27 de novembro de 2003

A Guerra Fria acabou?

A recente mudança de poder na Geórgia relembrou ao mundo a persistência de sérios focos de tensão nas zonas adjacentes à Rússia, provenientes da desintegração da URSS. São restos da Guerra Fria que estão longe de consolidados sob matriz democrática, onde por vezes se acolhem tendências secessionistas de raiz étnico-religiosa.


Esquecendo por instantes a situação na Federação Russa, verificamos que o mapa da instabilidade política começa na zona “cinzenta” entre a UE e a NATO alargadas e a própria Rússia, prolongando-se depois pelo Cáucaso e pela Ásia Central. Sem excepção, são Estados em transição institucional, com diferente solidez política e distinta capacidade económica de sobrevivência.


A comunidade internacional só acorda para esta região quando os conflitos se agudizam, quando a CNN e a BBC trazem imagens da rua e das fardas, quando novos e arrevezados nomes de figuras políticas emergem, numa espécie de irregular alternância política. Não se dá conta de que esse é um mundo escondido de dezenas milhões de pessoas, sofrendo impensáveis privações, precariedade da sua vida quotidiana e, em muitos casos, o peso de regimes que ainda reflectem a síndrome totalitária da antiga URSS.


Ou melhor, essa mesma comunidade internacional lê os sintomas dessa instabilidade nos fluxos migratórios, no tráfico de seres humanos, droga e materiais militares, nas novas rotas da criminalidade internacional. Mas a terapia que utiliza é escassa e desproporcionada, com ajudas pontuais do FMI, Banco Mundial, BERD e UE a perderem-se, muitas vezes, em teias de uma corrupção tida como inevitável, retomada nos ciclos políticos seguintes.


Dependendo da importância estratégica de cada caso, das rotas do petróleo ou dos fluxos do extremismo, esses Estados são hoje objecto de um crescente conflito “soft” entre os poderes mundiais relevantes. A luta contra o terrorismo trouxe cambiantes a este cenário, com a “realpolitik” de conjuntura a prevalecer, num jogo de sombras que teria graça se não fosse trágico. Mas nada mudou no essencial.


Nestas condições, pode perguntar-se: a Guerra Fria acabou mesmo ?

30 de setembro de 2003

Uma CIG de tipo novo

Em 4 de Outubro inicia-se mais uma Conferência Intergovernamental (CIG), destinada a fixar um novo Tratado da União Europeia, eventualmente sob um formato constitucional.


No passado, a CIG comportou sempre dois níveis de negociação: um nível preparatório, com representantes dos governos, e a Conferência propriamente dita, de carácter mais formal, com a presença dos membros relevantes dos executivos (MNE’s e ministros das Finanças, no caso de Maastricht). Um Conselho Europeu final, a nível de chefes de Governo ou de Estado, decidiu os últimos pormenores, sempre em longas e dramáticas maratonas.


Na negociação dos tratados de Amesterdão e de Nice (a única CIG que Portugal dirigiu) coube-me chefiar a delegação portuguesa ao grupo preparatório, onde a fixação dos projectos de articulado foi feita após aprofundados debates técnico-políticos, sendo apreciada posteriormente pelos ministros, antes de subir ao Conselho Europeu.
O trabalho de Amesterdão demorou mais de um ano e o de Nice, embora com uma agenda muito mais curta, deu origem a cerca de 350 horas de debate!


Em 1995, antes da negociação do que viria a ser o Tratado de Amesterdão, a CIG foi antecedida por oito meses de trabalho de um “grupo de reflexão”, que definiu, sem carácter minimamente constrangente, úteis pistas de trabalho para a Conferência.


No caso presente, houve lugar a uma longa Convenção de natureza sui generis, que reuniu, para além de representantes dos governos, dos parlamentos nacionais e europeu e da Comissão Europeia, outros observadores de permeio. Contou também com representantes dos países que aderirão em 2004 e dos restantes candidatos. O presidente da Convenção, Valéry Giscard d’Estaing, teve artes de apresentar, como resultado de um rebuscado "consenso", um projecto completo de novo Tratado constitucional, que reflecte uma leitura muito lata do mandato que foi atribuído à Convenção pelo Conselho Europeu de Laeken.


Julgo ter sido dos primeiro a defender publicamente (“Le Monde”, 1.7.2000) a realização de um exercício deste tipo, utilizando o modelo da Convenção que havia sido criado para preparar a Carta dos Direitos Fundamentais da UE. Só que este modelo tinha um pressuposto essencial, então sempre respeitado, que na actual Convenção se não verificou: nenhum consenso era extraído se a ele não tivessem aderido explicitamente os representantes dos 15 governos nacionais. E isto, naturalmente, faz toda a diferença.


Não vou aqui falar dos méritos ou deméritos da substância dos resultados da Convenção.
Noutras sedes essa delicada discussão tem melhor cabimento. O que me parece importante destacar é que a CIG que aí vem tem uma característica completamente nova. Ela é precedida pelo aparecimento de um projecto de tratado “chave-na-mão”, resultado de um inédito formato de “consensualização”, que se pretendeu legitimado pela intervenção, a montante da negociação entre os governos, de delegados daqueles que mais tarde terão de julgar o resultado do seu trabalho. Esse é o caso dos parlamentos nacionais e, em moldes não vinculativos mas politicamente relevantes, do Parlamento Europeu. Tudo isto, diga-se, sem que tais deputados tenham ido para a Convenção investidos de qualquer mandato das assembleias de onde eram originários.

24 de setembro de 2003

Para onde vai a Europa?

Quando, aí por 1997, o então ministro da Agricultura, Gomes da Silva, se juntou no Terreiro do Paço a uma manifestação de protesto contra a política agrícola europeia, quase que caíram o Carmo e a Trindade. A atitude pareceu configurar o reconhecimento da incapacidade de sustentar os interesses portugueses em Bruxelas, com tudo o que isso tinha de humilhante para a imagem do país.

Recordo-me de, na altura, ter tido a percepção de que a atitude de Gomes da Silva era de uma genuinidade premonitória, anunciando o que poderia vir por aí se o processo decisório europeu evoluísse em moldes que marginalizassem, de forma decisiva, interesses de relevância nacional.

