18 de dezembro de 2009
La diplomatie et les entreprises
A diplomacia e as empresas
30 de novembro de 2009
Olhar o futuro
(Texto publicado no boletim da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Francesa, em Lisboa)
10 de junho de 2009
A Europa não nos divide
Haverá que convir que o debate realizado em Portugal, em torno das eleições europeias, terá ficado à porta das grandes questões que se prendem com o futuro do nosso país no projecto integrador. Seria ingenuidade pensar que as coisas pudessem ter-se passado de modo diferente, atento o quadro de tensões políticas que antecedeu o sufrágio. Mas isso não impede que, ultrapassado este, se não tente reflectir, com serenidade, sobre o caminho que estamos a percorrer, situando-o no tempo europeu que actualmente se vive.
Gostaria de começar por notar que a Europa comunitária se tem revelado uma entidade mutante, que adquire novas formas à medida dos desafios que enfrenta e do modo como consegue, ou não, compatibilizar as vontades nacionais de que é composta. Com o tempo, vão-se alterando as expectativas de quem nela está inserido e de quem a olha de fora, seja como interlocutor, seja como potencial membro. Essa qualidade auto-transformadora do projecto europeu é, simultaneamente, a sua força e a sua fraqueza. Aliás, fica-se hoje com a sensação de que, se assim não fosse, a Europa comunitária teria estiolado.
A ambiguidade tem sido um dos principais motores da Europa. Os países e os povos estão neste projecto mobilizados por finalidades que nem sempre são exactamente as mesmas. Se se perguntasse a cada Estado qual o modelo final europeu para o qual desejaria ver evoluir a União Europeia, aqueles poucos que ousassem responder diriam coisas bem diversas – que iriam desde o formato federal à “Europa das nações”. Por isso, retomando a frase clássica de Kautsky para outra realidade, temos de concluir que, também na Europa, “o movimento é tudo, o fim é nada”.
No seu pouco linear processo de construção - dos ”seis” aos “vinte e sete” - a Europa passou por etapas diferentes, que corresponderam às pressões que foi colocando a si mesma, por opção própria ou por determinantes externas. Também por essa razão, convém que tenhamos plena consciência de que a Europa de amanhã vai ser outra coisa, distinta da que hoje existe e, naturalmente, já muito diferente daquela a que aderimos, nos Jerónimos, numa manhã de 1985.
Um mínimo de bom-senso deve levar-nos a concluir que, tendo em atenção o nível de consenso potencial hoje existente, o modelo federal europeu perdeu, definitivamente, a corrida. O federalismo europeu nasceu, historicamente, em torno dos países que deram início ao processo integrador, no pós-guerra. Essa pulsão, gerada pelo medo à repetição do conflito intra-europeu e às tensões da Guerra Fria, continuou a ser uma ideia muito centrada nesses mesmos Estados e, alguns deles, conseguiu mesmo suplantar os sentimentos nacionalistas. Pode dizer-se que o alargamento a Portugal e à Espanha foi o último momento desse tempo, que ainda apontava para que o modelo federal tivesse alguma plausibilidade.
Mas tudo mudou na Europa com o termo da Guerra Fria e, há que assumi-lo, toda a sedução que o modelo federal mantinha, mesmo em sectores dos países fundadores, acabou por esvair-se muito com a realidade dos últimos alargamentos. Interpretada como um imperativo político e estratégico, a entrada desse importante conjunto de novos Estados teve, como efeito colateral, a emergência de uma consciência de que a gestão da nova Europa tinha de fazer-se de outra forma. O Tratado de Nice foi a derradeira tentativa de compromisso com o modelo anterior. O Tratado de Lisboa é já a consagração da prevalência dessa outra leitura da Europa. Diga-se isto em voz alta, de uma vez por todas.
