1 de janeiro de 2007

A negociação institucional

       Marcada durante décadas por uma cultura de comportamento assente na gestão prudente de uma posição internacional de grande isolamento, fruto de um padrão autoritário de governo que lhe não dava razões nem espaço para se sentir tentada a um tropismo multilateralista, a política externa portuguesa foi, até ao 25 de Abril de 1974, forjada numa visão eminentemente soberanista.
       Porém, o mundo contemporâneo conduzia Portugal, de forma lenta mas crescente, ao imperativo de adesão às estruturas de coordenação internacional. A pertença à NATO não colocava essa postura reticente em causa e os terrenos da OCDE e da EFTA, onde a inevitabilidade dos tempos conduzira a sua diplomacia, foram sempre espaços controláveis para uma estratégia decisória que Lisboa não dispensava gerir casuisticamente.
       A Revolução de 1974 teve o efeito de aproximar o mundo exterior do Portugal democrático, tornando-lhe subitamente amigáveis os areópagos internacionais e abrindo-lhe novas janelas de potencial intervenção externa. De uma ONU e suas agências onde as representações portuguesas haviam sido tratadas, por muito tempo, quase como párias, chegavam, de um momento para o outro, sinais de acolhimento simpático e compreensivo. Há que reconhecer que a diplomacia portuguesa teve gentes e jeitos para aproveitar o ensejo que lhe era oferecido nesse mundo multilateral que subitamente se lhe abria. Mas, uma vez mais, na atitude e na postura, mantinha-se acantonada na defesa da intergovernamentalidade que tanto acarinhava.
       A posterior aproximação à Europa comunitária, passo hábil de quem entendeu, no tempo certo, que o nosso futuro por aí iria passar necessariamente, obrigou a um esforço que já era de diferente natureza, embora com consequências, a prazo, que talvez não tivessem sido entendidas por todos, pelo menos durante alguns anos.
       Com efeito, não se tratava apenas de aderir a uma organização internacional, onde cada país tinha o seu voto e onde o consenso funcionava como a regra deliberativa, mas era já uma opção pela inserção num espaço que, por definição, era feito de alguma partilha de áreas de soberania. Porém, as áreas de gestão intergovernamental, nessa então CEE, eram ainda altamente predominantes e, como salvaguarda que ao tempo parecia suficiente às cautelas soberanistas, iria ser sempre necessário o recurso à decisão unânime para definir, caso a caso, os momentos e os casos em que se passaria a políticas de gestão comum por maioria, através de mecanismos de representação decisória desigual – embora a desiguadade de então fosse bem menor do que aquela que o futuro se encarregaria de trazer. Os soberanistas sentiam-se, assim, confortavelmente defendidos por esta exigência formal.
       Só que a dinâmica das coisas traz sempre muito mais surpresas do que a imaginação dos homens pode supor. E o voluntarismo prestigiado de Jacques Delors, apoiado numa conjugação pontual de vontade do eixo franco-alemão, fez o resto, promovendo os saltos qualitativos de Maastricht. A periferia geográfica do eixo Paris-Bona seguiu por arrasto, com a Itália e a Espanha a procurarem encontrar no tabuleiro europeu os factores de atenuação para as suas próprias tensões regionais internas. O mundo europeu mudou e Portugal foi obrigado a recolocar-se e a responder a essa rápida deriva, a qual, manifestamente, se situava muito longe dos seus propósitos oficais.
       No nosso país, as vozes abertamente europeístas não eram muitas, embora se encontrassem espalhadas por todos os partidos com representação parlamentar significativa, com excepção do PCP – o qual, tal como alguma direita, optou por uma via nacionalista, tíbia face ao que aí pressentia vir, por ter percebido que o “novo internacionalismo” europeu iria significar a prevalência de uma forte economia de mercado num espaço alargado.
       Algumas dessas vozes tinham sensibilidade para perceber que, se o futuro da Europa se podia fazer sem Portugal, o contrário estava longe de ser verdade. O fim da ilusão imperial e a persistência das tensões pós-coloniais, a diluição da uma relação luso-brasileira que também já então passava por modos diferentes de relação com África, a relativa perda de importância estratégica do país no quadro político-militar transatlântico, tudo isso apontava para a imperatividade de um esforço centrípeto europeu por parte de Lisboa - que ia desde um mero oportunismo de captação financeira até um convicto empenhamento num projecto federalista.
       Diga-se, em abono da verdade a que todos temos hoje direito, que a diplomacia portuguesa não ganhou, com a integração na CEE, uma automática mentalidade europeísta. Durante muito tempo, a integração europeia do país foi vista, pela grande maioria dos quadros das Necessidades, como uma mera opção utilitária, fruto de uma inevitabilidade conjuntural, que aliava o respeitável interesse em favorecer a sedimentação dos factores democráticos nas nossas instituições com a possibilidade de acesso a algumas vantagens que pudessem provocar uma aceleração mais rápida do processo de desenvolvimento do país.
       Outros, porém, também é justo afirmá-lo, numa escola de pensamento que, contudo, era francamente minoritária no Ministério dos Negócios Estrangeiros, e que tem as suas origens numa cultura diplomática europeísta que nasce com Ruy Teixeira Guerra e vai amadurecer em homens como Calvet de Magalhães ou Siqueira Freire, tinham a ideia europeia como um desígnio dentro do qual vislumbravam a possibilidade do país poder vir a alicerçar um novo posicionamento internacional. Lido hoje com atenção, esse empenhamento tinha algo de “impressionista” e, muitas vezes, estava longe de sublinhar as temáticas centrais que constituiam o paradigma do pensamento integracionista europeu mais relevante. Porém, o efeito era praticamente o mesmo: deslocava a atenção de uma diplomacia fechada em si mesma, voltada para o culto quase obsessivo de certos vectores tradicionais, para uma nova realidade que esses escassos europeístas caseiros pressentiam como impossível de deixar de vir a fazer parte do nosso destino.   

Na Europa

Os primeiros tempos da presença de Portugal nas instituições europeias, precedida pelos momentos da negociação da adesão, não dava espaço a grandes profissões de fé em valores ou opções de filosofia. O peso dos dossiês técnico-económicos era francamente predominante nas preocupações nacionais e só em círculos pensantes ligados a certos think tanks era cultivada uma reflexão paralela sobre a ideia europeia e o papel que Portugal poderia e deveria ter para ajudar a cultivá-la e difundi-la. O discurso público sobre as “vantagens” da Europa também não ajudava: eram sublinhados à exaustão os factores “egoístas”, centrados na captação de fundos, tendo apenas no outro prato da balança, como elemento imaterial positivo, o reconhecimento da ajuda que a “normalidade” do modelo europeu prestava à consolidação democrática no país. Assim, Portugal continuava a não ter uma filosofia europeia e, mais do que isso, não contribuia para o debate alargado sobre a mesma que atravessava o continente.
       Se hoje olharmos, com alguma atenção, para o background das pessoas que estiveram envolvidas nessa fase do processo europeu – desde a pré-adesão aos primeiros anos de presença efectiva no seio das instituições comunitárias – verificamos isso mesmo: predominam personalidades ligadas a uma visão economicista, com a simultânea presença de alguns juristas, estes frequentemente vocacionados para uma espécie de micro-reflexão com uma tonalidade académica especulativa. Poucos pensadores, como Eduardo Lourenço, ousaram ir mais longe e olhar para além das pautas aduaneiras e das directivas. E, curiosamente, alguns políticos que tentaram entrar por uma via menos pragmática, e trabalhar terrenos mais teóricos, viriam a ser acusados disso mesmo...
       Mas o dia-a-dia europeu tinha a sua dinâmica própria e, naturalmente, não se compadecia, sendo-lhe mesmo perfeitamente irrelevante, com o lento ritmo de evolução do europeísmo lusitano. Portugal era, assim, chamado a responder, com regularidade, a novos desafios para os quais não estava manifestamente preparado, até pela ausência de uma massa crítica teórica minimamente trabalhada em torno da especificidade do seu caso.
       No Ministério dos Negócios Estrangeiros, os “pensadores” da coisa europeia raramente se arriscavam fora da contabilidade dos fundos comunitários e da medida dos efeitos dos regulamentos e das directivas. Depois do Acto Único Europeu, em que a sua voz não tivera ainda peso institucional, Maastricht foi, talvez, o primeiro grande momento em que a diplomacia portuguesa foi sujeita a um choque forte com a nova realidade: começava a ser necessário fazer opções em temas que tocavam de perto com elementos já próximos do core da soberania dos Estados e com os efeitos de partilha desta num contexto europeu, mesmo na respectiva ordem constitucional interna.
       No debate em torno do Tratado de Maastricht, a diplomacia portuguesa mostrou o seu melhor, em termos de qualidade técnica, e o seu pior, em termos de falta de afirmação de uma vontade integracionista europeia oficialmente assumida. A pobreza teórica neste domínio, vista à distância, é estarrecedora e a “ideia” portuguesa para a Europa praticamente se resumiu a uma estratégia defensiva, no sentido de evitar a mudança, titulada por um nacionalismo serôdio, alcandorado à dignidade de política.
       Nos debates em torno da União Política, os fantasmas atlanticistas mais primários colocaram-se na primeira linha do argumentário e revelaram aquela que viria a ser, praticamente, a linha orientadora predominante, que iria ainda marcar a década seguinte. Portugal colocou-se no debate entrincheirado numa defesa do statu quo e numa relutância manifesta em abdicar dele. Quando o fazia era sempre a contragosto e arrastado pela inevitabilidade pressentida dos ventos maioritários. Tratava-se de uma espécie de europeísmo selectivo, isto é, estar com a Europa em tudo quanto isso pudesse significar vantagens imediatas de natureza material para o país e, simultaneamente, resistir à Europa e ao seu aprofundamento como projecto sempre que isso pudesse ser visto como a perda da capacidade portuguesa autónoma de decisão. Nenhuma ideia ressoava comom interesse nacionalna partilha do projecto europeu, na sua sinergia de valore e objectivos de que Portugal poderia beneficiar e para a qual poderia contribuir.
       Interessante foi verificar que, no caso da União Económica e Monetária, alguma modernidade ligada ao pensamento liberal acabou por ter efeitos algo diferentes. A percepção de que o caminho para a moeda única poderia induzir efeitos automáticos de estabilidade sobre o tecido financeiro, que iria dar ao país defesas interessantes para contrariar algumas das suas debilidades crónicas, levou a uma atitude mais aberta e concessionista. Atitude certa mas que, como hoje se vê, não deixou de sobrevalorizar os méritos do modelo e não cuidou em alertar para a necessidade de esforços contínuos para a sustentabilidade da posição nacional dentro dele.
       É muito curioso observar a relativa contraposição destas duas escolas de pensamento, com a segunda a mostrar-se mais “progressista” que a primeira, apesar de ser tributária de um pensamento neo-liberal que, em Portugal, era titulado por sectores do centro-direita, apenas com a adesão discreta de alguma esquerda moderada, que se mostrou disposta a correr o risco de ser com eles identificada.
  
