5 de outubro de 2016

A Europa na encruzilhada

A complexidade das questões que hoje afetam a União Europeia obriga, paradoxalmente, a que sejamos tentados a simplificar as coisas, sob pena de tornarmos incompreensíveis algumas realidades básicas, em torno das quais é imperioso juntar quantos ainda se reveem, com sinceridade, no projeto de integração do continente.

Recapitulemos o essencial. A Europa nasceu após o segundo conflito mundial do século XX, federando vontades em torno de um projeto que pudesse evitar a reedição das tragédias. Fê-lo através do desenho de um modelo original de cooperação, assente em temáticas essencialmente económicas. A existência da Comissão Europeia, como intérprete e guardiã do interesse comum, representou a diferença face a outros formatos menos ambiciosos de cooperação intergovernamental.

As então Comunidades Europeias, um clube de democracias apoiadas na economia de mercado, revelou-se um sucesso, gerando crescimento e emprego. Vários outros países juntaram-se entretanto aos “seis” fundadores, passando também a englobar algumas democracias mais pobres da Europa – Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha.

Generosas políticas de apoio à recuperação desta Europa menos desenvolvida, e também de zonas mais deprimidas dos seus países ricos, visavam promover um espaço global mais homogéneo e equilibrado. O interesse era comum : ao « enriquecer » a Europa menos afortunada economicamente, os países e áreas mais pujantes ganhavam novos mercados e geravam segurança na sua vizinhança ; os mais pobres obtinham ajudas e, com bem-estar, regimes estáveis e menos tensões, tornavam-se mais atrativos para o comércio e para o investimento. Seria uma situação de « win-win ».
Os avanços

O êxito despertou a ambição. Animada pelas vantagens das sinergias geradas, a Europa comunitária procurou alargar os domínios cobertos pelas suas políticas, passando a tratar centralmente algumas áreas que, no passado, estavam reservadas às soberanias nacionais. O Tratado de Maastricht consagrou esse passo, mas também despertou algumas consciências. Alguns Estados reagiram a esta “intrusão” nos seus poderes e, não conseguindo travar a passada comunitária, optaram por excluir-se da adoção da totalidade das políticas. Foi a abertura aos “opt out” e à integração diferenciada.

Entretanto, os países do centro e leste europeu, que se haviam soltado do « colete de forças » imposto por Moscovo durante a Guerra Fria, aproveitaram, com naturalidade, a implosão da União Soviética para pedir para integrar o « clube democrático » criado a ocidente. Não obstante essa inclusão acarretasse algumas dificuldades à gestão do projeto coletivo – passar de 15 para 28 membros, com os novos membros num estado desigual de desenvolvimento, não era uma tarefa fácil –, a União deu provas de um grande sentido de responsabilidade histórica e concluiu esse alargamento. Já antes, três Estados neutrais – Áustria, Finlândia e Suécia – se havia sentido à vontade, depois da queda do “muro”, para dar o idêntico passo. A União mudou então de natureza, passando a ter de conviver com diferentes filosofias e passando a ser mobilizada por agendas, de interesses e de preocupações, cada vez mais diversas e, por vezes, até contraditórias.

A Europa comunitária tentou que toda esta sua diversidade fosse compatível com o aprofundamento de políticas que tinha em curso. Não o conseguiu. Basta recordar a moeda única e a liberdade de circulação de pessoas para evidenciar o que foram os efeitos diferenciados provocados nos seus integrantes.


As fragilidades

A União Europeia, que havia mostrado a sua eficácia em tempos de « business as usual », revelou fragilidades inesperadas, quando novas realidades abalaram o seu quotidiano.

A crise financeira provou que, no caso da gestão do euro, haviam sido subavaliados os efeitos da debilidade económica de alguns países para a sustentação global do projeto. A globalização havia já tido efeitos muito distintos no tecido económico-social europeu, pelo que nem todos ganharam com essa abertura ao mundo. A dualidade europeia, em matéria de competitividade e riqueza, não foi superada e isso leva hoje os cidadãos de alguns países a não encontrarem razões para se verem como os ganhadores do processo integrador. Pior: a culparem a Europa por essa sua situação.

No caso da livre circulação, a União pós-alargamentos, colocada sob pressão de fluxos humanos, de natureza económica ou humanitária, provocadas pelas desregulações político-militares no Magrebe e no Médio Oriente, revelou as suas insuficiências. Nesses e em outros Estados veio ao de cima a disparidade das perceções nacionais face a temáticas em que era desejável, embora talvez não expectável, que a União reagisse de forma conjugada. Aos olhos dos cidadãos de alguns países, as migrações e os refugiados, somados a sentimentos de insegurança, gerados por atentados ou tensões na ordem pública interna, configuram hoje uma disrupção nas suas vidas que nenhum sentimento de cidadania europeia parece capaz de ultrapassar. Também aqui, a Europa surge cada vez mais, para muitos, como uma ameaça à estabilidade, aos padrões de vida, à sua própria identidade.

Este mal-estar social, que germina em alguns países incapazes de viverem com o “diferente” (etnia, cultura, religião, costumes), a que se somam por vezes (mas nem sempre) tensões resultantes da falta de crescimento e do aumento do desemprego, tornaram a União no bode expiatório de muitas frustrações.

Os governos, em geral, demitem-se da sua responsabilidade de fazerem, a contraciclo, uma pedagogia das vantagens que o processo integrador trouxe aos seus cidadãos, da paz que consolidou por décadas, do enorme progresso, em termos de melhoria de condições de vida, que soube gerar em grande parte do continente.

Desta forma, os processos políticos nacionais surgem, cada vez mais, marcado por discursos egoístas, soberanistas, onde a exploração dos medos conduz à tentação de fronteiras e de mentalidades, a protecionismos de vária natureza, às vezes titulados por partidos anti-europeus, xenófobos e potenciadores de clivagens.

A Europa é, por natureza, um projeto otimista. Fragilizar-se-á e tenderá a romper-se se o ceticismo, o medo e os nacionalismos ganharem terreno no seu futuro imediato.

