5 de outubro de 2000

Europa - o fim da História?


Um pouco antes de Abril de 1974, comentando o “Portugal e o Futuro” de António de Spínola, Artur Portela Filho escreveu uma carta aberta ao General em que concluía (e cito de memória): “o que V. Exa. diz não é novo; o que é novo é tal ser dito por V. Exa.”. Quando li a já famosa intervenção de Joschka Fischer na Universidade de Humboldt, em Maio de 2000, não pude deixar de me lembrar daquele comentário.

Se é verdade que a intervenção do ministro alemão não trouxe nada de profundamente inovador, em termos teórico-políticos, ao debate europeu, no tocante a propostas de substância sobre o futuro do modelo integrador, ela não deixou, contudo, de constituir uma “pedrada no charco”, por ter sido assumida por um destacado dirigente activo de um dos países mais proeminentes da actual União Europeia.

No entanto, algumas outras questões se colocam: o que levou Fischer a escolher aquele momento para proferir a sua intervenção? Porque correu o risco de arruinar, em termos práticos, a Conferência Intergovernamental que estava então em curso, através da expressão pública de um conjunto de ideias que, inevitavelmente, não poderiam deixar de conduzir o debate europeu para outro patamar e, ao mesmo tempo, tenderiam a secundarizar esse esforço de revisão dos instrumentos comunitários ?

Outras interrogações diferentes se colocam sobre o discurso do Presidente Jacques Chirac, feito cerca de um mês depois. Ainda antes de entrar em pormenores, e se quisermos caricaturar desde já essa diferença, poder-se-á dizer que, se o discurso de Fischer propõe um modelo para uma gestão federal da Europa do futuro, a intervenção de Chirac configura, muito simplesmente, um projecto de intergovernamentalização orientada, sob a elegante aparência de uma proposta de integração europeia reforçada. Em ambos os casos, porém, convém que fique claro que estamos perante duas tomadas de posição que pretendem redefinir o equilíbrio de poderes na Europa do futuro e, não surpreendentemente, que têm como resultante vantagens evidentes para os países que os dois responsáveis políticos representam.

Mas porque não é possível analisar estas propostas sem as projectar no cenário prático daquilo que é hoje a situação no espaço europeu, e no contexto dos interesses que nele se debatem, proponho um bosquejo prévio sobre algumas dimensões que importa ponderar, se se quiser perceber a lógica subjacente às ideias avançadas e, em particular, à respectiva oportunidade temporal.


O desafio político-estratégico

A situação europeia subsequente ao fim do “muro de Berlim” colocou o projecto integrador, que tinha evoluído desde o Tratado de Roma, sob uma pressão de dimensão sem precedentes.

Por um lado, o modelo comum na União Europeia havia-se tornado o mais apelativo para os novos regimes emergentes a Leste porque, no plano ideológico, representava a vitória do padrão de democracia que fora sendo criado no lado ocidental do continente e que, naqueles países, era maioritariamente visto como a opção adequada para sedimentar novos projectos de Estado e de desenvolvimento que poderiam alterar radicalmente essas mesmas sociedades, de cuja direcção haviam sido já afastados os derrotados locais da “guerra fria”, e que eram agora lideradas por figuras sensíveis aos valores que a União consubstanciava. Dar uma resposta positiva ao movimento de aproximação por parte desses países tornava-se, assim, num imperativo irrecusável, não apenas por um sentido de responsabilidade histórica, mas igualmente por razões de natureza e oportunidade estratégica que eram por demais evidentes.

À vontade de aproximação desses países somava-se uma compreensível urgência política - que afastou, desde logo, a consideração de modelos integradores de transição, do tipo Espaço Económico Europeu – perante a qual a Europa comunitária reagiu inicialmente de forma diferenciada, à luz das maiores ou menores proximidades e afinidades geográfico-estratégicas, bem como da hipótese do estabelecimento de potenciais novas áreas de influência, com possível indução de mudanças nos equilíbrios europeus. Dessa amálgama de posições -  onde se juntavam “realpolitik”, ambições nacionais, mas também algum sentido ético - acabou por resultar a decisão de Copenhague, no sentido de promover o alargamento, cujos moldes negociais práticos viriam a ser acordados em 1997, no Luxemburgo, e que o efeito Kosovo viria a rever dois anos mais tarde em Helsínquia.

Incapaz, assim, de fazer vingar politicamente um processo de transição mais lento, rejeitado por Estados e classes políticas que tinham uma “pressa histórica” que não se compadecia com modelos faseados, a União Europeia acabou por enveredar, um tanto voluntaristicamente, por um “salto em frente” de consequências globais inicialmente pouco medidas, mas que se revelou ser o único passo politicamente correcto no tempo novo de estabilidade no espaço europeu que se pretendia salvaguardar - e que, manifestamente, nunca deixou de estar dependente da leitura estratégica que se fazia da possível evolução da situação na Rússia.


O financiamento das políticas

Tomada que estava a decisão irreversível de promover o alargamento, importava considerar o modo como seria possível definir, na União do futuro, o seu novo tecido de políticas, nomeadamente se ele poderia ou não ser similar ao que tinha vindo a ser desenvolvido na actual União, com uma eficácia e virtualidades que haviam sido, aliás, um importante factor apelativo para a aproximação dos novos candidatos.

Também aqui - vale a pena reconhecer - a União voltou a reagir sob alguma pressão e sem tempo de resposta para uma readequação ponderada do seu modelo. O quadro financeiro desenhado na “Agenda 2000” - a projecção orçamental entre 2000 e 2006 que foi concluída em Berlim, em Maio de 1999 - constituiu, na realidade, uma falsa resposta ao compromisso político assumido com os países candidatos. O quadro de “phasing-in” financeiro previsto para suportar os encargos da União alargada é, além de meramente estimativo, em especial no tocante aos países a envolver em cada fase, manifestamente insuficiente para cobrir qualquer projecto que possa aparecer como concretizando a integração plena dos candidatos. Sem o afirmar abertamente, a Europa dos “Quinze” deixa duas opções implícitas: ou o alargamento se não faz no médio prazo (e, note-se, o calendário da “Agenda 2000” previa mesmo um primeiro alargamento em 2002) ou, a fazer-se, ele terá necessariamente de comportar a adopção de medidas que excluam a plena aplicação de algumas das políticas mais onerosas da União Europeia.

Tal exclusão pode ser feita de três formas: ou através da instituição de longos períodos transitórios, ou por via de uma não aplicação, pura e simples, de algumas das políticas tradicionais aos novos candidatos (o que poderia, de certo modo, implicar também o prolongamento da “dupla orçamentação” após 2007: uma para os “Quinze”, outra para os novos aderentes) ou, o que será mais plausível, pela redução generalizada, no futuro, das políticas de financiamento central da União.

Mas porque razão não é possível custear as políticas actuais num quadro de uma União alargada ? Simplesmente porque não há vontade política para aumentar as contribuições orçamentais de origem nacional nacionais. Antes pelo contrário, verificou-se, durante a negociação da “Agenda 2000”, que havia uma determinação muito firme por parte dos contribuintes líquidos no sentido de “estabilizarem” as despesas - o que, para muitos, era sinónimo de proceder mesmo à sua redução em termos reais.

Daqui resulta, implicitamente, que temos de chegar à franca conclusão de que não é viável suportar o actual tecido de políticas num quadro de alargamento. Daí que tudo indique que a solução passará pelo estabelecimento de uma nova filosofia de custeio das políticas financeiramente mais exigentes. Essa nova lógica deve assentar numa espécie de “subsidiariedade financeira” - de que as propostas de co-financiamento na Política Agrícola Comum são o modelo mais óbvio -, que se pode igualmente objectivar através da utilização mais frequente dos modelos de integração diferenciada - como é o caso das “cooperações reforçadas” -, cujo financiamento ficará a cargo apenas dos Estados participantes.