O efeito de Maastricht
 
       É hoje um lugar-comum dizer-se que Maastricht foi, um pouco por toda a parte, um turning point no processo de construção europeia. Com efeito, na generalidade dos países europeus, onde já existiam opiniões públicas atentas e actuantes, o reforço integrador que aquele tratado significou foi visto, de imediato, como tendo alterado, de forma muito significativa, o posicionamento relativo dos Estados face às instituições europeias. Daí decorreu como que um alerta geral sobre a necessidade de retirar consequências, em termos de discussão e avaliação colectiva de efeitos, sobre esse novo tempo. Os referendos, as crises políticas que lhes estiveram ligadas e a nova visibilidade de um “eurocepticismo” que sempre fora larvar, e que cada vez apareceu mais teorizado, inauguraram um período de contínua atenção sobre a coisa europeia, que já não iria ter retorno.
       A constatação era relativamente simples: a Europa evoluíra, até então, através de processos negociais intergovernamentais relativamente tradicionais, de tipo gradualista, que haviam levado, ao longo dos anos, a modelos acrescidos de cooperação entre os Estados. Algumas políticas que se haviam instituído como comuns, entretanto já consagradas e estabilizadas, situavam-se em áreas económicas relativamente incontroversas na bondade dos seus efeitos, razão pela qual a sua anterior adopção não suscitara dificuldades de maior.
       Porém, o facto de, nesta nova fase, se criarem mecanismos que colocavam num espaço comum de decisão europeia certas políticas ligadas ao conceito tradicional de soberania, as quais, no passado, sempre relevavam de claras competências nacionais, tornava necessário criar novas fórmulas para o controlo da respectiva gestão. Ora a verdade é que as instituições europeias não davam ainda as garantias mínimas de solidez e representatividade para assegurarem esse controlo, em termos de fiscalização e de aferição democrática; e, por outro lado, as instituições nacionais haviam entretanto perdido já a capacidade de assegurar pr completo tais funções. Estava aberto o importante debate em torno do “défice democrático”, até hoje não concluído, e para o qual a posterior tentativa da Constituição Europeia veio a aparecer como uma resposta possível. 

Amesterdão à vista 

       Alguma coisa mudara, entretanto, de forma algo dramática, nos equilíbrios geopolíticos europeus. O império soviético dava mostras de ter um elevado potencial de implosão, os países que politicamente renasciam autonomamente à sua volta denunciavam a vontade de criar condições para virem a beneficiar, no futuro, da adesão ao modelo de sucesso que a Europa mais ocidental criara quatro décadas antes, que tão vantajoso se mostrara na ajuda a Estados saídos de patamares de desenvolvimento muito abaixo da média europeia, como era o caso de Portugal. Esse era, porém, um pano de fundo à época ainda difuso, um debate que se sabia inevitável, mas cujo prazo de efectivação era ainda imponderável.
       Em 1995, um “grupo de reflexão”[9] foi criado na União Europeia para reflectir em alguns aspectos ligados à evolução decorrente dos avanços de Maastricht. De certo modo, começava a desenhar-se a teoria da “bicicleta” que Jacques Delors popularizara: tal como num percurso ciclístico, se acaso se parasse a dinâmica da viagem, o veículo tombaria. Daí a necessidade de todos continuarmos a pedalar, isto é, de continuarmos a criar novos mecanismos para enquadrar as novas realidades e a gerar políticas de acompanhamento para garantir o sucesso daquelas que já estavam no terreno. Com efeito, embora num plano ainda um pouco difuso, começava a perceber-se que algumas políticas novas teriam de ser instituídas, a fim de dar suporte aos avanços para que Maastricht apontara.
       Os trabalhos do Grupo serviram de base para a Conferência Intergovernamental que veio a desembocar no Tratado de Amesterdão. Sem surpresas, no caminho para este tratado, viriam a transparecer, de forma quase mecânica, as divisões suscitadas nos debates do grupo. Correndo o risco de todas as simplificações, pode dizer-se que houve duas linhas divisórias fundamentais na discussão do Tratado[10]. Porém, porque baseadas em pressupostos diferentes, essas linhas nem sempre coincidiram na sua titularidade.
       De um lado, mostraram-se alguns países mais integracionistas, disponíveis, em especial, para definir um conjunto mais alargado de matérias a serem decididas por maioria qualificada e, em muitos casos, abertos a uma intervenção maior do Parlamento Europeu nesse mesmo processo decisório.
       Sem surpresas, alguns dos fundadores da União revelaram-se apoiantes claros desta linha, com a Bélgica e a Itália com uma posição mais entusiática. Num pólo oposto, o Reino Unido reafirmava a sua relutância em avançar para modelos mais integradores e, em particular, mostrava a sua consabida precaução em evitar a perda do poder decisório das suas próprias instituições parlamentares.
       Além disso, e num outro terreno de debate, Londres procurava suster tentações de evolução para uma Política Externa e de Segurança Comum que pudesse, mesmo que a prazo, funcionar como podendo afectar os laços da sua special relationship com os EUA, que tinham e têm como axial para a sustentação da sua própria posição no mundo. A evolução nesta área externa era também travada, curiosamente, pelo pólo “neutralista” dentro da União, antigamente centrado na Irlanda, mas que a adesão recente de países como a Áustria, a Finlândia e a Suécia viria a reforçar.
       Uma segunda linha divisória, não coincidente com a primeira, expressava-se a nível do processo decisório e da preocupação de que este evoluísse em termos que pudessem consagrar um peso desproporcionado aos países de maior dimensão, tornando irrelevantes os Estados menos populosos. Porém, alguns países de menor dimensão não partilhavam esta preocupação. Porquê? Porque o seu padrão de interesses coincidia, no essencial, com o dos seus parceiros mais populosos, por assentar em níveis de desenvolvimento similares.
       Estas foram, de forma muito caricatural, algumas das linhas posicionais detectáveis no debate intraeuropeu.

