12 de março de 2009

A OTAN, a França e Portugal

Posso imaginar que o debate em curso na França, sobre o regresso do país à estrutura militar da OTAN (Organização do Tratado Atlântico Norte), possa não suscitar muita curiosidade em sectores portugueses. Mas a questão é mais importante do que vulgarmente se supõe.


A OTAN é uma organização de defesa colectiva criada há 50 anos, entre 12 países europeus e americanos, num momento de elevada tensão política com o bloco liderado pela União Soviética. Portugal e França estiveram entre os primeiros países subscritores dessa Aliança Atlântica, que hoje envolve já muitos mais Estados.


Em 1966, interessado em marcar a sua autonomia perante o confronto político que se travava entre os Estados Unidos e a União Soviética, o General De Gaulle decidiu retirar a França da estrutura militar da OTAN, embora mantendo-se em pleno nos seus órgãos políticos. Além disso, a França afirmou expressamente a autonomia da potencial utilização do seu novo poder nuclear. Embora sem nunca se assumir como uma espécie de “terceira força” no debate Leste-Oeste, que caracterizou a chamada Guerra Fria entre os dois blocos, a França passou a ser vista como uma voz independente, o que a não impediu de alinhar, ao lado dos seus aliados do mundo ocidental, em todos os momentos de grande tensão em que estes agiram colectivamente.


Há 20 anos, porém, o mundo mudou. A União Soviética dividiu-se em 12 países, o muro de Berlim desapareceu, as chamadas “democracias populares” do Centro e Leste europeu passaram a adoptar o modelo democrático tradicional, entrando mesmo para a própria OTAN e para a União Europeia. Dentro desta, renasceu com força crescente a ideia de criar uma entidade militar própria, que pudesse ser o “braço armado” da União, sem que, por essa razão, se tivesse de criar necessariamente uma espécie de estrutura paralela à OTAN.


Por outro lado, com o abalo provocado pelos acontecimentos do 11 de Setembro de 2001, em Nova Iorque, com a emergência em força, por todo o mundo, da onda terrorista e de alguns novos ou renovados desafios à segurança colectiva, que provaram a necessitade de descobrir respostas muito diferentes das que eram requeridas ao tempo da Guerra Fria, a OTAN adaptou-se, deixou de ter como objectivo actuar apenas na área euro-americana, passando a estar presente em operações militares, sempre determinadas pelas Nações Unidas, em outras zonas do cenário estratégico mundial onde os seus interesses estivessem em causa.


Em todo esse novo tempo da segurança global, a França esteve sempre presente, solidária com os seus aliados, comprometendo as suas tropas e partilhando os mesmos objectivos.


Ao decidir fazer regressar a França à estrutura militar da OTAN, o Presidente Sarkozy como que deu o último passo de uma integração que, na prática, vinha já a fazer-se há vários anos. Agora com uma vantagem acrescida para a França: passa a chefiar algumas áreas da organização e a colaborar activamente no seu planeamento estratégico, mantendo autónoma, contudo, a potencial utilização do seu arsenal nuclear.


Portugal vê este regresso pleno da França à OTAN com grande simpatia. A França e a voz da França fazem muita falta à OTAN, porque Paris partilha connosco princípios e sensibilidades, nomeadamente em relação a áreas geográficas (Mediterrâneo e África) que são próximas dos nossos interesses comuns. Alguns sectores franceses podem sentir que, ao reverter formalmente a “excepcionalidade” criada pelo Presidente De Gaule, em 1966, a França mudou de rumo. Para os seus amigos e aliados, a França está onde sempre esteve, só que, desta vez, com uma presença política mais forte e mais visível. E isso é uma boa notícia para nós.


Texto publicado no LusoJornal em Março de 2009

8 de março de 2009

Diplomacia e Ética Pública

A diplomacia é uma técnica cujas regras básicas constam dos manuais. Com o tempo, ganha-se acesso a exemplos que nos permitem assentar, na prática, muito de quanto se aprendeu na teoria. Com a experiência, vamos decantando uma dimensão mais pessoal, avaliando a nossa própria capacidade de reacção perante os acontecimentos, o nosso comportamento em situações de tensão, o modo como interagimos com os outros, quer com os que connosco colaboram, quer com aqueles com quem temos de regular interesses que nos compete defender. Dir-se-ia que, cumpridos todos esses passos e maturada essa linha de experiência, um diplomata está formado, preparado para reagir no quadro de dificuldades expectáveis ao longo da sua carreira. A vida prova-nos, porém, que os factos são sempre muito mais imaginativos do que os homens.


