. Ora o Brasil é o maior Estado da CPLP. Nas comunidades internacionais desta natureza costuma haver uma coincidência entre o Estado descolonizador e o maior país da organização: não é esse o caso da CPLP, bem pelo contrário. E talvez não seja por acaso que um país como os Estados Unidos não faz parte da Comunidade Britânica, embora fosse uma antiga colónia britânica...
       Depois de viver há alguns anos no Brasil, tenho a sensação – mas concedo que posso estar enganado – que o Brasil só agora começa a interessar-se verdadeiramente pela CPLP e a testar em pleno as suas possibilidades. Porque só agora, envolvido que está numa batalha positiva para consagrar, à escala global, a sua força regional e o seu poderio económico e demográfico, o Brasil começa a perceber a vantagem de utilizar a sua posição na CPLP como um instrumento mais da sua própria política externa. Este aparente avanço político  – mais do que bem-vindo – parece somar-se à consciência crescente no Brasil de que a língua portuguesa pode e deve converter-se num importante utensílio de poder para quantos a falam e escrevem.  A criação, há dois anos, do Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, a negociação de acordos com países vizinhos com vista a colocar o Português como segunda língua na América do Sul, tudo isso são sinais claros de que uma política da língua já começa a ser percebida como uma política de Estado no Brasil.
       Ora a promoção da Língua Portuguesa à escala internacional foi, é e será sempre um dos objectivos centrais da nossa própria acção externa. Por isso, estamos abertamente com o Brasil nesse objectivo e estaremos também com o Brasil, de forma muito óbvia, em tudo quanto possa afirmar esse país no quadro global. O Brasil sabe isso. Sabe que nenhuma dimensão da sua afirmação externa é contraditória com os nossos interesses estratégicos nacionais e, bem pelo contrário, se trata de um jogo de sinergias. Por isso, o Brasil entende que Portugal é um parceiro certo e quase automático, quando interesses seus podem cruzar-se no nosso horizonte de acção diplomática. O Brasil vê isso, com regularidade, nas eleições nas estruturas multilaterais, como viu no esforço que fizemos, contra ventos e algumas marés passageiras, ao conseguir conferir-lhe o estatuto de Parceiro Estratégico da União Europeia, durante a nossa recente Presidência.
      Como prometido, abordei três dimensões da nossa acção externa: a Europa, a acção multilateral e o espaço da lusofonia.
       Alguns estarão, com certeza, a perguntar-se por que razão, a parte relativa ao Brasil foi a única em que não referi nem comentei, em detalhe, o modo como o outro lado nos olha. A explicação é muito simples: eu sou actualmente embaixador de Portugal no Brasil e todos sabem que não se podem tirar retratos de muito perto, porque as imagens saem quase sempre desfocadas...

( Texto baseado na intervenção proferida no ciclo de Conferências “Pensar Portugal no Mundo”, organizado pela Comissão de Negócios Estrangeiros e Assuntos Europeus da Assembleia da República, Lisboa, em 9 de Abril de 2008.)