A agenda portuguesa

       Onde ficava Portugal em tudo isto? Inicialmente, numa posição defensiva, na linha de uma escola de comportamento que já vinha de Maastricht.Tendo tido um papel central na definição da posição portuguesa para esta Conferência Intergovernamental, bem como responsabilidades directas na gestão da respectiva negociação, julgo estar bem colocado para poder ter hoje alguma perspectiva distanciada, que ajuda a perceber melhor o porquê da nossa atitude de então.
       Como se disse, no cenário geral estava a preeminência da nossa cultura intergovernamental, eixo referencial da velha escola das Necessidades. Depois, no que toca à PESC, existia também a difusa preocupação (partilhada com o Reino Unido e, à época, também com os Países Baixos) de que uma eventual deriva europeia em matéria de segurança e defesa pudesse vir a comprometer ou debilitar o papel da NATO na Europa – linha sempre tida por estruturante na nossa afirmação externa. Tenho por convicção – mas, sublinho, esta é uma perspectiva meramente pessoal – que estamos perante uma ilusória questão a qual mereceria uma reflexão mais profunda, por forma a ponderar com maior rigor onde se situam hoje, verdadeiramente, os interesses estratégicos do nosso país.
       Façamos aqui um parêntesis para afirmar que não se me oferece a menor dúvida que o laço transatlântico continua a ser um elemento estruturante, não apenas para Portugal, mas para a Europa comunitária em geral. Independentemente das crises conjunturais que, ciclicamente, afectam o relacionamento de alguma Europa com os EUA, particularmente em tempos de um certo “autismo” sobranceiro de Washington, não conseguimos perspectivar uma qualquer capacidade de afirmação mundial dos valores constituintes do nosso modelo civilizacional sem uma aliança operativa com a grande democracia americana. Dirão alguns: e Guantanamo? E o Iraque? E, antes disso, o Vietname e outras concessões à realpolitik, em especial na Guerra Fria? Tudo isso é verdade, como foram verdade as torturas na Argélia, os massacres coloniais nas várias Áfricas (inclusivamente a “portuguesa”) e outras barbaridades de génese europeia, de que a omissão cobarde face ao conflito israelo-palestiniano continua a ser, ainda hoje, o mais deprimento exemplo. 
       Dito isto, não vejo a menor desvantagem em que a Europa procure criar e aculturar-se a uma capacidade de segurança autónoma, que não tem de ser contraditória com a NATO. Se essa capacidade pode ou não vir a evoluir para uma defesa comum, essa é já uma outra questão. Mas, em tese, porque não? Só que essa evolução teria, a montante, de ser compatível com uma política exterior também comum e aí confesso ainda não ver razões para se ser muito optimista quanto ao futuro da PESC. E, neste caso, e para simplificar, diga-se que a culpa assenta, essencialmente, nas potências europeias (que regionalmente fazem o papel de “grandes”), incapazes de fugirem aos seus reflexos de “directório”. 
       Uma segunda linha de preocupações portuguesas resultava da aparente evidência saída de mais de uma década de trabalho na União: a percepção de que Portugal se começava a situar à margem dos interesses médios que se projectavam no processo legislativo em Bruxelas, circunstância agravada com a entrada dos três novos países que haviam acedido em 1994, portadores de uma cultura de desenvolvimento afastada da nossa, o que reforçava um grau de exigência em termos normativos cada vez mais difícil de sustentar. Essa constatação levava, assim, a uma grande relutância em perder uma razoável capacidade decisória, o que funcionava contra a abertura para o alargamento de decisões por maioria qualificada e, no caso das que exigissem co-decisão, contra a atribuição de maiores poderes ao Parlamento Europeu, onde o peso dos países mais populosos era ainda maior do que no Conselho de Ministros.
       A tudo isto acrescia o nosso interesse em evitar o favorecimento de modelos de “cooperações reforçadas” ou de “integração diferenciada”, vistos como podendo funcionar como escapatória para alguns países virem a criar “núcleos duros” em torno do desenvolvimento de algumas políticas sectoriais, deixando para trás quem os não pudesse ou quisesse acompanhar.
       Em suma, Portugal apostava num discurso assente no privilégio do “gradualismo” tradicional, de forma a tentar obrigar a União a marchar ao seu próprio passo. Era isto sensato? Confesso que, em perspectiva, tenho hoje sentimentos ambivalentes nesta matéria.
       Por um lado, continuo convicto de que continua a haver um gap de desenvolvimento que coloca Portugal fora do mainstream da União e que isso se reflecte na dificuldade de adaptação do país a certas exigências legislativas, particularmente num tempo em que começam a rarear os apoios comunitários para colmatar tais problemas, bem como as limitações surgidas na nossa própria capacidade orçamental para co-financiar os projectos necessários para enfrentar esssas mesmas exigências.
       Mas, por outro lado, pergunto-me se esta perspectiva não peca por ser um tanto estática e esquecer que há factores dinâmicos e de “arrastamento” que, embora aqui ou ali com consequências traumáticas a nível pontual, acabam por constituir-se em elementos indutores de modernidade, com efeitos no progresso global do país.
       Ainda assim, também me interrogo: se esta questão do posicionamento relativo no processo decisório é tão irrelevante e a sua reiteração é um anacronismo – como uma escola “avançada” hoje defende em Portugal, com tanto despreendimento –, qual será a razão que leva os países mais populosos a não se cansarem em procurar reforçar o seu próprio papel na tomada das decisões? Apenas um juízo de eficácia? Ou o que é importante para eles deve ser irrelevante para nós?

O saldo de Amesterdão

       Para muitos, o que se conseguiu na Conferência Intergovernamental que se concluiu em Amesterdão foi curto e esteve longe de ajudar a União a adaptar-se para os desafios que já despontavam no seu horizonte.
       A perspectiva portuguesa nunca foi tão negativa quanto ao seu juízo sobre o novo tratado. Reconheço que, face à sua agenda original, o obtido em Amesterdão ficou àquem do que muitos esperariam. Mas temos que ser realistas: qualquer Conferência Intergovernamental é um compromisso que não pode deixar de ter em consideração o facto de ser necessário responder, simultaneamente, às diversas agendas de preocupação que as diferentes opiniões públicas nacionais mantêm. Na Europa, por muitos e bons tempos, não haverá um espaço público uniforme, porque os factores de diferenciação permanecem muito fortes e os decisores políticos não deixam de ser sensíveis a essa circunstância. 
       Como antes foi dito, Amesterdão situou-se depois de Maastricht, isto é, foi a primeira negociação europeia que teve de se confrontar com o facto de estar já criada uma muito maior atenção pública face às temáticas integracionistas, um cuidado muito maior perante aquilo que se pode consensualizar nos fóruns de entendimento diplomático. Assim, Amesterdão foi claramente um tratado de transição, que tentou compatibilizar vontades integracionistas tradicionais com precauções compreensíveis de novos aderentes, num difícil exercício de adaptação e aproximação de culturas. 
       Para Portugal, esta negociação foi um teste muito importante e um grande desafio. Sem prejuízo da nossa postura inicial se ter subordinado ainda muito a uma linha de prudência, onde se projectava bastante a sombra de algum soberanismo, foi patente que este tempo negocial representou já a evolução para uma atitude diferente em muitas áreas, uma visão mais europeia de certas temáticas – enfim, o início de uma nova filosofia de intervenção no debate europeu.
       Pela primeira vez, Portugal preparou um completo documento de estratégia[11], definiu publicamente muitas das opções que iria transportar para o terreno da negociação, inaugurando assim um modelo de diplomacia pública e de transparência diplomática que se alargou de forma inédita ao envolvimento das estruturas parlamentares nacionais. A preparação desse “paper” teve duas consequências: forçou a definição de uma visão global mais coerente sobre todos os temas que potencialmente poderiam ser abordados e, no final do exercício, deu oportunidade de aferição sobre o que realmente se havia conseguido, tendo em atenção aquilo que havíamos proposto. E esse resultado, visto em perspectiva, é-nos muito favorável.
       Recordaria, a título de exemplo, toda a abertura que mostrámos quanto ao alargamento de competências na área da Justiça e dos Assuntos Internos, a assunção de um novo discurso sobre a evolução da União da Europa Ocidental (UEO) no quadro da Segurança Europeia, a linguagem inovadora e precursora que adiantámos em matéria de Direitos (direitos fundamentais, direitos económicos e sociais, protecção de minorias, igualdade de géneros, não-discriminação) e as nossas propostas, infelizmente não acolhidas, sobre uma Carta, a ser inserida no preâmbulo do Tratado, relativa às conquistas dos cidadãos europeus nesse âmbito, como pilar de uma nova Cidadania Europeia.
       Também interessante, e revelador de um trabalho de evolução sectorial em várias áreas da Administração, foi a nossa muito maior abertura no que toca à passagem de certos domínios à decisão por maioria e a disponibilidade para extensão de algumas novas áreas temáticas a um tratamento comunitário. Notaríamos, também, a ênfase dada à temática do Emprego e do combate à exclusão social, onde nos colocámos na primeira linha do debate, a nossa vontade em colocar o Comité das Regiões e o Comité Económico e Social num patamar de intervenção mais efectivo no debate intracomunitário, o cuidado posto na questão da protecção dos Serviços Públicos, etc. Num tema de interesse nacional directo, Portugal obteve um ganho de causa muito relevante: a criação de uma nova base jurídica para a facilitação do apoio às Regiões Ultraperiféricas da União, onde se inseriam os Açores e a Madeira.
       Por todas estas razões e, volto a afirmá-lo, pelo facto de esse tempo ter coincidido com a criação de uma nova atitude e com a definição de uma nova filosofia de intervenção no debate europeu, o Governo português fez uma avaliação positiva desse exercício e não alinhou numa atitude denegridora, a qual, no essencial, se apoiou na frustração de alguns sobre a alegada falta de evolução em termos de reforma dos equilíbrios institucionais. Foi dessa atitude  que se alimentou a criação do conceito dos reliquats ou leftovers de Amesterdão, que iriam lançar o caminho para o futuro Tratado de Nice.