Os factos que envolveram a vida de Aristides Sousa Mendes são, em si mesmos, a prova provada de que a vida diplomática (de que a dimensão consular era, ao tempo, um capítulo muito importante) acarreta consigo um conjunto de exigências que vão muito para além das possíveis lições académicas, das regras da rotina administrativa e mesmo de alguns possíveis exemplos de similitude histórica.
E esses factos também nos mostram como é fácil virem a ocorrer, sem uma automática solução bebida nos manuais, graves contradições que se revelam insanáveis entre algumas dessas mesmas dimensões. E ensinam-nos que a superação de tais contradições é feita, quase sempre, através de rupturas e de choques, de que algo ou alguém sairá forçosamente ferido.


O livro que Paulo Martins agora nos apresenta é um fresco sobre um tempo muito particular no Portugal de meados do século XX e do papel trágico, nesse período complexo, de um homem só, agindo sob a pressão da História e dos apelos da sua consciência, que teve a coragem de escapar ao álibi da disciplina burocrática para colocar a sua vida ao serviço de uma opção ética.


Mas este livro, naquilo que nos mostra e naquilo que nos induz a entender, é também, em si mesmo, um retrato escrito e julgador do próprio Portugal desse tempo, que ficou marcado por uma matriz autoritária e que jogou diplomaticamente nos interstícios dos grandes conflitos, tentando passar despercebido no tabuleiro do “great game” europeu, adoptando uma espécie de estratégia de equívocos que disfarçava a sua fragilidade.


Porque o destino do país passou a identificar-se com um mundo que se assemelhava a um teatro de sombras, encenado pela habilidade manhosa de Oliveira Salazar, que lhe tentava dar o ar dignificado de uma opção política, a lógica dos princípios rapidamente cedeu lugar à cínica lógica de fins. A decisão por essa opção é, porventura, o retrato mais cruel, mas também mais verdadeiro, de um regime cuja ortodoxia assentava mais na desesperada procura da sua sobrevivência do que no sério cultivo de valores que só cinicamente dizia espelhar. Nada, aliás, que não viesse na decorrência de um certo declínio político e moral do Portugal de então.


Portugal viveu o século XX como uma espécie de espelho turvo de muito daquilo que foram as grandes tragédias europeias, o resultado das contradições entre os nacionalismos e a feroz luta em torno das heranças coloniais.
Sem uma verdadeira revolução burguesa que lhe criasse uma solução regeneradora, face ao sentimento de finis patriae que marcou todo o seu século XIX, com a pressentida decadência económica que o fim da presença no Brasil prenunciou, o país deixou o seu destino internacional depender muito da tutela estrangeira, neste caso britânica. Esse seu tropismo estratégico nem sequer aprendeu então as frias lições do episódio do “mapa cor-de-rosa”, persistindo na ilusão de que essa era uma linha eficaz de defesa contra as ambições que sobre si se projectavam – tanto na Europa como nas colónias.


Com a doentia emergência dos autoritarismos por toda o continente europeu, com uma República parlamentar que vivia com uma identidade ainda em gestação, e que era uma espécie de regime vanguardista de extracção e ambição urbanas a tentar firmar-se num país rural e retrógrado, o velho Portugal do “antigo regime” divisou, então, a sua derradeira oportunidade de retorno à cena da História.


O golpe militar de 28 de Maio de 1926 foi esse momento.
A face civil dessa ditadura musculada, Oliveira Salazar, construiu então uma máquina política que arrastou consigo, num mundo de equívocos bem geridos, republicanos descontentes e monárquicos iludidos, nostálgicos do império em crise aliados a algumas figuras seduzidas pelas ideologias assentes no culto radical da tradição. Era uma aliança complexa, que o carácter do líder soube conservar, através de algumas ilusões bem desenhadas e do sublinhar de certas bases programáticas que eram afirmadas como comuns, numa linha doutrinária a que alguns, ainda hoje e surpreendentemente, procuram conferir a dignidade de uma matriz ideológica nacional. Outros, nunca viram essa resultante teórica como sendo mais do que uma adaptação simplista do reaccionarismo europeu reinante a um modelo caseiro, retrógrado e historicamente auto-contemplativo.


Mas não há como negar que muitos, no Portugal de então, se reviram inicialmente naquilo que viria a ser o “Estado Novo”, que foi tido como um movimento de recuperação essencial num país em crise, uma espécie de regeneração por um choque de autoridade, uma etapa, que para alguns deveria ser apenas episódica, mas vista como indispensável para a salvação da pátria em risco.
Como quase sempre acontece nos modelos sem controlo democrático, quem entendeu correr o risco da experiência autoritária pagou com a sua continuidade no tempo. Que foram 40 anos.