O resultado da Convenção Europeia, que a Conferência Intergovernamental (CIG) analisa, propõe um modelo de tomada de decisões que consagra a prevalência de uma Europa desenvolvida, uma Europa de que Portugal só marginalmente faz parte. É um modelo que pretende tornar “neutro” o efeito do futuro alargamento na contabilidade dos interesses europeus ou, para ser mais claro, destinado a garantir que quem paga a factura orçamental é quem continua a mandar.

O Tratado de Nice desenhou uma Comissão Europeia onde o conjunto dos comissários oriundos dos países menos desenvolvidos Europa (pequenos e grandes, porque esta é uma divisão artificial e meramente simbólica) se equiparava aos dos países mais ricos. Sendo a Comissão a única instituição com poder de iniciativa legislativa, e a quem cabe o desenho orçamental, que dentro de si vota por maioria simples, estavam criadas as condições para uma “subversão” dos actuais equilíbrios após o alargamento.

Mas a Comissão não é uma instituição independente ? Não, não é. Os comissários, não sendo representantes dos Estados não deixam de reflectir no quotidiano os interesses de quem os nomeou ou, pelo menos, opõem-se a que eles saiam prejudicados. Além disso, os países mais desenvolvidos da Europa enxamearam a Comissão de directores-gerais, chefes de gabinete e outras figuras de proa que condicionam a sua agenda. Na impossibilidade de “tomar” essa máquina burocrática, a Europa menos desenvolvida só podia apostar em “controlar” o colégio dos Comissários. Foi essa a sua vitória em Nice, onde as maiores economias europeias (RFA, Reino Unido, França, Itália, Espanha) foram privadas do seu segundo comissário.

Como compensação pela perda desse mesmo comissário, Nice concedeu aos países mais populosos maior poder na instância de avaliação das propostas apresentadas pela Comissão – o Conselho de Ministros. A circunstância da Espanha e da Polónia apanharem este “comboio” por via demográfica fazia parte da nossa estratégia, dado que estes dois países, com algumas excepções pontuais no primeiro caso, se situam claramente no padrão médio de interesses da Europa menos desenvolvida. Para garantir uma rede complementar de segurança, exigimos ainda que qualquer decisão só fosse válida com o acordo de uma maioria de Estados.

O equilíbrio de Nice, um tratado há poucos meses em vigor e cujas disposições em matéria de exercício de poder ainda não estão em funcionamento, desagradou sempre à Europa mais rica. Daí a Convenção Europeia, com novas e radicais propostas para tornar sinónimos “democracia” e “demografia”.

A confirmar-se que a UE caminha para tornar irrelevante a voz dos seus países mais pobres, nomeadamente os novos aderentes, outros ministros podem vir a ter a tentação, embora talvez não a coragem, de aparecer nas ruas das suas capitais a manifestar-se contra as decisões europeias, conscientes de que passa a ser irrelevante deslocarem-se ou não a Bruxelas, dado que já não têm poder formal para alterar uma decisão cujo sentido está definido a priori, pela simples soma das populações dos Estados que as impõem. O que isso irá significar para a legitimidade interna dos respectivos Governos, e para a sobrevivência da própria imagem da Europa nesses países, isso já será outra história.

11 de setembro de 2003

Duas cidades


O 11 de Setembro de 2001 não derrubou apenas o World Trade Center e uma ala do Pentágono. Fez ruir também o sentimento de confiança que a América mantinha na sua própria intocabilidade, com profundas consequências no modo como a maior potência olha hoje o mundo e o seu papel dentro dele.

Uma das grandes linhas divisivas que afectam a política mundial prende-se precisamente com a impossibilidade, para a Europa, de interiorizar o sentimento de profunda angústia que hoje atravessa a América, face à sua inesperada impotência perante perigos de contorno desconhecido. E isso tem consequências com expressão política, num país onde a agenda pública segue de muito perto o sentimento colectivo, muito em especial quando este coincide com os grandes interesses estratégicos.

Desde há muito, a Europa habituou-se a viver com o perigo. Teve duas guerras trágicas no seu seio, sofreu o nazi-fascismo, os temores da Guerra Fria e os “anos de chumbo” das acções radicais extremistas. Os europeus têm consciência da sua própria fragilidade, mas convivem com ela com alguma naturalidade.

Para os Estados Unidos, o mundo exterior sempre fora um lugar perigoso, de que faziam uma caricatura à medida da suas vivências internas. E se a segurança interna não conseguira prever alguns actos tresloucados, os riscos políticos profundos estavam afastados do quadro de probabilidades, com a rede securitária concentrada na criminalidade, com a droga como inimigo público.

Tive a experiência de viver em Nova Iorque, antes e depois do 11 de Setembro. É sabido não ser a cidade americana típica. Alguém dizia que os europeus sempre tiveram Nova Iorque como a sua principal imagem da América, enquanto, pelo contrário, para a generalidade dos americanos, aquela cidade aparece já como uma espécie de primeira aproximação à vida europeia. Mas, talvez por isso, estando Nova Iorque “mais próxima” de nós, talvez a mudança da atitude de vida nessa cidade nos seja mais perceptível. E a ideia que me ficou do pré e do pós-11 de Setembro é que vivi em duas cidades diferentes.

Fui a Nova Iorque, pela primeira vez, com 24 anos de idade, como opção de férias após o primeiro ano de emprego público. Uma das torre do World Trade Center estava por acabar. Daí para cá, visitei a cidade muitas vezes, dela sempre recolhendo a mesma matriz trepidante, palco da ambição individual, de alguma agressividade egoísta, mas com uma indefinível cordialidade, com a assunção de um escasso número de regras de convivência urbana como chave para nos sentirmos em casa.

Em 2001, quando fui viver para Nova Iorque, a cidade recuperara o usufruto pleno de muitas zonas para os seus cidadãos, por virtude da queda do desemprego e de um eficaz combate à criminalidade. Passear à noite, em antigas no-go areas, tornou-se rotina. Restaurantes e galerias apareciam e desapareciam no West Village e em Chelsea, com as esplanadas cheias e um ar de prosperidade geral, embora distante do auge do Nasdaq.

Como em todas as sociedades em que a precariedade do vínculo laboral é a lei que reflecte as crises, Nova Iorque reagiu ao 11 de Setembro com brutalidade. Desemprego, encerramento de actividades e retracção de consumo, com a queda vertical do turismo e o afundar temporário da Broadway.

