30 de novembro de 2015

Brasil - uma surpresa anunciada

Será que houve uma verdadeira surpresa quando o Brasil constatou, na sequência da segunda vitória eleitoral de Dilma Rousseff, em 2014, que as condições de governabilidade do país, em lugar de terem sido potenciadas pelo banho de legitimidade do sufrágio, mostraram, quase de imediato, uma significativa degradação, com efeitos visíveis na coesão da base político-partidária com que a reeleita presidente partia para o seu segundo mandato?

Não parece seguro. O que se passou a partir daí terá surpreendido muita gente pela forma como ocorreu – crises sucessivas no executivo, reforço inédito dos bloqueios parlamentares, impactos diários dos escândalos financeiros na máquina política – mas, verdadeiramente, fica a sensação de que o país pressentia que a estabilidade formal saída das urnas teria, mais cedo do que tarde, uma resultante que seria debilitante para a própria presidente.

O Brasil tinha assistido, na sua história contemporânea, a atos eleitorais muito tensos e divisivos, com momentos de agitação e até fortes clivagens em estruturas institucionais centrais. A eleição presidencial de 2014 não foi nisso diferente de algumas outras. Porém, pressentia-se, desde o início, que esta eleição tinha lugar num ambiente político, económico e social muito atípico. E que isso não deixaria de ter importantes consequências no futuro.

A crise económico-social

O Brasil das presidências de Dilma Rousseff foi quase sempre, no plano dos equilíbrios sociais, um país instável e imprevisível. Ela subiu ao poder quando os efeitos da crise internacional eram já muito patentes e o Brasil disso dava sinais, quando o glamour internacional dos países emergentes se tinha esbatido, com diretas consequências nos fluxos de investimento, efeitos cambiais subsequentes e impactos claros na capacidade orçamental para continuar a desenvolver o ambicioso corpo de políticas sociais em que assentara o sucesso dos anos Lula. Logo depois, viria o arquivar do sonho do biodiesel e a quebra no preço das commodities, com a queda do petróleo a colocar a exploração do pré-sal na prateleira e as receitas do país a caírem fortemente.

Os tumultos urbanos que o ano de 2013 testemunhou, e que 2014 reeditou, revelaram uma sociedade que, de uma forma politicamente difusa, atravessava um tempo de crescente mal-estar, de insatisfação perante o afloramento da inflação e um tecido de políticas públicas cuja qualidade e oferta se situavam muito longe da imagem que o Brasil político havia projetado do país e que a esperança numa vida bem melhor havia fixado nos anseios dos brasileiros. Cruzam-se pela primeira vez, nessas expressões agitadas de rua, diversas variáveis e vontades, com as redes sociais a amplificarem a revolta e os apoiantes do poder a revelarem a sua debilidade como contraponto político.

Estiveram por ali bem patentes as desilusões de uma crescente classe média que se confronta com gritantes deficiências nos sistemas de transportes, na saúde, na educação, na segurança pública e que, ao mesmo tempo, assiste, com escândalo, ao eclodir de casos flagrantes de apropriação privada de bens públicos, por uma pletórica classe política cumulada de mordomias. Dia após dia, o boca-a-boca do Twitter e os mídia, estes últimos aliados a um sistema de justiça que estimula os julgamentos de rua, foram criando um caldo de insatisfação que as “boas palavras” da direção política do país não conseguia atenuar.

A ausência de qualquer “estado de graça” posterior às eleições revela assim que o processo de legitimação que os sufrágios tradicionalmente reforçam cedeu de imediato o passo a esse mal-estar endémico, fruto de uma descrença na capacidade autorregeneradora do sistema político e na fiabilidade dos seus titulares.


A crise institucional e política

A crise política que o Brasil hoje atravessa é também marcada pela aparente incapacidade da sua atual matriz institucional para conseguir gerar soluções que, simultaneamente, respondam às necessidades imediatas em termos de governança do país, e que se apresentem com um mínimo de condições de sustentabilidade em termos de aceitação popular futura.

Se o modelo constitucional brasileiro, em especial o cariz presidencial do regime, não pareceu nunca em sério risco, já o sistema de representação partidária, com expressão parlamentar, que vive sob fortes e generalizadas críticas, não se afigura dar mostras de conseguir decantar uma fórmula alternativa, com possibilidade de uma estável aceitação.

Os apelos à “reforma política” – expressão que faz parte do mantra regenerador com que a classe política há vários anos quer dar mostras de ser capaz de evoluir – confrontam-se com o peso esmagador do sistema instalado, quer ao nível federal, quer a nível dos Estados. Não é, por ora, previsível até onde poderá ir a vontade para uma efetiva reforma, sendo no entanto claro que, na óbvia ausência de uma pulsão constituinte de largo espetro, ela dificilmente ultrapassará algumas mudanças adjetivas.

A associação do Partido dos Trabalhadores (PT), principal suporte da presidente, aos escândalos mais recentes parece uma evidência incontestável, sendo embora verdade que os estilhaços da corrupção se espalham por muitas outras áreas do sistema partidário.

De certo modo, se olharmos para o primeiro mandato de Dilma Rousseff, há que reconhecer que a sua atitude de ir afastando do executivo todas as figuras associadas a ilícitos graves foi o primeiro passo positivo para o “saneamento” ora em curso. Com toda a evidência, a limpeza desse sistema está a ser mais profunda do que a presidente teria previsto, sendo que, por ora, o seu próprio nome nunca foi objeto de acusações de impropriedade pessoal, não obstante a sua responsabilidade política esteja cada vez mais passível de inculpação.

Para agravar a posição de Dilma Rousseff, o PT, de onde deriva o seu principal suporte político, está a ser objeto de uma diabolização que, tendo muito de oportunismo ideológico em momento de refluxo de poder, configura igualmente uma compreensível reação geral de repúdio face às revelações de que esse partido deu provados passos no sentido de criar um “aparelhamento” da máquina político-administrativa do país. Nada que fosse novo no Brasil, embora talvez com uma expressão quase inédita de utilização partidária de recursos públicos. Mas o facto de isso ser assumido por uma formação política que, na sua origem, se fez passar por um modelo de ética e pureza ideológica, confere-lhe uma imagem de insuportável hipocrisia.  


O fator Lula

A mitologia política brasileira defendia que “Lula elege um poste”. Não sendo as coisas necessariamente assim, Lula acabou por ser o fator decisivo, quer na primeira eleição de Dilma Rousseff – onde a “vendeu” a um país onde, à partida, era bem menos conhecida do que o seu opositor, José Serra –, quer, talvez de forma ainda mais decisiva, na disputada e tensa eleição de 2014. O carisma do antigo presidente, que mostrou sempre uma grande lealdade face à sua “criação”, terá sido o elemento diferenciador que permitiu a Rousseff arregimentar grande parte dos setores do eleitorado que se mantém tributário do imaginário do sucesso das políticas sociais dos “anos Lula”.

A grande questão que se coloca no Brasil pós-Dilma voltará a ser o papel de Lula da Silva. Depois de ter sido um, nem sempre discreto, back-seat driver em certos momentos dos consulados da sua sucessora, o antigo presidente dá mostras de uma clara apetência para regressar à ribalta política, tendo as eleições de 2018 como uma meta cada vez mais evidente.

Não é, porém, nada claro que Lula da Silva consiga vir a transportar a sua imagem vitoriosa do passado para esse futuro ainda distante, num tempo em que os escândalos em torno de Dilma Rousseff e do PT se colam, dia após dia, à imagem da sua própria administração. Se, no passado, parte do Brasil havia separado, de uma forma quase deliberada, o anterior presidente das evidências criminosas do “mensalão”, a lealdade demonstrada por Lula à gestão de Dilma não parece deixar-lhe espaço para vir a definir um rumo autónomo, e visivelmente diverso, no caminho para um possível regresso ao poder. Se Lula vier a ser candidato em 2018, só o poderá ser reivindicando o saldo dos mandatos de Dilma Rousseff – e vê-se mal como isso poderá funcionar em favor do seu prestígio.