Aristides Sousa Mendes estava longe de ser um opositor ao salazarismo, a sua família tinha dado mesmo um chefe da diplomacia, se bem que por um curto período, ao regime vigente.
O diplomata que o destino vai colocar na História como Cônsul em Bordéus era um conservador, um homem de família e de princípios cristãos tradicionais – talvez o paradigma daquilo que o regime tinha por seus apoiantes mais óbvios.


Podemos mesmo imaginar hoje que Sousa Mendes terá aprovado o método drástrico do saneamento das contas públicas que o “lente” de Coimbra levou a cabo, apoiado nas armas dos tenentes do 28 de Maio, bem como a implantação da Constituição corporativa de 1933, que destilava formalmente os valores morais onde se revia um certo Portugal, como ele tradicionalista e católico.


Podemos também presumir, sem esforço, porque se tratava de um patriota com sentido da História, que Aristides Sousa Mendes tinha igualmente um carinho pela gesta ultramarina e que entendia, e apoiava, uma acção diplomática que era apresentada como destinada a preservar o Portugal pluri-continental, então geralmente considerado como uma vocação inalienável do próprio destino do país, enquanto entidade internacional independente.


Tudo isto, todo este perfil conservador de Aristides Sousa Mendes, só torna mais heróica a sua posterior opção de ruptura, não com um regime que ele nunca terá contestado, mas com uma filosofia comportamental que esse mesmo regime destilou como doutrina estratégica de oportunidade.


O fabrico da acção diplomática portuguesa, destinado a sustentar uma ambiguidade posicional no quadro europeu, que Salazar levou a cabo com fria maestria, passou a acarretar consigo a necessidade da adopção de algumas opções que vieram a colidir com princípios que pessoas como Aristides Sousa Mendes não estavam dispostas a sacrificar no altar do pragmatismo.


E é aqui que regressamos ao início deste texto, à acção diplomática individual e às suas referências. Sousa Mendes tinha, no seu quadro de conhecimentos e instruções, as regras certas para poder reagir, de acordo com os “livros”, perante a complexa situação com que se confrontava, com a imensidão de pedidos de vistos que lhe era feita. Esse receituário burocrático não deixava dúvidas sobre o que lhe era solicitado pelas suas autoridades que fizesse. E, mais ainda, o carácter imperativo das instruções específicas entretanto chegadas não dava margens para interpretações equívocas ou subjectivas.


O Portugal de Salazar havia optado, perante os medos que o atravessavam, por um comportamento em que a secundarização dos interesses vitais de algumas dezenas ou centenas de milhar de estrangeiros, em fuga e vítimas de perseguição, passou a ser a regra.


E foi aí que as águas se dividiram para Sousa Mendes.


Esse é, aliás, um tempo em que a diplomacia pode, ou não, optar por se deixar subordinar por um quadro de princípios, que vai muito para além da transitoriedade das leis e, ainda mais, da sua regulamentação e aplicação seca e desapiedada.


Aristides Sousa Mendes sofreu o choque emocional de uma situação de tragédia e, num instante que imaginamos deva ter sido de grande angústia, decidiu colocar-se do lado do que entendeu ser uma leitura ética, a qual, em face da sua formação humanista, assumia uma preeminência perante a fria lógica subjacente às ordens que recebia.


Para um diplomata, como para um qualquer outro profissional cuja acção se cruze com dimensões humanas e morais de grande importância, este tempo de tensão e de risco é, do mesmo modo, o momento da verdade.
A verdade perante si próprio, perante aquilo em que se acredita, na luta interior resultante do conflito entre a ordem e a ética.


O caso de Aristides Sousa Mendes é uma história notável que acarreta importantes lições de ética deontógica, a qual nos coloca perante a necessidade de ver o mundo através do prisma dos princípios, subalternizando pontualmente a mera obediência burocrática, que é o refúgio triste onde muitos atenuam a cobardia de uma decisão que pressentem errada.


O verdadeiro serviço público, de que Sousa Mendes era uma simples peça, deve ser, em si mesmo, portador de uma ética de comportamento que tem de estar acima da sua utilização oportunista pelos titulares episódicos do aparelho político. As ordens ilegítimas não merecem obediência, devem merecer resistência e oposição. Os grandes servidores públicos medem-se pelo modo como sabem interpretar o sentido do dever e do interesse colectivo, não devendo ser premiados pela acéfala aceitação de toda e qualquer instrução que recebem, por mais elaborada ou elevada que ela surja.


