23 de outubro de 1999

Homenagem a Severino Costa

Se acaso me fosse possível e legítimo interpretar o sentimento que o meu tio Severino Costa poderia estar a ter neste preciso momento, eu julgo que não estaria longe da verdade se dissesse que ele pediria que este seu sobrinho não se sentisse tentado a estragar, com uma intervenção longa e formal, a homenagem simples, mas de comovente sinceridade, que acaba de lhe ser prestada.

Por isso, eu sinto-me tentado a respeitar, tanto quanto possível, a sua presumível vontade, até para não correr o risco de suscitar no meu tio, embora em moldes virtuais, aquela imparável impaciência, que tantos de nós lhe conhecíamos, quando, à porta do Café Bar, era confrontado com a aproximação de “um grande chato” - como ele dizia -, o que lhe fornecia, aliás, logo um alibi para se esgueirar em direcção à Avenida, a pretexto de qualquer urgência súbita.

Porém, antes de me obrigar a ser breve, tenho contudo o dever de ser grato.

Assim, permitam-me que expresse aqui uma palavra de profundo reconhecimento por esta gentil iniciativa da Câmara Municipal de Viana do Castelo.

Na pessoa do Senhor Presidente da Câmara, Dr. Defensor Moura, bem como do Senhora Vereadora do pelouro da Cultura, Dra. Flora Silva, eu quero deixar um agradecimento muito sentido pelo empenhamento que tiveram neste gesto de grande simpatia para com a figura de Severino Costa.

Faço esta menção, naturalmente, em nome de toda a família - e, se me permitem, em particular do meu Pai e irmão de Severino Costa, que está aqui presente -, família que igualmente se sente muito honrada pela contribuição dos restantes oradores e com a presença de quantos quiseram ter a amabilidade de se associar a esta sessão.

Sem desmerecer qualquer das intervenções que ouvimos, eu permitir-me-ia, contudo, deixar aqui uma palavra muito particular ao Professor Doutor Artur Anselmo.

A circunstância de termos tido o privilégio de poder contar nesta homenagem com aquela que é, sem a menor sombra de dúvida, a figura mais marcante da historiografia de imprensa no nosso país, representa um privilégio para todos nós.

A prestação que aqui nos deixou - no fundo, a contextualização da obra e da vida jornalística de Severino Costa - foi uma lição que todos recordaremos.

Uma lição que fica para além da gratidão que nos merece o seu gesto, que também não deixa de ligar-se à simpatia que sempre uniu as nossas próprias famílias.

Se as coisas da vida não fossem tão cruéis como realmente são, o agradecimento ao Professor Doutor Artur Anselmo, e a todos quantos colaboraram nesta homenagem, estaria hoje aqui a ser feito pelo Carlos Eurico, filho do meu tio Severino.

O discurso seria seguramente bem mais rico e bem mais criativo, porque a arte da escrita surrealista nunca abandonou a mão de quem sempre soube colocar poesia na prosa mais simples que fazia.

Mas porque, como eu disse, as coisas são o que são e não aquilo que gostaríamos que fossem, dele, do Carlos Eurico, da minha Tia Maria do Carmo, dos meus primos também Severinos de seu nome - que tão bem hoje aqui se sentiriam - deles fica o título dum belo livro do próprio Carlos Eurico, deles fica apenas “A Fulminada Imagem”.

Mas voltando ao registo inicial, eu creio que o meu tio Severino - o tio Bino, como nós lhe chamávamos - era bem capaz de já estar a protestar interiormente com o tom desta minha intervenção, que, se bem o conhecia, ele achava estar já a ver derivar para um estilo um tanto ou quanto lamechas, que dificilmente aturaria.

É que, tal como eu o recordo, mesmo quando confrontado com as vicissitudes de uma vida que, para ele, não teve só momentos alegres, sempre foi capaz de “dar a volta por cima” das coisas, de desmontar, com uma ironia muito sábia, o peso dos momentos complexos e até dos momentos trágicos, rindo-se muitas vezes da solenidade acaciana que alguns sempre confundem com seriedade.

Daí que me pareça que lhe poderia agradar, e até teria nisso alguma curiosidade, se visse este seu sobrinho sair - ainda que em termos breves, iria ele prevenir-me ! - para algumas notas de cariz mais pessoal.