Portugal e a Europa
Mas voltemos um pouco atrás, ao caso português. O nosso país nasce para a integração europeia de uma forma muito diferente da dos países fundadores. A Europa serviu-nos como âncora para a democracia reconquistada e como apoio a um novo processo de desenvolvimento, encerrado que estava o ciclo colonial. Mas o sentimento soberanista, que é identitário na nossa política externa e que esteve bem patente nas duas primeiras décadas após o nosso acesso às Comunidades, tem em Portugal raízes bem profundas - e, há que dizê-lo, bem fundadas na nossa experiência histórica nacional. Por isso, a nossa atitude europeia começou por ser, em termos de projecto institucional, mais intergovernamental e muito pouco aberta às ideias federalistas. Com o tempo, um compromisso entre esses dois extremos acabou por fixar-se na matriz da nossa política externa.
O federalismo europeu em Portugal resulta de uma construção intelectual de algumas elites, na maior parte dos casos decorrente do seu convívio com algum outro pensamento internacionalista ou, pelo menos, com um cosmopolitismo cultural desprendido de defesas nacionalistas. Ser europeísta no sentido federal, em Portugal, foi uma atitude que resultou de um esforço de abstracção face à ideologia nacional dominante, uma tentativa de olhar além desses preconceitos, numa outra visão de longo prazo dos interesses portugueses num quadro global. Mas o federalismo pressupõe a partilha de uma "nacionalidade europeia", que os portugueses, pelo menos por ora, parecem longe de sentir.
O "europeísmo" em Portugal, convém sermos honestos, foi uma realidade diferente: situava-se nas vantagens económicas, nos bolsos ou na paisagem, somadas ao interesse na livre circulação, que garantia um estatuto a quantos já estavam na Europa comunitária antes do próprio país. Daí a insistência inicial na "ideologia da coesão", um teste à coerência do projecto europeu que traduzia, simultaneamente, a proposta de trocar a nossa abertura ao mercado interno pelo recebimento de ajudas compensatórias. Nada que outras países não obtivessem em paralelo, através de outras políticas europeias, note-se.
Já a indução do debate grandes países/pequenos países no discurso negocial europeu, foi um óbvio reflexo que teve algo de soberanista, embora sem ser, necessariamente, uma mera atitude anti-federal. O que esse movimento defensivo pretendeu ser foi a reacção contra um aproveitamento oportunista , por parte de alguns países que utilizavam a mutação do processo europeu como forma de imposição de um modelo de “directório”. Esses Estados, perdido que estava o modelo federal que apenas funcionava na anterior lógica de pequeno “clube”, rapidamente se reconverteram à ideia de reforço do seu próprio papel nacional, no seio do processo decisório europeu. A eficácia era e é a justificação maior que apresentavam. Nomes? Basta atentar nos países que sistematicamente atacam a Comissão Europeia, a única instituição cuja preeminência pode ainda garantir algum interesse comum e contrariar o peso de quem tem mais força.
As temáticas da coesão e do conflito pequenos/grandes foram, assim, as que estiveram mais presentes no debate europeu em Portugal, num caso por justificado interesse económico, noutro por considerável interesse político. Mas, curiosamente, temas tão próximos do eixo da soberania como são a moeda ou a segurança e defesa europeias passaram ao lado de qualquer polémica.
E agora?
Mas, perguntar-se-á o leitor, onde é que estamos hoje, quando a coesão política se sobrepõe à coesão económica e social? O modo responsável como Portugal se comportou face aos alargamentos da União provou que, nas elites políticas, foi possível criar a consciência de que o êxito do processo europeu tinha que ter um preço económico, com uma dimensão estratégica que não nos poderia ser indiferente. Foi uma opção consciente e politicamente motivada, destinada a evitar a emergência, ao tempo em que os últimos alargamentos estavam ainda em discussão, de uma espécie de "egoísmo da coesão". Julgo que, dessa forma, foi possível criar, na opinião pública portuguesa, um sentimento de naturalidade face à diversificação geográfica das ajudas, no quadro de uma Europa alargada. Nesse aspecto, Portugal foi e é um magnífico exemplo.
Agora, é preciso olhar o futuro, que não vai ser fácil. Perante nós estão dois grandes desafios.