(Artigo cuja tradução inglesa foi publicado no n° 1 da revista "Feed", junho 2016)

1 de outubro de 2016

Prefácio



Prefácio

No auge da guerra na Jugoslávia, um jornal britânico trouxe uma entrevista com um casal. Ele era sérvio e ela era croata, ou vice-versa, porque isso é o que menos importa. Os dois tinham-se conhecido ainda no país que lhes fora comum e que então estava em curso de implosão. Com alguma naturalidade, ambos se sentiram polarizados por pertenças nacionais opostas, com familiares e amigos a morrerem por essas causas contrastantes. De uma forma que deveria ser então pouco comum, decidiram fazer uma introspeção, à vista um do outro, procurandoultrapassar, pela racionalidade possível, os ódios que atravessavam os dois campos. Em particular, tentaram“desconstruir” os respetivos argumentários históricos, que marcavam as suas diferentes memórias afetivas. E, nesse esforço, fizeram o inventário mútuo de agravos, de conflitos e de razões alegadas para eles, com consequências nos preconceitos e estereótipos. Aparentemente, estavam a ter êxito nessa tarefa, que não devia ter sido nada fácil. O artigo tinha um título que nunca esquecerei: “A guerra dos avós”. Porque era disso mesmo que se tratava.

De alguns países se diz que têm “demasiada História”, querendo-se com isso significar que o peso obsessivo de memória atrapalha o presente e condiciona demasiado o futuro. Juntamente com o Médio Oriente, os Balcãs são, muito provavelmente, das regiões do mundo onde esse fardo excede toda a razoabilidade, carreando para os dias de hoje expressões identitárias em conflito, que estão muito longe de se esbaterem e virem a facilitar amanhã quaisquer compromissos. São terrenos onde às etnias se cumulam as ideologias e as religiões, com nacionalismos doentios a adubarem as emoções, onde as lideranças políticas se reforçam pela execução zelosa da agenda primária dos populismos, ou do revanchismo, sem a menor propensão para pedagogias apaziguadoras dessas mesmas tentações radicais.

Nos tempos em que andei pelas lides europeias, uma das linhas voluntaristas de raciocínio para promover o alargamento da União a vários países assentava na ideia de que a sua inclusão na “casa comum” apagaria, pelo choque de progresso e de bem-estar, todas as tensões interétnicas, os conflitos de identidade intranacional, o problema das minorias. Seria uma espécie de “fim da História” nacionalista europeia, graças a esse redentor bálsamo bruxelense. Ora não seria preciso ir mais longe do que a própria cidade de Bruxelas para se perceber a ilusão ridícula que essa ideia encerrava. E o terrorismo de Molenbeek deu ali um toque trágico àquilo que, até então, era apenas melodramático.

Feito este preâmbulo enquadrador, falemos do livro que o leitor tem diante de si.

Não se estranhe se eu começar por dizer que o autor, o general Carlos Branco, é um homem desencantado, porque acho que é isso o que o seu texto evidencia. E esse facto não é mau, diga-se desde já.

Carlos Branco faz parte de umas Forças Armadas portuguesas que, tendo tido responsabilidades operacionais em três teatros simultâneos de operações, sob ditadura, sentiram o orgulho de ver essa mesma instituição ser o sujeito ativo da libertação interior do seu próprio país. Além disso, já em democracia, e numa sequência a que muitos atribuímos alguma naturalidade, ele viu Portugal empenhado em colaborar na promoção da paz e segurança em vários cenários internacionais. O general Carlos Branco, que tem uma experiência profissional muito valiosa nesse domínio, percebeu, e bem, que do destino de Portugal como entidade responsável à escala global fazia parte integrante a promoção da imagem de um país “honest broker”, capaz de fazer pontes e estimular diálogos, reputação que deveria, com vantagem, ser utilizada para reforçar o seu papel na ordem externa, muito embora, aqui ou ali, também torne claro que entende que o modo como o país se organiza para tal deixa ainda muito a desejar. E, do mesmo modo, lamenta, como eu lamento, que nos dias que correm se esteja a perder um precioso “tempo” de intervenção, com efeitos negativos a prazo na preservação da massa crítica indispensável para tal.

Mas volto ao desencanto. O livro que o leitor tem perante si é, visivelmente, fruto de um trauma e dos estados de alma dele resultante. E isso torna-o num livro muito autêntico, nada “tático” com a revelação da realidade dos factos, tal como o autor os observou ou pressentiu. Se me é permitida uma simplificação,diria que este texto é a expressão do choque de alguém que partiucom imensa boa-vontade e entusiasmo para uma tarefa, a que se entregou com sinceridade e abertura, e que se deparou, para além das insuficiências do próprio país que o enviava, com um mundo concreto feito de agendas diferenciadas, algumas conflituais entre si, construídas de cinismo e de “realpolitik”, se é que um termo não é necessariamente sinónimo de outro. Não que isso não fosse em absoluto expectável, mas o grau e a natureza dessa realidade induziram claramente no autor algumas surpresas, na maioria dos casos menos agradáveis. Este trabalho é a imersão nesse mundo de sombras, de sinais cruzados e deliberadamente equívocos, de cumplicidades e conluios, onde a miséria da guerra vem sempre ao de cima, tudo sobredetermina, com uma crueldade que às vezes a redondeza do discurso político procura iludir.

Não se espere deste livro um retrato linear da Guerra dos Balcãs. Ele é o relato de um conjunto de experiências, diversas entre si, muito bem descritas por quem ousou sempre assumir um registo humano, por onde perpassam sentimento e avaliação ética, de quem não se deixou envolver pelo cinismo frio do “isto é mesmo assim”, com que, muitas vezes, os observadores-participantesabsolvem a neutralidade das suas atitudes.

A escrita é densa, culta, elaborada e informada. Às vezes, é cinematográfica, nos ritmos que impõe, nos cenários que descreve, nas figuras que recorta, com graça e ironia. Tem a leveza de quem agarrou as situações pelo lado humano, às vezes pitoresco, frequentemente trágico. Mas tem o rigor de quem não quis transformar uma experiência profissional forte num arrolamento de “fait divers”. É verdadeiramente a guerra e o mundo à sua volta, às vezes nos seus intervalos, sempre rica empormenores que nos ajudam a entender melhor o espírito, mas também os vícios, das intervenções multilaterais, feitas de compromissos, alguns mais degradantes do que outros.

Tendo como fundo um cenário de forças e de fraquezas, há no texto elementos que nos ajudam a entender melhor o papel dos grandes poderes fáticos, os jogos dos atores principais, a sua cultura funcional, as necessidades de sobrevivência de quantos são obrigados a ter no processo um papel forçadamente secundário. Há ali preciosos “flashs” comportamentais de representantes de países relevantes na ordem global, que nos ajudam melhor a compreender o que se passou, o efeito dos “timings” sobre a evolução dos factos. E tudo isso, no final de contas, conduz-nos a desenhar um juízo muito relativa sobre a bondade objetiva de certas intervenções.