Contudo, uma coisa parece hoje clara. Se foi Lula quem historicamente criou o Partido dos Trabalhadores, depois deste evidente fracasso de Dilma Rousseff só Lula parece ainda possuir a residual chave da “salvação” de um partido que, sem ele, pode ter destruído, por muitos anos, as hipóteses do regresso ao poder de uma esquerda popular, de matriz socializante. E que, colocado na oposição, tem condições para se tornar um fator de instabilidade político-social muito forte, em especial num Brasil onde as clivagens sociais tenham tendência a não se atenuarem.


A hora do PMDB ?

Se Lula da Silva e o PT surgiram, por alguns anos, no palco da evidência política e doutrinária do Brasil contemporâneo, isso só foi possível porque contaram, para além de um conjunto de pequenas formações partidárias a quem foram distribuídas “fatias” de poder, com o apoio institucional daquele que, desde a reimplantação da democracia, é o eixo central da vida política brasileira – o Partido do Movimento Democrático Brasileiro, PMDB. 

Torna-se difícil explicar, sob uma matriz europeia, a génese de uma formação que, historicamente, tem podido estar, simultaneamente, no poder e manter alguns dos seus setores e das suas figuras próximos da oposição ou, outras vezes, exercendo uma pontual obstrução reivindicativa aos executivos, titulando interesses muito variados e, não raramente, algo contraditórios.

Nascido do MDB, a formação que a ditadura militar fez criar como contraponto da sua dócil “Arena”, por forma a manter a ficção de um “congresso” que sempre manipulou a seu bel-prazer, o PMDB é hoje o maior partido brasileiro. Pode dizer-se que grande parte das forças políticas do Brasil democrático são originárias do PMDB, com destaque para o PSDB (Partido da Social-Democracia Brasileira), que tem como figura tutelar Fernando Henrique Cardoso e apresentou como seu candidato às eleições presidenciais de 2014 o antigo governador de Minas Gerais, Aécio Neves.

Poucas vezes, desde o restabelecimento da democracia em 1985, o PMDB teve uma expressão institucional tão forte, em especial no seu peso político a variados níveis. Presente em pastas importantes do governo e fazendo formalmente parte da “base governista” apoiante de Dilma Rousseff, em especial através do vice-presidente Michel Temer, o partido, que hoje lidera o Congresso (Câmara de Deputados e Senado, de que detém as presidências), parece dar mostras de querer forçar uma pouco subtil deriva parlamentarista, claramente explorando a fragilização política da presidente. Não é muito claro até onde esta tensão pode levar, parecendo evidente a muitos observadores que Michel Temer não se exclui como solução para um cenário extremo de crise.

As eleições de 2014 revelaram um país fortemente dividido, regional e socialmente. Em caricatura, com algumas manchas de diferenciação no modelo, o sufrágio levou a constatar que há uma linha divisória que separa o Brasil que conseguiu fazer eleger Dilma de uma outra parte do país onde o seu voto foi muito mais escasso e o poder do PT parece estar em forte perda, mesmo em áreas onde, no passado, tinha uma histórica implantação.

Não é claro o que o opositor presidencial de Dilma, Aécio Neves, poderá vir a fazer com o excelente resultado que conseguiu obter nas urnas e, em especial, se o PSDB virá a revelar, em futuros sufrágios, um potencial de afirmação que lhe permita sugerir-se como o sucessor natural, no exercício do poder, do eventual declínio do PT.

É que os últimos tempos parecem revelar que o PMDB poderá vir a abandonar o seu tradicional modelo contido de afirmação institucional e revelar ambições maiores na assunção de responsabilidades políticas a todos os níveis do poder. Mas esta é uma questão a que só o futuro poderá responder. 

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Brasil – Portugal

A eclosão da crise económica, com os seus efeitos diferenciados em ambos os países, bem como a saída de Lula da Silva da presidência parece terem tido um impacto negativo na atual densidade das relações entre o Brasil e Portugal, da política à economia. 

Dilma Rousseff não herdou, claramente, a afetividade que o seu antecessor tinha por Portugal e, numa administração como a brasileira, isso tem imediatas repercussões no comportamento de todos os agentes públicos. Nenhum sinal exterior contraria, aliás, esta generalizada perceção.

Alguns dossiês bilaterais parece terem ficado reféns desta nova atitude: as questões do reconhecimento de diplomas, a imposição de um novo regime de bolsas de estudo, especialmente gravoso para as universidades portuguesas, bem como a persistência ou emergência de dificuldades de natureza não-pautal que afetam o acesso de produtos nacionais ao mercado brasileiro, em especial na área agroalimentar.

Também em algumas dimensões multilaterais, em que a Portugal era importante garantir o empenhamento brasileiro (CPLP e Comunidade ibero-americana), a chefe do Estado brasileiro parece dar nota de algum desinteresse, que, aliás, vai de par com a sua atitude geral de menor atenção pelas relações externas.

No investimento, depois do ciclo de privatizações brasileiras dos anos 90 ter conduzido a um fluxo importante de capitais portugueses, seguido por um surto de PME locais criadas com dinheiros idos de Portugal, vem a assistir-se, nos últimos anos a uma acentuada retração, em praticamente todos os setores. Em direção oposta, o capital brasileiro, que não tinha uma tradição significativa de expansão para o mercado português, viu reforçada a sua presença no nosso país.

Os fluxos comerciais sofreram um forte impulso, muito embora uma análise fina desses movimentos continue a revelar a predominância de produtos com escasso valor acrescentado.
Finalmente, os fluxos turísticos brasileiros para Portugal mantêm uma expressão muito interessante, graças à importante “estrada” aberta pela consagração da TAP como o grande transportador entre o Brasil e a Europa. 


(Artigo publicado no "Janus - Anuário de Relações Exteriores", nº 17, publicado em Novembro de 2015)

8 de outubro de 2015

O lugar de Portugal

“Portugal não é só uma nação europeia e tende cada vez mais a sê-lo cada vez menos”. Era assim que Salazar, o ditador paroquial que dirigiu o país durante mais de quatro décadas, olhou o destino coletivo que teimou em tutelar. Um destino que, para todos nós, mudou subitamente, numa noite de abril de 1974, quando os militares, que por muito tempo haviam sido a guarda pretoriana do regime, decidiram pôr fim àquele pesadelo, cansados que estavam das insensatas guerras africanas e do regime parado no tempo que as conduzia. É sobre essas aventuras do destino português e do lugar do meu país no mundo que lhes venho aqui falar.

Fui diplomata por quase quatro décadas. Entrei para essa profissão no auge da revolução, num tempo de muitas incertezas mas de bastantes mais esperanças. Portugal parecia ter renascido, dava ares de estar recém-acordado de um pesadelo. Tudo era então possível, aos olhos otimistas dos seus cidadão. O mundo sorria-nos e, para muitos, tinha chegado o momento de tentar dar ao país um novo destino. Essa ilusão de que comandávamos o nosso próprio futuro, que tinha muito de ingénua, era também ela muito “portuguesa”.

Quando deparo com algumas explicações filosóficas sobre o que é “ser português” devo dizer que sinto sempre a tentação de tentar descriptar essa realidade. Portugal é um país simples, os portugueses não têm por hábito refletir muito sobre o seu destino, quem sabe se para não serem confrontados com respostas que lhes desagradarão. Vendemos a nós próprios a ideia de que, sendo um país antigo, um dos mais velhos países do mundo, não temos necessidade dessa introspeção futurologista.

