22 de dezembro de 2008

O Brasil e a Língua Portuguesa

O debate em torno das virtualidades do novo Acordo Ortográfico, que em Portugal mobilizou diversos sectores, teve uma expressão diferente na opinião pública brasileira. Para a maioria dentre os poucos que, no Brasil, se pronunciaram sobre o Acordo, o novo normativo linguístico é irrelevante, por entenderem que a língua que se fala do outro lado do Atlântico dificilmente se sentirá limitada na sua própria dinâmica.

Este sentimento coloca-nos o problema de saber se, ao enveredarmos por introduzir, na escrita em Portugal, as alterações decorrentes do Acordo, não estaremos a dar um passo desnecessário, dado que o Brasil pode rapidamente vir a colocar-se para além de tudo quanto agora possamos fazer para nos aproximarmos dele em matéria de grafia.

Julgo que ninguém terá uma resposta satisfatória para esta angústia, mas o debate só ganhará se reflectirmos um pouco mais sobre o modo como o Brasil olha hoje para a língua portuguesa e, em especial, sobre como ela se insere na sua matriz cultural.

A independência do Brasil, em 1822, não significou a descolonização das mentalidades do novo país. Os padrões e os gostos culturais europeus continuaram dominantes, a linguagem escrita e falada pelos sectores sociais elevados permaneceu muito próxima da de Portugal, com a sua adopção a manter-se como um factor de prestígio para quantos aspiravam à ascensão dentro da nova ordem nacional.

Este estado de coisas começou a mudar já no século XX. Em 1911, e no tocante à língua, Portugal introduziu unilateralmente uma reforma ortográfica, assumindo-se como liderança na evolução do padrão linguístico do Português. A partir dos anos 20, impulsionada pelo seu movimento modernista, começou a gerar-se no Brasil uma revolta contra a prevalência da cultura de origem europeia, numa acção favorável à identificação de uma “brasilidade” onde pudessem já estar representados sectores marginalizados da sociedade, cujas expressões culturais o Brasil-colónia tinha abafado desde sempre –negros, índios e populações rurais miscigenadas. Alguns intelectuais, em especial marcados pelo marxismo, deram substância ideológica a este esforço de “descolonização cultural”, a qual não raramente acabou por ter laivos de alguma lusofobia.

Neste ambiente de nacionalismo cultural, o Português falado no Brasil não passou impune. Alguma escrita literária abriu-se a um vocabulário que ia já muito para além do “Português de Coimbra”, para uma maior absorção escrita de expressões da oralidade, a uma mais alargada representação da diversidade linguística nacional, quer nativa, quer induzida pelas novas levas de imigração – que começavam a ter consequências bem audíveis na própria evolução fonética do Português brasileiro.

Nesse contexto, não será de estranhar que a sociedade política brasileira se sentisse motivada, já nos anos 40, a não dar sequência legal àquilo que os seus académicos tentaram então acordar com Lisboa, como forma de reaproximar o Português de ambos os lados do Atlântico. É que, para muitos brasileiros, o Português contemporâneo confunde-se com a língua que escrevem e falam, pelo que olham as variantes de Portugal e do resto do mundo lusófono como curiosas e bizarras derivas, seja no “sotaque português”, seja na “estranha” linguagem escrita que é utilizada fora do seu país. O padrão seguido pelo Museu da Língua Portuguesa, em S. Paulo, criado há poucos anos, é bem demonstrativo dessa completa apropriação do Português pela norma brasileira. Alguns, mais radicais, vão mesmo mais longe e propõem que se passe a utilizar a expressão “Brasileiro” para se qualificar o Português que 194 milhões de pessoas falam no Brasil.

É este o cenário de fundo que nunca pode ser perdido de vista quando ponderamos o interesse em se utilizar o Acordo Ortográfico como derradeiro instrumento estratégico para travar uma ainda maior divergência futura entre as normas do Português escrito contemporâneo. O novo Acordo pode não ser suficiente para evitar, em absoluto, esse afastamento, mas é conforme com a particular responsabilidade que compete a Portugal em evitar que ele se torne cada vez maior.