Nice – um tratado para o Alargamento

       Por uma coincidência temporal, competiu a Portugal presidir à primeira metade das negociações que conduziram ao Tratado de Nice. O facto da Conferência Intergovernamental ter sido lançada pela Presidência portuguesa da União Europeia, em inícios de 2000, fez com que coubesse ao autor deste texto a titularidade da chefia do respectivo grupo negocial, até ao final do primeiro semestre de 2000[12].
       Antes disso, porém, foi necesssário “negociar” laboriosamente com o Parlamento Europeu a “luz verde” para permitir o arranque do processo negocial, tarefa nada fácil e que permitiu, desde logo, abandonar a limitação da agenda aos reliquats/leftovers de Amesterdão e criar um modelo de análise para o tema das “cooperações reforçadas”, tido à época como um elemento essencial para desbloquear potenciais impasses na futura evolução das políticas europeias.
       Poupar-se-á o leitor sobre os pormenores desta negociação[13], mas convém deixar claro, desde já, que ela se assumiu, de forma quase despudorada, como a tentativa de certos países de conseguirem, através do reforço da sua posição no processo decisório, para criar um modelo que permitisse tornar “neutral” o papel dos Estados que viriam a ser incluídos no processo de alargamento que já se anunciava. Alguns poderão ver nesta afirmação uma espécie de teoria conspiratória. Com a eventual autoridade de quem esteve presente em mais de três centenas de horas de negociação e de ter sido responsável pela gestão de metade desse exercício, não me resta hoje a menor dúvida que foi isso que aconteceu.
       O debate que veio a desembocar em Nice foi, aliás, dos mais duros e ácidos da história já longa da União. E isso não se passou apenas a nível de negociadores técnico-políticos. Mesmo a nível de chefes de Estado e governo a tensão subiu por vezes a pontos inimagináveis e, em alguns momentos, chegou a estar em perigo a própria unidade da Europa.
       Para muitos, os resultados de Nice falam por si: um sistema decisório complexo, que permitiu satisfazer o desejo comum a todos os Estados de manterem um elemento na Comissão Europeia, por troca com um reforço da posição relativa no processo decisório dos países com maior expressão demográfica. Com todas as suas fórmulas matemáticas cumulativas, esse mecanismo pareceu, a alguns, atar as mãos à Europa e ter um potencial de conflitualidade muito elevado. Nunca pensei dessa forma. O que a maioria das pessoas desconhece é que a Europa, na sua rotina diária, tem um funcionamento leve e automático, fruto de uma experiência de décadas, feita de mecanismos muito operativos e de uma vontade de compromisso que, quase sempre, é a chave do sucesso e da tomada de decisões. Perante a complexidade matemática do modelo de Nice, poder-se-ia prever que o quotidiano de Bruxelas viria a ser um inferno negocial. Ora nada disso se passou. Com a entrada em vigor do Tratado de Nice, manteve-se o ambiente de normalidade nos modelos de formatação da vontade da União, nomeadamente no âmbito do cada vez mais exigente processo legislativo.
       Reconheço que o Tratado de Nice prevê, de facto, alguns mecanismos e fórmulas com uma certa sofisticação, para acorrer a momentos mais complexos, perante temáticas delicadas em que os Estados membros possam dar mostras de divisões sérias. Mas não será isso normal? Não será natural que, perante questões importantes, se recorra a modelos decisórios que possam ter alguma complexidade mas que, ao mesmo tempo, garantam a democraticidade do resultado final e uma representatividade forte e incontestada?
       O melhor elogio ao Tratado de Nice é o facto de ele ser ainda hoje a base na qual assenta uma União Europeia com 27 Estados e não haver conhecimento de que seja a ele que possam assacar-se responsabilidades por quaisquer dificuldades do funcionamento das instituições comunitárias.
       Recordo que, quando os dirigentes políticos saíram das longas noites negociais de Nice, para as suas conferências de imprensa e para a apresentação do Tratado aos seus parlamentos, foram tão convincentes sobre as qualidades do compromisso então obtido que a posterior ratificação a “quinze” acabou por ser unânime. Nice foi apresentado como o texto regulador da União que permitia criar as condições para os futuros alargamentos, tinha no seu seio os mecanismos susceptíveis de enquadrar as diferentes sensibilidades que essa nova Europa iria trazer e que permitiam gerir o modo como as diferentes políticas se comportariam perante esse contexto de uma heterogeneidade sem precedentes.
       Porém, ainda antes dessa ratificação estar totalmente concluída, a Europa política viria a entender, por razões que conviria explicar algum dia, que, afinal, era necessário um outro tratado, a que talvez fosse sábio ter a ambição de chamar Constituição Europeia[14]. Os resultados desse passo – “a treaty too far”? – estão aí à vista de todos. Mas a análise disso não era, nem será, o objectivo deste texto.   

 
[9] O representante português no “grupo de reflexão” foi o professor doutor André Gonçalves Pereira.
[10] Para uma análise da negociação e resultados do Tratado de Amesterdão, ver Francisco Seixas da Costa, “Para a história de uma negociação”, in “Diplomacia Europeia – instituições, alargamento e o futuro da União”, Lisboa, 2002
[11] “Portugal e a Conferência Intergovernamental para a Revisão do Tratado da União Europeia”, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 1996.
[12] O resultado do trabalho da Conferência Intergovernamental nesse primeiro semeste ficou expresso no Relatório que a Presidência portuguesa apresentou ao Conselho Europeu de Santa Maria da Feira.
[13] Uma análise detalhada dessa negociação, na perspectiva portuguesa, pode ser encontrada em Francisco Seixas da Costa, Portugal e o Tratado de Nice – notas sobre a estratégia negocial portuguesa, in “Negócios Estrangeiros”, nº 1, 2001.
[14] Ver Francisco Seixas da Costa, “Em torno da Constituição Europeia”, in “Uma Segunda Opinião –Notas de Política Externa e Diplomacia”, Lisboa, 2006.

 
( Texto baseado no capítulo "Os Tratados de Amesterdão e de Nice", incluído na obra colectiva “20 Anos de Integração Europeia (1986-2006) – O Testemunho Português” , Lisboa, 2007 )