Talvez por isso, porque o que aí vem é sempre fonte de interrogações incómodas, olhar o passado foi, durante muito tempo, o nosso passatempo nacional favorito. O regime ditatorial cultivava esse orgulho nacionalista, fazia-nos tropeçar, a cada dia, nas glórias dos Descobrimentos, nas sagas africanas, nas viagens nas frágeis “caravelas” por mundos desconhecidos. É verdade que esses foram tempos extraordinários em que um país com um milhão de habitantes se lançou pelo globo, circundou e conquistou muita África, descobriu pelo caminho o Brasil, foi uma potência comercial no Golfo, estabeleceu-se por séculos na Índia, ficou por largos tempos na China, vendeu as primeiras armas ao Japão, palmilhou as ilhas indonésias. 

Costumo dizer que, se acaso Portugal fosse um país rico, com capacidade para projetar pelo mundo, em filmes ou em cátedras, essas aventuras fantásticas de Quinhentos, a nossa imagem seria hoje outra. Mas logo sou levado a concluir que por alguma razão é que não somos um país rico…

Há uma anedota, um tanto auto-flagelatória, que os portugueses contam sobre si próprios. Um português diz para o outro: “Como é possível que nós, descendentes dessa gente que foi pelo mundo fora, de um país minúsculo, que criou um império grandioso, sejamos hoje os habitantes daquele que é o Estado mais pobre da Europa ocidental”. O outro interlocutor, mais cínico, mas talvez mais realista, responde-lhe: “Estás enganado! Nós não somos os descendentes dessa gente, dos que foram pelo mundo fora, dos que “deram novos mundos ao mundo”. Nós somos descendentes dos que ficaram por aqui…”.

Nunca saberemos onde está a verdade e, na realidade, isso talvez não seja muito importante. Constato que os portugueses de hoje são, cada vez mais, algo frios ao analisar o seu destino. São capazes, e este texto é também uma prova disso, de levar a cabo exercícios de auto-análise de onde a sua imagem pode sair menos bem. Mas com muita facilidade se zangam com quantos, sendo estrangeiros, lhes ferem a dignidade, por apreciações que entendem injustas.

Portugal tem consciência da imagem que sobre si há muito sobrevive pelo mundo. Nesse retrato somos pintados como um país sempre nostálgico do tal passado de grandeza, incapaz de ter a força de vontade e de organização para nos transformarmos, de uma vez por todas, num caso de sucesso.

Quando olhados do Norte da Europa, os portugueses são vistos como um povo amável, capaz do sofrimento, que tem momentos episódicos de excelência que, contudo, parece não ser capaz de sustentar, por falta de perseverança, por um tropismo para a desistência, por uma dificuldade atávica de levar as coisas até ao fim.

Até na forma desajeitada como tentou fazer sobreviver um império colonial parado do tempo Portugal se revelou ao mundo como menos capaz de controlar o seu próprio destino. Nos dias de hoje, na nova Europa, o país surge ainda aos olhos de muitos como uma entidade cuja fragilidade conduz a que o seu futuro dependa, em grande parte, das decisões dos outros.

Mas, afinal, como somos, como é que fomos moldados pela História, como é que nos colocámos, ao longo do tempo, face ao mundo exterior? Que medos nos tolhem os movimentos? Que mitos nos absorvem as ambições? Como é que nos tornámos no que hoje somos? E, finalmente, como olhamos para a Alemanha?

A grande vantagem deste tipo de reflexões é que todas as ideias que se possam adiantar sobre temas tão polémicos e emocionais acabam por ter um pouco de verdade, misturada com alguma fantasia e com a vontade de que o futuro acompanhasse os nossos desejos. Como costumamos dizer em Portugal, relativizando a autoridade das nossas certezas, tudo isto “vale o que vale”.


O inimigo de Castela

Na infância da minha geração, passada durante a ditadura salazarista, a doutrina oficial, propagada nos livros e induzida a todas as crianças, era a de que o perigo para a existência de Portugal como Estado independente vinha exclusivamente de Espanha, mais precisamente de Castela. É verdade que a História provava que o apetite de Madrid para fazer coincidir a sua soberania com o mapa da península ibérica se manteve por muito tempo. A História não mentia. Durante 60 anos, entre 1580 e 1640, os reis espanhóis (três reis sucessivos, todos chamados Filipe), chegaram a reinar sobre Portugal e só uma obstinada revolta pôs fim àquilo a que ainda hoje chamamos o “período filipino”.
Embora o atual rei de Espanha seja de novo um Filipe, não creio que alguém em Portugal tema hoje a tutela espanhola, que agora apenas se exerce na área económica, como resultado natural do peso diferenciado da sua economia, numa Europa completamente aberta à competição.

Ainda antes da Espanha existir como um todo, Castela era o retrato do inimigo natural de um país que tem um único vizinho terrestre e que, com exceção de algumas dezenas de quilómetros, mantém a sua fronteira inalterada desde há quase nove séculos. De facto, a haver algum risco exterior para a soberania portuguesa – e vários houve – o perigo só podia vir de Espanha. Mas a verdade é que a última vez em que esse risco existiu de forma concreta foi durante as invasões napoleónicas, no início do século XIX, quando Paris chegou a planear com Madrid a partilha de Portugal.

No entanto, na doutrina diplomática portuguesa, mesmo para além da primeira metade do século XX, o “perigo espanhol” era a constante linha de defesa psicológica do país. Salazar cultivou-a, por detrás dos entendimentos formais que fez com Francisco Franco, nessa aliança de ditaduras que tentava escapar a um mundo exterior que o seu peso político não tinha condições para condicionar. Mesmo detestando-se, os dois ditadores ibéricos estavam unidos pelo seu anti-comunismo, que sempre rimou bem com os interesses ocidentais na Guerra Fria.

Só a entrada comum de Portugal e de Espanha para as instituições europeias, bem como a estabilização da presença mútua na NATO, viria a atenuar estes temores e a criar um discurso mais compatível com a modernidade de um mundo que, pelo menos nas suas zonas democráticas não vive já assoberbado por esse tipo de fantasmas.


O império

Regressemos um pouco atrás. Portugal começou a perder o seu império com a independência do Brasil, em 1822. A verdade é que o espaço imperial que nascera da fantástica aventura dos portugueses, a partir do século XV, era já então uma sombra daquilo que fora em outras eras. Por falta de massa crítica no seu território europeu e pela pressão de poderes coloniais concorrentes, Portugal foi-se enfraquecendo como poder global, com uma economia onde nunca conseguiu aproveitar devidamente a extensão das suas conquistas.

No início do século XIX, o Brasil era, a grande distância, a “jóia” mais valiosa e não é por acaso que a coroa portuguesa, acossada pelos exércitos de Napoleão, vai procurar refúgio nessa sua colónia sul-americana. Na Ásia e Oceania, Portugal mantinha uma presença residual em Timor, geria uma simbólica aldeia chinesa chamada Macau, possuía postos já sem o menor significado económico na costa ocidental do Industão. Em África, conservava apenas possessões com presença essencialmente costeira, embora fosse a partir das colónias africanas que Portugal explorava o mercado de escravos, rendoso negócio a que o século XIX iria pôr termo.