Publicado no nº 300 da revista "Tempo Livre", do INATEL

13 de dezembro de 2008

Um Brasil com Energia

A crise económica internacional parece poder vir a trazer um tempo novo no debate energético no Brasil, levando a uma revisitação do papel futuro dos seus vários componentes.

O processo de crescimento da economia brasileira, que até agora vinha ter uma linearidade que a maioria dos observadores considerava como óbvia, apontava para a importância do Brasil se dotar, até 2011, de uma matriz de fornecimento energético capaz de corresponder àquilo que se desenhava como uma procura potencial mínima. A questão está em saber se os efeitos da actual crise internacional no Brasil poderão agora, ou não, conduzir a reduções de crescimento que atrasem a data dessa pressão de procura.

No combinado brasileiro de fontes energéticas, o petróleo apareceu sempre com um papel central. As recentes e sucessivas descobertas de campos petrolíferos vinham a gerar um entusiasmo que, em certos meios, chegou a suscitar significativos reflexos nacionalistas. O Brasil parecia já à porta da OPEP e capaz de poder vir a utilizar os futuros recursos para induzir impactos em áreas internas vitais, como a educação ou a saúde. Para alguns observadores menos avisados, as vantagens potenciais das descobertas de petróleo no “pré-sal” (alta profundidade) pareceram feitas à luz das projecções decorrentes dos recentes preços que o crude estava a ter no mercado internacional. Dessas contas estiveram, muitas vezes, ausentes duas considerações fundamentais: a constatação de que o preço do mercado poderia vir a cair, como caiu, e uma realista avaliação dos maiores custos que uma exploração em profundidade sempre acarreta, com natural compressão de lucros abaixo de certo nível de preços, mas sempre com a necessidade de injecção de capitais que dificilmente podem ser gerados no próprio mercado financeiro brasileiro.

Esta avaliação oficial dos impactos das novas descobertas petrolíferas, no que toca à eventual nova engenharia institucional a manter ou a criar para os explorar, suscitou, entretanto, um interessante debate interno, para o qual foram convocados modelos de exploração e gestão com sucesso no campo internacional, como foi o caso da Noruega. A grande experiência e qualificação técnicas que o Brasil de há muito detém nesta área parecem garantir, sem sobressaltos maiores, decisões oficiais futuras muito ponderadas e responsáveis neste domínio.

No quadro de avaliação de necessidades energéticas tem vindo a tornar-se muito importante a questão do gás natural, que decisões com cerca de uma década tornaram um elemento central no apoio ao consumo em diversas áreas do país, de que o Estado de S. Paulo é o caso mais marcante. O conflito havido com a Bolívia sobre os preços do gás terá feito perceber ao Brasil, com uma brutalidade quase chocante, que se torna estrategicamente decisivo acelerar a exploração própria de gás, existente em abudância na bacia de Santos, evitando prolongar uma dependência arriscada. Mas, também aqui, serão também necessários tempo e recursos.

A geração hídrica permanece muito importante em todo o território brasileiro e não apenas pelos títulos que a questão de Itaipu suscita com regularidade, em face das renovadas reivindicações paraguaias. Com efeito, o fantástico mapa de recursos hídricos do Brasil oferece potencialidades de exploração que, praticamente, só parece poderem ser limitadas pelas fortes pressões dos lóbis ambientais. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – o ambicioso programa de infra-estruturas que o Governo brasileiro tem em curso, de forma a procurar sustentar o crescimento e apoiar a base produtiva futura – tem em grande atenção este sector.

Menos activo tem estado o debate em torno da opção nuclear, por ora parente pobre no esforço de geração brasileiro. Porém, se se lerem com atenção certas tomadas de posição oficiais, fica-se com a sensação de que novas e importantes decisões virão ter lugar neste domínio, a prazo não muito distante, e que o “politicamente correcto”, perante as pressões da procura, dificilmente continuará a passar por aqui.