Há neste livro descrições muito fortes, retratos de uma tragédia que espero que conduza o leitor a interrogar-se sobre como foi possível, a escassos quilómetros de países que gozavam de imenso bem-estar e segurança, deixar emergir – e, em alguns casos, impulsionar - em escasso tempo, uma Europa “negra”, feita de ódios extremos, de ausência total de piedade, de inominável barbárie, dirigida por figuras que parecem procurar, por detrás dasvestes retrógradas no nacionalismo e do desprezo étnico, apenas um lugar de apreço na memória mesquinha dos seus, nessa “guerra dos avós” em que apenas foram soldados de mais um episódio.

Há coisas novas e interessantes que Carlos Branco nos revela neste texto, em especial no seu “flashback”, que a História veio a tornar mais do que oportuno, sobre a passagem do islamismo radical por aquela área, num registo que, à época, se bem me recordo, pouco mais passava do que uma curiosidade. Mas também não deixará de ser interessante a leitura, à revelia de outras versões, que o autor faz dos acontecimentos em Srebrenica.E várias outras “novidades”, algumas pouco meigas para certos agentes conjunturais da História.

Embora o recurso a uma narrativa bastante marcada por siglas eacrónimos, essenciais para identificar a multiplicidade de entidades que se cruzam no terreno, possa indiciar, às vezes, um relato demasiado técnico, essa momentânea impressão dilui-se logo na esquina seguinte do texto: o “defeito” que é a grande qualidade deste livro é a firme assunção de uma perspetiva própria, a coragem de tomar posição, valorando aquilo que o autor entende dever merecer um juízo crítico de valor, sem complexos nem peias de qualquer ordem. Este é, também, um livro muito corajoso.

Sem que isso possa ter sido o seu objetivo deliberado, algumas coisas que este livro nos traz relembram que a paz é um valor imensamente frágil na nossa vida coletiva, apenas sustentado pela preservação da força das instituições, dependendo estas da legitimidade que tenham ganho no seio dos povos. Por isso, sendo o mundo multilateral o eixo condutor deste texto, que evidencia muitos dos seus vícios e defeitos, ele continuará a ser, no entanto, a única reserva de esperança para podermos vir a ter um mundo mais seguro e pacífico. E, de caminho, mais justo.

Francisco Seixas da Costa

Outubro de 2016









27 de maio de 2016

Portugal e a União Bancária


Ao contrário de uma convicção generalizada, a União Bancária, que a Europa tem atualmente em construção, não emergiu de uma evolução natural da União Monetária. Ela foi, muito simplesmente, a resultante da reação à crise financeira que, a partir de 2007, ameaçou fragmentar a Zona euro.
Essa reação derivou de uma decisão política, titulada pelos líderes alemão e francês, numa celebrada reunião em Deauville, em 19 de outubro de 2010, na qual foi decidido desligar o risco soberano do risco bancário, sem que previamente tivesse sido feita uma ponderação objetiva do impacto económico, social e político dessa medida sobre as diferentes economias do euro.
Foi desta forma – que veio a provar-se precipitada e reveladora do modelo decisório que hoje marca o seu processo de funcionamento – que a Europa avançou para a integração bancária, assente na centralização, a nível da Zona euro, das funções e responsabilidades de supervisão e de resolução de bancos em dificuldades, isto é, a venda de parte deles a outra instituição bancária sem os encargos mais pesados. Note-se que, na execução desta política, as instituições europeias não seguiram sempre procedimentos e critérios uniformes, nomeadamente no tocante aos  tempos para decisão concedidos às diversas autoridades nacionais.
Este passo foi ainda dado sem que, em simultâneo, se tivessem capitalizado e operacionalizado os fundos destinados a suportar as operações de resolução e de garantia dos depósitos. Na verdade, enquanto os Mecanismos únicos de Supervisão e de Resolução estão em vigor desde 1 de janeiro deste ano, os Fundos Europeus de Resolução e de Garantia de Depósitos apenas estarão operacionais a partir de 2024. Ao mesmo tempo, no âmbito do Mecanismo de Resolução, foi adotado um princípio que passou a envolver acionistas, credores obrigacionistas e mesmo depositantes não garantidos, em caso de necessidade de recapitalização dos Bancos em dificuldades – o chamado bail-in, ou seja, a conversão em capital de créditos e depósitos bancários a partir de certo montante, com óbvia perda para credores e depositantes.
É hoje uma evidência que o modo apressado como a Europa avançou para a União Bancária está a ameaçar, de forma crescente, a coesão dos mercados financeiros da Zona Euro. Esta evolução reveste-se de particular complexidade e risco para as economias menos eficientes, mais frágeis e mais endividadas, as quais, como é o caso da portuguesa, enfrentam bloqueamentos estruturais e desequilíbrios financeiros profundos, cuja superação não tem prazo visível, estando, simultaneamente, a braços com movimentos de reorganização e redimensionamento dos seus mercados bancários, também eles longe de concluídos. A lógica apontaria no sentido inverso, isto é, que aos setores mais débeis da banca europeia, ligados a Estados fortemente endividados e saídos de dolorosos processos de ajustamento, fosse concedida alguma “discriminação positiva”, com vista a facilitar e estimular a respetiva recuperação.
Aquele passo induziu, além disso, dois efeitos aparentemente irreversíveis na nova ordem bancária europeia. Por um lado, enfraqueceu a indispensável relação de confiança entre aforradores/investidores e os seus bancos, gerando um nefasto e persistente clima de volatilidade e incerteza. Por outro, centralizou a nível europeu as decisões relativas à resolução de bancos em dificuldades, sem, no entanto, deixar de manter nos países de origem dessas mesmas entidades os respetivos efeitos e custos – sejam eles financeiros, políticos, sociais e mesmo de confiança e credibilidade. A tudo isto se soma um incompreensível mecanismo de responsabilidade solidária nos sistemas bancários nacionais – porquê nacionais, se a ação bancária é transnacional europeia, como a própria concentração do essencial da supervisão no BCE o indica? – que põe em causa a solvabilidade dos bancos mais sólidos, com a sua eficiência “punida” por eventuais erros alheios.

