30 de novembro de 2011

25 anos na União Europeia

Que modelo de integração económica e política consideraria adequado à União Europeia?

A resposta que hoje dou esta pergunta é, com toda a certeza, muito diferente da que teria dado há uns anos atrás. A aceleração das questões em torno do projeto europeu, em especial depois dos últimos alargamentos, da falência objetiva do tratado de Lisboa e da crise do euro obrigam a que qualquer observador sensato pare um pouco para pensar e, muito em particular, deva ser tentado, por um proverbial bom-senso, a assumir uma atitude “possibilista”, para utilizar um termo da história politica que já poucos lembram mais muitos, mesmo sem o saberem, praticam.

Faço parte de uma geração que começou por usar a ideia da integração europeia como um desafio provocatório à nossa ditadura, que depois a olhou como um projeto ideológico de contornos algo duvidosos e que, posteriormente, a acabou por aceitar como o modelo mais óbvio para assentar o desenvolvimento e a estabilidade democrática do país. Mas, como muitos da minha geração, não cheguei à Europa por um sentimento europeísta. Aderi ao projeto por uma opção utilitária, com muito egoísmo soberanista à mistura, porque então me parecia o mais adequado formato, no mercado possível das opções estratégicas, para assegurar o que entendia ser o interesse português. Só depois de ter vivido por dentro o processo integrador, apenas após o ter interiorizado como parte do meu próprio destino, é que comecei a pensar a Europa a partir dela e das suas finalidades próprias. E, desde essa altura, passei a entender que na sua construção reside também aquilo que se pode definir como a essência do nosso interesse nacional.

Hoje, perante a realidade que vivemos, e na impossibilidade de se conseguir, em tempo útil e de forma adequada, uma consensualização “a 27” para uma alternativa ao Tratado de Lisboa, considero que deve caminhar-se, tão rapidamente quanto possível, para um modelo de “cooperação reforçada”. Esse modelo deveria ser construído em torno da “eurozona”, com a fixação de critérios fortes de monitorização das “performances” macro-económicas e de aproximação das políticas económicas, fiscais e sociais, em tudo isso assegurando sempre um papel central à Comissão Europeia. Essa “cooperação reforçada”, que está prevista como possível nos tratados, conviveria com o aparelho tradicional da União e, em caso de um eventual sucesso na aplicação do seu modelo específico, poderia vir a ser o fermento político inspirados para uma futura reforma dos tratados. Esta dualidade permitiria estabilizar o modelo da União previsto nos tratados, sem os sujeitar às tensões induzidas pelos problemas específicos da zona euro. A presença da Comissão Europeia no seio da “cooperação reforçada” garantiria a coerência necessária entre os dois modelos. Atentas as questões especiais de cedência de soberania – em termos orçamentais e de políticas económica e fiscal – que a zona euro suscita, nada impediria que os respetivos países estudassem a criação de uma fórmula específica de associação dos respetivos parlamentos nacionais ao processo decisório (ou de consensualização de medidas) da “cooperação reforçada”, sem prejuízo do pleno exercício das competências que, para toda a União, competem ao Parlamento Europeu. Essa associação dos parlamentos nacionais permitiria colmatar o “défice democrático” que a especificidade dos processos decisórios no seio da “cooperação reforçada” viesse a suscitar.


Existirá uma identidade europeia e em que se traduz?

Confesso que, depois do último alargamento – que continuo a pensar ter sido um passo indispensável para o equilíbrio estratégico do continente depois do fim da URSS –, passei a alimentar sérias dúvidas sobre a existência de um laço identitário, para além de algumas dimensões de cariz geopolítico, que ligue os cidadãos de todos os países do continente europeu. A “familiaridade” que parecia existir na Europa “a 15”, que já tinha sido abalada pela crise com a Áustria em 2000, está hoje seriamente comprometida com práticas políticas de natureza autoritária e discriminatória que se espalham, perante uma complacência pública evidente, por muitos países da atual União Europeia. Aquilo que parecia ser uma espécie de “jurisprudência” em matéria de princípios, que dava à Europa uma autoridade para poder ser um “benchmark” perante países terceiros, com reflexos na credibilidade da sua política externa, tem-se vindo a diluir perante o escandaloso quase silêncio das instituições europeias, devendo à Comissão, neste domínio, serem assacadas as principais responsabilidades. Exclusões linguísticas, pressões sobre os media, discriminações sobre estrangeiros e cidadãos de diferentes etnias, ascensão ao poder nacional ou local de partidos xenófobos e racistas fazem parte de um dia-a-dia europeu que parece já não escandalizar ninguém.