O primeiro prende-se com a necessidade de assegurarmos, numa Europa que, para se realizar como entidade com escala a nível global, pode tender a dividir-se em núcleos para o aprofundamento de certas políticas, o nosso permanente lugar nesses mesmos modelos variáveis de integração. Não tenho a certeza de que o consigamos. Mas temos de lutar, com todas as forças, para evitar que o país mergulhe num novo ciclo de periferização.
O segundo desafio prende-se com o anterior. Para além de voluntarismo e de recursos financeiros para estarmos sempre nesses núcleos centrais, importa-nos manter como linha dominante na nossa política externa um sentido profundamente europeu, isto é, uma defesa extrema dos mecanismos comunitários e uma denúncia aberta dos modelos que favoreçam a fixação de “directórios”.
Nada que todos os governos do nosso país não tenham feito até hoje, diga-se. A Europa, em Portugal, não nos divide.
(Artigo publicado no jornal diário português "i" em 10 de Junho de 2009)
A Europa não nos divide
(Artigo publicado no jornal "i", em 10.6.2009)
30 de abril de 2009
25 de Abril - 35 anos depois
Comemoraram-se, há dias, 35 anos sobre a Revolução iniciada em 25 de Abril de 1974, em Portugal. Alguém a qualificou, um dia, como a última “revolução romântica” da Europa. Sou de opinião que todas as revoluções, desde que apontem no sentido da liberdade, têm o seu lado romântico ou, pelo menos, ficam na memória popular como tal.
A Revolução do 25 de Abril, ou a Revolução dos Cravos, como ficou conhecida em França e um pouco por todo o mundo, é, em si mesma, o produto de um conjunto muito complexo de factores. Ela não se explica apenas pela conjuntura que se vivia, em 1974, em Portugal, e só pode ser bem entendida, tal como os acontecimentos que lhe sucederam, se se conhecer a génese histórica da sociedade política em que teve lugar.
Convém começar por deixar clara uma realidade por vezes não suficientemente mencionada: a Democracia, em Portugal, não é uma coisa nova, não nasceu com o 25 de Abril. A democracia foi instaurada em Portugal, num modelo idêntico ao que vigorava já em alguns países da Europa, na década de 20 do século XIX. Foi nessa altura, que corresponde em Portugal ao fim do Antigo Regime, ao fim do “absolutismo”, que a vida portuguesa iniciou o seu percurso constitucional e lançou as bases para a gestão democrática do país. De certo modo, foi a fuga da Corte portuguesa para o Brasil, onde estivera refugiada desde que o país fora invadido pelas tropas napoleónicas, em 1808, que criou o caldo de cultura que fez ruir, definitivamente, o Antigo Regime em Portugal.
Todo o século XIX foi, a partir de então, atravessado por uma tensão política muito forte, inicialmente numa guerra civil entre facções absolutistas e liberais, que mais tarde evoluiu para um confronto politicamente mais enquadrado constitucionalmente, entre monárquicos e republicanos. O peso cada vez mais preponderante das ideias liberais, o papel crescente das sociedades secretas, que tinham a instauração da República como objectivo final da sua agitação, a crise do modelo colonial português, pela perca do Brasil e pelas limitações colocadas pela Inglaterra aos planos coloniais portugueses em África e, finalmente, a notória incapacidade da corte portuguesa de enquadrar a vontade de mudança que atravessava o país – tudo isso conduziu ao golpe civil e militar que implantou a República, em 5 de Outubro de 1910.
A partir de 1910, e por 16 anos, um regime republicano de cariz parlamentar impôs-se no país. Acho interessante notar que, se descontarmos o caso muito particular e sui generis da Suiça, a República portuguesa é a segunda a nascer na Europa, depois da França. Todo esse tempo, que em Portugal se chama Primeira República, foi marcado por uma tensa polarização entre dois sectores da sociedade portuguesa.
Por um lado, um país rural e conservador, politicamente assente no poder dos caciques, que beneficiavam da incultura da população, com forte influência da Igreja católica, instituição que a República laica hostilizou desde o primeiro momento. As forças monarquicas derrotadas em 1910, em grande parte no exílio, combatiam então o novo regime e nele introduziam vagas sucessivas de instabilidade.