Serve isto para dizer que nos aproximamos, muito rapidamente, de um modelo de União que terá um carácter mais normativo e regulador, na sua extensão ao novo conjunto dos Estados membros, e que, no plano das políticas mais onerosas, tenderá a favorecer aqueles que forem capazes de se autofinanciarem. Parece-me inevitável que daqui decorra uma União mais dual, menos solidária e, porventura, um quadro político-económico que pode acabar por constituir-se em alguma desilusão para os novos Estados aderentes.  Mas este é, com grande probabilidade, o preço que haverá que pagar para conseguir executar o novo alargamento, cuja dimensão e exigências deverão introduzir uma mudança qualitativa sem precedentes na própria natureza da União Europeia.


A gestão institucional

O modelo institucional nascido no Tratado de Roma, e que sofreu ligeiros, mas não radicais, processos de adaptação com os sucessivos alargamentos, foi instituído em torno de certos equilíbrios que partiram de realidades do pós-guerra, bem como do modo específico como os Estados do Benelux se situavam face ao binómio franco-alemão, com o factor italiano a ter de ser compensado em todos os cálculos.

Independentemente das peculiaridades dos modelos de desenvolvimento de cada um dos “Seis” iniciais, foi notório que acabou por prevalecer um padrão similar de desenvolvimento - e de fixação de políticas comunitárias para o respectivo apoio - em que esses Estados quase sempre acabaram, no essencial, por se rever, com reflexos óbvios no processo legislativo que iam gerando em Bruxelas como acervo comum, grande parte dele definido ainda num quadro decisório em que a unanimidade se mantinha como regra.

Os sucessivos alargamentos vieram entretanto introduzir algumas inevitáveis alterações aos equilíbrios criados no grupo inicial, nuns casos no plano de algumas opções políticas de fundo - por idiossincrasias nacionais ou constrangimentos de raiz histórica ou constitucional, como foi o caso da maioria dos alargamentos a Norte e Centro -, noutros casos com implicações muito fortes de raiz económica, derivados de graus de desenvolvimento diferenciado - de que os alargamentos a Sul são um óbvio exemplo.

Maugrado estas tensões, o sistema institucional conseguiu sempre resistir às pressões que sobre ele foram colocadas, em especial atendendo a que, em todas as fases, acabou por prevalecer na resultante decisória um padrão de desenvolvimento mais próximo dos interesses que eram comuns aos países fundadores e, por consequência, aos Estados mais desenvolvidos. Isto teve sempre uma tradução objectiva no processo legislativo e na gestão orçamental.

A circunstância de, a partir do Acto Único Europeu, se ter trabalhado mais através de decisão maioritária, com o Parlamento Europeu  envolvido através de uma cada vez mais frequente “co-decisão” desde Maastricht, acabou por reforçar a preeminência do padrão médio de interesses que já era então dominante no Conselho, dado que no PE se acentua ainda mais a diferenciação demográfica que, de uma forma geral, favorece os países mais desenvolvidos.

Tudo pode mudar, porém, com a perspectiva dos próximos alargamentos e dos seus reflexos nos equilíbrios actuais.


A revolta dos interesses

A concretizar-se o alargamento que se projecta para a União Europeia, no corrente processo negocial que envolve 12 países (a adesão turca deverá, realisticamente, ser encarada noutra perspectiva temporal), ele trará consigo um conjunto de Estados cujo padrão de interesses, no que toca ao seu nível de desenvolvimento, se situa manifestamente fora da actual média comunitária. Mesmo que todos possamos considerar que as potencialidades estruturais de muitos desses Estados podem vir a garantir-lhes uma rápida recuperação do seu atraso em matéria de desenvolvimento, a verdade é que esse não deixa de ser um cenário de futuro mais longínquo. Daí que, a curto e médio prazos, a esmagadora maioria desses países se situe em patamares mais próximos dos Estados menos desenvolvidos da actual União a “Quinze”.

Que consequências poderiam decorrer se, ao processar-se esse grande alargamento, fossem utilizados os mecanismos institucionais prevalecentes até Nice, por mera extrapolação automática dos mesmos, como foi acontecendo no passado ? Muito simplesmente, assistiríamos a uma espécie de reequilíbrio de forças no seio do Conselho de Ministros, na referida dualidade desenvolvidos/menos desenvolvidos, que, sem necessariamente menorizar os primeiros, daria seguramente aos segundos uma capacidade de pôr em causa aquilo que constitui hoje a sua capacidade incontestada de gerir a máquina comunitária. Daqui decorre a lógica dos esforços para conseguir uma reponderação ou uma consideração radical do peso populacional, que tiveram a sua expressão na dura discussão de Nice.

Do mesmo modo, e tendo em atenção o seu papel decisivo na promoção e desenvolvimento das políticas, deve ser entendido o esforço que foi desenvolvido por alguns com vista a evitar a fixação do princípio de um Comissário por Estado membro, tentando prevenir a possibilidade da presença igualitária no colégio de personalidades originárias de todos os países, logo, reequilibrando decisivamente uma instituição que, desde sempre, foi dominada pela ala mais desenvolvida da União.

As propostas radicais para a reforma institucional, que se espelharam nas ambições patentes em Nice, representaram, assim, como que a revolta dos interesses de quantos se habituaram a gerir com total liberdade a União do passado. A procura de modelos de compensação, ainda que a prazo, para evitar essa deriva constituiu o eixo de toda a estratégia da fase francesa da Conferência Intergovernamental. Uma lógica que, diga-se, contrastou de forma evidente com a que foi seguida pela presidência portuguesa da CIG, onde se procurou “dramatizar” o conflito “grandes” vs “pequenos/médios” Estados, por forma a extrair desse confronto um ambiente político-diplomático, com efeitos mediáticos e na opinião pública, conducente a um resultado mais equilibrado. O resultado de Nice pode ler-se como o saldo possível da tensão entre essas duas correntes.


As finalidades da União

Foi neste contexto global, que incorpora uma luta clara de interesses e um quadro de relações intra-estatais muito específicos, que Joschka Fischer proferiu o seu discurso e lançou as ideias que abalaram a União.

Partindo de uma leitura prospectiva das consequências do alargamento, aceite nas suas vertentes de imperativo ético-estratégico e impulsionador de desenvolvimento e estabilidade no espaço europeu, Fischer avança com a ideia de um tratado constitucional para uma Europa federal, assente num parlamento e num governo europeus. Respondendo a preocupações pressentidas em muitas partes, o conceito de Estado-Nação é preservado neste modelo, sendo avançada mesmo uma partilha explícita de competências que deve ser apoiada numa subsidiariedade constitucionalmente acordada. Para acalmar as inquietudes nascentes nos parlamentos nacionais, o órgão legislativo da Federação incorporaria duas câmaras, uma das quais composta por eleitos que fariam simultaneamente parte desses mesmos parlamentos. O papel central da Comissão Europeia é preservado, interrogando-se, contudo, o ministro alemão sobre se o papel do Governo europeu não poderia ser cometido ao próprio Conselho.
 
Convém começar por dizer que foi a própria presidência portuguesa da União, no primeiro semestre de 2000, que estimulou o debate nesta área, ao propor como tema da reunião informal de Ministros dos Negócios Estrangeiros, que teve lugar nos Açores, uma discussão sobre o futuro do modelo europeu. A nosso ver, começava a ser útil tentar perceber como cada Governo se colocava neste domínio, particularmente porque tal não era indiferente ao modo como encarava o exercício da Conferência Intergovernamental já em curso. O facto do MNE alemão ter vindo a público exprimir, de forma mais organizada, as ideias que já havia deixado nas Furnas, constituiu, contudo, um passo que foi, para muitos em que nos contamos, algo inesperado.

Qual pode ter sido a desvantagem da tomada de posição de Fischer ? Convém ter presente que o processo europeu evoluiu, ao longo dos anos, numa espécie de implícito consenso em não abordar o modelo final para onde poderia apontar a integração comunitária. No decurso dos vários momentos em que o processo integrador se reforçou, as medidas tomadas foram quase sempre de natureza pontual, baseadas no acordo face a necessidades progressivas, justificadas pelo evoluir das circunstâncias. De certo modo, foi adoptada uma deliberada ambiguidade neste caminho, evitando explicitar as suas finalidades últimas - as quais, diga-se, estão longe ser consensuais, mesmo entre os mais integracionistas. Foi essa ambiguidade criativa que permitiu gerir um progresso que conjugou povos e Estados com agendas de preocupações muito diferenciadas, com uma capacidade também muito distinta no modo como liam e lêem o processo integrador.

