30 de janeiro de 2005

Portugal e a PESC

A dimensão externa inicial da Europa comunitária, e em nome dessa mesma Europa, surgiu como um imperativo natural à preservação dos seus interesses de natureza económica. A partir do aumento exponencial de questões relativas às Comunidades Europeias que se tornava vital cuidar na ordem internacional, em especial após o surgimento de oportunidades nas relações específicas com alguns espaços colocados no horizonte estratégico europeu, na sua proximidade geográfica ou em áreas de potencial influência, foi-se gerando aquilo que constitui o impressionante tecido de relações externas da actual União Europeia.

Neste quadro evolutivo, aparece em paralelo a Cooperação Política Europeia (CPE), como uma decorrência natural do modo tendencialmente comum de olhar politicamente o exterior à Europa comunitária. De início, foi apenas uma incipiente tentativa de cruzar ou cumular as “boas práticas” diplomáticas dos Estados Membros, a caminho de uma atitude política desejavelmente colectiva perante determinados cenários. Contudo, a “jurisprudência” diplomática que a partir daí se gerou veio a ter muito mais importância para os aparelhos de todos os Estados Membros do que à primeira vista seria expectável.

Com o termo efectivo da Guerra Fria e da polarização Leste-Oeste, uma maior diversidade de perspectivas na abordagem do mundo à volta da Europa comunitária pôde afirmar-se no seu seio, já sem criar riscos maiores de natureza estratégica. Embora com visões diferentes, foi-se fixando a consciência de que a voz de uma Europa-potência, capaz de se recolocar face ao novo fenómeno da hiperpotência americana, embora não necessariamente contrapondo-se-lhe, iria exigiria um salto qualitativo de natureza político-institucional. Para tal, seria importante fazer evoluir o tratamento das questões externas da simples coordenação a que a CPE nos habituara.


Depois de Maastricht

Isso conduziu às várias tentativas de densificação de uma Política Externa e de Segurança Comum, a partir de Maastricht, passando por Amsterdão até ao projecto da Constituição Europeia. Nesse debate estiveram presentes, desde o início, as reticências semânticas que nasceram em torno das perspectivas de evolução em matéria de segurança e defesa. Não obstante os tempos de aproximação de posições, tais dificuldades continuam visíveis no diferenciado modo de abordagem dessa mesma dimensão, hoje em torno da Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD), parte integrante da PESC.

A PESC que Maastricht começou a consagrar é um salto qualitativo que decorre da consciência que a Europa comunitária assume do seu próprio poder e as suas novas responsabilidades, nestas contando o surgimento da premência de novos alargamentos ao Centro e Leste da Europa e os imperativos, que se revelaram inadiáveis, de gestão de crises em áreas vizinhas ou vitais para a sua segurança. No seio da PESC, a PESD virá a ser o saldo do laborioso consenso, através do qual a força da Europa comunitária se objectiva em termos securitários.

Nos primeiros tempos da PESC articularam-se, numa gestão hábil marcada por muita ambiguidade, alguns princípios com muita realpolitik. A dimensão externa de natureza política das antigas Comunidades Europeias havia começado por assentar na cultura comum de liberdades que a Europa ocidental foi sedimentando na sua oposição ao bloco socialista tutelado pela URSS. Nesse quadro muito genérico, os elementos comuns eram de fácil aceitação e raramente divergiam de forma significativa das leituras que os EUA faziam, salvo nos casos em que a tal realpolitik se impunha. Mas, como referido, as ideossincrasias de alguns Estados Membros cedo encontraram nas dimensões de segurança e defesa, isto é, nas dimensões que se prendem com a NATO de que muitos fazem também parte, o seu espaço privilegiado de expressão. Assim, e por essa via, a importância operativa do laço transatlântico desde logo acabou por prevalecer no seio da PESC.

Hoje, com alguma distância, não deixa de ser de certo modo irónico verificar que, no momento em que a Europa comunitária, pós-Maastricht, começava a encaminhar-se para uma relativa unidade de visões em matéria de política de segurança (com a Irlanda em algum isolamento pela sua política de neutralidade), o alargamento seguinte – de 12 para 15 – tenha acabado por incorporar na União três países que, pela sua singularidade nesse domínio, ajudaram a sedimentar a dificuldade para promover rápidos avanços. Áustria, Finlândia e Suécia vieram reforçar o polo neutralista e, como se viu nas negociações do Tratado de Amsterdão, contribuiram claramente para travar tal processo.