Uma situação absurda
Veio assim a criar-se uma situação absurda: é exigido às entidades nacionais que continuem a ser responsáveis pela estabilidade financeira interna dos seus países mas, ao mesmo tempo, retiram-se-lhes os recursos e os instrumentos indispensáveis para a poder assegurar. Como consequência, os bancos das economias devedoras mais frágeis, que têm sido forçados a absorver o forte impacto negativo dos programas de ajustamento, passaram, de imediato, a ser mais vulneráveis a situações de instabilidade, que podem originar saídas de capitais.
Desta forma, tem vindo a consumar-se uma fragmentação dos mercados bancários da Zona euro, que o BCE tem procurado combater, com consequências desfavoráveis sobre o custo do capital bancário e do financiamento destas economias. Estas questões ganharão uma extrema importância quando o BCE quiser um dia inverter a sua política monetária – nos dias de hoje assente em taxas de juro artificialmente baixas e numa injeção maciça de liquidez. Nessa nova conjuntura, a reação natural dos mercados, com a subida imediata das taxas de juro, penalizará as economias mais vulneráveis.
É neste contexto que devem ser avaliadas as implicações para a nossa economia da forma como a Europa do euro está hoje a constituir a União Bancária.
Deixámos de poder controlar o movimento de reorganização e de redimensionamento dos nossos bancos e do nosso mercado bancário, embora tenhamos de assumir os custos do processo de ajustamento.
Mantemos a responsabilidade de assegurar a estabilidade do nosso sistema financeiro – incluindo o mercado bancário – sem que dispunhamos dos instrumentos jurídico-regulamentares e operacionais necessários para intervir, tudo isto num contexto de fortíssimas restrições orçamentais.

O caso Banif
As condições em que se verificou a venda do Banif ao grupo espanhol Santander ilustram isto de forma exemplar. De acordo com todas as informações conhecidas, tanto a Comissão europeia – através da Direção-geral da Concorrência – como o BCE interferiram e terão influenciado decisivamente a solução que veio a ser adotada.
No plano formal, isto é inadmissível, sem sustentação na letra dos tratados. No plano dos princípios, trata-se de um gesto que comporta um grau de intrusão nos equilíbrios internos de um Estado que nada pode justificar.
O custo desta operação para o país atingiu um valor que continua a ser incompreensível, à luz da dimensão do próprio Banif. De facto, os fundos públicos injetados neste Banco atingiram os 3,3 biliões de euros – 1,1 biliões no primeiro aumento de capital + 2,2 biliões a anteceder a venda ao Santander. Se, para além disso, considerarmos as garantias de 750 milhões de euros concedidas ao Santander e relativas a parte da carteira de crédito, descontando os escassos 150 milhões pagos pelo comprador, atingimos o extraordinário valor líquido de 3,9 biliões de euros de custo desta operação para o Estado português. A projeção destes valores num cenário orçamental como o nosso traduz uma violência sem precedentes e um descaso com os equilíbrios macro-económicos de um país que ainda está a acomodar os graves efeitos de um duríssimo ajustamento.
Igualmente surpreendente foi o “hair-cut” de cerca de 65%, imposto pela Direção-geral da Concorrência aos ativos do Banif transferidos para o “veículo” criado e que forçou as referidas injeções de capital.
Tal como foi concretizada, a venda do Banif deixa uma grave interrogação, nunca respondida, sobre que razão levou as instâncias europeias a forçar uma solução que sabia resultar numa fortíssima penalização dos contribuintes portugueses. O sentido dessa intervenção revela-se, aliás, em evidente contradição com o objetivo essencial do Mecanismo de Resolução, que foi criado para cortar a ligação entre o risco bancário e o risco soberano e, deste modo, tem como objetivo proteger os contribuintes.
O que se passou legitima suspeitas graves. Houve, de facto, a intenção de ajudar a desenhar uma centralização bancária a nível ibérico, remetendo o mercado financeiro português para uma situação de subalternidade? E de o fazer à custa dos contribuintes portugueses?

Dúvidas e questões
Para além das questões de soberania com que, à revelia e nalguns casos em oposição ao espírito e mesmo à letra dos Tratados, os países mais vulneráveis – porque menos eficientes e mais endividados - estão a ser confrontados, a evolução da União Bancária está a colocar a nossa economia perante dois tipos de interrogações.
A nível externo, que decisões devemos adotar e que alianças devemos procurar, de modo a reduzir a nossa atual vulnerabilidade ou mesmo impotência, perante decisões tomadas a nível da Zona euro que condicionam o nosso futuro económico e social? O condicionamento, quase preconceituoso, do tecido de relações de setores da banca nacional com países terceiros coloca em causa a natural liberdade de procura de espaços de crescimento de negócio que aproveitem as vantagens comparativas decorrentes de quadros históricos de relações externas.  
A nível interno, que devemos fazer para estabilizar o nosso mercado bancário de modo a, simultaneamente, restaurar a confiança dos aforradores e dos investidores e assegurar níveis adequados de financiamento da atividade económica?
Se a zona euro se arroga o direito de intervir na reorganização do nosso sistema financeiro, então são-lhe exigíveis soluções para estas questões.
A primeira delas diz respeito ao futuro do projeto de integração da Europa e do papel que nele está reservado para as economias mais frágeis e endividadas, que, como a nossa, se encontram a braços com bloqueamentos estruturais e com desequilíbrios financeiros agudos.
Não é exagerado afirmar que a forma como a União Bancária está a ser construída aumenta essa mesma fragilidade, não revela efeitos potenciadores do crescimento e, sem a menor dúvida, contraria o propalado objetivo histórico europeu no sentido de um crescimento harmonioso do tecido económico da União. Ora a Europa não foi construída para agravar os problemas, mas sim para ajudar a resolvê-los. Porém, a sua evolução, nos últimos 15 anos parece ir em direção oposta.
Está hoje claro que o salto para uma maior integração financeira através da União Bancária, sem que fossem adotadas políticas dirigidas aos dois problemas centrais com que aquelas economias se debatem – endividamento excessivo e baixo crescimento potencial – está a ser feito à custa da fragmentação dos mercados financeiros. Só as intervenções do BCE têm permitido controlar, ainda que apenas parcialmente, os efeitos desta evolução sobre o financiamento global da economia e sobre as condições de exploração da generalidade dos intermediários financeiros e, em particular, dos bancos. No entanto, fica evidente que ninguém, a começar pelo próprio BCE e pela Comissão, parece ser capaz de avaliar, com objetividade, as consequências que podem resultar do abandono ou mesmo apenas do enfraquecimento da atual política monetária sobre a estabilidade dos mercados financeiros da Zona euro.
A segunda questão refere-se às respostas a dar, quer aos problemas que estão a afetar o nosso mercado bancário, quer ao reflexo destes sobre o financiamento da atividade económica e, em particular, das empresas. Qual o papel que deve ser atribuído ao grupo financeiro público? Como assegurar a sobrevivência das empresas que, embora economicamente viáveis, se encontram excessivamente endividadas, de modo a evitar um agravamento do desemprego? Como impulsionar o desenvolvimento gradual de fontes e instrumentos de financiamento de empresas, alternativos ao crédito bancário tradicional? Qual o papel que deve ser neste processo reservado aos “veículos” especializados na reorganização financeira de empresas, como os fundos? Como deve ser reorientado o regime fiscal aplicado às empresas, de modo a apoiar o fortalecimento dos seus fundos próprios e robustecer as suas estruturas financeiras?
                                           