Abrir a discussão sobre o modelo europeu final, sobre o “fim da história” da Europa, torna-se, assim, indispensável? A nosso ver, isso só tem sentido se, com esse gesto, se pretender criar como que um “choque político” que acabe por separar as águas e definir quem está disposto a ir, desde já, avante e, do mesmo modo, seleccionar quantos se não dispõem por ora a esse passo. Para ser mais directo, abordar a finalidade última da União, no actual estado das opiniões públicas face ao projecto europeu, que não é independente do quadro de desafios e interrogações que às mesmas se colocam com premência, não pode deixar de representar senão a vontade de refundar o projecto europeu.

Esta é a tese que me parece resultar do discurso do MNE alemão: consciente da impossibilidade de preservar, com alterações sensíveis, um modelo institucional que as teimosas resistências nacionais impedem que se converta num permanente eixo do poder comum dos que entendem dever constituir-se no centro da governabilidade da União do futuro, a escapatória óbvia é sair para a ruptura federal. Nesta residirá, pela força económica das coisas, pela força política do diferenciado peso diplomático-militar e pela realidade demográfica, o novo modelo de poder que, por outros meios, garantirá aos Estados centrais da União o prolongamento futuro da sua capacidade de gestão do processo integrador, sem terem de se sujeitar a cíclicos processos de negociação, sobre tudo e com todos. O estabelecimento de um “Tratado no seio do Tratado” é, desta forma, um modelo elegante de consagrar a nostalgia dos fundadores do acordo de Roma.


Portugal e o modelo europeu

Gostava de deixar claro que, a título pessoal, não considero que, para um país como Portugal, a adesão a um projecto como o que é proposto seja necessariamente negativa, se bem que haja a necessidade de precisar alguns aspectos, antes de nos abandonarmos nos braços de uma deriva federal de contornos não totalmente explícitos.

Com efeito, convém ter presente que um país como Portugal não partiria para esta nova fase de uma situação de equidade. As estruturas da União, onde reside o poder funcional, estão hoje dominadas por uma burocracia altamente dependente dos Estados de maior dimensão ou dos que se situam, desde há muito, na sua proximidade estratégica. Teríamos assim que medir bem em que medida as vantagens que retiraríamos de um abandono das últimas salvaguardas da intergovernamentalidade seriam compensadas - e não necessariamente apenas em termos financeiros - com seguranças essenciais àquilo que entendemos dever definir como a capacidade mínima de controlo do papel do país numa ordem que entendemos sempre considerar externa.

A eventual consideração de um modelo federal por parte de Portugal também não é independente da circunstância desse modelo ter ou não capacidade para vir a impor-se no quadro europeu. Considerar determinadas opções pode, por vezes, ser uma atitude inevitável se uma omissão vier a revelar-se potencialmente lesiva dos interesses últimos do país. Proceder de forma diferente poderia ser um gesto de cómoda ressonância nacionalista, mas que provavelmente teria como consequência um novo ciclo de periferização no cenário europeu.


A intergovernamentalidade reforçada

Ao lado do discurso de Fischer, a proposta apresentada por Jacques Chirac tem a marca inevitável do modo particular como a França lê o seu próprio papel no cenário europeu e mundial. Ao retomar a ideia do “grupo pioneiro”, o presidente francês comunga da nostalgia dos fundadores do Tratado de Roma expressa por Fischer, mas coloca-se, rapidamente, numa arquitectura institucional que se distingue, muito nitidamente, do modelo europeu do responsável alemão.

Para Jacques Chirac, o imperativo do avanço separado dos “like-minded” com a visão da França não passa, necessariamente, pela instituição de um novo Tratado. Trata-se de aproveitar à exaustão a flexibilidade dos mecanismos institucionais actuais e trabalhar fora deles, independente do quadro que a UE consagra, se e quando tal se revelar necessário à prossecução dos interesses do “grupo pioneiro”, que não obrigatoriamente aos interesses da União. O desaparecimento ou enfraquecimento do papel da Comissão Europeia - que uma das opções de Fischer preserva, no essencial - revela em que medida esta proposta aparece marcada por uma tendência de reforço do papel do Conselho, onde a diferenciação de poder entre os países de diferentes dimensões surge como a chave do sucesso funcional, erigido este a princípio essencial do modelo.

Ao contrário do modelo federal, deveremos ter a coragem de afirmar que, neste caso, estamos já, sob a capa de um projecto de leitura do interesse europeu que se situa nas margens de um modelo de puro “directório”. Concedemos que essa possa ser a fórmula mais operativa para a consagração permanente de um condomínio do continente onde a França e alguns outros Estados possam realizar-se, provavelmente num quadro de progresso e de desenvolvimento com indiscutíveis virtualidades sectoriais, mas seguramente numa espécie de tutela paternal em que alguns entregariam a sua independência à “sagesse” de uma coligação de potências. Este não parece, definitivamente, um cenário que nos interesse considerar - como, aliás, estamos convictos que não colherá o interesse de muitos.


Prelúdio de um debate

Uma nova Conferência Intergovernamental está já prevista para 2004, com uma agenda esboçada em Nice (Dezembro de 2000) e cujo desenvolvimento foi feito em Lakaen, no último Conselho Europeu da presidência belga (Dezembro de 2001), antecedido de uma alargada Convenção para o futuro da Europa.

Os próximos anos não deixarão, assim, de proporcionar um debate aberto sobre o futuro do projecto de integração do continente, particularmente se se verificar que o modelo institucional que enquadra o alargamento se revela incapaz de preservar as ambições de controlo desse mesmo projecto por quantos se habituaram a geri-lo sem grandes peias.

Talvez então se compreenda melhor a razão pela qual Portugal defendeu na anterior Conferência Intergovernamental que se “revisitassem” as cláusulas das cooperações reforçadas: para evitar dar razões a quantos argumentavam que era a rigidez do modelo que proporcionava a ideia de trabalhar à revelia das instituições, tida como única forma de garantir condições para um aprofundamento eficaz.

A questão está em saber se, mesmo nesse quadro mais flexível, será viável controlar as tentações dos que crêem - provavelmente com as melhores intenções, mas que não têm forçosamente de ser as nossas - que o processo integrador só pode desenvolver-se se assente em alguns pilares nacionais tidos como predestinados para nos guiar num destino comum. Outros procurarão, porventura, utilizar a Europa como palco para projectarem uma ideia de si próprios que já só os manuais históricos recolhem. Todos estão no pleno direito de afirmarem os seus sonhos, embora também todos tenham de ter a consciência de que a Europa não é propriedade de ninguém e que tentar nela projectar simples e datados modelos de poder pode acabar por confirmar a versão de um clássico já pouco em voga segundo a qual “a História ocorre uma primeira vez como tragédia e uma segunda como farsa”.

(Publicado na revista “Política Externa” (vol 10, nº 3, 2001/2002), S. Paulo, Brasil, sob o título “Europa – o fim da História ?”.  Uma primeira versão deste texto foi publicada na revista “Política Internacional” (vol 3, nº 22, 2000), Lisboa).



6 de setembro de 2000

A Europa em perspectiva

Venho falar-vos da Europa, do processo de integração europeia. Acho que o momento é particularmente interessante, porque a América Latina atravessa hoje, precisamente, um tempo novo de reflexão sobre a possibilidade de encontrar fórmulas de conjugação supranacional para articular as suas economias.

A nossa experiência europeia é apenas um modelo entre outros. A nossa experiência parte de realidades muito diversas e as suas virtualidades, como exemplo, são forçosamente limitadas.

Os modelos políticos, ainda que de natureza internacional, são dificilmente exportáveis, mas têm o interesse de poderem servir de referência, com os seus sucessos e com os seus erros.

É esse o interesse que a integração europeia pode ter para o vosso caso e é meu desejo - sem querer ser pedagógico - torná-la mais compreensível aos vossos olhos, numa perspectiva tão actual quanto possível.

O facto de Portugal ter tido, pela segunda vez, a responsabilidade de presidir à União Europeia, durante o primeiro semestre de 2000, dá-nos uma visão ainda mais viva dos aspectos principais que estão em debate e do estado actual dos grandes dossiers.