A independência do Brasil, que significou o fim da sua mais rica colónia, marcou o início inelutável do declínio português. Politicamente, terminava também no Portugal europeu o “ancien regime” e, como resquício das ideias das “luzes” que as tropas napoleónicas possam ter deixado, abria quase um século de um novo regime monárquico liberal, politicamente instável, divisivo e com escassos recursos económicos. Sem capacidade para extrair das restantes colónias riquezas que permitissem sustentar o seu desenvolvimento, Portugal iria atravessar, até 1910, ciclos políticos de grande instabilidade. 

O Reino Unido, embora mantivesse alguns conflitos com Portugal por virtude de algumas ambições africanas concorrentes, sustentava uma tutela permanente sobre o posicionamento estratégico de Portugal. Londres, como “protetor” de Lisboa face às potenciais ameaças de Madrid, geria habilmente uma influência que se prolongaria por muitas décadas, atravessando todos os regimes portugueses, até à recuperação da democracia, em 1974.


A República

Em 1910, em Portugal, nasceu a segunda República do continente europeu, após a francesa. Foi um regime fraco, assente numa burguesia urbana que se quis ver livre de uma monarquia desprestigiada, abalada pelo assassinato do penúltimo rei, em 1908.

A nova República foi instalada num país pobre e com um projeto nacional assente na miragem de ainda poder vir a usar o seu império colonial como alavanca para um futuro de glória, há muito adiado. Portugal entrou na I Guerra Mundial exclusivamente para defender as suas colónias, para poder ter um lugar à mesa negocial do final do conflito. Consegui-o, mas as vantagens foram escassas.

As sequelas da guerra deixaram arruinados os cofres do país, as tensões políticas internas foram agravadas e nas Forças Armadas, marcadas negativamente no seu orgulho pelas perdas sofridas na Flandres, emergiram simpatias por tendências políticas autoritárias, em sintonia com o que surgia em alguns países europeus. Em 1926, o exército, através de um golpe de estado, colocaria um termo à primeira e breve experiência republicana, abrindo caminho a quatro décadas de supressão de liberdades no país.


Salazar

O “Estado Novo”, o modelo constitucional criado por Salazar, a quem os militares portugueses entregaram entretanto o poder, seduzidos pelas suas capacidades como “mago das Finanças”, foi um regime que prendeu e perseguiu largos milhares de pessoas, abafou a vida intelectual, coartou as liberdades públicas, desenvolveu escassamente o país, atrasando-o em matéria de educação e qualificação.

A “realpolitik” da tutela britânica protegeu sempre Salazar, ajudando mesmo a abrir caminho a uma cooperação mais intensa com Washington, que teve o seu mais flagrante exemplo nas facilidades até hoje concedidas aos Estados Unidos da América nos Açores. Durante a Segunda Guerra Mundial, o ditador procurou habilmente preservar uma equívoca neutralidade, a qual, à medida que a situação se desequilibrava em favor dos aliados, se transformou naquilo que ficou qualificado de “neutralidade colaborante” – porventura a expressão mais cínica e que melhor define o oportunismo da diplomacia do ditador.

Com o fim da guerra, mas já no auge da Guerra Fria, os aliados terão decidido não forçar Salazar a democratizar o país, temerosos com uma possível deriva do país para o comunismo. Os portugueses foram assim condenados pelos seus aliados ocidentais – Portugal foi fundador da NATO, a Espanha não – a continuar a sofrer, por mais algumas décadas uma ditadura, com regulares farsas eleitorais, proibição dos partidos, censura permanente à imprensa, presos políticos e torturas. O ocidente conviveu sempre bem com o autoritarismo salazarista e Portugal comprava esse silêncio com facilidades militares concedidas aos EUA e à França nos Açores, bem como à Alemanha em Beja. A ditadura portuguesa nunca perturbou excessivamente as consciências democráticas europeias e americana.

A eclosão das revoltas coloniais viria a colocar Salazar sob forte pressão internacional, num mundo em que as potências colonizadoras europeias já se haviam resignado a promover a independência das suas colónias. Em 1961, Angola iniciou a sua luta anti-colonial e, no final desse mesmo ano, a União Indiana invadiu os poucos territórios que Portugal aí ocupava desde há quatro séculos. Em 1964, Moçambique e a Guiné-Bissau pegaram também em armas. A década seguinte seria terrível para Lisboa, com guerras em três frentes e uma crescente pressão exterior. O mundo ia isolando Portugal nas instâncias multilaterais, mas os aliados ocidentais continuaram discretamente a ajudar à sobrevivência do regime ditatorial através de investimentos e comércio.


Depois dos cravos

No amanhecer do dia seguinte à Revolução de 25 de abril, muitos poucos terão imaginado que o lugar de Portugal no mundo ia ser fortemente afetado por essa sua escolha própria e pelo modo como o país passaria a ser observado pelo mundo exterior.

Alguma perplexidade sobre a situação daquele pequeno país no extremo ocidental da Europa, feita de curiosidade e interrogações, atravessou as opiniões públicas pelo globo, depois da vitória dos capitães revolucionários em Portugal, com cravos nas pontas das espingardas, um retrato que tinha algo de folclórico e muito de contraditório – normalmente, os golpes de Estado militares não ocorriam para implantar democracias…

O sentido do novo regime político foi atravessado, desde o primeiro momento, por uma tensão entre quantos desejavam uma rutura profunda com o passado e aqueles que temiam que um salto radical acabasse por ter efeitos que o país não absorvesse e que o mundo não aceitasse. O ambiente “esquerdista” do início a Revolução era visto com alguma preocupação por setores ocidentais, que temiam que, de um dia para o outro, um fiel aliado da NATO pudesse transformar-se num parceiro imprevisível e incontrolável.

O surgimento do Partido Comunista, não apenas à luz do dia, mas principalmente no seio do próprio Governo, não ajudou a afastar estes receios e causou alguma perturbação internacional (embora, sete anos mais tarde, a França viesse a fazer, também de forma inócua, a mesma experiência). Essas dúvidas foram ainda agravadas pelo facto da União Soviética e os seus satélites se terem, de imediato, movimentado na direção de Lisboa, tentando desequilibrar as contas da Guerra Fria, cujo termo, recorde-se, só iria ter lugar um quarto de século depois.

Mas se o novo regime no Portugal europeu era uma considerável incógnita, muitos perceberam de imediato que era nas colónias africanas que um novo “great game” se ia jogar.

A Revolução fora feita com dois evidentes objetivos: democratizar Portugal e pôr fim às três guerras coloniais que Portugal mantinha em África (Angola, Moçambique e Guiné-Bissau). O destino de Angola era aquele que mais preocupava o Ocidente porque era, com toda a evidência, aquele que mais motivava a União Soviética.

“To make a long story short”, a abertura a uma rápida independência das colónias africanas (Timor-Leste é um caso à parte) acabou por ser imperativa: os militares portugueses que estavam em África, cansados das guerras, confortados por uma revolução que fora feita para lhes pôr termo, deixaram pura e simplesmente de combater. A entrega do Império sem luta tornou-se assim facto a prazo curto e as negociações com os novos poderes emergentes foram um mero pró-forma.

Portugal acordou então para uma outra mudança decisiva no seu mundo. Um pouco menos de um milhão de portugueses que habitavam nas colónias perceberam rapidamente que não tinham condições para continuar a viver nesses novos países. Grande parte deles regressaria a um Portugal europeu em convulsão interna, onde uma deriva esquerdizante tinha levado a um surto de nacionalizações e à criação de um ambiente pouco propício ao interesse do investimento estrangeiro, o único que poderia dar um impulso à economia. Para muitos, o choque entre esses saudosos do Império e um regime visivelmente noutra onda era inevitável e poderia ser uma bomba política a prazo. Nada disso ocorreu. Tudo acabou por passar-se com uma quase naturalidade: Portugal nunca teve “pied-noirs” e esses “retornados” integraram-se e desapareceram com inesperada facilidade num país onde a grande maioria nunca tinha sequer vivido, mas onde foram absorvidos pelas redes familares. Essa é a maneira de ser do povo português.