Do outro lado estava uma nova classe em ascensão, constituída pela pequena e média burguesias urbanas, com funcionários e comerciantes, muito permeados pelas ideias maçónicas e anti-religiosas, militantes pela laicidade e pela educação popular, que ocuparam o essencial do espaço político-partidário do novo regime.
Além disso, a República estava sob forte pressão da agitação nos meios operários – onde o anarquismo e o socialismo radical detinham uma influência crescente, fruto dos ideários revolucionários que lhes chegavam de uma Europa em ebulição.
Este complexo puzzle, que se reflectia sobre um sistema político muito dividido, desencadeou uma instabilidade quase permanente, com sucessivas quedas dos governos e algumas intentonas revolucionárias, quase sempre tendo como objectivo último a restauração da monarquia. Uma crescente agitação conservadora, desfavorável ao novo regime, começou a borbulhar no meio militar, que se mostrava descontente com a desordem nas ruas e, de certo modo, sentia a humilhação pelo modo como era lida a sua participação na fase final da Primeira Guerra Mundial.
Perante uma sociedade portuguesa aturdida, assustada pela agitação social, polarizada por uma igreja conservadora e ansiosa por um ambiente de ordem que a instabilidade republicana não conseguia garantir – muito por culpa dos seus inimigos, diga-se - um golpe militar interrompeu, em 28 de Maio de 1926, esta primeira experiência democrática feita no quadro republicano. A chegada dos militares ao poder acabou, assim, por fazer-se quase que com alguma naturalidade, seguindo exemplos em voga noutros países europeus.
A Ditadura Militar, como se auto-apelidou sem cerimónia, teve, porém, uma evolução muito mais conservadora do que alguns dos seus próprios promotores esperavam. Seguindo os modelos que faziam escola na Europa, o regime militar viria a evoluir, ao final de poucos anos, para um regime civil, o Estado Novo, que iria ser consagrado na Constituição de 1933. Nos seus princípios reflectia-se uma espécie de fascismo “soft”, acomodado entre conceitos hiper-conservadores, que misturava uma espécie de ruralismo político e de tradicionalismo moral e religioso. Nesse modelo, a economia do país, essencialmente de base agrícola e com uma muito incipiente indústria, foi enquadrada num regime para-corporativo, que procurava anular os perigos do sindicalismo, bebendo as suas bases ao modelo mussoliniano. O formato constitucional criava, assim, aquilo que qualificou de “democracia orgânica”, com uma espécie de parlamento de um só partido e um modelo novo de senado – a Câmara Corporativa.
Esse regime durou 48 anos, teve diversas fases, nomeadamente no modo como reprimiu os seus adversários e como procurou justificar-se politicamente. Mas houve padrões de comportamento de que nunca se afastou durante esses 48 anos: interdição de partidos políticos, limitação das liberdades fundamentais, prisão e frequente tortura dos activistas que se lhe opunham, polícia política feroz e censura permanente à comunicação social. Diga-se, em abono da verdade, que, mesmo nos seus auges repressivos, o grau de violência do regime sobre os seus adversários não se pode comparar ao de outros modelos autoritários europeus que lhe foram contemporâneos. Isso não evitou que, ao longo desse quase meio século, muitas centenas de pessoas tivessem sido presas, algumas por mais de duas décadas, por vezes muito para além dos períodos a que haviam sido condenadas por uma justiça política discricionária. Outras pessoas morreram por simples violência policial ou objecto de maus tratos, em alguns casos em condições penais degradantes, de que o campo de concentração do Tarrafal, nas ilhas de Cabo Verde, é o exemplo mais saliente.
A polícia política constituiu-se numa realidade omnipresente na sociedade portuguesa, as denúncias e delacções eram estimuladas, muitas pessoas eram afastadas de cargos públicos por mera avaliação política subjectiva e muitas famílias foram condenadas a sobreviver com imensas dificuldades. A vida intelectual era condicionada, o acesso ao ensino estava muito abaixo das médias europeias, as taxas de analfabetismo era muito elevadas. Apesar de, nos termos da Constituição de 1933, o regime organizar actos eleitorais com regularidade formal, as campanhas dos oposicionistas eram limitadas, sem acesso livre à comunicação social, com fraudes eleitorais sempre escandalosas. A melhor prova será, com certeza, o facto de, ao longo de todas essas décadas, nunca nenhum membro da oposição ter sido eleito para o parlamento do regime.