A negociação institucional

Marcada durante décadas por uma cultura de comportamento assente na gestão prudente de uma posição internacional de grande isolamento, fruto de um padrão autoritário de governo que lhe não dava razões nem espaço para se sentir tentada a um tropismo multilateralista, a política externa portuguesa foi, até ao 25 de Abril de 1974, forjada numa visão eminentemente soberanista.
Porém, o mundo contemporâneo conduzia Portugal, de forma lenta mas crescente, ao imperativo de adesão às estruturas de coordenação internacional. A pertença à NATO não colocava essa postura reticente em causa e os terrenos da OCDE e da EFTA, onde a inevitabilidade dos tempos conduzira a sua diplomacia, foram sempre espaços controláveis para uma estratégia decisória que Lisboa não dispensava gerir casuisticamente.
A Revolução de 1974 teve o efeito de aproximar o mundo exterior do Portugal democrático, tornando-lhe subitamente amigáveis os areópagos internacionais e abrindo-lhe novas janelas de potencial intervenção externa. De uma ONU e suas agências onde as representações portuguesas haviam sido tratadas, por muito tempo, quase como párias, chegavam, de um momento para o outro, sinais de acolhimento simpático e compreensivo. Há que reconhecer que a diplomacia portuguesa teve gentes e jeitos para aproveitar o ensejo que lhe era oferecido nesse mundo multilateral que subitamente se lhe abria. Mas, uma vez mais, na atitude e na postura, mantinha-se acantonada na defesa da intergovernamentalidade que tanto acarinhava.
A posterior aproximação à Europa comunitária, passo hábil de quem entendeu, no tempo certo, que o nosso futuro por aí iria passar necessariamente, obrigou a um esforço que já era de diferente natureza, embora com consequências, a prazo, que talvez não tivessem sido entendidas por todos, pelo menos durante alguns anos.
Com efeito, não se tratava apenas de aderir a uma organização internacional, onde cada país tinha o seu voto e onde o consenso funcionava como a regra deliberativa, mas era já uma opção pela inserção num espaço que, por definição, era feito de alguma partilha de áreas de soberania. Porém, as áreas de gestão intergovernamental, nessa então CEE, eram ainda altamente predominantes e, como salvaguarda que ao tempo parecia suficiente às cautelas soberanistas, iria ser sempre necessário o recurso à decisão unânime para definir, caso a caso, os momentos e os casos em que se passaria a políticas de gestão comum por maioria, através de mecanismos de representação decisória desigual – embora a desiguadade de então fosse bem menor do que aquela que o futuro se encarregaria de trazer. Os soberanistas sentiam-se, assim, confortavelmente defendidos por esta exigência formal.
Só que a dinâmica das coisas traz sempre muito mais surpresas do que a imaginação dos homens pode supor. E o voluntarismo prestigiado de Jacques Delors, apoiado numa conjugação pontual de vontade do eixo franco-alemão, fez o resto, promovendo os saltos qualitativos de Maastricht. A periferia geográfica do eixo Paris-Bona seguiu por arrasto, com a Itália e a Espanha a procurarem encontrar no tabuleiro europeu os factores de atenuação para as suas próprias tensões regionais internas. O mundo europeu mudou e Portugal foi obrigado a recolocar-se e a responder a essa rápida deriva, a qual, manifestamente, se situava muito longe dos seus propósitos oficais.
No nosso país, as vozes abertamente europeístas não eram muitas, embora se encontrassem espalhadas por todos os partidos com representação parlamentar significativa, com excepção do PCP – o qual, tal como alguma direita, optou por uma via nacionalista, tíbia face ao que aí pressentia vir, por ter percebido que o “novo internacionalismo” europeu iria significar a prevalência de uma forte economia de mercado num espaço alargado.
Algumas dessas vozes tinham sensibilidade para perceber que, se o futuro da Europa se podia fazer sem Portugal, o contrário estava longe de ser verdade. O fim da ilusão imperial e a persistência das tensões pós-coloniais, a diluição da uma relação luso-brasileira que também já então passava por modos diferentes de relação com África, a relativa perda de importância estratégica do país no quadro político-militar transatlântico, tudo isso apontava para a imperatividade de um esforço centrípeto europeu por parte de Lisboa - que ia desde um mero oportunismo de captação financeira até um convicto empenhamento num projecto federalista.
Diga-se, em abono da verdade a que todos temos hoje direito, que a diplomacia portuguesa não ganhou, com a integração na CEE, uma automática mentalidade europeísta. Durante muito tempo, a integração europeia do país foi vista, pela grande maioria dos quadros das Necessidades, como uma mera opção utilitária, fruto de uma inevitabilidade conjuntural, que aliava o respeitável interesse em favorecer a sedimentação dos factores democráticos nas nossas instituições com a possibilidade de acesso a algumas vantagens que pudessem provocar uma aceleração mais rápida do processo de desenvolvimento do país.
Outros, porém, também é justo afirmá-lo, numa escola de pensamento que, contudo, era francamente minoritária no Ministério dos Negócios Estrangeiros, e que tem as suas origens numa cultura diplomática europeísta que nasce com Ruy Teixeira Guerra e vai amadurecer em homens como Calvet de Magalhães ou Siqueira Freire, tinham a ideia europeia como um desígnio dentro do qual vislumbravam a possibilidade do país poder vir a alicerçar um novo posicionamento internacional. Lido hoje com atenção, esse empenhamento tinha algo de “impressionista” e, muitas vezes, estava longe de sublinhar as temáticas centrais que constituiam o paradigma do pensamento integracionista europeu mais relevante. Porém, o efeito era praticamente o mesmo: deslocava a atenção de uma diplomacia fechada em si mesma, voltada para o culto quase obsessivo de certos vectores tradicionais, para uma nova realidade que esses escassos europeístas caseiros pressentiam como impossível de deixar de vir a fazer parte do nosso destino.

Na Europa

Os primeiros tempos da presença de Portugal nas instituições europeias, precedida pelos momentos da negociação da adesão, não dava espaço a grandes profissões de fé em valores ou opções de filosofia. O peso dos dossiês técnico-económicos era francamente predominante nas preocupações nacionais e só em círculos pensantes ligados a certos think tanks era cultivada uma reflexão paralela sobre a ideia europeia e o papel que Portugal poderia e deveria ter para ajudar a cultivá-la e difundi-la. O discurso público sobre as “vantagens” da Europa também não ajudava: eram sublinhados à exaustão os factores “egoístas”, centrados na captação de fundos, tendo apenas no outro prato da balança, como elemento imaterial positivo, o reconhecimento da ajuda que a “normalidade” do modelo europeu prestava à consolidação democrática no país. Assim, Portugal continuava a não ter uma filosofia europeia e, mais do que isso, não contribuia para o debate alargado sobre a mesma que atravessava o continente.
Se hoje olharmos, com alguma atenção, para o background das pessoas que estiveram envolvidas nessa fase do processo europeu – desde a pré-adesão aos primeiros anos de presença efectiva no seio das instituições comunitárias – verificamos isso mesmo: predominam personalidades ligadas a uma visão economicista, com a simultânea presença de alguns juristas, estes frequentemente vocacionados para uma espécie de micro-reflexão com uma tonalidade académica especulativa. Poucos pensadores, como Eduardo Lourenço, ousaram ir mais longe e olhar para além das pautas aduaneiras e das directivas. E, curiosamente, alguns políticos que tentaram entrar por uma via menos pragmática, e trabalhar terrenos mais teóricos, viriam a ser acusados disso mesmo...
Mas o dia-a-dia europeu tinha a sua dinâmica própria e, naturalmente, não se compadecia, sendo-lhe mesmo perfeitamente irrelevante, com o lento ritmo de evolução do europeísmo lusitano. Portugal era, assim, chamado a responder, com regularidade, a novos desafios para os quais não estava manifestamente preparado, até pela ausência de uma massa crítica teórica minimamente trabalhada em torno da especificidade do seu caso.
No Ministério dos Negócios Estrangeiros, os “pensadores” da coisa europeia raramente se arriscavam fora da contabilidade dos fundos comunitários e da medida dos efeitos dos regulamentos e das directivas. Depois do Acto Único Europeu, em que a sua voz não tivera ainda peso institucional, Maastricht foi, talvez, o primeiro grande momento em que a diplomacia portuguesa foi sujeita a um choque forte com a nova realidade: começava a ser necessário fazer opções em temas que tocavam de perto com elementos já próximos do core da soberania dos Estados e com os efeitos de partilha desta num contexto europeu, mesmo na respectiva ordem constitucional interna.
No debate em torno do Tratado de Maastricht, a diplomacia portuguesa mostrou o seu melhor, em termos de qualidade técnica, e o seu pior, em termos de falta de afirmação de uma vontade integracionista europeia oficialmente assumida. A pobreza teórica neste domínio, vista à distância, é estarrecedora e a “ideia” portuguesa para a Europa praticamente se resumiu a uma estratégia defensiva, no sentido de evitar a mudança, titulada por um nacionalismo serôdio, alcandorado à dignidade de política.
Nos debates em torno da União Política, os fantasmas atlanticistas mais primários colocaram-se na primeira linha do argumentário e revelaram aquela que viria a ser, praticamente, a linha orientadora predominante, que iria ainda marcar a década seguinte. Portugal colocou-se no debate entrincheirado numa defesa do statu quo e numa relutância manifesta em abdicar dele. Quando o fazia era sempre a contragosto e arrastado pela inevitabilidade pressentida dos ventos maioritários. Tratava-se de uma espécie de europeísmo selectivo, isto é, estar com a Europa em tudo quanto isso pudesse significar vantagens imediatas de natureza material para o país e, simultaneamente, resistir à Europa e ao seu aprofundamento como projecto sempre que isso pudesse ser visto como a perda da capacidade portuguesa autónoma de decisão. Nenhuma ideia ressoava comom interesse nacionalna partilha do projecto europeu, na sua sinergia de valore e objectivos de que Portugal poderia beneficiar e para a qual poderia contribuir.
Interessante foi verificar que, no caso da União Económica e Monetária, alguma modernidade ligada ao pensamento liberal acabou por ter efeitos algo diferentes. A percepção de que o caminho para a moeda única poderia induzir efeitos automáticos de estabilidade sobre o tecido financeiro, que iria dar ao país defesas interessantes para contrariar algumas das suas debilidades crónicas, levou a uma atitude mais aberta e concessionista. Atitude certa mas que, como hoje se vê, não deixou de sobrevalorizar os méritos do modelo e não cuidou em alertar para a necessidade de esforços contínuos para a sustentabilidade da posição nacional dentro dele.
É muito curioso observar a relativa contraposição destas duas escolas de pensamento, com a segunda a mostrar-se mais “progressista” que a primeira, apesar de ser tributária de um pensamento neo-liberal que, em Portugal, era titulado por sectores do centro-direita, apenas com a adesão discreta de alguma esquerda moderada, que se mostrou disposta a correr o risco de ser com eles identificada.