E, também, com a emergência da angústia com a segurança, que nunca mais terminou. Foram os tempos do antrax, das ameaças constantes das dirty bombs. Os novaiorquinos passaram à “vigilância popular”, a olhar o vizinho, o “diferente” como uma ameaça potencial. O uso da bandeira americana passou a factor de credibilitação, nas lapelas, nas portas ou nas montras, com os não seguidores da regra a serem vistos com anti-patriotas. O nine-eleven (fórmula americana para o 11 de Setembro), o terrorismo, Bin-Laden e Al-Queda monopolizaram os discursos, com uma comunicação social marcada por um nacionalismo beligerante que abafava reticências.

Com o 11 de Setembro, aprendi que os americanos estão dispostos a sacrificar o mais sagrado da sua liberdade – e poucos povos haverá com um sentimento de liberdade mais arreigado – em favor da restauração, ainda que limitada ou mesmo virtual, da sua própria segurança. Por muitos e menos bons tempos, a América está prisioneira de si própria, pelo temor e pela desconfiança. Mas América que eu conheço e admiro vai, estou certo, conseguir fazer sair o país desta psicose colectiva. E todos ganharemos com isso.


(Publicado no "Jornal de Notícias, 11.9.2003)

21 de agosto de 2003

Um homem para todos os desafios

“Você sabe, Francisco, só me aparecem desafios que não consigo recusar!” –  foi a frase que retive da última conversa com Sérgio Vieira de Mello, quando lhe telefonei a desejar sucesso para a sua nova missão em Bagdad. Ironizámos então com o facto de Paul Bremer, o administrador americano no Iraque, com quem Sérgio teria que se articular, ter coincidido comigo em posto diplomático na Noruega, nos idos de 70: prontifiquei-me para "meter uma cunha”, se ele precisasse…

Só conheci pessoalmente Vieira de Mello em Setembro de 1999, quando o protocolo nos sentou lado-a-lado, num almoço na ONU. Acabara, há pouco, a sua missão nos Balcãs e entre nós passou, de imediato, uma corrente de empatia luso-brasileira, logo cimentada pelo mútuo culto do humor. Recordo-me de termos falado da possibilidade de ele chefiar a nova missão da ONU em Timor, ainda semanas antes de Kofi Annan lhe propor o lugar. Eu não tinha a pretensão de estar a ser presciente: limitava-me a ecoar o nome prestigiado que circulava já por alguns corredores, afirmando-lhe a certeza antecipada de que o Governo português o acolheria com muito agrado. Na altura, Sérgio retorquiu-me, com o seu sorriso confiante, que não, que “ia precisar de algum tempo para descansar”. Felizmente, isso acabou por não acontecer.

Sérgio Vieira de Mello fez em Timor um trabalho notável, como várias vezes tive ocasião de referir, em nome de Portugal, em intervenções no Conselho de Segurança da ONU. E – confesso –  fi-lo com uma sinceridade que nem sempre é regra nos discursos oficiais. Com ele combinei, nas derradeiras fases do processo pré-independência, o tom comum das nossas intervenções em Nova Iorque, por forma a garantir o apoio que o secretário-geral da ONU e o Governo português entendiam necessário que fosse dado aos timorenses pela comunidade internacional, nos difíceis anos que se seguiriam. Recordo também os pedidos que fez, por meu intermédio, para que Portugal “deixasse cair”, a nível adequado, palavras de acalmia e bom-senso junto de responsáveis políticos de Timor, a fim de atenuar alguns litígios menores, mas que ameaçavam a estabilidade do processo interno.

Em Novembro de 2002, convidei Sérgio Vieira de Mello para vir a Viena, falar ao Conselho Permanente da OSCE, já na sua qualidade de Alto-Comissário da ONU para os Direitos Humanos. Foi uma sessão memorável, que gerou um debate interessantíssimo em que o à-vontade diplomático de Sérgio sublinhou o seu profundo conhecimento da situação internacional. Mas que também revelou a firmeza das suas convicções. No almoço que se seguiu, e perante uma observação mais tensa avançada pelo meu colega americano, não deixou de lhe recordar que os prisioneiros de Guantanamo “não vivem na Lua” e que, também a eles, se deviam aplicar, em pleno, “todos os Direitos Humanos devidos aos cidadãos da Terra”.

Nesta hora de sucesso da barbárie e de trágico equívoco sobre o papel da ONU no Iraque, muitas loas são ditas sobre Sérgio Vieira de Mello, a maioria genuínas, algumas na busca de dividendos para certas agendas. Eu digo apenas que perdi um amigo, por quem tinha imenso respeito e admiração. A comunidade internacional perde um infatigável construtor da Paz, um possível sucessor de Kofi Annan, um homem que há muito havia entendido que o multilateralismo constitui o único fundamento de legitimidade para uma ordem internacional solidária e justa.

(Publicado no "Diário de Notícias", 21.8.2003)

20 de junho de 2003

Uma Candidatura sem Candidato


Pelo que me vai chegando às margens do Danúbio, verifico que a vaga de calor vivida entre Salónica e Lisboa terá alentado algumas leituras bizantinas sobre uma suposta “candidatura” minha ao lugar de Enviado Especial da União Europeia para o Médio Oriente, lugar que o meu amigo Miguel Moratinos deveria deixar no final deste mês.

O “ruído” feito em torno desta questão obriga-me a revelar alguns factos, por entretanto terem emergido algumas versões deste episódio bastante “económicas com a verdade”, para utilizar a expressão eufemística consagrada por Alan Clark.

Vamos então a esses factos.

Na manhã de 18 de Junho, fui perguntado telefonicamente por um responsável ligado à chefia governamental portuguesa se estava interessado em que o meu nome fosse indicado como candidato, a apoiar por Portugal, para substituir Miguel Moratinos.

Informei logo que a minha resposta era negativa, “em definitivo”. O que eu, nesse momento, desconhecia é que o meu nome já havia sido "testado", na véspera, junto dos ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia. Nessa reunião, havia-se detectado um apoio muito alargado à minha nomeação, tendo o responsável político português aí presente acabado por revelar que eu não fora ainda contactado, razão pela qual não poderia formalizar, em definitivo, a candidatura.

Convém que se saiba do que estamos a falar. O lugar de Enviado Especial é um cargo político-diplomático de natureza pessoal, directamente dependente do Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum, Javier Solana. Os Enviados Especiais são escolhidos em função do seu currículo pessoal e a sua nomeação tem de merecer o apoio unânime dos governos da UE. Não se trata de nenhuma tarefa sujeita à hierarquia diplomática nacional, nem de um cargo que tenha obrigatoriamente de ser ocupado por um diplomata.