António de Oliveira Salazar foi o estratega e, posteriormente, o condutor desse regime que se chamou Estado Novo. Ministro das Finanças da Ditadura Militar, passou rapidamente a ídolo dos oficiais que se tinham revoltado em 1926 e, pela mão destes, veio a chegar à chefia do Governo, onde se manteve, sem interrupção, entre 1932 e 1968. Receoso do contágio do radicalismo esquerdista que se vivia em Espanha, Salazar apoiou, com sucesso, o general Franco na sua revolta contra o regime republicano, durante a Guerra Civil espanhola, entre 1936 e 1939.
Durante a II Guerra Mundial, Salazar jogou, inicialmente, de forma a não hostilizar a Alemanha e soube pressentir quando a mudança do vento passou a funcionar em favor dos Aliados. A partir de um certo momento, e depois de muito resistir, optou por conceder facilidades militares, nas ilhas dos Açores, às forças que acabaram por ser vitoriosas da guerra, na execução da política a que, sintomaticamente, chamou de “neutralidade colaborante”.
O início da Guerra Fria colocou todos os anti-comunistas – democratas ou não – do mesmo lado da barricada e, num gesto de cínica “realpolitik” por parte dos aliados, o regime autoritário português foi premiado com a sua sobrevivência. Embora, na retórica, Portugal continuasse a ser apelado a restaurar a democracia, a verdade é que Salazar nunca sofreu pressões insuportáveis para liberalizar o seu regime, o qual, no plano prático, acabava por satisfazer os interesses dos Aliados, que levaram mesmo o país a ser membro fundador da OTAN.
Porém, o regime português, tinha, dentro de si, uma fragilidade que lhe iria ser fatal.
Ele assentava, no plano ideológico, num modelo de país imperial, o qual, a partir de certo momento, se recusou a reconhecer-se como um puro modelo colonial, com todas as consequências históricas daí decorrentes. Para o Estado Novo, Portugal era uma entidade que ia “do Minho a Timor” e quem não aceitasse esse mito identitário mais não era que um simples traidor à Pátria. Ao adoptar esta doutrina como base do regime, o Portugal de Salazar não conseguiu perceber a chegada de uma mudança histórica: a nova era da autodeterminação e do fim dos impérios coloniais.
Outras potências colonizadoras europeias souberam, com maior ou menor sucesso, desenvolver uma estratégia de saída das suas colónias. Em muitos casos, essa estratégia assentou na promoção de uma burguesia local, preparada para tomar o lugar do colonizador. Porém, Portugal não podia fazer isso: o seu subdesenvolvimento europeu originou também uma espécie de “colonialismo subdesenvolvido”, sem elites preparadas para assumir o poder na transição, em colónias sujeitas à quase desertificação educativa.
Sem perceber que o sonho imperial era isso mesmo – um sonho –, o país foi obrigado, a partir de 1961, pela força de revoltas sucessivas, a ter de enfrentar guerras coloniais, as quais, por uma década, foram mesmo simultâneas em Angola, Moçambique e Guiné. Antes disso, Portugal perdera já as suas possessões na Índia, com a qual foi incapaz de gizar uma solução negociada. Por virtude destas gerras, centenas de milhares de portugueses, num país com uma população de menos de 10 milhões, passaram obrigatoriamente vários anos nas Forças Armadas, ao longo das décadas de 60 e 70, com custos pessoais, sociais e familares muito sérios.
Com a guerra, a emigração, que era uma constante cíclica do país, aumentou fortemente em direcção à Europa – de que a França foi o principal destino. Foi uma emigração que, inicialmente, era apenas de natureza económica mas que, com o passar do tempo, inclui também quantos procuravam evitar as guerras coloniais.