O efeito de Maastricht

É hoje um lugar-comum dizer-se que Maastricht foi, um pouco por toda a parte, um turning point no processo de construção europeia. Com efeito, na generalidade dos países europeus, onde já existiam opiniões públicas atentas e actuantes, o reforço integrador que aquele tratado significou foi visto, de imediato, como tendo alterado, de forma muito significativa, o posicionamento relativo dos Estados face às instituições europeias. Daí decorreu como que um alerta geral sobre a necessidade de retirar consequências, em termos de discussão e avaliação colectiva de efeitos, sobre esse novo tempo. Os referendos, as crises políticas que lhes estiveram ligadas e a nova visibilidade de um “eurocepticismo” que sempre fora larvar, e que cada vez apareceu mais teorizado, inauguraram um período de contínua atenção sobre a coisa europeia, que já não iria ter retorno.
A constatação era relativamente simples: a Europa evoluíra, até então, através de processos negociais intergovernamentais relativamente tradicionais, de tipo gradualista, que haviam levado, ao longo dos anos, a modelos acrescidos de cooperação entre os Estados. Algumas políticas que se haviam instituído como comuns, entretanto já consagradas e estabilizadas, situavam-se em áreas económicas relativamente incontroversas na bondade dos seus efeitos, razão pela qual a sua anterior adopção não suscitara dificuldades de maior.
Porém, o facto de, nesta nova fase, se criarem mecanismos que colocavam num espaço comum de decisão europeia certas políticas ligadas ao conceito tradicional de soberania, as quais, no passado, sempre relevavam de claras competências nacionais, tornava necessário criar novas fórmulas para o controlo da respectiva gestão. Ora a verdade é que as instituições europeias não davam ainda as garantias mínimas de solidez e representatividade para assegurarem esse controlo, em termos de fiscalização e de aferição democrática; e, por outro lado, as instituições nacionais haviam entretanto perdido já a capacidade de assegurar pr completo tais funções. Estava aberto o importante debate em torno do “défice democrático”, até hoje não concluído, e para o qual a posterior tentativa da Constituição Europeia veio a aparecer como uma resposta possível.

Amesterdão à vista

Alguma coisa mudara, entretanto, de forma algo dramática, nos equilíbrios geopolíticos europeus. O império soviético dava mostras de ter um elevado potencial de implosão, os países que politicamente renasciam autonomamente à sua volta denunciavam a vontade de criar condições para virem a beneficiar, no futuro, da adesão ao modelo de sucesso que a Europa mais ocidental criara quatro décadas antes, que tão vantajoso se mostrara na ajuda a Estados saídos de patamares de desenvolvimento muito abaixo da média europeia, como era o caso de Portugal. Esse era, porém, um pano de fundo à época ainda difuso, um debate que se sabia inevitável, mas cujo prazo de efectivação era ainda imponderável.
Em 1995, um “grupo de reflexão” foi criado na União Europeia para reflectir em alguns aspectos ligados à evolução decorrente dos avanços de Maastricht. De certo modo, começava a desenhar-se a teoria da “bicicleta” que Jacques Delors popularizara: tal como num percurso ciclístico, se acaso se parasse a dinâmica da viagem, o veículo tombaria. Daí a necessidade de todos continuarmos a pedalar, isto é, de continuarmos a criar novos mecanismos para enquadrar as novas realidades e a gerar políticas de acompanhamento para garantir o sucesso daquelas que já estavam no terreno. Com efeito, embora num plano ainda um pouco difuso, começava a perceber-se que algumas políticas novas teriam de ser instituídas, a fim de dar suporte aos avanços para que Maastricht apontara.
Os trabalhos do Grupo serviram de base para a Conferência Intergovernamental que veio a desembocar no Tratado de Amesterdão. Sem surpresas, no caminho para este tratado, viriam a transparecer, de forma quase mecânica, as divisões suscitadas nos debates do grupo. Correndo o risco de todas as simplificações, pode dizer-se que houve duas linhas divisórias fundamentais na discussão do Tratado . Porém, porque baseadas em pressupostos diferentes, essas linhas nem sempre coincidiram na sua titularidade.
De um lado, mostraram-se alguns países mais integracionistas, disponíveis, em especial, para definir um conjunto mais alargado de matérias a serem decididas por maioria qualificada e, em muitos casos, abertos a uma intervenção maior do Parlamento Europeu nesse mesmo processo decisório.
Sem surpresas, alguns dos fundadores da União revelaram-se apoiantes claros desta linha, com a Bélgica e a Itália com uma posição mais entusiática. Num pólo oposto, o Reino Unido reafirmava a sua relutância em avançar para modelos mais integradores e, em particular, mostrava a sua consabida precaução em evitar a perda do poder decisório das suas próprias instituições parlamentares.
Além disso, e num outro terreno de debate, Londres procurava suster tentações de evolução para uma Política Externa e de Segurança Comum que pudesse, mesmo que a prazo, funcionar como podendo afectar os laços da sua special relationship com os EUA, que tinham e têm como axial para a sustentação da sua própria posição no mundo. A evolução nesta área externa era também travada, curiosamente, pelo pólo “neutralista” dentro da União, antigamente centrado na Irlanda, mas que a adesão recente de países como a Áustria, a Finlândia e a Suécia viria a reforçar.
Uma segunda linha divisória, não coincidente com a primeira, expressava-se a nível do processo decisório e da preocupação de que este evoluísse em termos que pudessem consagrar um peso desproporcionado aos países de maior dimensão, tornando irrelevantes os Estados menos populosos. Porém, alguns países de menor dimensão não partilhavam esta preocupação. Porquê? Porque o seu padrão de interesses coincidia, no essencial, com o dos seus parceiros mais populosos, por assentar em níveis de desenvolvimento similares.
Estas foram, de forma muito caricatural, algumas das linhas posicionais detectáveis no debate intraeuropeu.