Restam os biocombustíveis. O debate internacional sobre os respectivos impactos no mercado dos produtos alimentares revelou um Brasil forte nas garantias que pode dar de que, a nível nacional, o problema o não afectará. Mas, para além dessa polémica, aliás longe de encerrada, o Brasil vai ter de observar com cuidado se a crise internacional virá a afectar ou não o calendário de incorporação de biocombustíveis que o mundo desenvolvido tinha previsto. Isso não deixará de ter impactos concretos no seu agronegócio, que parece apresentar já sinais de algumas disfunções.

Uma nota final para referir que, num quadro onde a abundância de recursos energéticos parece confortável, se compreende que haja uma atenção menos concentrada noutras fontes de energia – eólica, fotovoltáica ou de ondas.

Em todo o contexto que referi, há alguns interesses portugueses a considerar, através de empresas nacionais já com participação interessante no mercado. Há que acompanhar estes casos de sucesso e procurar garantir que operações futuras de outros operadores, noutras áreas, ainda que de menor vulto, possam reforçar a nossa presença no mercado brasileiro da energia. É que, como hoje se torna evidente, muito do futuro do Brasil passará inevitavelmente por aí e nós queremos estar nele.

(Publicado no "Diário Económico", em 13.12.08)

9 de dezembro de 2008

Tanto mar?

Um fim de tarde de 1989, com o sol a pôr-se ao fundo da montanha, encontrou-me na praça central de Ouro Preto. Olhando em volta, entre a rua Direita e a do Ouvidor, apercebi-me, pela primeira vez, que uma parte de nós mesmos, dos portugueses, ficou para sempre por ali, por mais cantado que agora seja o sotaque, por muito distante que o nosso próprio mundo agora possa estar. Essa imagem ficou-me gravada na memória e atravessou comigo os anos. 

Passou-se mais de década e meia antes de eu regressar ao Brasil e antes de perceber – de novo no casario de Ouro Preto, mas também no silêncio nobre de Alcântara, no bulício africano do Pelourinho de Salvador ou nas esquinas apressadas do centro do Rio – que, verdadeiramente, só se pode entender bem o que Portugal é, e não apenas o que Portugal foi, depois de mergulhar no Brasil.

A comoção de entrar no forte Príncipe da Beira, de tropeçar nos nossos vestígios em Nova Mazagão, de lembrar os Açores em Ribeirão da Ilha, de ficar esmagado pela monumentalidade do Real Gabinete do Rio, de fixar a decadência serena da Beneficência Portuguesa em Belém, de sentir o cheiro forte das lojas de tudo, frente ao mercado de Manaus – tudo isso é preciso para que se prolongue em nós a interrogação, sem resposta, sobre o que é, afinal, ser português no mundo. Não se é português porque se nasceu em Portugal. É-se português pelo somatório das viagens que outros fizeram por nós, dos que foram e voltaram cheios de histórias mitificadas das Pasárgas que poderiam ter tido, mas também dos que não voltaram, dos que “queimaram as caravelas” e se entregaram aos novos mundos que fizeram seus.

O Brasil é o nosso álbum de memórias de um passado que é deles – não foram os nossos antepassados que colonizaram o Brasil, foram os antepassados dos brasileiros –, mas no qual não conseguimos deixar de nos sentir eternos figurantes no cenário de fundo. Às vezes, nessas encruzilhadas de paisagem que nos acordam um Portugal que, afinal, nunca conhecemos, foge-nos o pé patriótico para a tentação nostálgica da glorificação da gesta conquistadora, sem nos apercebermos que a face verdadeira da nossa glória, mais do que o saldo complexo da aventura colonial, está bem mais próxima de nós, está aqui nesta página, está nesta língua que nos une e cujas diferenças muito humanamente nos separam.

Ao longo de quase quatro anos no Brasil, coloquei sempre duas questões a mim mesmo: o que é hoje o Brasil para Portugal? E Portugal para o Brasil? Não sei se obtive ou obterei alguma vez a verdadeira resposta, mas ouso arriscar a minha.

No imaginário tradicional português, a independência do Brasil permanece como que se uma “jangada de pedra” se tivesse um dia afastado, num arroubo de um príncipe que transpirou a vontade de muitos, nela criando uma nação que éramos nós em sorridente, com mais música e alegria e com riqueza fácil à mão.