A clarificação exigível
O país deve obter, por parte das instituições comunitárias relevantes, nomeadamente do Tribunal de Justiça europeu, a necessária aclaração sobre as margens de ação soberana do Estado português na gestão da sua posição económico-financeira no quadro da Zona euro, não sendo aceitável que esta posição seja permanentemente sujeita - de forma casuística, discricionária e aparentemente inapelável - aos critérios dos anónimos e não responsabilizáveis aparelhos burocráticos de Bruxelas e Frankfurt.
Uma última nota. Não vivemos em tempo de “gestão corrente”. A gravidade do momento e a importância crítica destas e de outras questões, indiscutivelmente relevantes e decisivas para o futuro do país, deveria apontar no sentido de uma clarificação estratégica que, a prazo, balizasse as suas posições no decisivo tecido de alianças que tem de começar a forjar no quadro das mutações que todo o tecido europeu parece estar em vias de sofrer. Não pode haver fronteiras ideológicas intransponíveis, ou prevalecerem obstinações doutrinárias absurdas, quando, dia após dia, assistimos a um crescente delapidar da nossa capacidade para poder ter palavra nacional mínima sobre a gestão de um dos vetores centrais da nossa soberania.
Fernando Bello
Francisco Seixas da Costa
João Costa Pinto
João Ferreira do Amaral
João Salgueiro
José Manuel Félix Ribeiro
Júlio Castro Caldas
Miguel Lobo ANtunes
(texto coletivo publicado no jornal "Público" em 27.5.16)

18 de março de 2016

Portugal no Mundo - Um debate inadiável

Por toda a Europa – Portugal incluído – parece aceite uma leitura benévola sobre o efeito das exceções concedidas ao Reino Unido, na perspetiva do referendo sobre o futuro daquele país na União Europeia. Essa leitura ilude que, ao alargarem-se as exceções de que o RU já beneficiava, mesmo a montante de qualquer alteração dos tratados, fica cada vez mais aberta a porta para uma modulação das políticas e, por essa via, para uma Europa potencialmente mais divergente. Por muito que as consequências das medidas acordadas se afirmem restringidas ao RU, seria de uma indesculpável ingenuidade pensar que elas não passam a constituir um precedente invocável por todos os outros Estados. Com mais este passo, acelera-se a diferenciação intra-europeia. 

Não conta aqui, para o que agora nos importa, se essa é uma evolução positiva ou negativa para os interesses de Portugal. Isso apenas deixa mais claro que o modelo europeu que o nosso país passou a integrar há 30 anos deixou já de existir. Estamos hoje numa Europa muito diferente e, estranhamente, não se encara entre nós como óbvia essa realidade, os portugueses parecem ausentes do debate ou não querem tirar disso as necessárias consequências, nomeadamente em termos das opções que assumem para o país na ordem internacional. A questão parece-nos simples: se a Europa é assumida como o eixo essencial do nosso quadro de inserção externa, será que as profundas mudanças ocorridas no seu projeto são para nós indiferentes e não têm qualquer consequência na definição da nossa estratégia como país?

Em face deste novo curso das coisas, que tem levado vários Estados europeus a evoluir nas suas opções geopolíticas, é muito preocupante que não se desenhe em Portugal um mínimo de reflexão estratégica, que suscite propostas de ação e de atitude, bem como a exploração de alternativas de inserção no contexto global, que possa ser conveniente ponderar. Se é um facto que a ciclotimia dos ciclos políticos não oferece as melhores condições para que essa reflexão possa ser eficaz em sede do poder político, então só podemos concluir que é vital que a nossa sociedade civil se mobilize e, sem quaisquer tabus, coloque sobre a mesa todo o espetro de problemas com que Portugal se debate. Ignorar a realidade é o primeiro passo para nos deixarmos conduzir por ela, sem termos qualquer papel mínimo na sua direção.

A Europa mudou

Os mais recentes alargamentos da UE induziram consequências muito relevantes sobre os seus equilíbrios internos, alterando a relação de forças no seu seio, muito em especial potenciando o peso relativo da Alemanha, que o final da Guerra Fria havia indiciado. A consequente expressão, em termos dos tratados europeus, dessa nova realidade, conduziu a mudanças qualitativas importantes no caráter das instituições da UE, que conduziram à redução da capacidade de afirmação dos países mais frágeis. O paralelo aprofundamente voluntarista de algumas políticas que tocaram o cerne das soberanias – como foi o caso do euro ou de Schengen – foi levado a cabo com uma escassa ponderação da assimetria dos seus efeitos e com uma medíocre visão prospetiva sobre o respetivo comportamento em cenário de tensão.

Muito em especial, a crise das dívidas soberanas e a recente desregulação migratória provaram que a União Europeia não se equipou por forma a proteger o corpo central das suas políticas, sendo que a sua narrativa justificadora as havia erigido como identitárias. Assistiu-se e assiste-se ainda hoje a reações desordenadas, casuísticas e contraditórias, associadas a uma deriva clara para colocar como sujeito do processo decisório europeu um número muito limitado de atores – numa espécie de reconhecimento implícito de que as soluções possíveis passariam cada vez menos pelo modelo da soberania partilhada, através de instituições de funcionamento transparente em que a igualdade tendencial dos Estados é preservada, e muito mais pelo velho sistema de “diretório”, neste caso quase unipolar, cuja evolução a História europeia nos ensinou sempre a temer. 

Este centralismo pouco democrático está a conduzir as opiniões públicas dos vários países a um crescente afastamento do projeto europeu, a que não será estranha uma inédita crispação entre grupos dos seus Estados membros – desde uma clivagem Norte-Sul bem patente no domínio económico-financeiro até a um contraste de atitudes Leste-Oeste, evidenciado na reação às pressões migratórias. Nada indica que essas dualidades tenham condições para serem atenuadas, bem pelo contrário.

O sentimento de irrelevância de alguns países no processo decisório europeu começa a acarretar sérios problemas de legitimidade democrática, à escala nacional, para alguns governos, parlamentos e opiniões públicas. Nesse domínio, algumas das condicionantes que esse processo centralista desencadeou - desde a imperatividade das metas macro-económicas, o condicionamento do processo orçamental e a gestão centralizada do sistema bancário – só parecem compatíveis com um modelo de Europa política que não só não existe como parece mesmo caminhar num sentido inverso, como o caso britânico indicia. Os sobressaltos que se registam em vários países, com o surgimento de pulsões soberanistas, os apelos à renacionalização das políticas e sinais de uma crescente desconfiança na bondade do modelo integrador, revelam que a mudança é o nome do jogo, embora comece a ficar patente que poucos se reveem já num único modelo de caminho. 