Salazar adoeceu em 1968 e foi substituído por Marcelo Caetano, uma figura oriunda dos quadros do regime, que se revelou incapaz de desenhar uma saída para o impasse em que o mesmo caíra. Caetano alimentou, inicialmente, um discurso liberalizante e ambíguo, que suscitou algumas esperanças, mas logo se verificou que seguia a lógica de Lampedusa: “mudar alguma coisa para que tudo continuasse na mesma”. A questão colonial, para a qual continuou sem soluções, terá sido o elemento decisivo que rigidificou o regime e que levou à sua derrota histórica.
As forças empresariais portuguesas – e é preciso dizer isto alto, de uma vez por todas – nunca tiveram, em Portugal, nem a visão nem o rasgo para se aliarem às personalidades modernizadoras que o início do período de Marcelo Caetano fizera despontar e que poderiam ter auxiliado uma evolução sem ruptura para a democracia. Nem sequer souberam aproveitar o exemplo de Espanha, onde uma nova burguesia tecnocrática soube convencer o general Franco a permitir alguma abertura, que viria a ser desenvolvida no transição política feita depois da sua morte. Os grandes grupos económicos portugueses viriam a pagar bem cara essa sua aliança objectiva com a ditadura, fruto de uma acomodação com os lucros que ganhavam, graças ao regime laboral rígido e sem liberdades que utilizavam em Portugal e, de igual modo, com a sua falta de estratégia para gerir um “phasing out” dos importantes interesses que mantinham em África.
Como acto político, e como referi no início desta palestra, a Revolução que tem lugar em 25 de Abril de 1974 acabou por ser a resultante de uma aliança cumulativa de descontentamentos de génese muito diversa. Em síntese, esse descontentamento assentava no cansaço colectivo com as guerras coloniais, nas limitações orçamentais derivadas das imensas despesas militares, na ausência de um entusiasmo popular para a defesa de um regime que se alimentava da História, na crescente consciência que o país tinha de que estava a caminhar à margem da modernidade do mundo europeu.
Entretanto, as guerras colonais haviam obrigado as Forças Armadas portuguesas a alargarem a sua base de recrutamento, formando oficiais oriundos de classes sociais cada vez mais baixas, por isso cada vez mais sensíveis às realidades criadas pela chocante dualidade social do país. Por outro lado, a necessidade de formação de quadros de comando conduziu à incorporação obrigatória nas Forças Armadas de milhares de estudantes universitários, saídos de um meio onde o ambiente de radicalismo político estava então no auge, incendiado pelas ideologias a que o Maio de 1968, aqui em França, dera ainda maior popularidade. A junção destes novos recrutas com os militares profissionais, já cansados de uma guerra sem solução política à vista, ajudou a alimentar nestes últimos uma consciência política que gerou uma crescente insatisfação face ao poder.
Inicialmente, o mal-estar militar assentava em meras razões de egoísmo corporativo, mas, pela mão hábil de alguns oficiais, ele rapidamente se converteu num movimento de sentido político. O movimento de 25 de Abril de 1974 foi, tecnicamente, um golpe de Estado militar, justificado por uma “patine” ideológica apenas democratizante, com grandes hesitações e contradições, dentre as quais a mais importante era a própria questão colonial, abordada inicialmente de forma ambígua. Mas o povo português, mobilizado pelas forças e personalidades políticas que, ao longo da ditadura, haviam combatido o regime, rapidamente soube transformar o golpe de Estado numa Revolução. O que se passou após o 25 de Abril foi uma explosão de um país que estava sem voz, uma revolta assente em vários radicalismos, os quais, ao longo dos anos de 1974 e 1975, só muito lentamente começaram a ver-se ultrapassados por forças mais moderadas.
Esta contraposição de posições não se fez, porém, sem luta e sem crises. A partir de um certo momento, ficou claro que havia dois campos bem distintos.
De um lado estavam os que optavam por um modelo democrático similar ao que vigorava em muitos países do Ocidente europeu, embora com uma roupagem socializante, os quais passaram a ser acompanhados por todas as forças conservadoras, mesmo os que se reviam no regime derrubado.