Os “brasis” foram sempre uma espécie de miragem para quem, em Portugal, sentia a aventura nas veias, para quantos, por ambição ou angústia, se decidiam a partir, muitas vezes sem o saber, para sempre. Para os portugueses, o Brasil era um destino muito diferente do de África, era mais acolhedor, menos perigoso e misterioso, algo mais próximo. Do outro lado do Atlântico, todos encontrariam um primo, uma afeição, uma hipótese para refazer a vida. Os que voltavam, traziam consigo como que um estranho vírus tropical de afectividade, um jeito informal e bizarro, uma forma de estar a que, por vezes, se associava uma ideia de inconstância ou de ligeireza. Mas o Brasil foi e permaneceu sempre, no sentimento profundo de muito portugueses, o último reduto da esperança, na busca por um melhor destino ou na luta pela liberdade. Ou um mero local de refúgio, a fronteira limite de uma mudança, como a casa de um familiar que nos acolhe numa crise de vida.

Pelo Brasil, durante largas décadas, muitos e muitos milhares de portugueses fizeram um trabalho árduo, geraram riquezas, às vezes para si próprios, quase sempre constituíram famílias que os “abrasileiraram”, foram leais a quem os acolheu bem, tornaram-se brasileiros de coração. Mas sempre cuidaram em guardar a memória dos vilarejos pobres de onde haviam partido e em alimentar, à sua maneira, o orgulho do país de que, sem o saberem, foram sempre os mais lídimos embaixadores. Por aqui ergueram instituições magníficas, deram lições de solidariedade e, na sua esmagadora maioria, tornaram a palavra seriedade como sinónimo de ser português no Brasil. E esse seu patriotismo sem baias levou a que, ironicamente, muitos acabassem por se identificar com o regime que, em Portugal, lhes não soube dar condições para poderem exercer esse direito natural que é cada um poder construir uma vida decente e próspera, sem ter, necessariamente, de sair do lugar onde nasceu.

Com o tempo, o Brasil mais verdadeiro, já não o Brasil virtual levado pelos “torna-viagem”, foi-se aproximando de Portugal e a sua imagem tornou-se-nos mais nítida: com a sua música eterna como fundo, servida por um “português com açúcar”, consumíamos as latas da goiabada e as resmas de “Cruzeiros” e “Manchetes” que os primos nos mandavam pelos natais. Nas suas páginas, como nos cantos do Juca Chaves e, mais tarde, do Chico Buarque, fomos aprendendo que, afinal, também por lá havia “amigos da onça”…

Amado, Veríssimo, Bandeira, Vinícius e tantos outros fizeram parte do mundo íntimo de muitos de nós. As novelas ensinaram-nos, com espanto, que o brasileiro também chorava – nem sempre sorria, nem tudo era carnaval e futebol. E percebemos melhor porquê, com a face patibular da ditadura militar a trazer-nos os exilados que encontrávamos por noites de Lisboa, onde vinham partilhar os cravos da festa do nosso contentamento. Com a liberdade já a passar por aqui, o Brasil foi-se definindo melhor aos nossos olhos – um país ambicioso, optimista, sempre “cordial” para quem lhe falava na língua quase comum. E, a cumular tudo isso, uma sociedade que procurou o caminho da reconciliação consigo própria, transformando-se numa democracia plena, que a atenuação das desigualdades reforça no dia-a-dia.

A prosperidade de uns tempos felizes trouxe os portugueses para as praias do Nordeste, onde aprenderam a apreciar a amenidade das gentes e se deliciaram com a descoberta de um “país sempre em férias”. Outros, mais engravatados nos negócios da modernidade, davam bom uso aqui aos capitais do novo ouro europeu, surpreendendo quem julgava que o português era prisioneiro eterno do bigode, do jeito fadista ou da postura seráfica, oscilando entre o bacalhau e a sardinha.