A agenda portuguesa

Onde ficava Portugal em tudo isto? Inicialmente, numa posição defensiva, na linha de uma escola de comportamento que já vinha de Maastricht.Tendo tido um papel central na definição da posição portuguesa para esta Conferência Intergovernamental, bem como responsabilidades directas na gestão da respectiva negociação, julgo estar bem colocado para poder ter hoje alguma perspectiva distanciada, que ajuda a perceber melhor o porquê da nossa atitude de então.
Como se disse, no cenário geral estava a preeminência da nossa cultura intergovernamental, eixo referencial da velha escola das Necessidades. Depois, no que toca à PESC, existia também a difusa preocupação (partilhada com o Reino Unido e, à época, também com os Países Baixos) de que uma eventual deriva europeia em matéria de segurança e defesa pudesse vir a comprometer ou debilitar o papel da NATO na Europa – linha sempre tida por estruturante na nossa afirmação externa. Tenho por convicção – mas, sublinho, esta é uma perspectiva meramente pessoal – que estamos perante uma ilusória questão a qual mereceria uma reflexão mais profunda, por forma a ponderar com maior rigor onde se situam hoje, verdadeiramente, os interesses estratégicos do nosso país.
Façamos aqui um parêntesis para afirmar que não se me oferece a menor dúvida que o laço transatlântico continua a ser um elemento estruturante, não apenas para Portugal, mas para a Europa comunitária em geral. Independentemente das crises conjunturais que, ciclicamente, afectam o relacionamento de alguma Europa com os EUA, particularmente em tempos de um certo “autismo” sobranceiro de Washington, não conseguimos perspectivar uma qualquer capacidade de afirmação mundial dos valores constituintes do nosso modelo civilizacional sem uma aliança operativa com a grande democracia americana. Dirão alguns: e Guantanamo? E o Iraque? E, antes disso, o Vietname e outras concessões à realpolitik, em especial na Guerra Fria? Tudo isso é verdade, como foram verdade as torturas na Argélia, os massacres coloniais nas várias Áfricas (inclusivamente a “portuguesa”) e outras barbaridades de génese europeia, de que a omissão cobarde face ao conflito israelo-palestiniano continua a ser, ainda hoje, o mais deprimento exemplo.
Dito isto, não vejo a menor desvantagem em que a Europa procure criar e aculturar-se a uma capacidade de segurança autónoma, que não tem de ser contraditória com a NATO. Se essa capacidade pode ou não vir a evoluir para uma defesa comum, essa é já uma outra questão. Mas, em tese, porque não? Só que essa evolução teria, a montante, de ser compatível com uma política exterior também comum e aí confesso ainda não ver razões para se ser muito optimista quanto ao futuro da PESC. E, neste caso, e para simplificar, diga-se que a culpa assenta, essencialmente, nas potências europeias (que regionalmente fazem o papel de “grandes”), incapazes de fugirem aos seus reflexos de “directório”.
Uma segunda linha de preocupações portuguesas resultava da aparente evidência saída de mais de uma década de trabalho na União: a percepção de que Portugal se começava a situar à margem dos interesses médios que se projectavam no processo legislativo em Bruxelas, circunstância agravada com a entrada dos três novos países que haviam acedido em 1994, portadores de uma cultura de desenvolvimento afastada da nossa, o que reforçava um grau de exigência em termos normativos cada vez mais difícil de sustentar. Essa constatação levava, assim, a uma grande relutância em perder uma razoável capacidade decisória, o que funcionava contra a abertura para o alargamento de decisões por maioria qualificada e, no caso das que exigissem co-decisão, contra a atribuição de maiores poderes ao Parlamento Europeu, onde o peso dos países mais populosos era ainda maior do que no Conselho de Ministros.
A tudo isto acrescia o nosso interesse em evitar o favorecimento de modelos de “cooperações reforçadas” ou de “integração diferenciada”, vistos como podendo funcionar como escapatória para alguns países virem a criar “núcleos duros” em torno do desenvolvimento de algumas políticas sectoriais, deixando para trás quem os não pudesse ou quisesse acompanhar.
Em suma, Portugal apostava num discurso assente no privilégio do “gradualismo” tradicional, de forma a tentar obrigar a União a marchar ao seu próprio passo. Era isto sensato? Confesso que, em perspectiva, tenho hoje sentimentos ambivalentes nesta matéria.
Por um lado, continuo convicto de que continua a haver um gap de desenvolvimento que coloca Portugal fora do mainstream da União e que isso se reflecte na dificuldade de adaptação do país a certas exigências legislativas, particularmente num tempo em que começam a rarear os apoios comunitários para colmatar tais problemas, bem como as limitações surgidas na nossa própria capacidade orçamental para co-financiar os projectos necessários para enfrentar esssas mesmas exigências.
Mas, por outro lado, pergunto-me se esta perspectiva não peca por ser um tanto estática e esquecer que há factores dinâmicos e de “arrastamento” que, embora aqui ou ali com consequências traumáticas a nível pontual, acabam por constituir-se em elementos indutores de modernidade, com efeitos no progresso global do país.
Ainda assim, também me interrogo: se esta questão do posicionamento relativo no processo decisório é tão irrelevante e a sua reiteração é um anacronismo – como uma escola “avançada” hoje defende em Portugal, com tanto despreendimento –, qual será a razão que leva os países mais populosos a não se cansarem em procurar reforçar o seu próprio papel na tomada das decisões? Apenas um juízo de eficácia? Ou o que é importante para eles deve ser irrelevante para nós?

O saldo de Amesterdão

Para muitos, o que se conseguiu na Conferência Intergovernamental que se concluiu em Amesterdão foi curto e esteve longe de ajudar a União a adaptar-se para os desafios que já despontavam no seu horizonte.
A perspectiva portuguesa nunca foi tão negativa quanto ao seu juízo sobre o novo tratado. Reconheço que, face à sua agenda original, o obtido em Amesterdão ficou àquem do que muitos esperariam. Mas temos que ser realistas: qualquer Conferência Intergovernamental é um compromisso que não pode deixar de ter em consideração o facto de ser necessário responder, simultaneamente, às diversas agendas de preocupação que as diferentes opiniões públicas nacionais mantêm. Na Europa, por muitos e bons tempos, não haverá um espaço público uniforme, porque os factores de diferenciação permanecem muito fortes e os decisores políticos não deixam de ser sensíveis a essa circunstância.
Como antes foi dito, Amesterdão situou-se depois de Maastricht, isto é, foi a primeira negociação europeia que teve de se confrontar com o facto de estar já criada uma muito maior atenção pública face às temáticas integracionistas, um cuidado muito maior perante aquilo que se pode consensualizar nos fóruns de entendimento diplomático. Assim, Amesterdão foi claramente um tratado de transição, que tentou compatibilizar vontades integracionistas tradicionais com precauções compreensíveis de novos aderentes, num difícil exercício de adaptação e aproximação de culturas.
Para Portugal, esta negociação foi um teste muito importante e um grande desafio. Sem prejuízo da nossa postura inicial se ter subordinado ainda muito a uma linha de prudência, onde se projectava bastante a sombra de algum soberanismo, foi patente que este tempo negocial representou já a evolução para uma atitude diferente em muitas áreas, uma visão mais europeia de certas temáticas – enfim, o início de uma nova filosofia de intervenção no debate europeu.
Pela primeira vez, Portugal preparou um completo documento de estratégia , definiu publicamente muitas das opções que iria transportar para o terreno da negociação, inaugurando assim um modelo de diplomacia pública e de transparência diplomática que se alargou de forma inédita ao envolvimento das estruturas parlamentares nacionais. A preparação desse “paper” teve duas consequências: forçou a definição de uma visão global mais coerente sobre todos os temas que potencialmente poderiam ser abordados e, no final do exercício, deu oportunidade de aferição sobre o que realmente se havia conseguido, tendo em atenção aquilo que havíamos proposto. E esse resultado, visto em perspectiva, é-nos muito favorável.
Recordaria, a título de exemplo, toda a abertura que mostrámos quanto ao alargamento de competências na área da Justiça e dos Assuntos Internos, a assunção de um novo discurso sobre a evolução da União da Europa Ocidental (UEO) no quadro da Segurança Europeia, a linguagem inovadora e precursora que adiantámos em matéria de Direitos (direitos fundamentais, direitos económicos e sociais, protecção de minorias, igualdade de géneros, não-discriminação) e as nossas propostas, infelizmente não acolhidas, sobre uma Carta, a ser inserida no preâmbulo do Tratado, relativa às conquistas dos cidadãos europeus nesse âmbito, como pilar de uma nova Cidadania Europeia.
Também interessante, e revelador de um trabalho de evolução sectorial em várias áreas da Administração, foi a nossa muito maior abertura no que toca à passagem de certos domínios à decisão por maioria e a disponibilidade para extensão de algumas novas áreas temáticas a um tratamento comunitário. Notaríamos, também, a ênfase dada à temática do Emprego e do combate à exclusão social, onde nos colocámos na primeira linha do debate, a nossa vontade em colocar o Comité das Regiões e o Comité Económico e Social num patamar de intervenção mais efectivo no debate intracomunitário, o cuidado posto na questão da protecção dos Serviços Públicos, etc. Num tema de interesse nacional directo, Portugal obteve um ganho de causa muito relevante: a criação de uma nova base jurídica para a facilitação do apoio às Regiões Ultraperiféricas da União, onde se inseriam os Açores e a Madeira.
Por todas estas razões e, volto a afirmá-lo, pelo facto de esse tempo ter coincidido com a criação de uma nova atitude e com a definição de uma nova filosofia de intervenção no debate europeu, o Governo português fez uma avaliação positiva desse exercício e não alinhou numa atitude denegridora, a qual, no essencial, se apoiou na frustração de alguns sobre a alegada falta de evolução em termos de reforma dos equilíbrios institucionais. Foi dessa atitude que se alimentou a criação do conceito dos reliquats ou leftovers de Amesterdão, que iriam lançar o caminho para o futuro Tratado de Nice.