Voltando ao mundo e a nós. Não obstante ter “flirtado” por algum tempo com uma tentação de optar por uma “terceira via” entre o socialismo e o capitalismo, seduzido pelo modelo jugoslavo, o tempo mostraria que Portugal tinha uma clara vocação ocidental, que o regime de economia privada ia acabar por prevalecer e que a opção transatlântica e a fidelidade à Aliança Atlântica nunca seriam postas em causa por Lisboa.

A nova constituição do Estado, aprovada em 1976, foi lentamente diluída no seu modelo socializante e deu mostras de poder evoluir para um enquadramento legal perfeitamente compatível com uma economia de mercado e, mais do que isso, com o modelo político europeu que espreitava por detrás dos Pirinéus.


Afinal, europeus

Contrariando a leitura mítica do destino português feita por Salazar, recordada do início deste texto, o novo Portugal democrático cedo se mostrou adepto do projeto de integração em liberdade que ligava a Europa para cá do muro de Berlim. A geografia tem muita força. Até a ditadura, por razões práticas, não havia escapado à necessidade de se integrar na EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre), em cujo espaço se ancorava grande parte da sua economia.

As instituições das Comunidades Europeias só com a democracia instalada em Lisboa viriam a mostrar-se abertas estudar o acolhimento a Portugal. Mário Soares foi o rosto mais visível do novo Portugal, que, pelas paredes, não se cansava de apregoar que “a Europa está connosco”. Com exceção natural dos comunistas, todo o país o seguiu.

De forma surpreendente para o mundo e até para si próprio, Portugal entregou-se com grande entusiasmo à aventura europeia. O ciclo africano tinha terminado e era ainda muito cedo para conseguir, depois dos traumas coloniais, reconstituir uma “rede” com o mundo que fala português – quase 240 milhões de pessoas, distribuídas por oito países nos cinco continentes, que hoje constituem a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

De início, a partilha do projeto europeu foi feita de uma forma tímida, algo defensiva, parecendo o país apenas interessado nas ajudas financeiras que poderiam permitir que desse, com rapidez, alguns saltos no seu desenvolvimento. Curiosamente, dessa Europa faziam já parte muitas centenas de milhares de emigrantes, que a ditadura forçara a espalhar em grandes número por países, como a França, a Alemanha e o Luxemburgo, grande parte dos quais, com naturalidade, regressariam agora ao seu país de origem.

Desde a sua entrada naquilo a que hoje se chama União Europeia, ficou patente que Portugal levou muito a sério o exercício. Todos recordam as excelentes presidências portuguesas, o modo responsável e construtivo como sempre se comportou à mesa do Conselho de Ministros, algumas boas prestações que conseguiu levar a cabo no seio da Comissão Europeia. Além disso, Portugal cuidou sempre em contribuir de forma muito particular para reforçar o quadro de relações externas da União, não apenas pela sua relação particular com África (Portugal organizou duas cimeiras Europa-África), mas igualmente pelo seu diálogo fácil com países da importância do Brasil, da China ou da Índia, aos quais o ligam laços muito especiais. Da mesma forma, foi notada a ativa presença portuguesa nos quadros europeus de cooperação mediterrânica e transatlântica. A preservação de uma dimensão ética na sua diplomacia, em defesa da liberdade e dos Direitos do Homem, ficou bem patente, aos olhos europeus, na luta, muitas vezes quase solitária, mas que acabaria por ser vitoriosa, pelo direito à autodeterminação de Timor-Leste.

Em poucos anos, o país periférico e menos desenvolvido que Portugal nunca deixou de ser revelava um entusiasmo claro pelo processo europeu. Aí defendeu sem hesitações o alargamento a Leste, esteve presente de forma muito evidente nas ações de “peace-keeping” em que a Europa se envolvia, foi um ativo ator nas negociações institucionais e criou uma voz própria no Conselho de ministros europeu, onde foi apreciado pelo seu equilíbrio e sentido de compromisso. Na linha tradicional da sua diplomacia, em que, sem surpresas, a importância do laço transatlântico permaneceu sempre como eixo orientador, Portugal quis-se sempre como um país “previsível”, que cumpre o que diz que vai fazer, com uma palavra que não voga em função das conjunturas.

Para Portugal, a Europa não era assim uma aposta de oportunidade. Por muitas dúvidas que alguns possam hoje alimentar sobre os caminhos que leva o projeto de integração continental, Lisboa fez questão de estar presente em todos os núcleos de maior integração (de Schengen ao euro) e continua a ser um país onde a vontade de participação no projeto europeu tem uma expressão francamente maioritária na opinião pública.


A crise

Os portugueses ficaram atónitos com o modo como a crise internacional se abateu sobre o país? Não creio. Posso compreender que isto seja discutível, mas tenho a perceção de que os portugueses percebem, de há muito, que a sua economia vive numa espécie de corda bamba, da qual é possível cair a qualquer momento e em que a hipótese mais improvável é a possibilidade de nela se manter em constante equilíbrio. Naquilo que alguns estrangeiros, com ar sobranceiro, interpretam como uma espécie de modorra mediterrânica de vida, creio que Portugal é um país que percebe bem o mundo em que vive, o tipo de Europa em que está integrado e, muito em especial, a fragilidade endémica da sua posição. Por isso, quando as coisas correm mal, muitos portugueses, em lugar de se lamentarem excessivamente, não hesitam em sair para uma nova aventura, em recomeçar tudo noutro lado, em emigrarem – coisa que fizeram ao longo de séculos. Saíram à rua reclamando contra as medidas de austeridade impostas, mas quase sempre o fizeram de forma serena e cordata. É esta a maneira de ser dos portugueses, para o bem e para o mal.

Portugal é um país com muito escassos recursos naturais, com uma agricultura que não beneficia da generosidade da Política Agrícola Comum, como acontece com os seus parceiros alemães ou franceses, para quem, desde o início, foram desenhadas essas mesmas ajudas. Vivendo numa periferia geográfica com elevados custos, o país foi, durante anos, condenado a produzir com base em indústrias tecnologicamente atrasadas, que a ditadura protegeu através do “condicionamento industrial”, que favorecia o “statu quo”, não estimulando o risco e a capacidade empreendedora, confortada com o mercado interno e colonial. Com a progressiva quebra da sua agricultura tradicional, a que se seguiu o declínio da sua indústria de base tecnológica inadequada, o turismo e outros serviços acabaram por ser os sectores de refúgio de muita mão-de-obra, cuja reconversão, contudo, era muito limitada pela sua falta de qualificação profissional. O desemprego, a emigração e peso sobre o sistema de pensões acabou por se abater sobre a economia de um Estado com escassa produtividade, revelada por uma endémica falta de crescimento. Isso tornou-se muito evidente quando a globalização surgiu no horizonte, colocando no mercado europeu, a preço muito mais favoráveis, os produtos que a atrasada indústria portuguesa até aí alimentava. Portugal não aproveitava as vantagens dessa abertura: não tinha Audis, BMW ou Mercedes para exportar, pelo que se viu condenado a sofrer a globalização sem sequer a poder usufruir. Essa debilidade era uma bomba a prazo, à espera de uma crise.

Os fundos comunitários, uma compensação simpática pela abertura do Mercado Interno e um instrumento para criar um apetecível mercado para os produtos dos países do Norte, serviram entretanto para modernizar as infraestruturas de um país que, nem por isso, deixa hoje de permanecer aquilo que sempre foi: o mais pobre da Europa ocidental. Esse dinheiro serviu para qualificar pessoas, para preparar médicos, enfermeiros e engenheiros que hoje são atraídos pelas economias europeias mais desenvolvidas, que os utilizam sem terem gasto um cêntimo na sua formação. Estas são as “contas” que a Europa do Norte vulgarmente não faz.