As razões que suportavam a decisão que assumi, na manhã do dia 18, eram de diversa natureza: iam desde relevantes motivos pessoais e familiares, que então referi genericamente e que não estou aberto a que sejam discutidos, à leitura profissional que faço do actual papel diplomático da UE no Médio Oriente e das respectivas implicações no perfil de actividade do próximo Enviado Especial. Nessas razões, naturalmente, reflectiu-se também a minha própria avaliação do interesse de tal lugar ser ocupado por um português. E se, neste domínio, a opinião qualificada de outros pode ser de grande relevância, convenhamos que a de um eventual titular de um cargo deste “ranking” não deverá ser totalmente despicienda.

Além disso, ninguém me negará o direito de decidir sobre o meu próprio futuro pessoal, numa área que, como disse, se situa completamente fora da minha carreira profissional. É que, em nenhuma circunstância, dei autorização a quem quer que fosse para utilizar o que o meu nome em "testes" políticos internacionais desta natureza, sem que tivesse havido a correcção de me consultarem previamente. Ora isso é tanto mais estranho quando - vejo-me agora obrigado a revelá-lo -, precisamente na véspera, no dia 17 de Junho, eu havia estado em Lisboa, a pedido do Governo, para conversas sobre o meu possível futuro como diplomata. Tudo isto sem que uma simples palavra me tivesse sido dita sobre a "utilização" do meu nome que, a essa mesma hora, estava a ser feita em certas instância europeias. Convenhamos que, como método, se trata, pelo menos, de um procedimento bizarro.

Noto que idêntico direito de decisão sobre o futuro foi exercido, em 1996, por uma importante figura do principal partido da então Oposição nacional, a qual declinou o convite que eu lhe transmiti pessoalmente, em nome do Governo da época, para ser candidato português a um lugar de ... Enviado Especial da UE ! Sem que daí tenha vindo qualquer drama ao mundo ou acusação de lesão ao interesse pátrio. Nem mesmo a revelação pública de tal convite, que nunca aconteceu!

Mas voltemos ao dia 18 de Junho. Tendo eu afirmado, com toda a firmeza e sem ambiguidades, a minha completa indisponibilidade, deixei também claro que não autorizava que o meu nome fosse “jogado” na maré já conhecida de candidaturas ao lugar, que o “Financial Times” desse mesmo dia reportava com detalhe nominal.

As coisas, porém, não pararam por aí. Comecei a receber telefonemas de pessoas amigas, originários de Bruxelas, de Salónica e de Lisboa, dando por assente a minha “candidatura”, reportando reacções positivas que ela estaria a provocar nos Quinze e tomando como certa a ratificação unânime do meu nome na reunião do Conselho Europeu, que iria ter lugar 24 horas depois.

A todos esses interlocutores respondi, invariavelmente, que tudo não passava de um equívoco pelo qual eu não era responsável e repeti apenas: “nunca fui, não sou e não serei candidato ao lugar”. Mais claro não podia ter sido, como todos esses interlocutores, sem excepção, poderão confirmar. E, desde logo, começou a ficar evidente o grau de "discrição" com que, pelos vistos, o assunto estava a ser tratado.

Ao longo desse dia, e ainda no dia seguinte, recebi algumas insistências para que reponderasse a minha posição. Reafirmei o que sempre dissera, embora me tivesse sido penoso não poder corresponder ao genuíno interesse de interlocutores por quem tenho particular amizade e consideração – e, à frente de todos eles, o presidente Jorge Sampaio e Javier Solana – e não pudesse assegurar a um amigo muito próximo, como é o caso de Georgio Papandreou, ministro dos Negócios Estrangeiros da Grécia, a resolução de um problema em que a presidência grega da União Europeia estava muito empenhada.

Mas nunca hesitei, um segundo que fosse, nunca deixei aberta qualquer porta que pudesse alimentar o menor equívoco.

São estes os factos e não admito a ninguém que eles sejam contestados. Quem o fizer é, pura e simplesmente, um mentiroso.

Tudo o que, entretanto, se passou excede-me, é-me alheio e é, em si mesmo, bastante revelador de um certo estado em que as coisas estão. Com franqueza, entristece-me que um tema que por mim foi abordado com total boa fé possa agora ser tratado num registo de polémica, que não exlui oblíquas insinuações, retomadas, de forma complacente, por alguma comunicação social “embedded”, que parece apostada em colar-se a acusações de que fiz perder a Portugal um cargo internacional de grande prestígio.

Como tenho afirmado, o meu futuro passa exclusivamente pela carreira diplomática portuguesa, da qual faço parte há quase três décadas e onde pretendo e vou permanecer, doa a quem doer. É, aliás, no meu percurso funcional nesse contexto que espero ver objectivado o lisonjeiro reconhecimento profissional que, sem dúvida, terá estado na base do empenhamento colocado na minha candidatura, embora, neste caso, para um lugar para o qual nunca fui candidato.

1 de maio de 2003

As Crianças e os Conflitos Armados - Os Esforços de Regulação Internacional

Quero começar por agradecer o convite que me foi formulado pela direcção do Hospital de D. Estefânea para estar aqui presente hoje.


A ideia desta palestra surgiu de uma conversa com o Dr. José Augusto Antunes, que me disse que poderia ser interessante eu poder dar-vos conta de aspectos ligados aos mais recentes esforços multilaterais para atenuar os impactos dos conflitos armados na situação das crianças, no plano mundial.


Este é um tema que diariamente está presente nas nossas televisões, fazendo parte da nossa paisagem informativa.


Mas é precisamente por essa razão que ele acaba por se banalizar, criando-se a ideia que é um estado natural da vida de algumas sociedades e regiões, contra o qual é difícil lutar.


Eu diria, num parêntisis, que a atitude de muitos de nós ao entendermos que certas regiões do mundo, e, em especial, certas sociedades em vias de desenvolvimento, são terreno normal para certas patologias políticas, tidas quase por endémicas, configura uma espécie de racismo não assumido.


Importa notar que a consciência da importância e da dimensão deste problema está hoje criada nas instituições internacionais e em meios organizados da sociedade civil, nomeadamente em ONG’s.


Isso não significa, contudo, que se tenha já criado uma dinâmica de denúncia pública do problema com impacto real na sua respectiva resolução.