Anos mais tarde, volta a ser interessante notar como o grande alargamento a 25, com a inclusão de 10 novos Estados, muitos deles com uma história muito específica no seu relacionamento com a antiga URSS, traz para a PESC uma visão muito própria sobre um eventual reforço da identidade europeia de segurança e defesa, tributária de uma gratidão histórica face aos EUA, que veio a ter sensíveis consequências nos equilíbrios internos na nova União. Um teste imediato a esta nova realidade foi a polarização que ocorreu por ocasião da 2ª Guerra do Golfo, em 2003, com a “Carta dos Oito” a dar razão aos que, do outro lado do Atlântico, apostavam nas virtualidades da “nova Europa”, bem como de alguns outros complacentes governos da “velha Europa”, para travar ou atrasar as veleidades de criação de uma dimensão de segurança e defesa europeia não dependente da vontade ou da anuência constante de Washington, bem como dos meios NATO que os EUA controlam.

Por tudo isto, não é de surpreender que a considerável aculturação na gestão da acção diplomática comum, que a PESC foi capaz de gerar, se confronte hoje ainda com muitas dificuldades na definição das linhas de evolução da PESD que nela está inserida. 


Prioridades e receios

Portugal entrou na Cooperação Política Europeia e, posteriormente, actuou no quadro da PESC com duas preocupações essenciais.

Uma primeira era de natureza conjuntural e prendia-se com a que era então a tarefa central da diplomacia portuguesa: a preservação da questão de Timor-Leste na agenda internacional, com vista a garantir o direito de autodeterminação do seu povo.

Um certo complexo de culpa histórica face ao modo como Timor-Leste fora degradado no quadro das prioridades portuguesas, no difícil contexto do seu processo de descolonização, que muito facilitou a invasão indonésia, levou a uma mobilização de esforços diplomáticos nacionais, embora com nuances temporais de empenhamento político que uma análise mais fina permite identificar.

Desde os seus primeiros anos dentro da então CEE, Portugal teve de defrontar-se com a frieza estratégica da generalidade dos seus novos parceiros, muito raramente sensibilizados para um obscuro problema que, por culpa portuguesa, colocava uma sombra incómoda sobre as suas rentáveis relações com a Indonésia, que dispunha da solidariedade colectiva da ASEAN. Com notável persistência, Lisboa recusou sempre dar a sua indispensável bênção ao reforço das relações institucionais entre os dois espaços enquanto o problema de Timor se não resolvesse a contento dos princípios do Direito Internacional. Pode dizer-se que o massacre cometido pelos indonésios em Santa Cruz, em Novembro de 1991, foi o ponto de viragem a partir do qual Portugal atenuou a sua solidão internacional neste processo, onde acabou por ter uma vitória moral que muito dignificou o país.

A segunda linha de preocupações tinha a ver com o cuidado de não pôr em causa a preeminência da NATO no seu quadro de segurança e defesa externa.

A partir do século XX, a matriz tradicional de comportamento da diplomacia portuguesa assentou sempre no pressuposto de que o laço transatlântico, e a ligação a quem na Europa melhor permitia preservá-lo, constituía um eixo determinante no posicionamento externo do país. Esta leitura apoiou-se sempre na necessidade de evitar que uma polarização centrípeta continental trouxesse decorrências de fragilização estratégica para o país. Nem a perda das colónias na década de 70, fundamento teórico para muita desta construção, desactivou este tropismo em matéria de alianças.

De sublinhar que este quadro referencial de atitude externa sofreu pouca ou nenhuma mudança nos primeiros anos de presença portuguesa na Europa comunitária. Reino Unido e Países Baixos, tidos com Portugal como os mais Nato-friendly countries, foram os aliados preferenciais nesse esforço para garantir que os passos de definição de uma política europeia de segurança e defesa se não faziam de forma minimamente detrimental para a Aliança.

O entendimento franco-britânico de St. Malo, em Dezembro de 1998, abriu caminho a uma criativa perspectiva de compatibilização entre o reforço do que poderá vir a ser a PESD e a preservação dos compromissos NATO. Atenuados os temores, a posição portuguesa veio a passar por uma sensível evolução, sustentando, a partir de então, um maior e mais construtivo empenhamento nos esforços de articulação continental em matéria de segurança e defesa. Essa posição viria, contudo, a ser seriamente colocada em causa pelo seguidismo acrítico demonstrado por Portugal na crise entre os EUA e o Iraque, em 2003.