Assim, e tendo por pretexto este dia de centenário do seu nascimento, que uma placa comemora em Ponte de Lima, para os lados da Clara Penha, eu ousaria deixar-lhes três ou quatro apontamentos da imagem que conservo do meu tio, fruto de quase três décadas de uma convivência que, embora esporádica, dele me fixou um retrato de carácter que desde sempre me acompanhou.

Nesse meu papel de sobrinho de aparições cíclicas, que vinha a Viana no Agosto das Festas e aos Natais, eu habituei-me a ver o meu tio, desde miúdo, num registo simultaneamente lúdico e de ampla satisfação com o sentido da vida, mesmo no meio das partidas que ela lhe pregou.

E daí que, bem lá no fundo, a minha relação com ele fosse sempre de algum fascínio pelo personagem e de uma não menor ponta de inveja pelos seus sucessos nas áreas em que se empenhava.

E passo a explicar porquê.

Em primeiro lugar, pelo modo como ele conseguia conciliar uma profissão de rotina, que manifestamente o não mobilizava, com uma actividade de escrita jornalística que, ao longo do tempo, acabou por funcionar como uma espécie de filme da vida quotidiana de Viana.

Eu, aliás, lembro-me de como ficava estusiasmado - e até me sentia quase um jornalista - quando, aí com 12 ou 13 anos, ele me autorizava a passar pela Cruz Vermelha e pelo Hospital para tomar nota das ocorrências, que eu esperava ansiosamente ver publicadas no “Comércio do Porto” do dia seguinte.

Mas o mais fascinante da memória do meu tio desses tempos eram, sem dúvida, as detalhadas descrições das suas viagens de automóvel pela Europa - mal eu sabendo então que destino a mim próprio me esperaria por essas paragens.

Nesse tempo, a Europa variada que o tio Bino nos descrevia com pormenores e “fait divers”, nos serões familiares em casa da nossa avó, no Largo Vasco da Gama, essa Europa era para muitos de nós, e para mim em particular, uma espécie de mundo inacessível.

Era um universo vivo e atraente, por vezes até um pouco bizarro nos costumes que ele sabia contar com graça e de forma extremamente cativante.

Lembro-me, entre tantas outras, das descrições do Monte Cassino (que, aliás, me criaram uma curiosidade que praticamente me obrigou a lá ir!), das inúmeras peripécias de estrada e das ligações históricas e culturais que fazia dos lugares e das pessoas que encontrava.

Essa visão cosmopolita para o tempo, em face daquilo que era a vida rotineira lusitana, nessas noites ricas sem televisão, deixou-me uma marca e uma apetência pelas viagens que nunca mais me largou.

E como nele sempre houve - como muitos que aqui estão o sabem bem - um sentido crítico muito agudo e por vezes feroz, recordarei sempre o saboroso registo que fazia dos vários tipos humanos com que se cruzava, no estrangeiro ou em Portugal.

Raramente eram personagens cinzentas, antes pelo contrário, quase sempre eram lidas sob uma lupa crítica, e muitas vezes um pouco cruel, de quem tinha do mundo e da vida uma coragem de opinião e assumia o risco da caricatura.

Pode ser que eu me engane, mas creio que parte dessa perspectiva a preto-e-branco, das pessoas e das coisas, tinha a ver com um escritor que ele me ensinou a ler e a apreciar e que, na minha adolescência, e mesmo mais tarde, foi frequente motivo das nossas conversas.

De facto, eu creio que herdei do meu tio Bino o voraz prazer de Eça de Queiroz e recordo-me das citações que ambos fazíamos de tiradas dos seus cáusticos personagens e - agora já pode dizer-se - de como identificávamos alguns conhecidos ao Melchior ou ao Palma Cavalão, e cito apenas estes para me manter no domínio do jornalismo que marca esta cerimónia.

Aliás, do livro que ele próprio dedicou a Eça de Queiroz, numa análise rigorosa de um dos aspectos mais controversos da biografia do romancista, ressalta a saudável dependência queiroziana que eu continuo a partilhar em pleno.