Na história da diplomacia portuguesa, Aristides Sousa Mendes é um caso ímpar. Porém, tenho a sensação de que o Ministério dos Negócios Estrangeiros português poderá não ter ainda interiorizado o quanto o seu exemplo lhe pode vir a servir como valor referencial, como atitude a ponderar e a estudar, ao serviço de uma diplomacia de princípios que, de acordo com os grandes momento da nossa História, sempre deve orientar a acção externa de um país como Portugal.


Paulo Martins, ao ligar neste livro a figura de Sousa Mendes a outros vultos do humanismo, os quais, cada um a seu modo, se destacaram ao serviço dos povos e das instituições que representaram, em momentos complexos mas fundamentais da vida contemporânea, suscita-nos um debate muito interessante sobre a dimensão histórica do próprio serviço público.


O conhecimento que Paulo Martins tem do caso de Aristides de Sousa Mendes, bem como o retrato sócio-histórico que, a seu propósito, faz do Portugal de então, representa uma muito louvável contribuição para uma reflexão necessária sobre a nossa própria contemporaneidade. Sobre o que somos como povo e o que queremos ser como destino.


Prefácio a um livro de Paulo Martins sobre Aristides Sousa Mendes


1 de março de 2009

Entrevista à ASDP

1. São conhecidos o seu gosto pela escrita e a sua capacidade de reflexão sobre os grandes temas de política externa nos quais trabalhou - nomeadamente as questões europeias e agora, mais recentemente, as relações entre Portugal e o Brasil. Como vê o estado actual da capacidade de reflexão escrita dos diplomatas portugueses? 

 

Continuo a pensar o que já tenho dito noutras ocasiões: os diplomatas portugueses escrevem pouco sobre as opções possíveis em matéria de política externa para Portugal e, as mais das vezes, quando o fazem, têm um tropismo excessivo para "estarem com o vento", para dizerem aquilo que acham que o poder político gosta de ler.

Não sou ingénuo: há promoções, há colocações, há boas e más vontades que é preciso mobilizar ou evitar, há nas Necessidades "capelinhas" de grupo, com chefes que não gostam da saliência dos subordinados. Sempre foi assim... 

Mas a minha própria experiência - e já publiquei três livros e outro está a caminho - mostrou-me que pode ser-se, simultaneamente, disciplinado e criativo. Disciplinado, para trabalhar dentro daquilo que são as grandes opções definidas por quem tem a legitimidade de marcar as orientações do país em matéria externa. Criativo, através da apresentação de propostas e caminhos para dar substância a essas mesmas orientações e, nas áreas em que elas não existam, promover sugestões, sem com isso procurar condicionar as opções que venham a ser tomadas. E - ponto importante - respeitar e passar a defender abertamente estas em público, em absoluto, logo que definidas, sem prejuízo de, interna e discretamente, se poder fazer "subir" sugestões de correcção de percurso.

Contrariamente ao que se possa pensar, não acho que a nossa revista "Negócios Estrangeiros" seja o veículo ideal para esses exercícios mais criativos. Nessa publicação, de natureza oficiosa, entendo que haveria toda a vantagem, até para "memória futura", que os intervenientes diplomáticos, presentes e actuantes em certos exercícios práticos, viessem a dar regular conta, mais ou menos detalhada, das acções ou negociações importante em que estiveram envolvidos. Embora, neste caso, sem, necessariamente, terem obrigatoriamente de chegar sempre à conclusão de que Portugal acabou por sair pela porta grande, no saldo dessas aventuras diplomáticas. Mais do que elegias à glória passada, textos em que às vezes alguns parecem sair apenas aos ombros de si próprios, torna-se importante fazer o inventário dos erros, do que foi mal feito e poderia ter sido melhor executado, das opções alternativas que não se seguiram e que a experiência posterior mostrou que teriam sido melhores. Tudo isso com um bisturi crítico, profissional, informado, documentado, isento de tentações de fazer a hagiografia dos actores políticos.
Os textos mais criativos escritos por funcionários diplomáticos - e por alguns excelentes técnicos que existem no MNE - deveriam, a meu ver, ser reservados para as publicações de "think tanks", como a "Política Internacional", as "Relações Internacionais" ou outras, portuguesas ou estrangeiras. É importante ver esses órgão de reflexão frequentados pelos nossos colegas, porque isso também faz transparecer que os seus trabalhos têm uma qualidade que é aceite num horizonte que vai para além das publicações caseiras, onde o crivo é, por óbvias razões, menor.