O lugar de Portugal

Portugal surge, nesta constelação de posições, numa situação pouco invejável, por virtude da expressão conjugada de várias debilidades. Há que assumir que muitas delas resultam de políticas nacionais que, a prazo, se revelaram erradas ou mal ponderadas nos seus efeitos, as quais agravaram a nossa fragilidade como país e, por essa via, potenciaram as nossas dependências.

Essa fragilidade económico-financeira acabou por colocar Portugal, de uma forma por ora sem aparente solução alternativa, no conjunto de países mais dependentes da Europa, condicionando ao extremo a sua margem internacional de manobra, como ficou bem evidenciado durante o período de ajuda externa.

O peso insuportável da atual dívida soberana é hoje iludido por uma conjuntural possibilidade de refinanciamento, que se sabe dependente, em absoluto, de fatores que não controlamos e cuja eventual evolução negativa, nomeadamente pela variação dos humores dos mercados, terá imediatos e dramáticos impactos nas nossas contas públicas.

A endémica falta de crescimento e o não surgimento de sinais de reforço sustentado da competitividade da nossa economia reforçam um panorama de forte incerteza que se reflete sobre as avaliações dos mercados, ameaçando em permanência o custo do refinanciamento da dívida. Com as limitações conhecidas ao investimento público, o país vai agora testar a eficácia de uma política assente em estímulos orçamentais à procura, sem que, no entanto, se vislumbre uma perspetiva de geração de um novo ciclo de investimento produtivo, travado este pela persistência de custos negativos de contexto que não parecem em vias de alteração, onde se relevariam, pela sua determinante importância, a instabilidade fiscal, a burocracia e a complexidade dos procedimentos administrativos de licenciamento, tudo isto num quadro de insuficiências persistentes do sistema de Justiça.

O estado a que chegou o sistema bancário nacional, como resultado de erros e más práticas de gestão, públicas e privadas, bem como das orientações inadequadas com que a Europa do euro tem vindo a reagir à crise, confronta hoje o país com uma incessante sucessão de más surpresas, que ainda se não percebeu onde terminarão e que custo global os contribuintes irão ter de assumir. A isto se soma, em tempo mais recente, a constatação de que as autoridades bancárias europeias parece terem optado em definitivo por uma “iberização” centrada em Madrid dos ativos remanescentes nesse âmbito. A nosso ver, isso deveria ter já provocado um alarme em Portugal, atentas as consequências estratégicas muito graves que daí podem resultar. Neste cenário, parece legítimo que o país se interrogue, com alguma frieza estratégica, sobre o destino futuro dos escassos instrumentos bancários que lhe podem conferir alguma capacidade de intervenção autónoma no setor, como suporte de opções de política económica que ainda dele dependam.

Some-se a tudo isto, finalmente, o facto da capacidade exportadora nacional não ter por ora condições para poder continuar a crescer para além de determinados limites, asfixiada por uma oferta de crédito temerosa e sem estratégia evidente, agora também fortemente limitada pelos constrangimentos que afetam alguns dos mercados-alvo, que se haviam revelado o seu sustentáculo nos últimos anos. Aliás, num desses principais mercados, há hoje que contar com “nuvens” políticas que têm condições de geração de uma “tempestade” de efeitos imprevisíveis.

Que fazer?

Assumimos a consciência de que o país perdeu, por opção, grande parte dos instrumentos de exercício autónomo da sua soberania e da relativa liberdade nacional em matéria de escolha de política de que dispôs noutros contextos históricos. Mas também sabemos que a isso correspondeu, pela positiva, um salto qualitativo importante que trouxe aos portugueses oportunidades, bem-estar e um conjunto muito variado de vantagens de que hoje usufruem. É esse saldo positivo que cremos que está hoje em sério risco, por virtude de se terem alterado substancialmente os pressupostos que estiveram na base de algumas escolhas entretanto feitas.

Entendemos que Portugal deve repensar urgentemente o seu futuro à escala global. Não se trata de colocar em causa aquelas que são algumas das constantes da nossa ação externa em tempos democráticos, tanto mais que grande parte delas decorrem de determinantes geopolíticas, bem como da livre adesão a valores e alianças que o país assume como fazendo hoje parte integrante da sua identidade. Trata-se apenas de, nesse mesmo quadro, discutir, com abertura e sem tabus, se é ou não necessário vir a sublinhar algumas dessas vertentes de um modo diferente do que tem sido a prática mais recente.

A opção mais óbvia que se coloca é, naturalmente, prosseguir o modelo de alianças intra-europeias que hoje parecem determinar, quanto mais não seja por omissão, o essencial da postura portuguesa nas últimas décadas, e que já se constatou ser independente dos ciclos políticos. Parecem evidentes os limites desse modelo, o qual, em caricatura simplificada, se pode caraterizar por uma ligação preferencial à Alemanha, uma aposta económica no mercado ibérico e a utilização pontual da França como fator compensatório para atenuar os impactos excessivos da dependência central. Este modelo comporta, contudo, um maior ou menor voluntarismo na atitude reivindicativa na Europa e, em especial, perante Berlim, quer no tocante à gestão da flexibilidade nas metas macro-económicas, quer no ressuscitar, em conjunto com outros países que possam vir a assumir idêntica orientação, a questão da mutualização da dívida.

Uma segunda possibilidade seria explorar aquilo que se poderia designar como opção “sulista” dentro da UE, isto é, o favorecimento e aproveitamento de um desequilíbrio no seio dos seus poderes fáticos, com a emergência da França no centro desse processo, em especial se o abandono ou o afastamento acentuado do Reino Unido do eixo europeu de decisão vier a colocar Paris num papel de único poder político-militar com valor significativo, no quadro de uma Europa em tensão securitária, com interesse reforçado pela estabilidade mediterrânica, de onde podem continuar a derivar algumas importantes ameaças a esse nosso flanco comum. Este modelo pressuporia uma evolução da Itália e da Espanha como seu suporte essencial e teria a dualidade face ao bloco setentrional do continente como decorrência inevitável, sendo incerto se a preservação da moeda única continuaria a ser viável nessa visão mais radical.