No futuro, com uma parte da “nova Europa” pós-alargamento a ecoar reticências ao projecto da PESD dentro da PESC, e tendo como pano de fundo uma crise de inéditas proporções na construção europeia, será interessante vir a observar os próximos passos da atitude oficial de Lisboa neste domínio.


Política externa:  portuguesa ou europeia ?

Num quadro de aprofundamento da PESC, de tendencial extensão de uma política de dimensão europeia a áreas tradicionalmente cobertas pela acção diplomática dos Estados Membros, onde ficará, no futuro, a política externa de um país como Portugal? Não tendo o país os mecanismos de afirmação externa - nos planos político, económico e logístico – ao nível do de outros parceiros da União Europeia, que áreas será possível e/ou desejável preservar para uma acção externa tida por autónoma ou específica de Portugal? E, em termos de eficácia objectiva, terá esse tipo de acção algum sentido prático no mundo contemporâneo? Ou será que a afirmação de uma identidade diplomática portuguesa, numa Europa com uma política externa tendencialmente comum, mais não é que um estertor simbólico de um poder diplomático moribundo?

As angústias que se caricaturaram no parágrafo anterior atravessam hoje muitos dos executantes da acção diplomática portuguesa e outros sectores que pensam sobre o tema, embora subsistam dúvidas sobre se elas também se constituem como preocupação central para alguns dos proponentes das orientações de política externa que lhes devem estar a montante, nomeadamente ao nível da reflexão em sede das forças políticas com vocação governativa. A resposta àquelas questões tanto pode ser encontrada numa cómoda e patrioteira reacção anti-europeia, como no assumir do desprezo determinista de quantos acham que a Europa será, inexoravelmente, a cura milagreira para todas as tentações soberanistas.

Como sempre, a verdade deve andar pelo meio dessas duas linhas, mais ou menos radicais.

Ao entrar para a Europa comunitária, Portugal não se condenou à imperatividade de seguir um determinado caminho, nomeadamente em termos de União Política. Mas parece óbvio que, ao colocar-se no seio de uma estrutura cuja dinâmica de mutação só quase simbolicamente controla, Portugal viu-se e continua a ver-se forçado a encaminhar-se na linha de certas opções que, numa decisão totalmente autónoma, não seriam necessariamente as suas. Estamos perante um subliminar processo de condicionamento de decisão que, goste-se ou não, funciona mais em detrimento dos países menos poderosos no seio da União Europeia e, em especial, de quantos se situam um tanto à margem do mainstream dos interesses médios da União.

Mas, em termos práticos, em matéria de política externa comum, será que Portugal está num processo de ruptura com o padrão médio da União Europeia, como sucede em diversas dimensões das áreas económico-sociais da União? A resposta é não: nada indica que o esteja e – o que é mais importante – nada indica que venha a estar.

A área externa europeia é um terreno muito sensível, em que a experiência demonstra que, salvo em matéria de política comercial, muito raramente se assumem posições que abertamente confrontem a vontade ou um interesse tido por essencial de um Estado Membro. Com efeito, a crescente diversidade das perspectivas que hoje, cada vez mais, se projectam sobre a decisão externa no seio da União Europeia é a melhor garantia da dificuldade de ser formarem orientações que se possam assumir como contrastantes face aos nossos principais interesses.

Acresce que Portugal tem, historicamente, uma identidade de expressão externa isenta de tensões potenciais extremas, estando, além disso, inserido num contexto geopolítico onde se não vislumbram cenários confrontacionais. Na hipótese teórica desses cenários virem a afirmar-se no futuro, não há nenhum elemento que leve a configurar a hipótese do país se ver numa posição de isolamento político no seio da União Europeia. E ainda que esse isolamento viesse a verificar-se, não há condições práticas para se formar uma vontade europeia com poder coercivo sobre a vontade nacional portuguesa.

Note-se que estamos a falar de opções de política externa, não estamos a encarar cenários de política de defesa onde as coisas seriam ainda muito mais remotas.