2. Foi embaixador na capital de uma potência emergente que fala português e agora regressa à Europa, para uma França que não desiste de preservar a sua influência e estatuto. Conte-nos um pouco da sua experiência no Brasil de Lula - designadamente quanto às perspectivas para o relacionamento entre Portugal e o Brasil - e partilhe as suas primeiras impressões sobre a França de Sarkozy.

O Brasil é um caso atípico no quadro das nossas relações externas. É uma país com o qual Portugal tem uma das suas mais complexas e assimétricas ligações, no seu quadro internacional. O Brasil faz parte do "politicamente correcto" de qualquer programa de governo português, em matéria de política externa. Porém, no Brasil, nem com lupa alguém encontrará uma referência a Portugal num texto oficial ou particular relativo à sua a sua projecção diplomática. Má vontade? Não, apenas mero realismo.
O Brasil tem um destino global que não comporta Portugal como uma alavanca relevante. Nem sequer mesmo a CPLP. Trata-se de um país que, tendo atingido um estádio de maturidade política democrática de alguma solidez, ainda que com disfunções institucionais importantes, com um perfil de desenvolvimento que o coloca já à soleira de outro modelo no mundo económico-social, com um processo interno de atenuação das desigualdades que lhe reduz progressivamente as lógicas de conflitualidade interclassista, é movido por uma saudável ambição de afirmação à escala global. Essa ambição espelha-se numa diplomacia muito preparada, consciente dos seus interesses, patriótica e orgulhosa, activa a vários azimutes (curiosamente, sem uma hierarquia muito evidente entre eles), assente ideologicamente numa doutrina "sulista" (OMC, questões de desenvolvimento, Direitos Humanos), que sempre procura instrumentalizar como catalizador político da sua projecção.
Idealmente, o Brasil desejaria promover a integração sul-americana (não latino-americana, porque esse é um conceito, por várias razões, menos conveniente à sua estratégia) e partir daí para uma liderança do sub-continente, assumindo-se como contraponto, que não pretende conflitual mas convivial, com o norte do continente. Sendo essa integração sul-americana progressivamente difícil, por razões de conjuntura que dou por adquiridas, o Brasil multiplica as parcerias multilaterais ou bi-regionais (países árabes, países africanos, Europa, IBAS, etc), desmultiplica-se à escala bilateral mais relevante (EUA, China, Rússia, Japão, Índia, etc) e mostra-se em todos os tabuleiros internacionais possíveis, por vezes, irritando, com isso, alguns parceiros.
Mas o seu objectivo central, e que justifica muita da coreografia diplomática atrás desenhada, é a obtenção de um lugar de membro permanente no CSNU. Esse é o desiderato-chave, porque o Brasil compreendeu - e bem! - que a fixação de um lugar institucional à escala global será a prateleira inamovível em que assentará toda a estratégia para alimentar a sua ambição de futuro. E já esteve muito mais longe disso...
Onde fica Portugal aqui? Portugal vê o Brasil é um parceiro essencial para que a lusofonia, um dia, dê certo e, por essa razão, tudo fará para o manter interessado numa CPLP que Brasília ainda não viu muito bem como pode integrar na sua escala de interesses. Para o Brasil, Portugal é um amigo "taken for granted" na Europa e no mundo, porque o Brasil percebeu que Portugal já percebeu que acabará sempre por ser "free rider" do seu próprio crescimento e da sua projecção à escala global. Nenhuma afirmação estratégica do Brasil é hoje conflitual com as de Portugal e, no conjunto, Portugal e Brasil representam um jogo de sinergias com vantagens mútuas.
Sendo que, na economia, e por muito que se possa vir a progredir (investimentos, comércio, turismo), as coisas entre Portugal e Brasil não têm hipóteses de evoluir de forma muito mais significativa, em especial na presente conjuntura, é a cultura - e, neste caso, a Língua Portuguesa, sejamos realistas! - que pode vir a representar um sólido caminho comum no futuro. Tudo o que se possa pensar para além disto, depende de variáveis que seria imprudente projectar desde já.