Outra ideia consistiria em Portugal se afastar, em moldes a estudar, da postura integracionista sem limites que tem seguido nas últimas três décadas, sem prescindir da opção europeia mas reduzindo seletivamente a sua participação em algumas das suas políticas, não podendo naturalmente o cenário de uma saída negociada e calendarizada do euro deixar de figurar no catálogo de opções dentro desse mesmo modelo. Uma orientação deste tipo pressuporia um acompanhamento muito cuidado da evolução da situação britânica, no pressuposto de que o distanciamento de Londres face ao processo integrador, que em qualquer caso e grau sempre ocorrerá, terá forçosamente de conduzir a um restabelecimento de uma sua nova rede de alianças preferenciais no quadro continental, em que o nosso país poderia tomar a opção de se (re)inserir. Este modelo teria como natural pressuposto uma escolha pelo reforço de um realinhamento transatlântico mais intenso, tentando fazer ganhar a Portugal uma nova centralidade, utilizando de forma criativa os Açores, a plataforma continental e a economia do mar como ativos autónomos nessa nova equação, de que Cabo Verde poderia também vir a fazer parte.

No seu conjunto, os signatários, na diversidade de opiniões que é a sua, não se reveem necessariamente em nenhum dos modelos e consideram que todos contêm elementos que poderiam ser conjugados noutros cruzamentos de opções. Também não têm a pretensão de terem esgotado o universo das propostas plausíveis e, por essa razão, estimulariam que ideias expostas neste texto, bem como outras que possam surgir, servissem de base a um salutar debate nacional, para o qual, aliás, seriam muito bem-vindos os atores políticos e quantos, com sinceridade e sem preconceitos, também se preocupam com o futuro de Portugal.

Francisco Seixas da Costa
João Costa Pinto
João Ferreira do Amaral
João Salgueiro
José Manuel Félix Ribeiro
Miguel Lobo Antunes

11 de fevereiro de 2016

Schengen e as ilusões europeias

O tempo desgasta as nossas ilusões. Na maioria das vezes, torna-nos realistas. Em outras, converte-nos ao cinismo. A sabedoria consiste em saber capitalizar o primeiro sentimento, sem nos deixar cair reféns eternos do segundo. Neste ano em que se comemoram 30 anos de presença de Portugal nas instituições europeias, somos também apelados a fazer um balanço crítico das ilusões europeias que fomos perdendo ao longo desse tempo. 

Aqueles que, dentre nós, acompanharam o processo desde o seu início, que nele operaram em diferentes capacidades e funções, tiveram o ensejo de experimentar as épocas diferentes desse projeto, de nele apreciar a evolução da atitude dos vários atores, sendo que nós próprio somos um dentre eles. E também nós mudámos muito.

É um lugar comum dizer-se que a Europa a que aderimos naquele dia primeiro de 1986 é muito diferente do modelo que hoje temos perante nós. Tenho, contudo, a sensação de que, ao afirmarmos esta obviedade, não temos a exata consciência da extraordinária dimensão dessa diferença. Não falo apenas do modelo institucional, sujeito a várias reformas por tratados posteriores, nem sequer dos alargamentos que lhe trouxeram mudanças drásticas na geografia, nos objetivos e na natureza. Falo da filosofia global do processo integrador, da cultura comportamental que hoje prevalece entre os seus membros, dos padrões de entendimento que marcam o quotidiano das instituições e de quem nelas age. As diferenças são, em tudo, abissais.

Vivemos numa Europa que, nas últimas décadas, passou por mutações muito profundas. Do fim da União Soviética, com o apagamento do ‘socialismo real” num considerável número de países, à criação de uma moeda única que hoje liga quase duas dezenas de Estados, o continente atravessou tensões muito fortes e enfrentou desafios potencialmente desagregadores. A Europa sobreviveu a esses traumas, mas seria ingenuidade pensar que estes embates com a História deixariam o continente incólume. 

Não obstante isso, o projeto daquilo a que chamamos hoje União Europeia conseguiu, não apenas manter a sua unidade essencial, como foi mesmo capaz de dar passos integradores decisivos, que hoje fazem parte do património coletivo. Diria mesmo mais: do implícito património coletivo, porquanto muito daquilo que hoje faz parte do nosso quotidiano está de tal modo interiorizado e “naturalizado” que, muitas vezes, nem sequer o identificamos como um valor acrescentado que nos chegou precisamente por via do projeto comum.

Nos tempos áureos de Jacques Delors usava-se a expressão “os custos da não-Europa” para significar quanto o não aprofundamento do projeto europeu acabava por pesar no deve-e-haver dos efeitos sobre os seus Estados. Nestes tempos em que o euro-ceticismo começa a marcar muitas agendas nacionais, em que cada vez mais cidadãos olham para o processo integrador como uma ameaça, em lugar de uma vantagem, talvez fosse tempo de “desconstruir” a Europa que temos e tentar isolar nela, sublinhando-o, o que representam os ganhos que entretanto todos obtivemos. Quero com isto dizer que talvez devêssemos fazer um inventário daquilo que seria hoje a cidadania no espaço europeu se acaso a Europa nos não tivesse “servido” um conjunto precioso de políticas, que hoje nem notamos, tão comuns são já à nossa existência. O acordo de Schengen é talvez o mais ilustrativo exemplo dessas vantagens “escondidas” que a Europa nos proporcionou.

A ousadia de Schengen

Olhando em perspetiva, somos forçados a reconhecer que Schengen foi uma imensa ousadia política. Sabidas as enraizadas identidades nacionais que compõem o tecido político europeu, é impressionante constatar que foi possível convencer Estados que representam cerca de 400 milhões de pessoas a abolirem todas as fronteiras entre si, a dispensarem o uso de passaportes, a prescindirem dos controlos a quem atravessa os seus limites e, o que não é menos significativo, a padronizarem, sob um modelo comum, verificável por terceiros, as suas fronteiras externas. 

Este passo só pôde ter lugar pelo facto de ter havido um reconhecimento coletivo, fortemente apoiado pela comunicação social e por um sentimento popular no mínimo não antagónico, das imensas vantagens que o novo modelo iria acarretar. A livre circulação de pessoas foi sempre vista, pelos europeistas mais fervorosos, como um passo essencial para o estabelecimento efetivo do projeto europeu. Contudo, esta era, dentre as chamadas “quatro liberdades” – pessoas, mercadorias, capitais e serviços – a que se presumia mais complexa de organizar.

Basicamente, o problema central de Schengen sempre radicou na escassez de confiança. É que a segurança de Schengen depende da eficácia de todas e de cada uma das suas fronteiras externas. Cada quebra de segurança deixa de o ser exclusiva do país que nela incorre e, de imediato e potencialmente, passa a afetar toda a malha de Estados da área Schengen. O estabelecimento e sucessivo aperfeiçoamento de um “serviço de informações”, que tem como finalidade, desde o início, reforçar a segurança do espaço, foi mais uma medida geradora de confiança que foi indispensável implementar.