É que o imaginário do Brasil construiu-nos, pelos tempos, à semelhança de um imigrante-cliché, eternamente fixado na simplicidade do seu passado, rígido nos modos, linear na expressão, caricatura posta a jeito para a anedota fácil. Temos que saber entender que a “anedota do português”, quase sempre uma benigna erupção de alergia anti-colonial, é também, muitas vezes, um sintoma remanescente de alguma lusofobia, essa doença infantil da brasilidade que se espalhou por todo o século XIX e que parece ter deixado ainda uma marca residual em alguns sectores académicos e sociais contemporâneos. 

Com o seu mundo a mudar, o brasileiro mudou-se para o mundo e arribou a Portugal em doses maciças, desaguando num país do tamanho de Pernambuco e com a população do Paraná. A crise dos dentistas havia revelado que algum Brasil nos sentia ingratos. Sou dos que entendem que a onda recente de brasileiros, esse teste definitivo à nossa apregoada tolerância, pode dar sangue novo às nossas relações e contribuir para que, no Brasil, a imagem de Portugal se cole mais ao país que hoje realmente somos, um retrato eventualmente não tão inocente e bastante mais real, do que temos de bom e de mau. E com o turismo, que agora é também a partir de cá, a aproveitar a imensidão de voos da TAP, quero crer que os brasileiros vão, em poucos anos, entender o que nós já sabemos por aqui de há muito – que é possível estar no estrangeiro sem, verdadeiramente, deixar de nos sentirmos em casa.

Mas, também do nosso lado, Portugal vai ter de aprender alguma coisa mais. Vai ter de perceber, de uma vez por todas, que a sua relação com o Brasil tem uma assimetria inescapável e eterna. Para nós, o Brasil “é” português, é uma “criação” nossa e, por isso, crises à parte, ser pró-brasileiro em Portugal é a opção mais natural e óbvia, salvo na mediocridade xenófoba e minoritária de alguns “pixadores” anónimos dos muros da nossa própria imagem. 

Ora o Brasil é muito mais do que o que Portugal por aqui deixou, é uma sociedade onde africanos, alemães, japoneses, árabes, italianos e tantos outros se projectaram e ajudaram a construir um fantástico país, no qual livremente cultivam, sem qualquer pressão uniformizadora, as suas memórias e tradições. Por essa razão, porque não têm galos de Barcelos ou caravelas quinhentistas na sala, nada os obriga a reverenciar uma “terrinha” de onde não vieram os seus antepassados, de onde talvez só apreciem o bolinho de bacalhau ou o pastel de Belém, lugar de Lisboa que aliás não sabem muito bem onde fica – no que estão no seu pleníssimo direito. Por isso, quando a grande maioria de nós, portugueses, se junta a amigos brasileiros para apoiar, sem hesitação, o “escrete canarinho”, durante as “copas” por esse mundo fora, não devemos esperar uma retribuição idêntica. Temos de acordar para a realidade de que, em Blumenau, é a selecção alemã a escolhida ou que, na Móoca paulistana, a squadra azzura terá sempre preferência, pelo que a sorte do “time” português lhes será provavelmente indiferente, em especial depois da saída de Felipão.

Quem, em Portugal, não entender isto, não vai conseguir entender nunca o Brasil. O que não significa que nos não reste ainda muito em comum, a começar pela tolerância que permite esta sã convivência de culturas e pessoas – essa sim, uma das duas valiosas heranças que por aqui deixámos. A outra é a língua, soando diferente aos ouvidos, mas que liga ambos os países a outros continentes e que se procura agora evitar que se afaste na sua forma escrita, para melhor nos servir na nossa afirmação individual e colectiva pelo mundo.

Termino com duas constatações que são hoje as mais óbvias das ideias que formei no Brasil.

A primeira é que ter sido diplomata português no Brasil foi um privilégio que não trocaria por nenhuma outra experiência.

A segunda é que Chico Burque não tem razão: já não há 'tanto mar' a separar o Brasil de Portugal.

1 de dezembro de 2008

A independência de Portugal hoje

Há cerca de 40 anos, numa aula no então Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, cometi a ousadia de perguntar ao professor Adriano Moreira se, no prazo de algumas décadas, ele visualizava a possibilidade de Angola e Moçambique virem a ser países independentes. A pergunta estava longe de ser inocente e a almofada temporal que eu nela usava era apenas uma forma de adocicar uma questão que sabia ser altamente provocatória. O professor Adriano Moreira foi, como sempre, muito inteligente na resposta e disse-me que, se eu fosse capaz de definir o que o conceito de independência poderia significar, a essas décadas de distância, ele teria o maior dos gostos de me dar a sua opinião. Eu não sabia – ou não fui capaz de descortinar uma contra-resposta rápida – e a coisa ficou por aí.