Mas também isso passa, uma vez mais, pela efectiva consagração institucional do Brasil no quadro da ONU. E essa é, também, uma das razões pelas quais Portugal tanto tem batalhado para ajudar o seu parceiro do outro lado do Atlântico a conseguir firmar-se. O apoio essencial dado por Portugal à criação da Parceria Estratégica da UE com o Brasil aí esteve para demonstrar bem onde estamos - aliás, onde sempre estivemos, com imensa coerência de princípios e de lealdade para com o Brasil.
Você fala-me agora da França. Ainda estou na "infância" do posto em Paris, pelo que não posso ir muito longe.
A França é hoje, talvez mesmo muito mais do que há uns tempos, um eixo fundamental do futuro do processo europeu. Isso terá sido percebido pelo Presidente Sarkozy, que acabou por ser protagonista de uma Presidência da UE com grande dinamismo e bastante eficácia. Num mundo que "está à espera" da nova América, a França deixou já claro o seu interesse em romper com um certo imobilismo passado, em especial na importante questão da segurança e defesa, com a vontade de integrar militarmente a NATO - um passo que pode, com surpresa para alguns, auxiliar a um reforço da dimensão "segurança & defesa" europeia...
Por outro lado, Paris pode ser vital para o trabalho, que também é essencial, de se conseguir o restabelecimento de uma relação de uma maior estabilidade com a Rússia, o que implica, simultaneamente, uma tarefa complexa junto de outros novos parceiros europeus, que têm com Moscovo uma relação mais fria e distante. França e Alemanha, porque o percurso do Reino Unido é mais incerto, podem ter um papel essencial neste descrispar de tensões com um vizinho decisivo para o futuro do continente.
Mas os desafios europeus não passam apenas por estas dimensões estratégicas de grande dimensão, situam-se noutras vertentes mais humanas e culturais, na gestão das quais a França, por um conjunto muito variado de razões, tem uma palavra muito própria a dizer. Refiro-me às políticas relativas à livre circulação, à imigração, ao tratamento das minorias, à luta contra a xenofobia e a intolerância. Sem uma França muito activa (e positiva) nestes domínios - onde quase sempre foi um farol, quando outros estaviram bem longe - a Europa dos povos não irá longe. Este é um dos maiores testes que a França do presidente Sarkozy tem perante si própria. E, sejamos claros: se a França não estiver no eixo de uma abordagem generosa e progressista neste domínio, confesso que temo pela capacidade do resto da Europa de garantir esse percurso.
É nesta "Europa ética" que acho que Portugal, como porto tradicional de muitos povos e de muitas gentes, tem a obrigação histórica de afirmar uma política de forte adesão aos princípios de defesa das liberdades e da tolerância, sem quaisquer tibiezas. E espero, sinceramente, que seja possível encontrarmo-nos com a França em todos estes caminhos da defesa da civilização europeia, lutando contra os que se possam sentir tentados a desviar-se dessa leitura aberta da Europa, a única pela qual, verdadeiramente, vale a pena lutar.
Neste campo, porém, a crise que aí está pode ter, na Europa em geral, o efeito colateral de potenciar os egoísmos, de estimular os populismos, de afectar, por um proteccionismo pateta e de vistas curtas, os equilíbrios de um mercado interno que deu muito trabalho construir, e onde assenta a base material de todo o projecto europeu. Esse é um projecto de solidariedades cruzadas e de vantagens/desvantagens que compete aos dirigentes políticos explicarem às suas opiniões públicas, não devendo, como frequentemente acontece, tornar Bruxelas o bode espiatório das suas fragilidades políticas internas.
Tenho esperança de vir a assistir, aqui em Paris, a uns anos de reconstrução de uma sólida política europeia, em que Portugal se possa encontrar regularmente com a França no cultivo e na promoção de uma Europa de valores.