As presidências da União Europeia, cujo regime rotativo tem sido contestado por alguns, são um momento único de afirmação para os países que as exercem. A possibilidade de transmitir à acção comunitária a especial sensibilidade de um país que exerce a presidência dá uma oportunidade para pôr em prática as vantagens da diversidade de perspectivas existente entre os Estados membros da União. Cada um contribui com aquilo que melhor conhece, nomeadamente no âmbito do seu relacionamento externo, e sabe-se que é da síntese dessas contribuições que resulta a riqueza do conjunto.

Mas há mais. Para um Estado membro, em particular para os de pequena e média dimensão, é da maior importância utilizar o seu semestre à frente dos destinos da União como um factor de dinamização da sua própria administração pública, mobilizando-a para as questões europeias. Podem crer que é um momento único de afirmação nacional que tem a maior importância. E essa é a razão pela qual, muito maioritariamente, os Estados membros da actual União dão sinais de pretenderem continuar a ter o direito de exercer rotativamente a Presidência.

É, assim, desta “varanda” privilegiada que foi a nossa recente Presidência que eu me proponho fazer a leitura da paisagem da Europa de hoje. Não será uma leitura puramente afirmativa, mas muito mais interrogativa. Não tenho certezas para vender, mas tenho a ambição de poder adiantar respostas possíveis para algumas dúvidas que, creio, podem ser também as vossas.

O que é que um cidadão interessado e informado - mesmo um cidadão exterior à Europa - vê quando olha para o projecto europeu e para o seu estado actual ?

Em primeiro lugar, julgo que lhe chama a atenção o debate em curso sobre o modelo futuro da Europa. Será que a Europa acabará por optar pelo modelo federal, ou ficar-se-á por uma mera confederação ? Será que o confronto dos nacionalismos, o peso diferenciado da história nacional de cada Estado membro, acabará por limitar a vontade de encontrar soluções institucionais para caminhar em conjunto ? Ou haverá uma nova ruptura, uma espécie de refundação da Europa, que junte, de novo, apenas um pequeno grupo de Estados?

Depois colocam-se as interrogações sobre o sucesso, ou o insucesso, futuro da moeda única - do euro, essa bandeira-símbolo da unidade europeia. O que pode, no fundo, significar a sua, aparentemente inexorável, perda de poder relativo face ao dólar ? Em que medida isso pode apontar no sentido da ruína do processo integrador, dado que a União Económica e Monetária parece ser o eixo central pelo qual se vai medir o êxito da própria União ?

Uma terceira questão está ligada à anterior. Se a moeda reflecte o estado da economia, será que o valor actual do euro significa que o padrão económico europeu está em contra-ciclo com as exigências de modernidade num quadro de globalização ? Será que o tão famoso “modelo social europeu”, que garantiu bem-estar e segurança por tantas décadas aos cidadãos comunitários, chegou ao fim das suas virtualidades, necessitando de reforma urgente ? Para ser mais directo: será que as exigências de competitividade numa economia globalizada são compatíveis com a rigidez dos modelos sociais que se praticam na Europa, nomeadamente no tocante à protecção social dos trabalhadores e aos modelos de legislação laboral ?

Uma quarta questão tem a ver com a Europa e o mundo. Todos falam da Política Externa e de Segurança Comum - da PESC - mas todos pressentem também que ela está apenas a dar os seus primeiros passos. A questão coloca-se: é possível uma política externa “verdadeiramente” comum numa Europa que é composta por países que têm, muitos deles, formas muito antigas e completas de afirmação diplomática própria, alguns deles com assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas ? Como é possível combinar esta diversidade com as muito contrastantes políticas de defesa, que vão da detenção de armas nucleares ao puro neutralismo e mesmo a uma certa cultura desarmamentista ? Será que a PESC pode, algum dia, ser algo mais do que uma média aritmética dos interesses comuns europeus ? Ou, melhor ainda, poderá a PESC ir mais além do que representar aquilo que é comum aos maiores e mais influentes países da União ? E como interpretar, neste contexto, as dificuldades evidenciadas pela União Europeia face à situação nos Balcãs ou, noutro cenário, a sua posição confessadamente incómoda perante o processo de paz do Médio Oriente ?

Um quinto ponto prende-se com os valores, com os princípios que os países da União devem partilhar em conjunto e que constituem o eixo da própria matriz ética da União. Neste contexto, como interpretar os preocupantes surtos de crescente violência a que assistimos em alguns países europeus, de que são alvo, em especial, os estrangeiros e as minorias étnicas ? Em que medida é possível compatibilizar a livre circulação de pessoas que o futuro alargamento da União aos actuais candidatos vai, cedo ou tarde, acarretar com esses sentimentos que crescem em muitos sectores da população da União ? E como evitar que esses sentimentos acabem por ter expressão política a nível partidário, com responsabilidades de Governo a nível nacional, como sucedeu no caso da Áustria ?

Gostava de os sossegar. Para todo este conjunto de questões há respostas ou pistas de resposta, não necessariamente uniformes mas suficientemente comuns para que possamos encarar com optimismo o futuro. O que não queremos é seguir uma política de euforia sem sentido, uma espécie de “política de avestruz” que esconda as dificuldades. É vital expor os problemas de crescimento da União, não para que eles nos limitem a vontade de ir adiante, mas para garantir que do debate saiam as soluções para o futuro. Se as dificuldades pressentidas pelos fundadores da Europa os tivessem desmobilizado à partida, a Europa nunca se teria construído. Eu diria mesmo mais: o eurocepticismo que hoje atravessa importantes sectores de alguns Estados membros é um sentimento provocatório essencial para adubar a nossa vontade em construir um processo comum. E o sucesso incontestável do que fizemos até hoje é o factor essencial que nos leva a estar francamente mobilizados para o futuro.

Mas vamos por partes.

Não vou falar das razões que estiveram por detrás da União do continente europeu, que foi fruto dos equilíbrios e desequilíbrios resultantes da segunda Guerra Mundial. Nem vou referir que ambiente de “guerra fria” serviu de cenário propício ao crescimento do projecto de integração, pelas razões que são óbvias.

Numa perspectiva actual, eu diria que a União Europeia se caracteriza por ser um processo institucional dinâmico que, tendo partido de um modelo de cooperação económica internacional, gerou elementos de supranacionalidade que começam a tentar reproduzir-se em áreas diferentes daquelas em que foram criados e, por essa via, estão a tentar condicionar e a prevalecer sobre as várias dimensões nacionais. Não estamos aqui perante um “monstro” que supera o criador - embora essa ideia negativa exista nalguns Estados. Mas estamos perante um modelo cujos acréscimos de eficácia parece, a muitos, só poderem ser garantidos desde que sucessivamente completados com mais integração, com mais instituições comuns, isto é, com mais Europa. E, para muitos, tendo como destino óbvio e desejável o modelo federal.

Mas será que, na Europa comunitária, todos estamos conscientemente no mesmo barco ? Um federalista belga ou um nacionalista britânico o que é que têm de comum ? E, no entanto, como foi possível ir tão longe como se foi em termos de integração, se tivermos em conta a diversidade de perspectivas que continuam a existir na família europeia ?

A resposta pode parecer provocatória, mas é a simples realidade: a progressiva integração da Europa teve lugar graças à manutenção de um certo equívoco e de uma certa ambiguidade subjacente a muitas das opções tomadas ao longo destas dezenas de anos. A Europa construiu-se porque, com inteligência, raramente se discutiu o modelo final - o “fim da História” da Europa - e sempre se avançou de forma gradual, passo-a-passo, assegurando que cada medida integradora era entendida por todos como pontualmente necessária, independentemente de poder haver divergências sobre o destino final.

Não vale a pena ter dúvidas: a ambiguidade foi a mãe da integração europeia, foi a única forma de compatibilizar Estados muito diferentes na sua história, na sua experiência constitucional e, em especial, na sua capacidade potencial para partilharem internacionalmente elementos da sua soberania. E foi, por essa via, a possibilidade de se criar uma cultura progressivamente comum que hoje nos identifica como cidadãos da União, para além das divergências de pormenor que nos dividem.