Os portugueses sabem tudo isso. Não se sentem particularmente gratos à Europa, porque sabem que o “negócio” europeu é um jogo de soma zero: ninguém dá dinheiro sem retorno, ninguém os financia apenas pelos seus “lindos olhos”. Os milhões que as instituições internacionais emprestaram a Portugal entre 2011 e 2014 estão a ser pagos “com língua de palmo”, com juros muito elevados, que serviram para tornar mais claro quem são os que sempre aproveitam financeiramente com as crises. Em geral, os portugueses pensam: Portugal está endividado? Está, por deficiências da sua máquina pública, que, não sendo exagerada nem luxuosa em termos europeus, tem disfunções que a classe política não teve até hoje coragem para atacar. Mas muita dessa dívida é aquilo que a sua banca pediu emprestado para financiar as importações que fez dos grandes países produtores europeus, os custos de infraestruturas que importantes empresas de países dentro da União Europeia também vieram para aqui construir e aproveitar.

Mas os portugueses também pressentem que têm de responder, sem a menor hesitação, à questão: temos de pagar essa dívida? Temos, só que com prazos e juros que não empobreçam ainda mais o país. Como em todos os “negócios”, há que discutir. E Portugal vai fazê-lo.


A Alemanha e nós

Por virtude da crise económica que ainda atravessa, a imagem da Alemanha, que durante anos passou por um “bom gigante”, degradou-se bastante em Portugal.

Portugal nunca foi um país fortemente pró-germânico. Nas sequelas da Primeira Guerra, a imagem negativa dos “boches” encheu a imprensa da época, numa reação muito ligada às consideráveis percas humanas e militares que o país teve na fase final do conflito. Dentro da máquina política da ditadura que se implantou em Portugal a partir do final dos anos 20, o regime nazi conseguiu encontrar apenas alguns envergonhados defensores. Nem Salazar ousou abertamente defender Hitler, embora o oportunismo ainda o tivesse levado a colocar a meia-haste a bandeira nacional após a morte do ditador.

As elites e as classes populares, contudo, sempre alimentaram um profundo respeito e admiração pelo esforço fantástico que os alemães fizeram para reconstruir o seu país, depois da tragédia dos anos 40 do século passado. Embora não achando nunca muita graça ao modo de ser das gentes alemãs, bastante contrastante com a maneira de estar latina, muitos portugueses interpretam uma certa “brutalidade” germânica como a consequência natural de um passado feito de grande sofrimento, que acaba por moldar a natureza humana. E uma parte da elite portuguesa, nomeadamente nos meios académicos, é muito tributária das escolas alemãs de pensamento.

Curiosamente, a emigração portuguesa para a Alemanha, iniciada nos anos 60, não trouxe nenhum vínculo afetivo suplementar ao relacionamento bilateral. Ao contrário do que aconteceu em França, a barreira da língua e a distância cultural não terão ajudado à fixação definitiva na Alemanha de grande parte desses trabalhadores pouco qualificados, a maioria dos quais acabou por regressar a Portugal, sem aqui projetarem uma memória muito vincada pelo tempo de vida no país para o qual haviam emigrado.

Num plano político, homens como Adenauer ou Brandt foram em Portugal vistos com grande admiração, como figuras com uma imensa dignidade, que souberam habilmente conduzir o seu povo pela via da reconciliação. Por isso, o fim do muro de Berlim e a reunificação foram passos históricos olhados com grande simpatia, porque iam no sentido de uma Europa de paz de que Portugal estava interessado em ser membro de pleno direito.

Hermut Kohl foi também alguém que, na perspetiva política de Lisboa, soube sempre entender os problemas portugueses, num projeto europeu cuja exigência justificava algumas medidas concretas de solidariedade. E, talvez por isso, o alargamento da União Europeia ao centro e ao leste da Europa, que a Alemanha sempre defendeu, não suscitaram nunca a menor objeção por parte de Portugal, contrariamente ao que muitos estariam à espera.

Já Angela Merkel nunca conseguiu suscitar um ambiente de afetividade em Portugal, há que dizer isto com a maior franqueza. A sua atitude face a Portugal nunca foi lida como marcada por um respeito por aquilo que eram as limitações de um país e de um povo que, por um conjunto muito particular de circunstâncias, havia sofrido a crise internacional de uma forma desproporcionada. Justa ou injustamente, está hoje instalada na opinião pública portuguesa a ideia de que a chefe do governo alemão assumiu, desde o início, porventura conduzida por um forte sentimento popular no seu país, uma atitude “punitiva” face ao desregulamento em que as contas portuguesas se haviam deixado cair. Do mesmo modo, está criado o sentimento de que a Alemanha não cuida em explicar à sua própria opinião pública que, nesta crise, ela acaba por ser grande beneficiária financeira do mal-estar dos outros. Isso não é entendido pela opinião pública portuguesa.

Não estou, contudo, pessimista quanto ao modo como Portugal e a Alemanha se vão articular daqui para a frente. A memória dos povos é curta e cada tempo tem a suas regras. Mas para que as coisas corram bem, é necessário que a própria Alemanha readquira, aos olhos da generalidade dos seus parceiros europeus, a imagem de um país que não tem uma ideia hegemónica do seu papel, que respeita as ideias e sabe interpretar os interesses dos outros e que não projeta a arrogante mensagem de que a Europa ideal do futuro é uma Europa que seja a imagem da Alemanha do presente. Se assim acontecer, e espero que aconteça, a Alemanha poderá voltar a ser visto com um dos grandes aliados de Portugal no plano europeu. 

(Capítulo no livro "Pontes por construir - Portugal e Alemanha")

4 de março de 2015

Um retrato nos Açores

 
No dia 16 de março de 2003, à chegada à base das Lajes, no Açores, os líderes estrangeiros - George W. Bush, Tony Blair e José Maria Aznar - foram recebidos pelo anfitrião do encontro, o primeiro-ministro português, José Manuel Durão Barroso. Para uma primeira fotografia e para as câmaras, Barroso colocou Aznar à sua direita, com Blair e Bush à esquerda. O presidente do governo espanhol permaneceu nesse lugar apenas um breve instante. Olhou a coreografia e logo a subverteu: mudou para o outro extremo da cena, colocando-se ao lado de Bush. O centro da fotografia passou a ser composto por Bush e Blair, com o primeiro a colocar um paternal abraço sobre o ombro de Aznar. Barroso, o anfitrião, de uma posição central, passou a estar isolado na ponta. O primeiro retrato do encontro emoldurava o desejo português. A fotografia final consagrava a realidade da cimeira das Lajes.
 
Este encontro transatlântico, que tanta tinta fez correr entre nós, é hoje um acontecimento a que a história das relações internacionais atribui uma escassa importância, como se pode verificar pelas raras linhas que merece em memórias e outros relatos sobre esses tempos complexos, que antecederam a intervenção da “coalition of the willing” que se formou com o objetivo de derrubar Saddam Hussein. Porém, para a história diplomática portuguesa, cujos encontros com a “grande” História não são tão vulgares quanto isso, esse evento, mesmo se secundário à escala global, tem a sua relevância.
 