O aspecto hábil da resposta escondia, contudo, um elemento muito verdadeiro – a questão do conteúdo da ideia de independência. E isso ajuda-me a introduzir o tema que gostaria de lhes trazer aqui hoje.
Faz hoje 368 anos, um grupo de nobres portugueses, cansados do modo como o corte madrilena tratava a aristocracia lusitana no quadro da nobreza ibérica, e aproveitando a atenção prioritária que Castela dedicava então a dissidências na Catalunha, desencadeou um golpe de Estado e colocou um dos seus no poder. Alguns historiadores pouco propensos à glorificação dos actos colocam ênfase menos no patriotismo e mais no sentido prático dos nobres envolvidos na conjura, que se sentiriam prejudicados nos seus interesses pela lógica de distribuição de poder por parte de Madrid. Quaisquer que tenham sido as motivações do acto, a verdade é que o momento terá sido muito bem medido, em termos de avaliação da relação de forças, o que é provado pelo facto de, não obstante tentativas posteriores de retomada de controlo por parte de Castela, ter sido possível assegurar, em permanência, a independência formal de Portugal a partir de então, pondo fim a um período de 60 anos de tutela espanhola.

Portugal era um país independente desde o século XII e esse é um facto que, associado à quase constância histórica das nossas fronteiras, nos traz um grande orgulho e que sempre afirmamos aos estrangeiros com alguma vaidade. Mas se olharmos para História com alguma atenção – e eu não sou um historiador, quero deixar bem claro –, torna-se evidente que a independência de que Portugal desfrutou teve características que variaram muito ao longo do tempo e das circunstâncias.

Independências

A independência que Afonso Henriques assegurou junto do Papa é muito diferente da independência que dom João tinha perante os ingleses, quando veio para o Brasil há 200 anos, como esta é diferente da que hoje possuímos no quadro da União Europeia.

Por isso, vale a pena interrogarmo-nos: a independência é um valor em si ou é um atributo meramente instrumental? O que é que liga, na História, estas diferentes independências? E, já agora, Portugal é hoje um país independente?

No plano dos princípios – ou mesmo da etimologia – ser independente é não ser dependente. Mas será que os Estados Unidos não são altamente dependentes do petróleo do Médio Oriente? No plano mais formal, poderemos dizer que é independente um país que tem possibilidade de afirmar a sua identidade política perante outros e que, para manutenção dessa identidade, não precisa da tutela alheia. Daí que talvez valha a pena perguntar: a República turca de Chipre Norte é um Estado independente, quando apenas a Turquia a reconhece? A Ossétia do Sul e a Abcásia são países independentes, quando necessitam da tutela de Moscovo para se manterem formalmente como tal? Aliás, por aquelas bandas, lembram-se certamente da famosa Comunidade de Estados Independentes (CEI), criada efemeramente após a implosão da União Soviética. A maioria desses Estados achou que tinha de ser mesmo independente e rapidamente esqueceu tal Comunidade. E pode ser-se independente dentro de uma Comunidade? Lá iremos…

Um interessante caso de transição é o Kosovo, que foi uma província da Sérvia até que a Comunidade internacional o colocou numa espécie de limbo, quase semelhante a outros Estados e regiões sob tutela que surgiram no século XX. O Kosovo declarou a sua independência e esta tem vindo a ser reconhecida, quase a conta-gotas, precisamente pela mesma Comunidade internacional que havia decidido que o seu estatuto futuro teria de ser decidido de outra forma.