Do outro estavam diversos grupos de matriz socialista, num magma contraditório e muito conflitual entre si, que ia desde o modelo soviético ao esquerdismo maoísta, tendo ainda no meio os promotores de um “poder popular” de sentido quase anarquizante.
Todos estes grupos, sem excepção, tinham conseguido influenciar sectores das próprias Forças Armadas, o que criou um potencial muito sério para uma guerra civil. Das contradições e alianças tácticas entre estes vários grupos resultou uma situação de grande tensão, ao longo de 1975, que partiu da vaga de nacionalizações que teve lugar em 11 de Março até terminar no “putch” em 25 de Novembro, que acabou por confirmar as forças moderadas no comando do processo político.
Esse ano de 1975 foi o ano de todas as batalhas ideológicas e, de certo modo, foi o ano que encerrou as batalhas políticas mais sérias, que a sorte fez com que não tivessem transformado em batalhas militares.
“To make a long story short”, como dizem os anglo-saxónicos, que resta hoje do 25 de Abril em Portugal?
Resta uma herança política e social muito importante.
Resta um sólido regime democrático, servido por uma Constituição com um equilíbrio inter-institucional funcional, que tem evoluído e sobrevivido a todas as tensões e crises políticas.
Resta uma sociedade livre, tão livre como qualquer outra dentro da União Europeia, no que respeita à liberdade dos meios de comunicação social ou a quaisquer outras formas de expressão pública, com um sociedade civil activa e participante.
Resta uma vida económico-social que, situada embora num patamar relativamente modesto no quadro europeu ocidental, representa um país moderno, dotado de importante rede de infraestruturas e com um nível de vida que está a “anos-luz” da sociedade que a ditadura proporcionava aos portugueses em 1974.
Resta uma ampla democratização do ensino e da cultura, que atravessa crises que não estão distantes de algumas que hoje afectam a França, mas onde os índices de cobertura representam um impressionante salto face à situação de há três décadas atrás.
Resta um país com uma acção externa de grande coerência, muito activa e solidária, com uma política europeia de grande clareza, com uma relação magnífica com todas as suas antigas colónias, com uma intensa participação nas instituições multilaterais, com uma colaboração activa das suas forças militares em vários cenários de manutenção de paz.
Estamos então perante um oásis?
Não, estamos perante uma sociedade que sabe estar ainda marcada por algumas bolsas de subdesenvolvimento, com um tecido económico cuja reconversão, que já estava a ser feita sob pressão da globalização, sofre hoje as consequências da crise mundial, a qual incide de forma séria sobre uma economia aberta como é a portuguesa, com sérias consequências no emprego e no défice das contas públicas.
Este Portugal, com todos os seus problemas e dificuldades, é, contudo, um país muito diferente do que existia em 1974. Foi a Revolução de 1974 que acabou por dotar o país das intituições que, entre naturais crises e polémicas, presidem hoje à sua gestão democrática quotidiana. Por isso, em Portugal, tirando alguns saudosistas solitários, o 25 de Abril é visto globalmente como um movimento que valeu a pena.
Também por isso, julgo que os portugueses podem ter orgulho em se sentirem um povo que soube viver um tempo de grandes mudanças, no seio da instabilidade provocada pelo trauma do regresso definitivo das caravelas do império, um povo que conseguiu, apenas em algumas décadas, com a importante ajuda da Europa, gerar uma sociedade de saudável tolerância, marcada por um indiscutível sentido democrático.
Por isso, repito, valeu a pena fazer o 25 de Abril.
Tradução da palestra proferida na Casa de Portugal, na Cidade Universitária de Paris, em 29 de Abril de 2009
21 de abril de 2009
L'Europe: Culture ou Civilisation ?
J’appartiens à une génération portugaise qui a eu le tragique privilège historique de vivre dans une époque de transition. En effet, j’ai vécu déjà, à un âge adulte, dans une ambiance de dictature dont la perfidie principale a été celle de parvenir à retarder notre avenir. Et je vis aujourd’hui dans une démocratie pour la consolidation de laquelle l’Europe a joué et joue un rôle décisif.
Texto para uma obra colectiva a publicar pela Fondation André Malraux