Aproveitando a minha anterior experiência como Representante Permanente de Portugal junto das Nações Unidas e, em especial, o facto de ter chefiado uma delegação portuguesa a uma reunião promovida no ano passado em Nova Iorque sobre o tema, colectei alguns elementos que julguei de interesse para enquadrar o problema e estimular algum debate.


Quero,porém, advertir que não se trata de elementos de informação inéditos, mas sim de uma recolha crítica de dados públicos.


Não gostaria de começar por um lugar comum, mas não é evitável referir que, sendo as crianças um grupo muito frágil em todas as sociedades, a sua exposição às consequências dos conflitos armados reveste-se de aspectos particularmente gravosos, que não estão presentes em qualquer outro grupo humano.


Convirá enquadrar esta temática de forma tão directa e simples quanto possível.


Estamos a falar de direitos, em particular de Direitos Humanos, e de uma matéria que tem de ser considerada no campo das questões internacionais de paz e segurança, que estão ligadas indissoluvelmente às questões de desenvolvimento colectivo.


Vale a pena ter presente que todos os não combatentes devem, segundo as leis internacionais, ser objecto de protecção face aos conflitos armados, mas que é óbvio que as crianças são um grupo particularmente vulnerável e que está menos equipado para se adaptar ou para responder a uma situação de conflicto.


As crianças, que são seguramente as menos responsáveis pelos conflitos, acabam sempre por sofrer desproporcionadamente dos seus efeitos.


Vou começar por fazer uma curta citação de um relatório de 1996, elaborado por um grupo de trabalho chefiado por Graça Machel, e que serviu de “pontapé de saída” para muito do que se fez desde então neste domínio.


Dizia o relatório: “Milhões de crianças são envolvidas em conflitos dos quais não são meros espectadores, mas sim alvos. Algumas acabam por ser vítimas de massacres que atingem populações civis em geral; outras morrem como parte de genocídios planeados. Outras crianças, ainda, sofrem os efeitos da violência sexual e das múltiplas privações decorrentes dos conflitos armados, que as expõem à fome ou à doença. E, de uma forma igualmente chocante, milhares de jovens são cinicamente explorados como combatentes.”


Julgo que dificilmente seria possível resumir de forma mais sintética as várias dimensões deste problema.


Os números


Como se compreende, as avaliações quantitativas sobre esta temática são muito pouco rigorosas e a tentação de jogar com grandes números, para dramatização do problema, é óbvia.


Mas vale a pena citar algumas estimativas conservadoras: elas apontam para que cerca de 2 milhões de crianças hajam perdido a vida em conflitos nas última década, com provavelmente o triplo deste número (isto é, cerca de 6 milhões) a sofrer sequelas ou incapacidades permanentes, com especial relevância para a questão das minas anti-pessoal.


Do mesmo modo, cerca de um milhão de crianças ficaram orfãs por virtude de conflitos armados também durante os últimos 10 anos.


De acordo com as avaliações das Nações Unidas, há hoje para cima de 20 milhões de crianças deslocadas dos seus locais de origem, seja como refugiados noutros países, seja como deslocados dentro do mesmo país (IDP’s).

Os números relativos à utilização operacional das crianças nas forças de combate são também impressionantes: estima-se que cerca de 300 mil crianças (e o conceito de criança aplica-se aqui a menores de 18 anos) continuem ainda a fazer parte de forças armadas, na maioria dos casos de grupos irregulares.


As estatísticas apontam também para que cerca de 800 crianças sejam mensalmente vítimas de minas anti-pessoal, com graus diversos de incapacitação.


Os últimos estudos da ONU, já de 2003, apontam para a existência de 23 partes em conflito armado, alguns dos quais governos de Estados soberanos, que continuam a utilizar crianças em actividades operacionais.


Por forma a terem uma visão mais completa do problema, julgo que poderá ser útil eu fazer referência segmentada a todo este problema, sublinhando as suas principais dimensões.


Basear-me-ei muito na tipificação seguida pelo relatório de Graça Machel, complementado por outros elementos mais recentes, quer das Nações Unidas, quer de ONG’s.


As crianças como soldados


Começaria pelo recrutamento de crianças como soldados.


Desde sempre na história, as crianças foram envolvidas nas acções militares ou para-militares.


As actividades de natureza logística terão predominado nesse envolvimento, mas a sua integração nas acções militares esteve presente em muitos conflitos.


O recrutamento das crianças como soldados oferece vantagens ao seus promotores porque, como se referre num relatório internacional, “são mais obedientes, não questionam ordens e são mais fáceis de manipular do que os soldados adultos”.


A maioria são adolescentes, mas há muitos casos registados de crianças a partir dos 10 anos, quando não mais novas.


A maioria são rapazes, mas há bastantes casos de raparigas.


A origem social que prevalece é óbvia: famílias pobres, grupos sociais marginalizados e, em especial, crianças separadas das suas famílias de origem.


As formas de recrutamento variam: vão desde a forma regular de alistamento de milicianos até aos modelos forçados de recrutamento, que podem incluir a pressão familiar ou grupal ou mesmo a violência, nomeadamente o rapto.

Casos há em que as crianças são recolhidas nas ruas, nas escolas ou nos orfanatos.


Note-se que a esmagadora maioria das legislações nacionais prevê os 18 anos como idade mínima para o alistamento militar, mas isso nem sempre é cumprido e, em alguns países em vias de desenvolvimento, os registos de nascimento são muito deficientes, o que dá abertura muito fácil para abusos.


Ainda no tocante ao recrutamento dito voluntário, é necessário notar que muitas crianças aderem a grupos ou forças armadas por situações de extrema pobreza e como meio de terem roupa, comida e assistência.


Por outro lado, a circunstância das crianças não estarem enquadradas pelo sistema educativo facilita a sua disponibilização.


Um ponto a notar é o facto das crianças, como forma de autoprotecção em terrenos de elevada conflitualidade, serem frequentemente tentadas a ter uma arma nas mãos.


Estar armado pode também ser um factor simbólico de prestígio grupal e um meio de obtenção de algumas vantagens económicas, em acções de roubo, pressão ou chantagem.


Verifica-se também a bipolarização no recrutamento: pressionadas a integrar exércitos regulares, as crianças optam por vezes por fazer parte de grupos militares do tipo guerrilha, que se opõem aos governos e que têm apoio popular.

Outras vezes fazem-no como reacção a violências cometidas sobre os pais.