Essa relevância deve-se a duas razões maiores e a uma interrogação de conjuntura. Desde logo, convém notar que a posição portuguesa nesse momento decisivo da questão iraquiana - de que a cimeira acabou por ser um episódio importante, no olhar de Lisboa - representou um tempo de revisitação das relações de Portugal com três dos seus principais aliados, cada um com uma especificidade própria: os Estados Unidos, o Reino Unido e a Espanha. Uma segunda razão liga-se ao facto da postura assumida pelo então governo português ter conduzido a uma fratura no consenso em matéria de relações externas, entre as maiores forças políticas, que vinha a constituir uma imagem de marca do nosso país. Finalmente, a questão de conjuntura liga-se diretamente à pessoa do primeiro-ministro de então, Durão Barroso, e ao modo como ele poderá, ou não, ter utilizado essa circunstância com vista ao seu próprio interesse pessoal.
 
Todas estas dimensões estão presentes e bem identificadas no livro de Bernardo Pires de Lima: “A Cimeira das Lajes - Portugal, Espanha e a guerra do Iraque” (ed. Tinta da China, Lisboa, 2013). O livro, publicado precisamente uma década após a cimeira, é um magnífico trabalho de interpretação, sereno e equilibrado, sobre a história desses dias e o papel que Portugal quis ou pôde nela desempenhar. Não é uma obra meramente descritiva e assética, no sentido de se limitar a apresentar as várias versões dos factos e deixar, à responsabilidade do leitor, a possibilidade de os interpretar. Bernardo Pires de Lima, como perspicaz e cultivado observador da cena internacional que é, notou as versões, enquadrou-as com os acontecimentos e decantou daí a sua leitura como cientista político. E não deixou de retirar as suas próprias conclusões.
 
Começo por notar que, para o livro, são convocados vários testemunhos. Do lado do governo, as vozes escutadas foram António Martins da Cruz, à época ministro dos Negócios Estrangeiros, e David Dinis, assessor de imprensa de Durão Barroso. Pena é que o próprio primeiro-ministro não se tivesse pronunciado, do mesmo modo que teria sido enriquecedor ter uma versão dos factos dada por Nuno Brito, o então assessor diplomático do primeiro-ministro e principal interlocutor dos gabinetes dos chefes dos governos estrangeiros. Refira-se que, à época, era essa a instância central de tratamento da questão, o que, para além de aspetos idiosincráticos, pode também justificar algum distanciamento que transparece do discurso do chefe da diplomacia portuguesa. Por parte da oposição, Ferro Rodrigues e Ana Gomes representam bem a linha partidária que então mais se afirmou. Noutra área socialista, é também ouvido José Lamego, num expectável registo diverso, como seguramente também o seriam os de Jaime Gama ou Luís Amado. Finalmente, o comissário europeu António Vitorino e o presidente da República Jorge Sampaio trazem-nos interessantes visões institucionais, que ajudam bastante a explicar capítulos desses tempos. Sem que isto deva ser entendido como uma crítica ao processo de construção do livro, senti pena, ao lê-lo, que não tivessem sido incluídos alguns contrapontos externos, em especial do lado espanhol e de dois países que representavam o “outro lado” europeu: a França e a Alemanha. Como nos olhavam por esses dias? Podemos presumir, mas seria interessante lê-los em “on”.
 
Iraque - o alvo americano
 
O primeiro capítulo do livro chama-se, significativamente, “Uma decisão americana”. O curso do texto deixa muito claro que a decisão de invasão do Iraque de Saddam Hussein estava tomada por Washington muito antes desta ser concretizada. Bush começara a sua presidência focado em questões internas e, se recordarmos os seus primeiros meses, o único tema externo importante para Washington começou por ser a China. Os ataques de 11 de setembro de 2001 mudaram tudo. No livro é analisado, de uma forma muito rigorosa e completa, o modo como a agenda ideológica neoconservadora, que estava nos bastidores da administração Bush, soube cavalgar, de forma hábil e rápida, os ataques terroristas e redirecionar a vontade americana para encetar uma guerra direta a Saddam Hussein.
 
A literatura interpretativa sobre a atitude americana é abundante, mas a síntese que Bernardo Pires de Lima nos traz é altamente clarificadora sobre um ponto - o processo de formação da decisão americana esteve sempre totalmente autónomo de qualquer compromisso ou entendimento internacional e, mesmo no tocante às Nações Unidas, a sua utilização foi sempre vista como meramente instrumental e, nem por um segundo, como condicionante da execução da decisão final. Fica claro que os “esforços” junto da ONU tiveram mais como objetivo procurar ajudar os seus potenciais aliados para uma futura intervenção (em especial o Reino Unido) a obterem argumentos legitimadores, com vista a sossegarem as suas opiniões públicas, do que o interesse concreto em os EUA poderem obter, para si, qualquer espécie de “luz verde” multilateral. No entanto, pressente-se uma dualidade no seio da administração entre a dimensão diplomática que tenta, até muito tarde, um “face-saving” formal e uma vontade político-militar, predominante desde o primeiro momento. Este livro carreia ainda argumentos demonstrativos de que a alegada “agenda democrática” para o Iraque foi um tema tardio e supletivo face ao projeto de mudança de regime em Bagdad que já estava determinado e era o objetivo essencial.
 
O livro analisa com atenção o debate havido no seio da União Europeia perante a iminência do ataque americano. É descrita a génese da “carta dos oito” e da posterior “carta de Vilnius”, com a emergência de uma clara clivagem entre a “nova Europa”, como foi crismada pelo secretário de Defesa americano, Donald Rumsfeld, e a “velha Europa”, centrada no eixo franco-alemão. A Europa comunitária procurava desesperadamente, num esforço de retórica de compromisso, iludir a sua inelutável divisão interna: entre os que pugnavam pela preeminência absoluta e inultrapassável das Resoluções da ONU e o intravável tropismo pró-americano de alguns parceiros, com o Reino Unido à cabeça e uma legião de novos aderentes na UE (e na NATO) a segui-lo.
 
Bernardo Pires de Lima detém-se também na questão das “armas de destruição maciça” e do grau de informação que Portugal dispunha sobre o risco iraquiano nesse domínio. Talvez valha a pena começar pelo fim e recordar que não havia “armas de destruição maciça” no Iraque. Por isso, todas as informações que, sobre o assunto, possam ter sido apresentada a Portugal eram falsas - ou produto de má informação ou simplesmente forjadas. Nunca ninguém saberá o que foi realmente mostrado aos dirigentes portugueses por essa altura - não apenas a Durão Barroso mas igualmente a um ator que está ausente desta história, o então ministro da Defesa, Paulo Portas, que à época se vangloriava de uma forte relação com Rumsfeld. Sabe-se apenas que as tais “informações” devem ter sido convincentes, embora, de uma leitura atenta do livro, nos fique a impressão, admito que errónea, de que a decisão final do governo de Lisboa teria sido sempre a mesma, com ou sem “armas de destruição maciça”.
 
O debate doméstico
 
As relações com os EUA foram sempre - e continuam a ser - um dos pilares estruturantes da política externa de Portugal. Bernardo Pires de Lima faz uma análise dessa postura, que, por regra, não costuma ser divisiva nas forças políticas portuguesas com vocação de governo. De facto, com a expectável exceção do Partido Comunista Português e dos heterónimos que, por épocas, as formações de extrema-esquerda utilizam, o espetro partidário com assento parlamentar, com naturais “nuances”, afirma sempre uma atitude simpática para com o reforço das relações com os EUA. Curioso, aliás, é verificar que, no Partido Socialista, a titularidade da chefia da política externa é sempre assegurada por figuras com um perfil indiscutivelmente pró-americano, por vezes ainda mais afirmado do que o dos seus contrapartes oriundos de partidos conservadores.
 