Lições da PESC

Afastados assim cenários extremos, importa olhar para as linhas tendenciais que podem prevalecer. Para tal, temos forçosamente de pensar a experiência passada. E nesta, a nossa avaliação é de que o template europeu que marcou a nossa política externa desde a Adesão, acabou por trazer-nos mais vantagens do que desvantagens. Portugal conseguiu ver contemplados na PESC alguns dos seus principais objectivos e prioridades – em alguns casos menos pelos facto de os ter conseguido impor, mas mais porque eram razoáveis e consonantes com os interesses dos outros, se bem que a diplomacia portuguesa os tivesse habilmente sublinhado como seus.

Porque exemplares, destacaria dois casos, um de natureza geográfica, outro de natureza temática.

No primeiro, incluiria o reforço das relações com a África subsaariana e com a América Latina, vertentes geopolíticas a que Portugal, por óbvias razões, sempre dedicou uma grande atenção e conferiu permanente destaque no seu discurso europeu, quer no tocante ao relacionamento político institucionalizado, quer em termos de apoio a processos de desenvolvimento e incremento do intercâmbio económico.

Face aos problemas que se mantêm na fixação da vontade política para garantir uma articulação eficaz entre a nova União Africana e a União Europeia, bem como as dificuldades de natureza económica que atrasaram o acordo UE-Mercosul, Portugal tem mantido uma permanente e coerente disponibilidade de facilitação e impulso político, bem reconhecida pelos parceiros do Sul.

O segundo caso prende-se com a vertente Direitos Humanos. Cultor tardio do multilateralismo, Portugal desenvolveu, por via do imperativo da questão de Timor-Leste, uma consciência em matéria de Direitos Humanos a que a Europa acabou por ajudar a dar algum espaço de afirmação e afinação. Hoje, o país está muito confortável para se colocar, se assim o entender, na primeira linha de defesa desta vertente no plano europeu e, por seu intermédio, no contexto multilateral mais geral. Importante será não se perder a massa crítica entretanto criada em Portugal na matéria e, em especial, evitar cair na tentação de enveredar por uma política “pragmática”, velho eufemismo para o oportunismo em matéria de política externa.

Em infeliz contraponto, o curso da última década acabou por atenuar a importância que a Europa deu ao processo integrado de cooperação com os países da orla sul mediterrânica, uma das dimensões externas da União onde Portugal melhor soube posicionar-se desde a Adesão, ao colocar-se na vanguarda europeia dos proponentes de políticas muito concretas de apoio a esses Estados, com muitos dos quais já mantinha excelentes relações de natureza bilateral. Qualquer que venha a ser o futuro do modelo de política mediterrânica da União Europeia – e Portugal deveria estar na primeira linha da respectiva protecção –, pode concluir-se que as relações de Portugal com Marrocos, Tunísia, Argélia, Egipto e Líbia (objecto de uma curiosa iniciativa portuguesa na segunda metade de 2005) foram muito potenciadas pela nossa intervenção comunitária.

A perda de relevância da política mediterrânica, somada ao crescente sublinhar em Bruxelas de outras dimensões de vizinhança geopolítica de que estamos mais distantes, torna importante que, também no seio da PESC e políticas externas correlacionadas, saibamos criar e gerir uma hábil política de alianças em favor daquilo que são os nossos “nichos” de prioridades estratégicas. 


O desafio da PESD

A nosso ver, para um país como Portugal, o grande desafio do futuro no tocante à PESC situa-se, essencialmente, no âmbito da PESD. As limitadas ambições desta nos tempos actuais têm disfarçado as nossas fragilidades, até agora superadas por um hábil voluntarismo e selectividade de intervenção. Porém, uma PESC muito activa a todos os azimutes no cenário mundial (com mobilização intensa da PESD), particularmente se continuar a assentar numa lógica intergovernamental à la carte, deixará Portugal em algumas dificuldades. Assim, parece ser do nosso interesse favorecer uma comunitarização da PESC/PESD, onde a nossa capacidade de influenciar o processo decisório é maior do que num registo de colheita de vontades e forças para cada caso de intervenção. De igual modo, não parece ser do nosso interesse favorecer a constituição de gendarmeries europeias ou corpos afins, bem como de “cooperações reforçadas” que já não dependem da simples vontade política mas sim de efectivas forças militares e de capacidade financeira a nível nacional para as sustentar, numa deriva dualista europeia. Não apenas porque teríamos escassas hipóteses de controlar tais esforços sectorializados, mas igualmente pela questão de princípio de não devermos favorecer a tendência para que apenas alguns falem e ajam com o label europeu colectivo.

(Publicado na "Janus - Anuário de Relações Exteriores", Lisboa 2005)