Desses tempos, guardo também os passeios pelo Minho, por estradas de que, praticamente, me tornei repetente quase anual.

Recordo o apêgo que ele tinha por esta terra, o seu conhecimento das localidades e o modo singular como nelas nos identificava algumas personagens típicas, ao pararmos para um café.

O seu apurado sentido organizativo de pic-nics, à beira rio ou em pinhais, sempre me deixou deslumbrado pela meticulosidade do aparato com que se armava o dispositivo para comer o arroz e os bolos de bacalhau feitos pela Rosa, acompanhado pelo pão que antes obrigatoriamente se ia buscar ao Dantas.

Tenho que confessar que nunca me consegui reconciliar com a ideia de que sou e serei totalmente incapaz de tal organização.

Num desses pic-nics ficou célebre, como sinal da sua impaciência, o ter-se cansado de uma conversa, que ele achou estar a resvalar para o excessivamente intelectual, entre Álvaro Salema e Jorge Amado.

Farto de não conseguir introduzir alguma sensatez mais prosaica na discussão, largou o seu papel de anfitrião atento, estendeu-se a dormir na rede entre duas árvores e teve a assinalável coragem de deixar, por uma boas duas horas, os convidados num diálogo literário transatlântico para o qual se marimbou olimpicamente.

Mas o meu fascínio e a minha inveja pelo personagem não ficam por aqui.

Sabendo embora que me arrisco a pisar terreno de alguma delicadeza, eu sinto-me autorizado a dizer que nenhum de nós desconheceu o atento e desinteressado carinho que o meu tio Severino dispensava ao mais belo sector do género humano.

Digo isto, naturalmente, na perspectiva puramente platónica que foi sempre a dele, pois não há qualquer registo histórico que possa sustentar, da sua parte, um comportamento que alguma vez haja sido menos conforme com o cultivo da pura virtude neste domínio.

É claro que, na eventual e legítima leitura extensiva que ele fazia deste mesmo conceito, cabia, por exemplo, e ao que me recordo, o acompanhamento cuidadoso das digressões pelo mundo do grupo de lavradeiras de Santa Marta de Portuzelo, numa atenção que, aliás, sempre tive como apoiada exclusivamente num esforço de pesquisa folclórica mais aprofundada.

Mas, sejamos francos, não excluo que a doutrina possa, neste particular, não ser totalmente pacífica, mas este é um tema em que estou seguro que as vozes são, com certeza, muito mais que as próprias nozes...

É com esta nota alegre que quero terminar esta evocação pessoal do meu tio Severino.


Senhor Presidente da Câmara
Caros Amigos

Pretendi, no que disse, um tom tão solto como aquele que ele próprio estaria disposto a aturar por parte de um familiar, numa qualquer cerimónia - estou mesmo seguro que mesmo numa cerimónia que lhe fosse pessoalmente dedicada como é o caso desta.

Assumindo o risco de quem não lhe foi distante, eu diria que Severino Costa foi um homem que soube viver e reflectir o século que com ele praticamente nasceu. Foi sempre um liberal nas ideias, um homem aberto e atento ao mundo, que soube colocar nas palavras que deixou escritas a serenidade e o rigor de um pensamento que, por vezes, era menos conforme com alguma impaciência com a vida, que não raro se reflectia na sua relação com os outros.

Para nós, que o conhecíamos de muito perto, tinha a afabilidade e o gesto de quem se enfrentava com a ternura num disfarce de alguma ironia.

Creio que ele gostaria de ser recordado como aqui realmente foi, sentindo que continuamos a senti-lo conosco, vendo que a Cidade e a profissão por que sempre lutou e se empenhou têm dele uma memória que é razão para que nos juntemos hoje aqui a lembrar o centenário do seu nascimento.

As palavras e o testemunhos que ficaram expressos configuram, desta forma, o sentido de uma passagem pelo mundo que, pelos vistos, tem a virtualidade de sobreviver ao desaparecimento físico.

Nem todos poderemos aspirar a isso.

Por essa razão, julgo que ninguém pode desejar mais do futuro do que a garantia, por parte dos que ficam, que o que se fez deixou uma marca que justifica a saudade.

Muito obrigado pela vossa atenção.