Em face dessa experiência anterior, desse cultivo do equívoco que tão bons resultados deu, é que se pode tornar de certo modo perigoso e delicado encetar, como alguns pretendem agora, um debate de fundo, com ar definitivo, sobre o modelo institucional futuro para a Europa. Para além do aspecto simpático do exercício académico, e do “agitar de águas” que isso representa, eu pergunto-me se, com esse debate, não acabaremos por acordar mais fantasmas do que entusiasmos.

Desta forma, eu penso que o caminho mais prudente é tentarmos permanentemente sublinhar o que nos une, particularmente num tempo de algumas incertezas e de alguns desafios.

E o que nos une é claro: o desejo de garantir em todo o espaço do continente um ambiente de paz, de estabilidade, de desenvolvimento e de cooperativa boa-vizinhança, assente nos valores comuns da democracia, da promoção da cultura europeia de liberdades fundamentais, das garantias comuns sobre o Estado de Direito e de estrita observância dos Direitos do Homem.

No plano económico e social, há uma aposta comum nas virtualidades da economia de mercado, temperada por um conjunto de conquistas sociais que hoje fazem parte de um património de garantias - embora, como disse, este continue a ser um terreno não fechado de discussão.

No plano político, é óbvio existir a vontade de afirmar a Europa no cenário mundial, não apenas para a afirmação dos seus interesses estratégicos, comerciais ou outros, mas para a promoção externa dos valores que defende e que considera deverem ser preservados e difundidos, num quadro de relacionamento externo marcado pela solidariedade e pela cooperação.

Tendo estes princípios tendenciais na sua base, e correndo o risco fácil da simplificação, eu diria que a Europa de hoje se confronta essencialmente com quatro grandes desafios:

         - realizar o seu alargamento a novos países, sem pôr em risco o modelo de integração já atingido e sem, por essa via, introduzir factores de instabilidade ou tensão nas suas zonas de proximidade geopolítica;

         - reforçar, nesse mesmo contexto, o seu modelo económico-social, com vista a garantir a preservação e o reforço da sua competitividade num quadro de crescente globalização e liberalização, procurando preservar os elementos essenciais do modelo social europeu tão laboriosamente construído ao longo de décadas;

         - construir um grande espaço europeu de liberdade, de segurança e de justiça, que dê pleno sentido à livre circulação das pessoas, preservando ao mesmo tempo os direitos e a segurança de todos os cidadãos, europeus ou não, que se encontrem no espaço comunitário;

         - encontrar um ponto de estabilidade institucional que permita a compatibilidade das várias dimensões nacionais que constituem a União, quer no seu processo de estruturação para-constitucional interno, quer no quadro da definição da sua política externa, nomeadamente no tocante à política de defesa e segurança.

E começaria pelo alargamento.

O final “guerra fria” colocou um dilema à Europa comunitária. Não era possível deixar sem resposta países que, acabados de sair de ditaduras comunistas, procuravam reforçar as suas jovens democracias, o seu desenvolvimento e, porque não dizê-lo, garantir a sua segurança pela sua ligação ao projecto de integração europeia. Não seria politicamente responsável - e seria estrategicamente trágico - não atender ao desejo destes países, aos quais, durante décadas, a Europa ocidental mostrara com orgulho, e como exemplo, o seu modelo de liberdade e de progresso.

O alargamento aparece, assim, como incontornável. Mas a que preço? Provavelmente com algum preço, nomeadamente no tocante à possibilidade de projectar todas as políticas numa União a 27 ou 28 membros, partindo dos 15 actuais. Sejamos realistas: salvo se os países mais ricos da União estiverem dispostos a fazer um aumento substancial das suas contribuições para o orçamento - que hoje ainda representa menos de 1,27% do seu PNB -, a União alargada terá que ser muito menos coesa que a actual. E atendendo ao ambiente financeiro muito restritivo que se vive na União, não creio serem de esperar grandes generosidades. Pelo que sou forçado a concluir que a União do futuro, para subsistir como unidade política onde todos possam participar, tem de ser menos solidária. Será isto a “Europa a duas velocidades”, de que tanto se fala ? Mas essa Europa já existe hoje. A vantagem de estar inserido na União Europeia é a possibilidade de todos poderem contar com alguns apoios para atenuar esses diferenciais de nível de vida e de bem-estar, não os agravando a partir de certo limite.

Independentemente desta realidade, estou contudo bem seguro de que a vantagem da integração para os novos membros será imensa, não apenas no plano político, mas igualmente nas áreas económicas e sociais. É um processo que tem alguns custos, alguns traumas, que tem sectores que terão impactos negativos, mas que tem vantagens a prazo muito evidentes. E se algum país pode ser disso testemunha viva, esse é o caso de Portugal.

E passaria à competitividade.

O grande debate que atravessa a Europa actual diz respeito à adequação do seu modelo económico-social, mesmo num contexto de moeda única, com o exigente ambiente de competitividade que se vive no plano mundial. Reconhecemos que a Europa criou, por boas razões, alguma rigidez nos seus mercados laborais, algumas “almofadas” nos seus sistemas de protecção social que, para muitos, explicam as suas dificuldades em se adaptar a uma economia mundial muito mais aberta e competitiva. Todas as vantagens que resultam da criação do grande Mercado Interno podem ficar em causa se não conseguirmos ganhar a batalha da competitividade externa. Eu diria mesmo mais: a Europa tem de perceber que a sua competitividade só se mede verdadeiramente quando sai desse Mercado Interno, o qual pode acabar por funcionar como um factor que mascara a sua efectiva perda de modernidade competitiva.

Além disso, mecanismos como a Política Agrícola Comum e certas práticas comerciais restritivas colocam, por vezes, a Europa do lado mais frágil no quadro internacional de comércio. Não gostaria de ir muito longe nesta última dimensão do debate, que se prende com a Organização Internacional do Comércio. É que para falarmos de liberalização nós teríamos de falar também de “dumping” social, de “dumping” ambiental, das condições socio-laborais de produção e isso levar-nos-ia muito longe, para muito longe da Europa... Mas refiro isto apenas para deixar uma nota das grandes questões a que não poderemos fugir no futuro - e este plural não é “magestático”: nenhum de nós poderá fugir a elas no novo ciclo da OMC que aí virá.

Fora deste quadro, eu gostaria ainda de chamar a atenção para o facto da Europa pressentir hoje que, para além das dimensões de liberalização que tem de considerar, há outros aspectos que precisa de tratar com urgência. A cimeira que, durante a nossa Presidência, realizámos em Lisboa evidenciou a vontade comum em caminhar para aquilo que poderíamos designar como a democratização urgente da sociedade de informação em todo o espaço europeu. Parece hoje claro que muito daquilo que é o diferencial de competitividade entre a economia europeia e a dos seus competidores, em especial os EUA, resulta dessa distância que ainda se verifica na intensidade de utilização das novas tecnologias, quer no tocante ao ensino e formação profissional, quer no uso que delas é feito pelos meios económicos, nomeadamente pelas pequenas e médias empresas. Um calendário de medidas comuns foi acordado em Lisboa, para as acções a nível da União e para objectivos a realizar pelos diversos Estados membros. A União, com este conjunto de medidas, propõe-se, no prazo de 10 anos, tentar reduzir esse seu atraso. Veremos se tal é possível.

Depois, vem a questão da livre circulação.

Tenho a sensação que, no seio das diversas sociedades europeias, só agora começa a ser clara a real dimensão deste problema. Os afloramentos racistas e xenófobos que se multiplicam em certos países europeus são reveladores de uma tensão potencial que pode ter o seu momento de explosão por alturas da concretização dos próximos alargamentos. Alguns estranharam a reacção dos “14” face à Áustria. Eu gostava que pensassem no que significa a expansão, a nível de Governos europeus, de linhas políticas marcadas por aquele tipo de sentimentos. Em particular, é importante prever o que poderá ser a criação de correntes, politicamente institucionalizadas a nível europeu, que limitem a livre circulação de pessoas e que assentem culturas de ódio nessa orientação.