3. Que avaliação faz da integração dos emigrantes portugueses em França? Foi reconhecido, nomeadamente pelo actual Presidente Sarkozy, o potencial de influência política (leia-se votos) da comunidade portuguesa em França - quais as possíveis consequências desta realidade nas relações entre Portugal e França?

Ainda não tenho dados que me permitam ter certezas sobre o potencial daquela que é a 3ª geração portuguesa em França. Tenho feito alguns contactos, mas só daqui a algumas semanas poderei formar uma opinião mais concreta sobre o que existe, o que já foi feito e, eventualmente, sobre o que se possa vir a fazer ainda melhor.
Uma certeza tenho para mim como muito clara: a política externa portuguesa para a Comunidade portuguesa e luso-descendente em França tem de se assumir com uma forte matriz cultural e de visão estratégica. Não pode ser tentada a três coisas: a um seguidismo acrítico face aos padrões de organização de certas estruturas de enquadramento da Comunidade, o que, no passado, muito contribuiu para congelar a evolução do respectivo paradigma sócio-cultural; a qualquer tipo de instrumentalização política, qualquer que seja a lateralização ideológicas para que aponte; e, finalmente, à criação e alimentação de quaisquer desproporcionadas ilusões sobre o futuro papel relativo da Comunidade emigradas ou luso-descendente na sociedade portuguesa, nomeadamente no domínio económico. Deixo isto muito claro, para que não haja ilusões sobre o que vou ou não fazer.
Portugal deve imenso às suas Comunidades no exterior e, por isso, deve-lhes, desde logo, políticas de verdade, respeito pelos seus interesses e muita atenção aos seus problemas. Como em qualquer política, temos de ouvir os utentes e desenhar as soluções à luz da interpretação racional dos seus anseios.
E é isso que, em França, vou procurar fazer com a Comunidade, bem como com as novas gerações de luso-descendentes, trabalhando com eestas últimas na justa medida do seu interesse em terem as estruturas oficais portuguesas a agir a seu lado, não tencionando ser "patronizing" e dirigista, enquadrador ou intromissor numa realidade que é, antes de tudo, francesa e deles. Faremos com essas pessoas, nomeadamente com os luso-descendentes com responsabilidades políticas a vários domínios, nem mais nem menos do que observarmos ser a sua vontade. Não pretendo projectar nenhuma tutela, nem servir de "farol". Quero que isto fique claro.
Esse é, aliás, o melhor caminho para preservar a estabilidade, e até um novo vigor, se tal vier a ser viável, do excelente quadro das relações que se vivem entre Portugal e França.

4. Foi um Secretário de Estado dos Assuntos Europeus que marcou o lugar, pela conjugação de capacidade política com competência diplomática. Gostou da sua passagem pela política? Pondera nova incursão?

Cada coisa tem o seu tempo. Saí do Governo há cerca de 8 anos e já tive oportunidade de provar que não estou interessado em regressar à vida política. Hoje, a diplomacia é a minha vida, a 100%. E sê-lo-á até à minha saída da carreira, pelos imperativos da lei.
A minha passagem pela política foi um tempo muito interessante, de que me não arrependo, até porque tive o privilégio de trabalhar com imensa liberdade. António Guterres e Jaime Gama estimularam essa autonomia, sempre exercida no quadro das orientações gerais que estabeleciam. Foi um período ímpar, em que atravessei vários momentos importantes da vida europeia. Hoje, à distância, entendo que acabei por estar tempo demais no Governo, o que prejudicou a minha carreira profissional. Particularmente para quem, como eu, teve sempre - mas sempre! - como objectivo bem claro regressar à diplomacia.
Mas há uma coisa que quero que fique muito claro, até porque há muita gente que não pensa o mesmo: enquanto estive na política não fui um diplomata "em comissão de serviço". Fiz apenas política. Da mesma maneira que, agora, só exerço funções diplomáticas. Como disse: cada coisa no seu tempo, sem misturas. E sempre a 100%...

5. Também foi sindicalista-diplomata. Quais são as questões da agenda sindical-diplomática que mais o preocupam? Que sugestões daria à ASDP?