Será que, afinal, uma identidade europeia tem necessariamente de conviver com a “federalização”, pelo silêncio, daquele tipo de práticas? Ou será que o modelo induzido socialmente pela ominpresença da economia de mercado basta como “template” para nos identificar como europeus? Já soube a resposta, agora tenho muitas dúvidas.

Como avalia os efeitos da adesão às Comunidades sobre a economia portuguesa?

Constituiu sempre para mim um mistério a falta de uma avaliação concreta e rigorosa das opções feitas aquando da nossa adesão, no tocante aos respetivos efeitos sobre o tecido económico português. Enquanto, no plano industrial, as coisas me pareceram sempre mais ou menos transparentes, fico com a sensação de que algumas das decisões tomadas em matéria agrícola derivaram de um voluntarismo político que pôs de lado certas precauções para acelerar o final da negociação. Sempre me perguntei sobre se, nessa postura, não estava também uma leitura determinista de que não valeria a pena estar a lutar excessivamente por determinadas produções, porque elas estariam sempre condenadas perante o padrão predominante na política agrícola comunitária. Se olharmos para a deliberada aceleração do desmantelamento pautal que, a certa altura da nossa presença na então CEE, foi autonomamente determinada pelas autoridades portuguesas na área agrícola, com vista a baixar artificialmente baixar a inflação, encontro boas razões para acreditar que então se atuou pela mesma lógica.

Dito isto, e em termos globais, creio que é inegável que o impacto global da nossa integração no tecido comunitário acabou por ser muito positivo. Não que a cultura empresarial portuguesa tivesse mudado automaticamente por esse facto, no que toca à sua tibieza e até ao modo como se “refugiou” no mercado europeu, confortada por uma malha legislativa e por um ambiente de negócios que não exigiam muita imaginação e audácia. Com os anos, porém, a formação dos nossos empresários, e o seu assessoramento técnico, evoluiu bastante, como hoje se torna evidente em muitas áreas, da indústria aos serviços e em setores agrícolas de ponta.

Porém, e por décadas, é importante que se diga que, em importantes faixas do tecido industrial português, em especial na área têxtil, uma política de complacência, socialmente motivada, permitiu a sobrevivência no tempo de empresas condenadas tecnologicamente, não tendo havido coragem política, como aconteceu noutros países, para promover uma reconversão industrial que triasse com rigor as unidades produtivas a salvar, reforçando e capacitando as mais viáveis para arrostar com um mundo competitivo. A prova provada desse erro político surgiu quando, na abertura da Europa à globalização, muitas empresas nacionais foram apanhadas no início ou apenas a meio de um processo de reconversão e modernização tecnológica, não tendo conseguido resistir ao impacto da chegada de produtos de terceiros e mais competitivos fornecedores do mercado europeu. 

Felizmente, algumas unidades ainda oriundas desse tecido tecnológico mais antigo conseguiram, entretanto, recuperar e colocar-se de forma competitiva no mercado internacional. Outras desapareceram, como alguns cemitérios industriais por aí nos testemunham. E, vale a pena dizer, foi em grande parte o investimento direto estrangeiro e, mais recentemente, um novo tecido de PME dirigido por outra cultura empresarial que conseguiram garantir aquilo que é hoje o essencial da nossa capacidade exportadora.

Que efeitos teve a adesão sobre a sociedade portuguesa, no seu conjunto?

É difícil sintetizar os efeitos, em termos de choque de modernidade, que a integração europeia teve para o nosso país. À vista dos portugueses, na paisagem e nos bolsos, quiçá de uma forma algo ilusória face à realidade profunda da nossa capacidade de produção de riqueza, embora com desequilíbrios e agravamento de algumas injustiças sociais, o país mudou e, por algumas décadas, hipotecou, de forma confiante, o seu futuro ao projeto europeu. Setores de uma classe média, que se tornou dominante no plano político e social, tiveram um banho de cosmopolitismo ou, pelo menos, daquilo que identificaram como tal. As “idas à Europa”, os contactos técnicos e culturais com o estrangeiro, a participação da juventude num mundo sem fronteiras, tudo isso deu a Portugal uma animação que alterou o modo do país se olhar a si próprio, com a geração de confiança e a criação de uma mentalidade mais competitiva, embora fazendo desaparecer progressivamente o país mais solidário, no sentido paroquial, que era a nossa imagem de marca tradicional.