“O debate em Portugal” é, sem dúvida, o capítulo mais original deste livro, num país onde, como bem nota o autor, parece haver um recorrente de pudor político em escalpelizar as decisões com impacto externo. De uma leitura atenta do texto é-se levado a concluir, em mais do que uma passagem, que Durão Barroso terá ficado “seduzido” pela importância que Bush aparentemente lhe foi concedendo, à medida que se apercebeu que o primeiro-ministro português, sob influência de Blair e de Aznar, se inclinava para subscrever a sua tese da imperatividade da ação militar contra o Iraque. As únicas “reticências” que o dirigente português colocava, no que não diferia dos outros aliados próximos, era sobre a necessidade de ser esgotado o leque possível tentativas de conseguir um respaldo legitimador por parte do Conselho de Segurança da ONU. Mas Barroso nunca deixou de indiciar que, em caso de impasse, jamais optaria por uma qualquer “neutralidade” face ao aliado transatlântico em conflito com Bagdad.
 
No processo interno português, o mais interessante de observar é talvez a relação que Barroso foi mantendo com o presidente Jorge Sampaio sobre a matéria. O presidente, desde o primeiro momento, deixou bem claro que considerava um mandato internacional essencial para poder dar a sua “luz verde” a um engajamento formal de Portugal numa eventual ação militar. Mas Sampaio também sabia que não estava nas suas mãos evitar uma posição política por parte do governo favorável a uma intervenção unilateral americana, se esse fosse, como veio a ser, o caso. O livro acompanha muito bem este processo diacrónico, que se presume tenha momento algo tensos. Deduz-se que Barroso teve um extremo cuidado formal com vista a não cometer deslizes que pudessem ser lidos como uma quebra de lealdade institucional ou do dever de informação. Fica a ideia de que Sampaio pressentiu, desde muito cedo, como tudo iria acabar. Barroso levou a água ao seu moínho, Sampaio salvaguardou a sua posição institucional. Tudo bem?
 
O autor dá a entender que entre o Presidente e a liderança socialista, titulada por Eduardo Ferro Rodrigues, se bem que assente em termos comuns de referência, não havia uma total coincidência. No diálogo do governo com o Partido Socialista não houve, contudo, quaisquer surpresas. Ferro Rodrigues nunca se mostrou minimamente disposto a acompanhar o tropismo incondicional do governo pela posição americana, exigindo sempre, de forma muito clara, uma cobertura multilateral prévia a qualquer nova ação no Iraque. Fica a sensação de que Durão Barroso cedo deve ter considerado perdida qualquer hipótese de compromisso com Ferro Rodrigues. Mas, para a história especulativa, para sempre ficará a pairar a dúvida sobre se, num outro cenário de liderança socialista, alguma complacência poderia ter surgido do lado do Largo do Rato.
 
A ambição espanhola
 
Um dos aspetos mais interessantes deste livro prende-se com o papel da Espanha, um ator não usual no terreno atlântico. Tudo indica que a Espanha, que vivia um tempo de euforia afirmativa à escala global, com um crescimento económico que a colocava às portas do G8, terá sentido a oportunidade que poderia representar para Madrid a captação da boa vontade americana num momento desta delicadeza. Por isso, Aznar não terá hesitado em afrontar uma opinião pública hostil a qualquer intervenção no Iraque e cedo de se colocou ao lado do Reino Unido, num sólido pilar europeu de apoio a Bush, alterando mesmo uma tradicional postura de Madrid face ao mundo árabe. O argumento da legitimidade da luta anti-terrorista e a definição de uma postura atlantista que lhe fizesse ganhar mais espaço noutros tabuleiros geopolíticos serviam de suporte a esta determinação. Depois de Blair, Aznar viria a tornar-se no “enfant chéri” europeu de Washington.
 
A crer no testemunho de Martins da Cruz, o presidente do governo espanhol terá sido o elemento instrumental na ideia de levar Portugal para o grupo que acabará por ter a sua “consagração” na chamada cimeira das Lajes. A ideia da realização da reunião nos Açores parece, de facto, ser de Aznar, mas há sinais de que terá sido a vontade conjugada de Londres e Madrid que terá levado Bush a esta cooptação de um parceiro menor, embora atlântico por natureza e com uma nunca desmentida afetividade geopolítica pelos EUA. Uma leitura “patriótica”, que pode ter fragilizado algumas defesas internas, apoia-se, precisamente, na leitura de que Portugal não podia deixar a Espanha “sozinha” nesta sua tão expressiva mudança de agulha em direção a Washington, pelo impacto que isso poderia acabar por ter na decisiva boa vontade americana em dossiês à época tão complexos como o dos comandos NATO ou o futuro da base nos Açores. Como dizia Pirandello, a cada um a sua verdade... 
 
Como sempre acaba por suceder nestas circunstâncias, há um a diversidade de fatores que concorrem para uma mesma decisão, alguns de oportunidade, outros de vontade. Não estou minimamente de acordo com Bernardo Pires de Lima quando afirma que “o objetivo de elevar a diplomacia portuguesa a um patamar mais elevado acabou por ser alcançado com o processo de decisão desenhado pelo governo português”. Na minha perspetiva, a “photo opportunity” das Lages esteve longe de dignificar Portugal ou a nossa política externa - sendo que a diplomacia é apenas decorrente desta e só é protagonista “by default”, quando a fragilidade da ação política assim a obriga.
 
Uma derradeira questão, que o autor também coloca, prende-se com o eventual “calculismo” de Durão Barroso: terá ele manobrado este processo com vista a colocar-se no lugar certo no momento oportuno, para o “timing” da escolha do futuro presidente da Comissão Europeia? Não creio. Os tempos não eram fáceis de conjugar, embora do livro nos fique a críptica afirmação de Jorge Sampaio de que “o dr. Barroso é um excelente gestor das relações de poder”.

1 de janeiro de 2015

Dois, três, muitos Vietnam

Em 1955, há precisamente 60 anos, no auge da Guerra Fria, começava o conflito do Vietnam. Portugal entrava nesse mesmo ano para a ONU, onde, de imediato, mergulhou no crescente calvário da defesa da sua política colonial. A guerra do Vietnam terminaria 20 anos depois, em 1975, com o Viet Cong a entrar em Saigão e a ridicularizar a América. Nesse mesmo ano, já com a Revolução de abril a todo o vapor, todas as colónias portuguesas se tornavam independentes.Voltemos a 1955.

A esquerda portuguesa, incluindo o PCP, estava então longe de ter um discurso anti-colonialista. Ele só surgiria depois da maturação das consequências da Conferência de Bandung e da formação da Tricontinental. Recorde-se que Norton de Matos e Cunha Leal, próceres da oposição a Salazar, foram orgulhosos “colonialistas”.

O início da experiência cubana, o aproveitamento hábil por Moscovo do movimento dos “não-alinhados” e a revolta angolana em 1961 conduziram à evolução do discurso da oposição à ditadura quanto às colónias. Entre nós, a simpatia pela luta do povo vietnamita viria a crescer em simultâneo com o espalhar da consciência anti-colonial. Marcou algumas universidades e meios intelectuais, tendo o anti-americanismo como forte sub-ideologia federadora. Os ventos do maio francês de 1968 fizeram o resto.

Pouco antes, Guevara defendera que eclodissem pelo mundo “dois, três, muitos Vietnam”. A História tirou-lhe entretanto a vida e viria mais tarde a trocar-lhe as voltas. O então Terceiro Mundo não se tornou comunista e até o “farol” soviético deixou de brilhar. A estupidez americana e a teimosia de Fidel suspenderam Cuba no tempo. O Vietnam vive unificado pelo capitalismo mais desenfreado. E as nossas antigas colónias são o que são.

(Publicado em 1.1.15 no "Observador")