A União tem de trabalhar muito rapidamente neste domínio, garantindo um quadro de medidas comunitárias que facilitem, não apenas a protecção de direitos, mas igualmente a criação de mecanismo de segurança que reforcem a confiança dos cidadãos. Torna-se importante uma estratégia coordenada de combate à criminalidade organizada, ao tráfico de droga, à corrupção, uma eficaz cooperação policial e uma transparente cooperação judicial em matéria civil, sem a qual a livre circulação não tem garantias. Este é um dos grandes desafios da União nos próximos anos, podem crer.

Finalmente, a questão institucional.

Como sabem, estamos neste momento envolvidos numa nova reforma do Tratado da União Europeia.

Gostava de chamar a vossa atenção para a circunstância de haver vários processos de reforma ou debate institucional em paralelo.

Na Conferência Intergovernamental (CIG), em que represento Portugal, estamos a discutir a divisão do poder dentro da União, o funcionamento dos mecanismo de votação e a estrutura de algumas instituições, como a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu e os Tribunais de Justiça europeus. É um debate que esperamos terminar em Dezembro, por forma a preparar a União para o alargamento.

Mas, como disse, há outras discussões em paralelo.

Uma é sobre uma Carta Europeia dos Direitos Fundamentais. Trata-se de uma iniciativa que tem um aspecto quase para-constitucional e que se destina a dar maior substância ao conceito de cidadania europeia. Com efeito, se a União começa a intervir cada vez mais na esfera de vida dos cidadãos, esses mesmos cidadãos têm que ter garantidos direitos vários, que devem ser respeitados pelas instituições da União e, em especial, pela sua produção legislativa. Isto é válido não apenas para os direitos fundamentais - nomeadamente os que decorrem da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - mas igualmente para os direitos económicos e sociais conquistados ao longo dos anos, bem como os chamados direitos de “terceira geração”, como os ligados ao ambiente, à bioética, etc.

Trata-se de um debate muito interessante, em que ainda se confrontam perspectivas diversas: os que pretendem dar valor jurídico fortemente vinculativo a esta Carta, introduzindo-a no Tratado; os que querem que ela tenha apenas efeitos declaratórios, deixando às constituições nacionais e às actuais convenções internacionais a tarefa de regular estas questões.

Um outro importante debate tem a ver com a política de segurança e de defesa.

Como sabem, coexistem na União Europeia diferentes tradições e filosofias neste domínio, desde os países que são membros da NATO, os que o são com algumas limitações, bem como os países de tradição neutralista, alguns dos quais com forças armadas fortes, outros meramente incipientes.

A questão está em saber se é possível dar força concreta a uma dimensão externa da Europa sem termos uma política comum de defesa. De momento, e para ser simples, convém registar que não há ainda uma vontade colectiva dentro da União para pôr em comum as forças armadas de todos os países da União, salvo para acções de cariz não defensivo, isto é, para acções humanitárias e de manutenção de paz. Mas a criação de estruturas militares interinas no âmbito da União Europeia, que se instalaram durante a nossa Presidência, pode constituir o primeiro passo para um caminho mais integrado em comum, o qual, no entanto - e convém que se diga -, não colocará nunca em risco os compromissos em matéria de política de defesa de cada Estado membro, nomeadamente os que são membros da NATO. A questão está em saber se é possível que todos sigamos esse caminho ou se não teremos de optar por um modelo que conjugue apenas alguns Estados da União, ficando os restantes com modelos diversos de articulação. É aquilo a que temos chamado, em linguagem da União, as “cooperações reforçadas” e que se está a discutir sobre se não será a única possibilidade de compatibilizar o aprofundamento da integração com uma cada vez maior diversidade da União, nomeadamente após o alargamento.

E passaria, brevemente, à grande discussão de fundo que por aí anda - e que, provavelmente, se prolongará por alguns anos. Será que a Europa caminha para um modelo federal, com um governo europeu e um Parlamento Europeu com os poderes legislativos tradicionais ? Ou será que o carácter intergovernamental vai prevalecer e, eventualmente, reforçar-se, por pressão dos parlamentos nacionais, que cada vez se vêem mais desapossados de poder ?

Gostaria de deixar-lhes, em traços muito breves, a minha opinião. Eu creio que o modelo europeu ficará sempre muito longe das tipologias federalistas tradicionais que, na sua maioria, vêm mesmo já do século passado. Julgo poder prever que nunca teremos uns “Estados Unidos da Europa”. A Europa terá de encontrar um modelo institucional atípico, onde os elementos supranacionais irão ter um papel cada vez mais relevante (a moeda única, a Comissão Europeia, os Tribunais Europeus), mas onde as componentes intergovernamentais terão sempre de estar presentes. Com efeito, não antevejo que em áreas como as políticas de defesa ou em domínios muito sensíveis da Política Externa e de Segurança Comum, ou de Cooperação Judiciária em matéria penal, possamos conceber uma comunitarização do processo de decisão. Além disso, estou convicto que os parlamentos nacionais, que nos últimos anos têm vindo a perder poderes para as instituições da União Europeia, vão, em breve, ter um papel de intervenção muito mais importante no contexto comunitário. Mas isto é uma previsão, que vale o que vale...

Julgo, contudo, que este debate vai acelerar-se e, em particular, pode ter um momento muito vivo se acaso a negociação em curso na actual revisão do Tratado chegar a momentos de alguma tensão, como eu espero que aconteça. Nessa altura, alguns poderão ameaçar optar por refundar um novo modelo europeu, mais homogéneo, onde se encontrem os que aparentemente partilham da mesma perspectiva e que não desejam ficar limitados pela vontade de outros de não ir mais adiante. É uma aposta arriscada, um projecto que pode ter como consequência quebrar a confiança dentro da Europa. E julgo que todos teríamos vantagens em evitá-lo. Na minha opinião, há ainda espaço para compromisso.

Deixei-lhes aqui, em traços muito largos, muitas interrogações e apenas algumas propostas de resposta para os dilemas com que se debate a União Europeia. Foi uma visão deliberadamente fria, que pretendi apenas que fosse realista. A Europa está manifestamente numa crise de crescimento, o que provoca sempre dúvidas e incertezas. Mas se perdemos tanto tempo com esta questão, se o resultado deste debate é tão importante para nós, isso é apenas a prova da relevância deste projecto que tão laboriosamente foi construído ao longo de décadas e cujas vantagens nenhum de nós quer perder. A União Europeia continua a ser hoje o lugar geométrico onde se conjuga a vontade comum de grande parte da população do continente no caminho do progresso e da estabilidade. E nós pretendemos que a Europa do futuro continue a ser para todos o outro nome da liberdade e da esperança.

(Versão portuguesa do texto “Perspectivas de evolución del proyecto de integración europea”, publicado na revista “Diplomacia” (nº 84, 2000), da Academia Diplomática de Chile. Reproduz uma conferência proferida do Instituto de Ciência Política da Universidade do Chile, Santiago do Chile, em 6 de Setembro de 2000.)



1 de julho de 2000

Refundar a Europa?

Muitos concordam que o modelo das actuais Conferências Intergovernamentais (CIG) para a revisão dos Tratados europeus parece dar mostras de estar esgotado. Sujeitos às conjunturas políticas internas, como calendários eleitorais e eventuais debilidades de apoio parlamentar, alguns Governos inclinam-se para agendas ou compromissos minimalistas, receosos em abrir “caixas de Pandora” que ponham em risco os processos de ratificação.

O facto dos novos domínios potencialmente passíveis de integração tocarem, cada vez mais de perto, cordas políticas sensíveis na ordem constitucional interna (defesa e segurança, justiça e assuntos internos, p.e.) faz com que a disponibilidade comum para saltos qualitativos de aprofundamento europeu seja cada vez menor - particularmente se pensarmos que esses saltos terão, em última instância, de congregar a vontade simultânea de todos os Estados.

Ao negociar no plano europeu, cada Governo está democraticamente limitado, não apenas pela sua respectiva situação doméstica, mas igualmente pela cumulação das conjunturas que determinam a atitude dos restantes parceiros. A experiência mostra que o resultado tende, crescentemente, a ser um denominador comum baixo, não vá algum parlamento nacional ou um referendo bloquear, no final, o compromisso colectivo.