Nice – um tratado para o Alargamento

Por uma coincidência temporal, competiu a Portugal presidir à primeira metade das negociações que conduziram ao Tratado de Nice. O facto da Conferência Intergovernamental ter sido lançada pela Presidência portuguesa da União Europeia, em inícios de 2000, fez com que coubesse ao autor deste texto a titularidade da chefia do respectivo grupo negocial, até ao final do primeiro semestre de 2000 .
Antes disso, porém, foi necesssário “negociar” laboriosamente com o Parlamento Europeu a “luz verde” para permitir o arranque do processo negocial, tarefa nada fácil e que permitiu, desde logo, abandonar a limitação da agenda aos reliquats/leftovers de Amesterdão e criar um modelo de análise para o tema das “cooperações reforçadas”, tido à época como um elemento essencial para desbloquear potenciais impasses na futura evolução das políticas europeias.
Poupar-se-á o leitor sobre os pormenores desta negociação , mas convém deixar claro, desde já, que ela se assumiu, de forma quase despudorada, como a tentativa de certos países de conseguirem, através do reforço da sua posição no processo decisório, para criar um modelo que permitisse tornar “neutral” o papel dos Estados que viriam a ser incluídos no processo de alargamento que já se anunciava. Alguns poderão ver nesta afirmação uma espécie de teoria conspiratória. Com a eventual autoridade de quem esteve presente em mais de três centenas de horas de negociação e de ter sido responsável pela gestão de metade desse exercício, não me resta hoje a menor dúvida que foi isso que aconteceu.
O debate que veio a desembocar em Nice foi, aliás, dos mais duros e ácidos da história já longa da União. E isso não se passou apenas a nível de negociadores técnico-políticos. Mesmo a nível de chefes de Estado e governo a tensão subiu por vezes a pontos inimagináveis e, em alguns momentos, chegou a estar em perigo a própria unidade da Europa.
Para muitos, os resultados de Nice falam por si: um sistema decisório complexo, que permitiu satisfazer o desejo comum a todos os Estados de manterem um elemento na Comissão Europeia, por troca com um reforço da posição relativa no processo decisório dos países com maior expressão demográfica. Com todas as suas fórmulas matemáticas cumulativas, esse mecanismo pareceu, a alguns, atar as mãos à Europa e ter um potencial de conflitualidade muito elevado. Nunca pensei dessa forma. O que a maioria das pessoas desconhece é que a Europa, na sua rotina diária, tem um funcionamento leve e automático, fruto de uma experiência de décadas, feita de mecanismos muito operativos e de uma vontade de compromisso que, quase sempre, é a chave do sucesso e da tomada de decisões. Perante a complexidade matemática do modelo de Nice, poder-se-ia prever que o quotidiano de Bruxelas viria a ser um inferno negocial. Ora nada disso se passou. Com a entrada em vigor do Tratado de Nice, manteve-se o ambiente de normalidade nos modelos de formatação da vontade da União, nomeadamente no âmbito do cada vez mais exigente processo legislativo.
Reconheço que o Tratado de Nice prevê, de facto, alguns mecanismos e fórmulas com uma certa sofisticação, para acorrer a momentos mais complexos, perante temáticas delicadas em que os Estados membros possam dar mostras de divisões sérias. Mas não será isso normal? Não será natural que, perante questões importantes, se recorra a modelos decisórios que possam ter alguma complexidade mas que, ao mesmo tempo, garantam a democraticidade do resultado final e uma representatividade forte e incontestada?
O melhor elogio ao Tratado de Nice é o facto de ele ser ainda hoje a base na qual assenta uma União Europeia com 27 Estados e não haver conhecimento de que seja a ele que possam assacar-se responsabilidades por quaisquer dificuldades do funcionamento das instituições comunitárias.
Recordo que, quando os dirigentes políticos saíram das longas noites negociais de Nice, para as suas conferências de imprensa e para a apresentação do Tratado aos seus parlamentos, foram tão convincentes sobre as qualidades do compromisso então obtido que a posterior ratificação a “quinze” acabou por ser unânime. Nice foi apresentado como o texto regulador da União que permitia criar as condições para os futuros alargamentos, tinha no seu seio os mecanismos susceptíveis de enquadrar as diferentes sensibilidades que essa nova Europa iria trazer e que permitiam gerir o modo como as diferentes políticas se comportariam perante esse contexto de uma heterogeneidade sem precedentes.
Porém, ainda antes dessa ratificação estar totalmente concluída, a Europa política viria a entender, por razões que conviria explicar algum dia, que, afinal, era necessário um outro tratado, a que talvez fosse sábio ter a ambição de chamar Constituição Europeia . Os resultados desse passo – “a treaty too far”? – estão aí à vista de todos. Mas a análise disso não era, nem será, o objectivo deste texto.

Crónica de um erro diplomático

Naquele 12 de Maio de 1994, no meu gabinete da Embaixada em Londres, procurei prever, para suposto benefício informativo de Lisboa, o futuro da liderança trabalhista. A morte de John Smith, breve herdeiro Neil Kinnock, criara um inesperado vazio na Esquerda britânica.

Tony Blair ou Gordon Brown eram as alternativas óbvias, perante a inevitabilidade de um salto geracional. Estrelas ascendentes no “shadow cabinet”, encarnavam a esperança num Partido Trabalhista que a coragem de Kinnock e a sabedoria de Smith libertara do espartilho do “block vote” sindical, que ameaçava colar o seu destino à derrota cíclica.

Deve andar pelos arquivos do MNE o “bem elaborado telegrama”, como chamamos na “casa” às comunicações que temos por memoráveis, no qual o Encarregado de Negócios português, que eu então era, explicou, com sólido argumentário, que o próximo líder trabalhista iria ser, pela certa, ... Gordon Brown. Enganei-me por 13 anos !

O erro assentou na leitura de que o trabalhismo não estaria preparado para uma liderança liberal como a que Blair prenunciava e que, com maior probabilidade, se inclinaria para uma figura como Gordon Brown, que, não obstante o pendor modernizante, tinha no seu passado a militância esquerdista no “Tribune”.

Tony Blair surgia como um “nice guy” de recorte “kennedyano”, hábil no discurso, um esgar feito sorriso, uma mensagem que me parecia sem grande substância. Pelo contrário, Gordon Brown, num estilo talvez menos burilado e um tanto desajeitado, era produtor de propostas imaginativas, mobilizador de uma equipa que actualizara o programa do partido.

Os responsáveis trabalhistas optaram por Blair e eu tive de recolher-me à humilhação da minha conjuntural incapacidade de previsão, sina das más horas dos diplomatas em posto.

Terá sido principalmente por essa razão que, três anos mais tarde, já noutras funções, observei com particular curiosidade a chegada ao Conselho Europeu de Amesterdão do novo Primeiro-Ministro britânico, Tony Blair, muito recente vencedor das eleições no seu país. Em mangas de camisa e com franco à-vontade, Blair deu uma notável lição de como um sistema político como o britânico sabe preparar os seus líderes para todas as batalhas, mesmo as mais imediatas.

O Reino Unido chegava então ao termo de uma negociação durante a qual assumira uma postura relutante, defensiva mas não tímida, sob uma administração conservadora. Nos debates, Blair não introduziu nenhuma clivagem dramática face à atitude britânica nos dossiês em discussão. Conseguiu, porém, com hábeis “nuances” de forma, ganhar de imediato a boa-vontade de muitos dos seus pares, ansiosos por potenciar qualquer vislumbre neo-europeísta que soasse dos lados de Londres. Tony Blair demonstrou uma grande capacidade de intervenção nessa muito difícil reunião, afirmando uma qualidade política que arquivou, em algumas horas, a equivocada imagem que, quatro anos antes, eu dele havia construído.

Blair teve uma intensa década de poder à frente do governo britânico. Foi criativo no seu turno na “special relationship” com Washington, ao gizar com a França, em St. Malo, uma aliança de poderes militares de 2ª linha que, sem afectar o laço transatlântico e a NATO, colocava o Reino Unido no eixo de Defesa e Segurança de uma Europa à desesperada procura de um papel no mundo. Na passada, instigou rápidos alargamentos da União Europeia e da NATO, imprimindo-lhes um ritmo não inocente, gerando aliados úteis aos EUA, numa “nova Europa” desconfiada, simultaneamente, de Bruxelas e de Moscovo. Fez a reserva da mesa no almoço da “cimeira da paz”, que Portugal serviu nas Lages. Sempre, sempre ao lado do amigo americano, foi para o Iraque sem mandato da ONU, sob o falso alibi da procura das armas de Saddam e sob o real interesse da segurança petrolífera. Saiu-lhe a dura descoberta de um novo e incontrolável desequilíbrio regional, a que o “Foreign Office” percebeu que já não pode imprimir as regras do “Great Game”. Pagou o seu erro com o terror em Londres, onde a herança do império contra-atacou e mostrou ao Reino Unido a bomba eterna com a qual terá que viver.

Na Irlanda, teve a imensa sabedoria de gerir o tempo e aproveitar a exaustão das partes: conseguir sentar Paisley e McGuinness à mesma mesa de poder partilhado deve ter-lhe dado uma satisfação única – e bem merecida.

No plano económico-social e com a ajuda de Gordon Brown, Blair provou que, na Europa, ainda há vida fora do euro. Com a Terceira Via, fez à Esquerda europeia provocações que relevavam mais de um liberalismo “thatcheriano”, ainda que de rosto humano, do que de uma qualquer reedição, se bem que modernizada, da “longest suicide note” que o programa eleitoral de Michael Foot acabara por ser, anos antes, para as esperanças de poder do trabalhismo histórico. Ao estimular, ao lado de Aznar, a Estatégia de Lisboa, criou massa crítica de resistência à tradicional aliança gaullista-socialista, que pretendia congelar o modelo social europeu. Não deixa de ser uma singular ironia que Sarkozy chegue, precisamente, no momento em que Blair parte.

Alguns dizem que Tony Blair foi o primeiro lider pós-moderno da Esquerda europeia. Para outros, mais cínicos, ele terá sido o primeiro líder pós-Esquerda da Europa. A História falará por último.