Quando, em 1997, me coube a responsabilidade de presidir ao Comité de ministros do então Acordo de Schengen (que hoje faz já parte do acervo comunitário dos tratados), dirigi em Lisboa uma reunião em que a fiabilidade das condições de segurança do aeroporto de Atenas, bem como a vigilância marítima italiana, eram postas abertamente em causa. Devo confessar que tive ali, pela primeira vez, a perceção daquilo que poderiam vir a ser os problemas com que Schengen poderia confrontar-se no futuro. É que assisti a ministros europeus dizerem, com total franqueza, aos seus homólogos grego e italianos que … não acreditavam neles, nas garantias que estes lhes procuravam dar. Asseguro que não foi nada fácil ultrapassar essas tensões e obter consensos depois das “facas” se terem desembainhado dessa forma!

Muita água correu sob as pontes europeias desde essa altura. Por um lado, ficou claro que o Reino Unido e a Irlanda não prescindiam de ver reiterado e garantido, em letra de tratado, o seu “opting-out” da área Schengen (à época, Dublin teve por inevitável, por determinantes geográficas, acompanhar a idiossincrasia de Londres). Alguns países dos recentes alargamentos viram até hoje atrasado o seu acesso, por virtude de se terem acumulado dúvidas sobre a capacidade de darem cumprimento pleno às obrigações decorrentes da adesão. Mas, em minha opinião, o fator mais credibilizante de Schengen foi, sem sombra de dúvida, o papel central da máquina técnica da Comissão europeia na gestão da área. Outros instrumentos europeus, como o Frontex, vieram a reforçar a monitorização da fronteira externa. 

Não obstante todas essas melhorias e garantias, a fronteira externa de Schengen, mesmo em tempos de “business as usual”, está longe de ser 100% segura. Quando ocorrem tempos de exceção, os problemas agigantam-se. E as linhas imediatas de defesa passam para as fronteiras nacionais tradicionais

As crises

A pressão migratória de natureza económica, com as tragédias humanas que lhe estão associadas e de que as imagens televisivas são suporte impressivo, trouxe à evidência, se tal fosse ainda necessário, que a área Schengen tem de viver com a realidade de alguns dos seus países estarem expostos de forma diferenciada a esses fluxos. Por essa razão, em especial quando estes atingem pontualmente uma forte dimensão, fica mais clara a necessidade da Europa caminhar para uma política comum de imigração, tema até agora quase tão tabu como é a harmonização fiscal…

Mas terá sido a recente crise dos refugiados, com uma expressão quantitativa sem precedentes, que suscitou as mais sonoras expressões de vontade de colocar em causa as regras da área Schengen. 

Há que reconhecer que Schengen está dimensionado para um quotidiano de normalidade, muito embora esteja prevista a possibilidade de reintrodução de mecanismos de controlo, desde que limitados no tempo e sob observação da Comissão europeia. Recorde-se que, já no passado, em variadas outras circunstâncias, tais salvaguardas excecionais haviam sido postas em prática, sem que daí decorresse nenhum drama e sem o menor risco para a integridade do sistema.

Finalmente, os atentados terroristas, que vieram a somar-se a preocupações securitárias de diversa natureza, suscitadas em países com tensões internas com impactos políticos, contribuíram para colocar Schengen num fácil “pelourinho”.

Não é assim possível escapar a um debate sobre o tema e também não é realista, à luz das polémicas já encetadas, pensar que as regras de Schengen vão permanecer incólumes, depois de tanta evidência sobre a necessidade de as adaptar a novas realidades. A questão é saber como será possível efetuar essas adaptações sem colocar em causa a integridade essencial do sistema e, muito em especial, sem fazer cair na alçada discricionária e arbitrária de cada Estado o modo como este mecanismo de gestão da liberdade de pessoas no espaço europeu passará a ser gerido.

Não chegando ao ponto de afirmar, como fez o presidente da Comissão europeia, Jean-Claude Junker, que a própria existência da moeda única poderia estar em causa, se Schengen colapsasse, há que reconhecer que um eventual desmantelamento do sistema teria consequências muito nefastas para o processo europeu no seu todo. A reintrodução de barreiras iria desencadear processos burocráticos que, à evidência, teriam efeitos no mercado interno e na livre circulação de fatores, que hoje constituem um dos eixos do êxito do processo integrador. Preservar Schengen, adaptando o espaço às novas exigências e desafios, eventualmente trabalhando outros elementos de reforço das fronteiras exteriores da área, além de densificar os mecanismos de troca de informações entre os Estados, constitui um evidente imperativo.


Nós e Schengen

Olhe-se para o mapa da Europa e a nossa situação de periferia geográfica. Reflita-se no facto de sermos o país europeu com mais cidadãos que trabalham noutros Estados da União. Pense-se na importância dos fluxos turísticos para a nossa economia, assentes na facilidade de movimentação que Schengen proporciona. Lembre-se, por fim, que o nosso quadro preferencial de relações externas, no âmbito da lusofonia, a começar pelo Brasil, é forte usufrutuário das vantagens da livre circulação europeia. Por aqui se deduz o que parece dever ser a nossa atitude perante os projetos de revisão de Schengen.

Sei que parece algo irónico pensar que lembramos ao mundo, com regularidade, que somos um dos seus mais antigos Estados, com fronteiras que, basicamente, têm quase nove séculos e que, simultaneamente, somos daqueles que, com grande facilidade, prescindimos do seu controlo. Mas essa é a grande “superioridade” de um Estado que não teme perder a sua identidade pela abertura ao exterior e que, nesse contexto, fez há muito um balanço do custo-benefício desta opção política.

A Europa, enquanto projeto, comporta desafios e riscos que não são despiciendos. Como os últimos anos têm evidenciado, a transferência para um espaço europeu de gestão de elementos ligados ao “core” da nossa soberania, como a moeda, limita-nos fortemente na nossa capacidade de afirmar alguma margem de autonomia, tornando-nos hoje muito menos relevantes no processo decisório bruxelense. Mas se a essa limitação acrescêssemos a perda das vantagens da livre circulação, então sim, passaríamos a ter todas as desvantagens de um processo que já pouco controlamos somadas às imensas desvantagens que, no nosso caso muito particular, as restrições à livre circulação de pessoas acarretariam. 

Defender Schengen e estar ativo e propositivo em qualquer processo que incida sobre a revisão do seu modelo é vital para os nossos interesses. E, na Europa, os interesses, quando são por nós assumidos como vitais, e simultaneamente compreendidos pelos outros como tal, têm muita força.

(Texto publicado no nº 6 de revista "XXI - Ter Opinião", editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, Fevereiro de 2016)