Há também que contar com o factor ideológico: as crianças, num período em que estão a desenvolver a sua identidade pessoal, procuram agarrar-se a objectivos com dimensão colectiva, cuja adopção os pode fazer obter respeitabilidade do grupo.


Estão neste caso causas sociais, formas de expressão religiosa e lutas de autodeterminação ou de libertação nacional.


Em alguns casos isto levou ao fanatismo, ao simplismo ideológico e até à martirização, como bombistas suicidas.

Depois de recrutadas, a experiência mostra que as crianças têm geralmente o mesmo tratamento que os seus camaradas adultos, competindo-lhes frequentemente trabalhos de transporte, logística de rotina de aquartelamentos, acções de guarda e funções de portadores de mensagens.


Algumas das funções atribuídas às crianças, como correios de mensagens ou vigilância, mas também colocação de explosivos ou pequenos “golpes de mão”, colocam-nas, por vezes, em risco mais elevado do que aquele que é assumido por soldados adultos.


A sua inexperiência técnica e a escassa avaliação do perigo potencia esse mesmo risco, particularmente nos mais novos.


A utilização do álcool e de drogas para estimular o seu empenho em certas situações de elevado risco foi também registada.


Verificam-se casos em que as crianças assistem ou participam em cenas de grande violência (fuzilamentos, torturas, etc), com vista a induzir-lhes uma atitude similar.


Há elementos que permitem concluir que as crianças podem, nestas circunstâncias, vir a titular actos de extrema atrocidade.


As raparigas recrutadas têm normalmente tarefas de natureza doméstica (gestão de acampamentos, cozinha, lavagens de roupa, etc.) e prestação de serviços sexuais.


No termo dos conflitos, raramente o anterior recrutamento de crianças é reconhecido.


No caso da Renamo, por exemplo, cujas tropas incluiam imensas crianças, nada ficou expresso nos acordos finais especificamente destinado a enquadrar o seu regresso à sociedade civil.


Esta é, aliás, uma das directrizes do trabalho actual das organizações internacionais neste domínio: tentar conseguir o reconhecimento no termo dos conflitos das situações que envolvam as crianças, por forma a garantir uma planificação e uma programação do seu reenquadramento.


A maioria das crianças que estão sujeitas ao recrutamento militar cresceram entretanto, foram separadas das suas famílias e foram privadas das oportunidades normais de desenvolvimento físico, emocional e intelectual.


Raramente há condições para uma reintegração familiar, até porque as condições das famílias são quase sempre de grande precariedade no final dos conflitos.


Daí que haja necessidade de apostar na educação e formação profissional acelerada, com a necessidade de prever cursos específicos com apoio de entidades externas.


Em várias sociedades africanas verifica-se uma rejeição muito forte no tocante à integração de crianças ex-combatentes, pelos efeitos disruptores que tal pode ter no equilíbrio dessas sociedades.


O caso das raparigas que foram violadas ou abusadas sexualmente é particularmente complexo, dado o confronto com os padrões culturais tradicionais e as dificuldades de casamento.


A deriva para a prostituição tem sido, neste caso, um caminho vulgar.


Veremos adiante o que tem sido feito para prevenir ou contrariar as acções de recrutamento de crianças soldados.

Mas é óbvio que aqui estaremos sempre confrontados com duas realidades muito diferente: de um lado, os Governos, cuja ânsia de credibilidade pode ser utilizada pela comunidade internacional e podem ser sujeitos a pressões, e, por outro, os grupos armados, naturalmente menos sensíveis ao “politicamente correcto”.


Crianças refugiadas ou deslocadas


Uma segunda questão prende-se com as crianças refugiadas ou deslocadas.


Os conflitos armados da últimas décadas, em especial em África e na Ásia, provocaram imensas deslocações de populações, quer no âmbito interno dos Estados (os chamados IDP’s), quer para Estados vizinhos, como refugiados.

Há hoje cerca de 25 milhões de refugiados e cerca de 30 milhões de IDP’s, dos quais cerca de metade são crianças, o que resulta em cerca de 27 milhões de crianças deslocadas dos seus locais de origem.


Estas deslocações de populações têm um efeito muito desproporcionado sobre as crianças, por representarem traumas, rupturas e sacrifícios em períodos cruciais das respectivas vidas.


Para além dos efeitos das acções violentas, as crianças deslocadas estão sujeitas a privações a que são particularmente vulneráveis, em matéria de alimentação, alojamento, saúde, instabilidade psicológica e familiar, etc.

Durante as suas deslocações forçadas, as crianças e as sua famílias estão sujeitas a ataques violentos da vária natureza, confrontam-se com o perigo das minas anti-pessoal, são obrigadas a deslocar-se a pé por longos períodos, com escassas quantidades de comida e água.


A subnutrição abre caminho fácil às doenças, pelo que as crianças nestas condições têm uma esperança de vida ainda inferior à que normalmente teriam.


De acordo com as estatísticas, as primeiras semanas de deslocação são as mais mortíferas, com diarreias, infecções respiratórias agudas, malária e subnutrição a serem responsáveis por 60 a 80% das mortes.


As deslocações de populações fazem ainda aumentar o número de crianças não acompanhadas, isto é, sem um adulto sob cuja responsabilidade o seu quotidiano se processe.


A insegurança física e emocional destas crianças é, como se compreenderá, muito maior, ficando à mercê da mais elementar falta de atenção, mas igualmente de violência, de recrutamento militar ou de abuso sexual.


Muitas vezes, estas situações decorrem da própria decisão dos pais de fazerem evacuar as crianças de locais de conflito agudo, como aconteceu na Bósnia-Herzegovina, ou mesmo de emergências médicas promovidas por instituições nacionais ou internacionais.


O problema da recuperação da documentação e o restabelecimento das ligações às famílias de origem é, neste caso particular, uma das grandes preocupações da comunidade internacional.


No quadro das deslocações de populações, a atenção da comunidade internacional tem vindo também a voltar-se para as situações decorrentes da presença das crianças no campos de refugiados.


Com efeito, tratando-se de ambientes naturalmente mais protegidos, estes campos não deixam frequentemente de criar problemas muito específicos, resultantes de lutas de poder, com elevados graus de violência, envolvendo alcool, drogas, abuso sexual, exploração económica, etc.


A tensão conflitual entre hierarquias provoca um ambiente de grande tensão, a que as crianças se tornam muito vulneráveis.


Isto é particularmente evidente nas distribuições de comida, roupa, água, aquecimento – onde se criam circuitos e cadeias informais de poder, com abusos, chantagens e favores sexuais.