As recentes polémicas sobre o modelo europeu, que se apoiam em propostas que, por vezes, não são tão federais quanto se quer fazer crer, são o sintoma de que alguns estão a ser tentados a optar por fórmulas vanguardistas de ruptura. O risco está em que essas fórmulas podem redundar em modelos de separatismo institucional, pondo em causa o percurso comum até agora conseguido.

Por essa razão, temos de ser capazes de superar as limitações do modelo actual de revisão dos Tratados, que assenta num acordo entre quem está episodicamente no poder, e tentar fórmulas mais abrangentes, que de alguma forma associem, a montante da decisão final, as oposições nacionais ou europeias ao processo decisório. O facto de estarmos a lidar com uma reforma que afecta, de forma decisiva, o perfil dos Estados nacionais no contexto europeu talvez justifique uma reflexão sobre se não poderíamos usar de maior imaginação e encetar um percurso novo.

A fórmula negocial que está a ser utilizada para a Convenção da Carta dos Direitos Fundamentais poderia, a meu ver, ser uma via a explorar. Associar os governos, os parlamentos nacionais e o Parlamento Europeu pode constituir uma solução que garanta uma reforma mais profunda, que comece a desenhar um novo caminho para o modelo europeu do futuro, que tem necessariamente que ser diverso das tipologias federalistas tradicionais, quase todas elas vindas já do século XIX.

Se fosse possível assegurar uma mobilização inter-institucional para uma reforma de fundo, com a participação daqueles a quem, em última instância, compete a decisão de aprovação da mesma, talvez as hipóteses do respectivo sucesso aumentassem. Sem que isso colocasse em causa o direito último dos governos, dos parlamentos nacionais e, se necessário, do eleitorado na tomada da decisão final.

Dirão alguns que isto pode aparecer como uma espécie de “salto constituinte”, sem precedentes no historial da União. A título pessoal, a minha resposta é uma pergunta: e porque não ?

(tradução de um artigo publicado no jornal francês "Le Monde", em 1 de julho de 2000)

3 de maio de 2000

A nova Europa em debate

Recentes tomadas de posição de responsáveis políticos europeus trouxeram a questão do alargamento para um registo algo polémico. Com efeito, ao aventarem-se novas hipóteses no eterno tema da data das próximas adesões, bem como preferências quanto aos países que integrarão o primeiro grupo a entrar na União, começa a criar-se a ideia de que nem todos lêem de modo idêntico aquilo a que nos comprometemos perante os Estados candidatos.

A esse ambiente acrescem opiniões de Jacques Delors, que colocam em dúvida que o alargamento, tal como está planeado, se possa fazer sem prejuízo do processo integrador. Para evitar essa deriva, o antigo e respeitado presidente da Comissão Europeia propõe mesmo a criação de uma “vanguarda” que assente nos países fundadores do Tratado de Roma.

Sem pôr em causa a legitimidade destas diversas opiniões, creio, contudo, que é igualmente legítimo que nos interroguemos sobre se é politicamente prudente estar a introduzir, nesta fase do processo de alargamento, elementos de indecisão e de incerteza que não deixarão de ser vistos com alguma perplexidade por parte dos países candidatos. E que, no limite, poderão mesmo suscitar dúvidas sobre o real empenhamento da União no próprio exercício.


A opção de Helsínquia

Nestas condições, parece importante que a Presidência deixe claro que as conclusões do Conselho Europeu de Helsínquia, em Dezembro de 1999, que têm servido de base ao trabalho que desenvolve neste domínio, continuam a ser a única orientação que vincula colectivamente a União.

Rectificando o que, em 1997, havia ficado assente no Luxemburgo, e na linha do que Portugal sempre defendera, Helsínquia decidiu dar a oportunidade a todos os anteriores candidatos para iniciarem o seu processo negocial. Tratou-se de um gesto que teve algo de voluntarista, mas perfeitamente justificado pela necessidade de dar um sinal de natureza política a Estados que estão a fazer, em maior ou menor grau, importantes esforços de reforma e que, em alguns casos, sofreram efeitos internos decorrentes da instabilidade que se agravou na região balcânica em 1999. A consciência de que a situação na Europa havia mudado desde a decisão do Luxemburgo obrigou a este novo gesto, a que a Presidência portuguesa procura agora corresponder de forma eficaz com a dinamização das negociações com os 12 candidatos.

Mas o voluntarismo político deve parar aí. A partir do início das negociações, cada candidato deverá ser avaliado exclusivamente em função dos méritos do respectivo esforço de aproximação aos padrões da União, sem considerações de qualquer outra ordem, mesmo que de raiz geopolítica. Entrar por um caminho diferente significaria incorrer em processos de discriminação, positiva ou negativa, susceptíveis de induzirem uma instabilidade ingerível no exercício negocial, que forçosamente acabaria por se descredibilizar.


Calendários e grupos

Uma questão que deve ser continuar a ser evitada nesta fase é a sugestão de datas, quer para o termo das negociações, quer para o próprio momento do alargamento.

Portugal tem sido de grande clareza neste domínio: sempre recusámos entrar no “campeonato” de simpatia para com os candidatos, avançando prospectivamente qualquer projecto de calendário. É uma atitude que, muito simplesmente, se baseia num sentido de responsabilidade.

Sabendo nós que, só agora, estamos a iniciar - precisamente sob nossa presidência - a discussão de alguns dos capítulos mais delicados da adesão (agricultura, livre circulação, aspectos financeiros, entre outros), afigura-se-nos de mera honestidade não estar a criar expectativas ou desilusões apoiadas em insuficiente fundamentação técnica.

Dos países candidatos temos, aliás, recebido sinais de perfeita compreensão pela coerência desta que é a nossa posição de sempre.

Nomes dos primeiros países que farão parte das próximas vagas de alargamento começam, também agora, a ser referidos em círculos europeus, com propostas diversas no tocante à sua agregação no momento das primeiras adesões. Também aqui há que ser prudente e rigoroso.

É óbvio que não vamos assistir a adesões “a conta-gotas”, com todas as implicações institucionais e outras que tal acarretaria. Os países entrarão naturalmente em grupos (recordamos que Portugal esperou um ano pela Espanha), mas seria incompreensível que Estados menos bem preparados pudessem, apenas por razões de proximidade geográfica ou de preferência geopolítica, ser privilegiados em detrimento de outros que, embora mais avançados no seu processo de aproximação aos critérios da União, não gozassem de tal situação.

O descrédito que tal opção acarretaria para o processo negocial, bem como os sentimentos de desconfiança na boa-fé da União que tal iria suscitar, são elementos que os dirigentes políticos europeus não podem deixar de ter em consideração quando, por vezes, se aventuram na explicitação pública das suas preferências entre os diversos candidatos.


As ideias de Delors

Finalmente uma referência às recentes propostas de Jacques Delors.

Ninguém mais do que o antigo presidente da Comissão deve merecer cuidadosa atenção quando se pronuncia sobre o projecto europeu. A sua obra passada e a lucidez de visão do futuro que sempre teve conferem às suas opiniões um peso diferente, que todos somos obrigados a ponderar.

Ousaria, contudo, dizer que as razões agora invocadas por Jacques Delors - se bem que correctas, numa perspectiva de rigor - aparecem deslocadas face ao tempo político que vivemos. Parece ser tarde para “parar para pensar” no que toca a um processo que vive muito da sua própria dinâmica, que se defronta mesmo com a necessidade de dar um impulso novo à vontade das opiniões públicas dos Estados candidatos, onde a adesão à ideia europeia começa, por vezes, a declinar perigosamente.

Por essa razão, mais do que pensar em reinstituir “vanguardas” históricas, que forçosamente trazem ressaibos de “directórios”, será talvez mais avisado tentar ultrapassar as dificuldades a que o antigo presidente da Comissão Europeia se refere de um modo consonante com os mecanismos já existentes.

As “cooperações reforçadas” aparecem, assim, como a forma mais adequada para garantir a possibilidade de, simultaneamente, superar os bloqueios da unanimidade numa União alargada, ao mesmo tempo que permitem aprofundar políticas em áreas em que nem todos possam ou desejem avançar em conjunto. O importante será assegurar que a transparência e o rigor de procedimentos se manterá sempre como regra neste domínio.