Numa avaliação mais fria, Portugal terá desperdiçado muitas das oportunidades que os seus primeiros tempos nas instituições comunitárias deram ao país. Mas, independentemente desses eventuais erros, o que o país ganhou neste seu novo processo europeu, mesmo num contexto de aproveitamento deficitário, foi suficientemente importante para justificar que possamos considerar a nossa adesão às instituições comunitárias como a mais relevante decisão política tomada por Portugal em todo o século passado.

A União Económica e Monetária foi um passo lógico ou necessário na integração europeia?

A UEM foi o corolário lógico do processo que levou à criação do “mercado único” e à evolução de todo o conjunto de políticas que lhe estão associadas. Não diria que, em si, a UEM fosse um passo indispensável, mas era, com toda a certeza a decorrência evolutiva natural de um processo de aprofundamento de uma “ever closer union”, que alguns entendiam como devendo fixar um quadro irreversível que atenuasse as tensões historicamente endémicas da Europa e, simultaneamente, abrisse um futuro de progresso e desenvolvimento para todo o continente. Correndo o risco de chocar alguns, arriscaria dizer que a UEM era tão indispensável para o aprofundamento da dimensão económica da União como o alargamento o era para a sua dimensão política. Em ambos os casos, estava-se perante passos estratégicos de elevado risco, mas, igualmente, de medidas que a ambição então prevalecente recomendava que se tomassem, sob pena do projeto correr o risco de estiolar.

A forma como a UEM foi concebida era adequada aos objectivos pretendidos?

A UEM é um excelente projeto e, na sua essência, está tudo quanto a Europa comunitária parecia necessitar para progredir. A alguns, contudo, a simplicidade aparente do modelo suscitava algumas dúvidas, precisamente pela diversidade de situações, em especial em termos de competitividade das economias, de culturas fiscais e de gestão monetária, que a UEM parecia querer combinar, num ambicioso salto de cariz quase federalizante. Poucos falam, nos dias de hoje, numa expressão, à época muito referida, que sempre me pareceu muito importante mas muito pouco levada em conta: os efeitos assimétricos da introdução da moeda única. Confesso que sempre me surpreendeu o simplismo com que os economistas olhavam para a aplicação dos critérios da UEM. Mais tarde, também me espantou ver o modo linear como foi lido o “pacto de estabilidade e crescimento”, com que os alemães nos deixaram “aderir ao marco”, travestido sob o nome de euro. Hoje, a evolução das coisas parece provar que a “blindagem”, quer do acesso à moeda única, quer do seu funcionamento, deveria ter sido muito mais rigorosa. Mas também revela que, pelo menos no primeiro caso, se assim tivesse acontecido talvez Portugal não fosse hoje membro do euro.

O euro irá sobreviver à crise actual?

Julgo que sim, porque se tornou tão central no processo de imbricação das economias europeias que a sua falência teria um efeito de recuo que dificilmente pouparia as próprias bases do “mercado interno”. E essa seria uma tragédia para todos, em especial para as grandes economias europeias. Aliás, em termos financeiros, já se percebeu que a “salvação” do euro não é necessariamente uma medida cara, desde que os países que o adotaram consigam reunir as condições políticas nacionais necessárias à consensualização das reformas internas que – finalmente agora! – se consideram essenciais para a sua permanência no sistema. A grande questão está em saber se o calendário apertado em que se pretende conseguir corrigir os desequilíbrios macroeconómicos é compatível com a introdução temporalmente eficaz de medidas indutoras de crescimento, que permitam sustentar, precisamente, esse mesmo processo de redução da dívida.

Portugal deve permanecer na zona euro?

Claro que sim, por todas as razões – político-estratégicas e económicas. Todo o esforço que Portugal tiver de fazer para conseguir manter-se no euro será sempre inferior ao preço que teria de pagar pelo facto dele ser excluído ou decidir dele sair.

(Contribuição para o livro “25 anos na União Europeia: 125 reflexões”, Instituto Europeu da Faculdade de Direito de Lisboa, Almedina, 2011)