Não posso dizer que tivesse tido uma acção sindical destacada dentro do MNE. Fui apenas vice-presidente da direcção da ASDP, por um curto período. Mas ainda me recordo de ter sido o autor dos estatutos do Prémio Aristides de Sousa Mendes, que alguns colegas queriam que viesse a ter um nome rotativo, diferente todos os anos. Ameacei demitir-me, se isso acontecesse. É que posso imaginar o que se pretendia e o que iria sair dali!
A minha vida sindical acabou de forma inesperada: estava a meio de uma reunião de direcção da ASDP, quando recebi o convite para integrar o Governo... Num minuto, passei para o "patronato"!
Já agora, aproveito para lembrar que, aí por 1978, quando se criou a primeira estrutura associativa dos diplomatas, mobilizei vários jovens colegas com vista a evitar que a integrassem, pelo facto dos seus proponentes não quererem então qualificá-la como "sindical". Não me apetecia fazer parte de uma espécie de "clube" diplomático, envergonhado em assumir-se como reivindicativo. E não fiz parte dessa associação até ao dia em que ela se assumiu como uma estrutura sindical.
Tendo integrado três grupos de trabalho que prepararam e discutiram com o poder político projectos de Estatuto do Diplomata, assumo que a experiência me veio a ensinar que cometemos alguns erros, naquilo que era a suposta defesa dos interesses da carreira.
Em muitos casos, acabámos por criar "coletes de força" que protegem hoje os maus funcionários, aqueles que exploram, à letra, a panóplia de pequenos direitos que hoje enredam o quotidiano administrativo, com recursos e mais recursos, os quais, muitas das vezes, acabam por defender os medíocres e os incompetentes e criar obstáculos à progressão dos mais capazes e dedicados. É sempre preciso prevenir o arbítrio e a discricionariedade dos dirigentes, mas o sistema que hoje existe é mau, pouco transparente e está, mais do que nunca, a criar um caos no funcionamento da carreira.
O anterior Secretário-Geral teve a coragem de tentar mudar as coisas e estou certo que o actual Secretário-Geral está empenhado, com o pleno apoio de muitos de nós, em dar sequência e desenvolvimento ao produto desse excelente trabalho. O reforço do papel do Secretário-Geral, como figura central da gestão da carreira, é, a meu ver, a única solução com algumas condições de poder "dar a volta" à casa. Mas esse poder do SG tem de estender-se a todas as áreas do MNE e não pode haver feudos sectoriais a escaparem a esse controlo. Um estatuto e uma lei orgânica do MNE têm de cobrir todas as suas áreas. Alguma delas ficar de fora representará uma óbvia fragilidade para todo o sistema.
Quanto à carreira, devo confessar que hoje tenho a tendência a privilegiar o interesse do Estado face ao interesse individual do funcionário. Em especial, é-me completamente incompreensível que a vontade de cada um, em matéria de escolha de postos, se possa sobrepor ao interesse do Ministério em ter os funcionários que considera mais adequado em cada posto. Com as necessárias compensações de rotatividade bem expressas na lei e na prática, bem entendido. Penso que, se as coisas acabassem por ir por esse caminho no plano legal, o Ministério prestigiar-se-ia muito mais e todos acabaríamos por ganhar. Minto: não ganhariam os incompetentes, os absentistas, os "calaceiros" e todos quantos hoje se aproveitam do encosto às franjas da lei, do facto de fazerem parte do "grupo dos amigos de X", para sobreviverem em sinecuras, mais ou menos protegidas.
Penso que a  ASDP deveria centrar a sua luta na defesa das questões mais especificas da carreira: os seguros de saúde, os problemas escolares, as questões dos cônjuges, o problema dos reformados, etc. Deveria preocupar-se também com a formação contínua, com o rigor nas avaliações, com uma maior selectividade e rigor nas promoções, em tentar pôr termo às subidas de categoria "por piedade", em colocar em causa a obrigatoriedade legal de saída para o estrangeiro de pessoal impreparado, em permitir uma maior flexibilidade ao Secretário-Geral para a gestão de pessoal, facilitar a introdução de meios para interromper comissões no estrangeiro de quem, manifestamente, representa mal o país.
A ASDP ganharia igualmente credibilidade se se mostrasse exigente na fiscalização severa do modo como são gastas as representações no estrangeiro, de como é tratado o absentismo e se sobrecarregam os colegas que têm de assegurar substituições, do modo como (não) se trabalha em certas áreas da Secretaria de Estado e em muitos postos.
Defender a carreira é, desde logo, defender quem trabalha bem, quem é dedicado ao serviço público, quem se esforça. Confesso que quase 35 anos de carreira me cansaram, definitivamente, dos colegas do estilo "from-nine-to-five", que cada dia parece serem mais, que não estão disponíveis para ir a um aeroporto a um fim-de-semana, que acham certas tarefas abaixo dos seus pergaminhos, que não lêem um livro ou um jornal, que vivem na ostentação e na preocupação de alimentar o usufruto dos sinais exteriores da carreira, que se deslumbram como patetas com o acesso social que a condição diplomática lhes concede, que abusam de forma saloia das imunidades diplomáticas, que acumulam multas de tráfego, etc.
A sensação que tenho é que a nossa estrutura sindical se encontra hoje refém de uma agenda algo burocrática, a qual se converte, sem que tal seja assumido abertamente, numa triste luta de classes etárias, angustiada a mais nova pelos estrangulamentos da carreira, menos por razões de uma procurada eficácia funcional e mais por interesses corporativos e pessoais de curto prazo, como se a ascensão ao topo fosse um direito divino. Com todo o respeito e amizade que tenho por muitos que hoje se dedicam, com empenhamento, à ADSP, entendo que mais do que assumir uma agenda seguiduista, de cumulação de interesses corporativos, deveria ser assumida uma agenda reformista e radical, rumo à modernização da carreira e ao saneamento dos seus vícios. É por aqui que passa a preservação do nosso prestígio enquanto corpo profissional.

Entrevista concedida ao boletim informático da ASDP, conduzida por Francisco Alegre Duarte