De todo o modo, a mensagem que nos parece essencial enviar aos países candidatos é a de que o nosso compromisso com o projecto de reunificação da Europa que o alargamento constitui se não perdeu. Para além das leituras conjunturais do sentido desejável de progressão do processo, o acolhimento de novos Estados mantém-se como um imperativo estratégico que a todos deve continuar a mobilizar, sem sombras de hesitação.

(Publicado no “Publico”, em 3 de Maio de 2000)

1 de janeiro de 2000

Reunificar o continente


Foi no seu francês impecável que o meu amigo romeno se despediu de mim, no final daquela tarde de Dezembro de 1997, no átrio do edifício pálido que a Europa tem como sede no Luxemburgo. O Conselho Europeu terminara e todos nos apressávamos para as conferências de imprensa da praxe, que antecedem o regresso às capitais. Das suas palavras breves ressoou-me a amargura pela decisão que a União acabara de tomar, ao dividir os candidatos ao alargamento em dois grupos distintos, abrindo rapidamente a uns as portas da negociação, deixando outros no limbo de uma avaliação futura com calendário imprevisível. “Tu sais, vous avez batî un nouveau mur et maintenaint il faut que nous le justifions chez nous” - atirou-me à cara, num sorriso triste mas sem azedume, sabendo que Portugal havia defendido uma posição diferente da que acabara por prevalecer.

Tentáramos, então, sem sucesso, evitar que se criasse uma nova fronteira psicológica que viesse a afectar os anseios de quantos viam na União o factor decisivo para a sedimentação das suas jovens e frágeis estruturas democráticas e, no fundo, a justificação para o custo das reformas que, com elevado preço social e político, os seus Governos procuravam levar a cabo. A circunstância desse meu amigo se exprimir numa língua que recordava a nossa raiz latina comum, deu-me, então, uma mais dramática consciência do divórcio artificial que a decisão colectiva acabara por consagrar.

Lembrei-me dessas palavras e dessa tristeza quando, há dias, em Helsínquia, a Europa finalmente reverteu por completo a decisão de há três anos e decidiu que os candidatos que então haviam ficado à porta da negociação poderiam, finalmente, iniciar a discussão do seu ingresso no clube comunitário. E, tenho que confessar, a certeza de que esse momento iria ter lugar durante a Presidência portuguesa da União deixou-me como que vingado da episódica derrota das nossas razões na cimeira do Luxemburgo.

Cerca de dois anos antes desse momento, num Conselho de Ministros em Lisboa, António Guterres havia relatado o sentimento estranho que detectara da parte de responsáveis de países candidatos à adesão, ao constatar que Portugal era visto como uma espécie de adversário de primeira linha do alargamento da União Europeia. A sua surpresa fora tanto maior quanto vira na cara dos seus interlocutores uma certa incredulidade quando afirmara, com a sinceridade que o nosso comportamento posterior só confirmou, que o seu Governo tinha como linha central de política europeia o apoio franco ao processo de abertura da União. Muito mudou desde então e Portugal é hoje visto, sem reticências, como um dos mais activos promotores do processo de alargamento.

Nesse contexto, o nosso país terá necessariamente que assumir a sua quota-parte nos custos económicos que a Europa comunitária suportará para poder acolher aqueles que se revêem no projecto de liberdade e de progresso que a União criou, procurando agora a oportunidade que a nós próprios foi dada a partir dos anos 80.

A nossa mensagem é muito clara: Portugal vê o alargamento como um imperativo de sentido estratégico a que é imprescindível dar uma inequívoca resposta positiva. Nenhuma leitura meramente economicista se poderá sobrepor a esta determinante política e, nunca por nunca, poderá justificar um posicionamento egoísta, cínico e irresponsável, dos que só sabem ler a História pelo prisma do imediatismo. Para Portugal, o alargamento constitui um elemento essencial para a desejável reunificação política do continente, que a abertura definitiva das portas de Brandeburgo nos permite agora ambicionar. 

No quadro europeu, alguns só terão acordado para os riscos do prolongamento das tensões nacionalistas e da ausência de uma estratégia global de promoção da estabilidade do continente quando foram confrontados com a tragédia do Kosovo e se capacitaram que, afinal, a guerra estava muito mais à sua porta do que supunham possível. Se houve alguma resultante positiva dessa tragédia, essa pode ter sido o sobressalto que, de certo modo, os obrigou agora a rever a decisão do Luxemburgo.

Não sabemos ainda quando Bucareste será um capital da União Europeia. Mas, para o meu amigo romeno, o ano que hoje começa é, pelo menos, um tempo novo de esperança e a certeza de poder continuar a contar com aqueles que, como nós, se obstinam em ter do projecto europeu uma visão solidária.

(Publicado no “Diário de Notícias”, 1 de Janeiro de 2000)



To a Romeninan friend


It was in his impeccable French that my Romanian friend bade me farewell at the end of that afternoon in December of 1997, in the atrium of the sad building that Europe has as its headquarters in Luxembourg.  The Council of Europe was ending, and we were all hurrying to the routine press conferences that preceded our return to capitals.  From his brief words arose a sourness about the decision the Union had just taken, dividing the candidates for enlargement into two distinct groups, quickly opening the door for negotiation to some, leaving others in the limbo of a future evaluation with no foreseen calendar.  Tu sais, vous avez batî un nouveau mur et maintenant il faut que nous le justifions chez nous” – he threw in my face with a sad smile without bitterness, knowing that Portugal had defended a different position than the one that in the end prevailed.

We did try, without success, to avoid that a new psychological barrier was created that could come to affect the anxieties of those that saw the Union as a decisive factor to the sedimentation of their young and fragile democratic structures and, in the end, a justification for the costs of the reforms that, with a high social and political cost, their governments had implemented.  The fact that my friend expressed himself in a language that echoed our common Latin roots, gave me, then, a more dramatic conscience as to the artificial divorce that our collective decision had ended up consecrating.

I remembered those words and that sadness when, days ago in Helsinki, Europe finally completely reverted its three year-old decision and decided that those candidates that had then been left at the door of negotiation could, finally, initiate the discussion on their entrance to the community club.  And, I must confess, that the certainty that that moment would take place during the Portuguese Presidency of the Union left me feeling vindicated for the defeat of our correct position in the Luxembourg summit.

Nearly two years before that moment, in a Council of Ministers in Lisbon, António Guterres had relayed the strange sentiment that he detected on the part of those from candidate countries to the enlargement, that Portugal was seen as a sort of front line adversary against the enlargement of the European Union.  His surprise was even greater when he saw the expressions on the faces of those interlocutors a certain incredulity when he affirmed, with a sincerity that our subsequent behavior only confirmed, that his government had as a central line for its European policy the franc support of the process of expansion of the Union. Much has changed since then and Portugal is now seen, without reticence, as one of the most active promoters of the enlargement process.

In that context, our country will necessarily have to assume its quota-part of the economic costs that the European community will have to support to be able to welcome those that are enveloped in the project of liberty and of progress that the Union created, seeking now the opportunity that was given to us after the 80’s.

Our message is very clear: Portugal sees the enlargement as a strategic imperative for which it is essential to give and unequivocal positive response.  No merely economic reading should dominate this determining policy and, which should never be justified through an egocentric positioning, cynical and irresponsible, by those that only know how to read history through the prism of immediacy.  For Portugal, the enlargement constitutes an essential element for the desirable political unification of the continent, an ambition that can now be sought after the definitive opening of the gates of Brandeburg.

In the European context, some were only made aware to the risks of dragging-out  nationalist tensions and of the absence of a global strategy for the promotion of stability on the continent when they were confronted with the tragedy in Kosovo, understanding, finally, that war was much more at their door than they had supposed possible. If there was any positive outcome of that tragedy, that one could have been the fright that, in a certain way, obliged them to review the Luxembourg decision.

We still do not know when Bucharest will be a capital in the European Union.  But, for my Romanian friend, the year that starts today is, at least, a time for new hope and for a certainty that he can continue to count on those who, like us, insist in having within the European project, a vision of solidarity.




Article published in “Diário de Notícias”, Lisbon, January  1st 2000