Vale a pena notar que está provado que as situações de deslocação no seio do país de origem acabam por agravar os riscos, se as compararmos com as de refugiados em países vizinhos.


Com efeito, a proximidade das situações de conflito cria normalmente piores condições de vida dado que os focos de tensões (étnicas, religiosas, políticas ou outras) estão mais presentes.


A provar isto estão os números: a taxa de mortalidade de IDP’s é 60% mais elevada do que em caso de refugiados em países próximos.


Exploração sexual das crianças nas situações de conflito


Um terceiro ponto que desejo focar prende-se com a explotração sexual.


De acordo com o relatório de Graça Machel, de 1996, “as violações são uma ameaça constante para as mulheres e raparigas durante os conflitos armados, do mesmo modo que outras formas de violência baseadas no género, tais como a prostituição, as humilhações sexuais e a mutilação, o tráfico e a violência doméstica”.


As adolescentes são um grupo e uma faixa etária com um risco particular, tanto mais que são tidas com probabilidade maior de não serem portadoras de doenças sexualmente transmissíveis.


Embora a violência neste domínio afecte , em prioridade, crianças do sexo feminino, estão registados muitos casos de adolescentes do sexo masculino sujeitos a violências sexuais.


E não é preciso irmos a África ou à Ásia para encontrar estes casos: os recentes conflitos nos Balcãs apresentaram várias destas situações de violência sexual de adolescentes masculinos, com actos chocantes de violência e sadismo.


Como é evidente, a pobreza, a fome e as situações de desespero decorrentes das guerras são factores que forçam mulheres e raparigas à prostituição, em troca de alimentação e abrigo, de acesso a determinadas zonas ou obtenção de privilégios para si ou para as suas famílias.


Crianças são igualmente objecto de tráfico, trabalhando forçadamente em prostíbulos, muitas vezes por iniciativa dos pais, em situações limite de desespero económico.


Casos há em que estas crianças acabam por prestar favores sexuais em troca da protecção das suas próprias famílias, nomeadamente face a grupos irregulares de guerrilha em zonas rurais.


Mas também, há que dizê-lo, a atenção da comunidade internacional começa a voltar-se para a acção neste domínio das forças de manutenção de paz.


Cada vez há mais relatos de abusos sexuais cometidos por forças sob mandato internacional.


Parece um contrasenso, mas a verdade é que os que são supostos vir a criar as condições para o restabelecimento da paz acabam por explorar as vítimas da guerra.


Outras dimensões


De forma muito breve, referir-me-ei a cinco outras dimensões dos efeitos dos conflitos armados sobre as crianças:

- a exposição a minas anti-pessoal, a explosivos vários decorrentes de conflitos e a proliferação de armas de pequeno calibre. Só um número: há mais e 120 milhões de minas por explodir em cerca de 70 países.

- as políticas internacionais de sanções. É hoje uma questão do passado, mas as lições aprendidas, por exemplo, no caso do Iraque justificam que a comunidade internacional, e em especial a ONU, revejam os mecanismos gerais de sanções e procurem isentar as crianças dos seus efeitos.


- as questões de saúde e nutrição. Milhares de crianças morrem todos os anos como resultado directo dos conflitos, por armas brancas, balas, bombas ou minas, mas muitas mais morrem por falta de nutrição ou doenças potenciadas pelos conflitos. A interrupção dos circuitos alimentares, a destruição das colheitas e das infraestruturas agrícolas, a destruição dos serviços de saúde e a precariedade dos sustemas sanitários e de abastecimento de água são factores potenciadores da morte das crianças. A prioridade às estruturas de saúde e de circuitos específicos para ajuda aliementar às crianças nos conflitos deve tornar-se uma prioridade. A questão dos “corredores humanitários” e dos “dias de tréguas” deve ser abordada de modo formal pela comunidade internacional.


- a questão da recuperação psicológica e reintegração. Recuperação dos valores das suas sociedades (“role models”); pessimismo, depressão, suicídio. Perca de objectivos pós-conflito, com desaparição de famílias. Tradicionalmente deixados sem atenção.


- as questões da educação e formação profissional pós-conflito. Manter estruturas de educação; educação nos campos de refugiados;


O que está feito e o que se está a fazer


Perante este panorama, cuja dimensão de tragédia não é demais salientar, importa tentar definir, em linhas gerais, o que tem sido feito e o que está em curso.


As bases jurídicas essenciais em que se fundamenta esta luta são conhecidas: as Convenções de Genebra (de 1949) e os seus protocolos, a Convenção sobre os Direitos das Crianças, que entrou em vigor em 1990 e, finalmente, o Protocolo Opcional desta última Convenção, sobre a protecção de crianças vítimas de guerra, que entrou em vigor em Fevereiro de 2002.


Há ainda outros instrumentos, tais como Convenções, resoluções e diversos tipos de compromissos de natureza internacional ou regional.


Mas é óbvio que não é por falta de instrumentos jurídicos que as soluções não são encontradas.


É por falta de vontade política, ou melhor, por falta de vontade para acções positivas de ordem política que forcem as partes responsáveis a alterar o seu comportamento.


Os avanços são muito lentos, como Graça Machel reconheceu no ano passado, com a autoridade que lhe advém da qualidade da sua contribuição para a sistematização do assunto em 1996.


Nunca é demais sublinhar a relevância deste estudo, intitulado “O impacto da guerra nas crianças”, que foi como um “murro no estómago” da comunidade internacional.


A consciência internacional para o problema cresceu a partir de então, com as agências das Nações Unidas, vários governos e ONG’s a mobilizarem-se.


As ONG e a defesa da Crianças perante os conflitos armados


No contexto desta mobilização internacional, creio de justiça salientar o excelente trabalho desenvolvido por um conjunto de ONG’s dedicadas às crianças, que criaram a “Watchlist on Children and Armed Conflict”, destinada a responder à necessidade de uma monitorização e informação sobre as situações, com vista ao desencadear de alertas rápidos e acções de acompanhamento durante e após os conflitos armados.


A “Watchlist” fornece aos decisores políticos informação quantificada e qualificada em tempo muito curto, com análises estratégicas e recomendações práticas, nomeadamente para orientar o trabalho das Nações Unidas e das suas agências.


Esta “Watchlist” funciona ainda em conjugação com outras redes temáticas de ONG’s, dedicadas a áreas como as armas ligeiras e de prequeno calibre, as minas anti-pessoal e as crianças soldados.


Fornece também dados como os impactos das situações nas vidas das crianças, incluindo saúde, HIV/SIDA, refugiados e IDP’s, tráfico e exploração, violência baseada no género, etc.


Vários importantes relatórios têm saído do trabalho da “Watchlist”, nomeadamente sobre o Afeganistão, o Burundi e Angola, havendo compilação de dados sobre a situação palestiniana, Israel, Sudão e RD Congo.


Aspectos mais recentes do trabalho das Nações Unidas


Nunca é demais notar que as Nações Unidas têm tido um papel pioneiro nesta matéria.


Em 1997, o Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, criou um Representante Especial para as Crianças no contexto dos Conflitos Armados (Olara Otunnu).


Esta figura tem como mandato sensibilizar e mobilizar os diversos actores internacionais, de natureza nacional, regional ou internacional, para este problema, em todas as suas dimensões.


A acção deste Representante Especial tem sido intimamente articulada com o trabalho da “Watchlist” de que falei.

Além disso, o Conselho de Segurança tem-se pronunciado amplamente sobre o assunto, considerando a protecção das crianças um ponto essencial para a promoção e manutenção da paz e da segurança internacionais.


Em Setembro de 2002, a primeira Conferência Internacional sobre Crianças Afectadas pela Guerra teve lugar e, desde então, houve já alguns progressos concretos em áreas como a educação em situações de emergência, proliferação de armas ligeiras e de pequeno calibre e o tema das crianças soldados.


É forçoso reconhecer que a questão das crianças está hoje no centro da agenda internacional de paz e segurança, tendo o Conselho de Segurança da ONU aprovado no passado resoluções muito importantes sobre a matéria.


Já em Janeiro deste ano, o Conselho de Segurança aprovou uma nova e importante resolução sobre o assunto.

Alguns se perguntarão para que serve este tipo de resoluções.


É preciso ter consciência da natureza, eu diria, “paciente” das resoluções da ONU, em particular do seu Conselho de Segurança.


A vida multilateral funciona por pequenos passos, por avanços de linguagem, pela consensualização progressiva de certos conceitos, aparentemente teóricos mas, na realidade, com impacto em acções concretas no futuro, que se reivindicam desses acordos para obrigar os Estados a certo tipo de compromissos, nomeadamente na adaptação da sua legislação interna ou das opções orçamentais.


Além disso, a vizualização e o apontar do dedo aos Estados em incumprimento tem tido consequências positivas e concretas em muitas áreas internacionais.


Esta é, a meu ver, uma significativa virtualidade desta última resolução do CSNU sobre as Crianças em conflitos armados.


A sistematização por parte do Conselho de Segurança de um conjunto de recomendações constituiu-se como um meio de pressão política sobre os Estados e grupos de natureza armada, com o endosso do relatório do Secretário-Geral que nomeia vários países incumpridores, alguns dos quais foram obrigados a justificar-se perante o Conselho de Segurança, numa espécie de “tribunal político” a que não puderam escapar.


Pela primeira vez, o CSNU pede uma actualização regular ao SG sobre os Governos e entidades armadas que usam ou recrutam crianças soldados, independentemente de estarem ou não na agenda de trabalhos do Conselho.

A denúncia individualizada de todos os Estados e partes incumpridores era uma reivindicação antiga da UNICEF, para a qual só agora foi possível encontrar consenso.


O relatório do SG nomeou 23 partes em conflitos que estão na agenda do CS, mas o relatório aponta mais 10 outros Estados e grupos armados como Colômbia, Myanmar, Sudão, Uganda, Sri Lanka, bem como áreas de conflito recentenente terminados: Angola, Kosovo, Serra Leoa, Guiné-Bissau.


Esta é uma mensagem muito clara para quantos violam os direitos das crianças de que as suas acções não ficarão impunes e que serão responsabilizados por elas.


Esta resolução do CSNU tem outros aspectos: ela abre também caminho, com consequências práticas evidentes, para que os direitos das crianças sejam tomados em consideração, por exemplo, em todas as acções de manutenção de paz, nos códigos de conduta de diferentes estruturas dependentes, nos acordos de desarmamento, desmobilização e reintegração, etc.


Por outro lado, esta mesma decisão do CSNU acaba por apontar linhas directrizes às agências especializadas da ONU, que passam a ser obrigadas a ter questões específicas sobre crianças em conflito no âmbito dos seus programas de acção, o que não deixa de ser relevante no contexto da alocação de fundos para as acções a desenvolver.


Um ponto importante na parte preambular desta Resolução: é “notado” que a mobilização e alistamento de crianças com idade inferior a 15 anos ou o seu uso para participar activamente em hostilidades é classificado como crime de guerra pelo Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, que recentemente entrou em vigor.


Confesso que, como tive o prazer de fazer a entrega formal ao SGNU do instrumento de ratificação do TPI por parte de Portugal, esta referência diz-me alguma coisa, até porque todos sabemos as atribulações que o TPI está a passar por virtude da posição americana.


O que não impediu, convém sublinhar, que o TPI haja sido “notado” nesta resolução do CSNU, logo com a aprovação dos EUA. Podia ser pior...


Esta palestra já vai longa e eu tenho que reconhecer que este é um tema árido e certo modo pesado.


Mas creio que uma audiência como esta não pode deixar de ser sensível a uma problemática que afecta muitos milhões de crianças, que se entrecruza com dimensões de saúde, de protecção social, de educação, de violência e exploração.


Todos temos por vezes a tentação de colocar geograficamente este tipo de questões em continentes à distância, nos terríveis conflitos interétnicos em África, nas tensões de guerrilha da América Latina, na exploração e tráfico em zonas problemáticas da Ásia.


O que se passou nos Balcãs prova que este tipo de questões está aqui à nossa porta, que o que se passa todos os dias no conflito israelo-palestiniano é quase um problema interno do mundo ocidental.


E, já agora, a “ocidentalização” do que se passou no Iraque conduz-nos a que todos nós tenhamos que ser, à medida da nossa consciência, co-responsáveis pelas consequências desse conflito na vida das crianças iraquianas.


É que o gesto mediático de dar àquele menino iraquiano sem braços e sem família, que todos vimos na televisão, um momentâneo acolhimento de luxo, não absolve, nem por um segundo, a acção que lhos retirou.


Muito obrigado pela vossa atenção.