No passado, o reconhecimento da independência dos Estados começou por ser papal, depois passou, na prática, a ser feito pelos outros Estados, em especial pelos mais poderosos. Hoje, o reconhecimento deriva dessa entidade difusa que é a Comunidade internacional, o que significa um misto do reconhecimento pelos restantes Estados e pela estrutura que os congrega no plano multilateral – as Nações Unidas. Mas tendo sido embaixador junto das Nações Unidas, posso assegurar-lhes que por lá andam muitos países, com direito de voto na Assembleia Geral igual ao dos Estados Unidos ou da China, que de independentes só têm o nome…

E Portugal – para voltarmos ao âmago desta conversa – é hoje um país independente? Portugal perdeu independência quando perdeu o seu império colonial? Portugal é menos independente desde que é membro da União Europeia? E a França? E a Alemanha? São menos independentes desde que fazem parte da União Europeia?

O conceito de independência traz consigo a questão simbólica do reconhecimento do Estado. Sem querer enveredar pelo Direito Internacional, mas exclusivamente pela dimensão cultural e política da questão, eu diria que um Estado independente é aquele cuja população vive sob a mesma bandeira e numa mesma unidade política – internamente gerida da forma que quiser. Muitas vezes, como é o nosso caso, essa independência acarreta o peso de uma longa Historia, de uma identidade que favorece o auto-reconhecimento colectivo dos seus cidadãos, tendo uma língua e cultura comuns. Portugal está perfeito nesse retrato, como perfeita estaria a nação curda se a deixassem organizar como Estado – diga-se de passagem.

Somos independentes?

Mas somos, de facto, independentes? Algum país o será?

Economicamente, estamos longe de o ser. Dependemos do investimento estrangeiro, dos mercados externos para os nossos produtos, da energia estrangeira e dos produtos importados para o nosso consumo e equipamento. Estamos hoje na moeda única, não podemos fazer desvalorizações para promover exportações, não temos autonomia para decidir o nível das taxas de juros praticadas pelos nossos bancos. Mas o que teria acontecido a Portugal se, perante o recente deslizar das contas públicas para financiar o bem-estar, não estivéssemos protegidos pela protecção do “euro”?

Em matéria de defesa, se fôssemos alvo de um ataque externo, que hipóteses teríamos de reagir? As mesmas que tivemos na Índia. Isto é, nenhumas. E politicamente? Integrados no bloco ocidental, membros da NATO e da União Europeia, o que aconteceria a Portugal se acaso decidisse apoiar causas internacionais impopulares?

Mas, por outro lado, como teria sido possível promover a causa timorense, bloqueando, por anos, os acordos entre a União Europeia e a Asean, para isolar a Indonésia, se não estivéssemos nas Comunidades Europeias? E que hipóteses teríamos de ser os promotores da Parceria Estratégica entre a União Europeia e o Brasil e, dessa forma, mostrarmos o nosso peso na reorientação da política exterior europeia?

Confesso que, com o decorrer dos anos, e não obstante ter um grande orgulho histórico nas raízes da nossa independência – e esta ser, provavelmente, das poucas coisas pela qual me vejo a arriscar a vida – associo-a hoje a uma visão bastante mais pragmática. A independência é-nos útil para aculturar um projecto comum, assente em alguns pontos de consenso nacional e para garantir a preservação daquilo que, em cada momento, são os interesses que consensualmente entendemos dever defender.

Os interesses portugueses

Mas os interesses não são nem foram sempre os mesmos. Num passado não muito distante, esses interesses eram identificados com a preservação das colónias, das possessões ultramarinas ou do ultramar – só para utilizar três formulações que o regime caído em 25 de Abril de 1974 usou em momentos distintos. Ora o império foi-se com os ventos da História mas a nossa sabedoria – a sabedoria do nosso regime democrático português, sublinhe-se – foi capaz, depois de um longo e laborioso processo, de recuperar os traumas provocados por uma descolonização que só teve de ser apressada porque foi tardia. E é importante que se diga – porque alguns teimam em esquecê-lo – que a política colonial portuguesa, desde a Índia aos três teatros de guerra que tivemos em África no século XX, nos criou um ambiente de má-vontade internacional que demorou décadas a superar.

Hoje as coisas evoluíram, como evoluíram os protagonistas desses conflitos. Estamos com os países africanos que falam português a trabalhar no quadro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em temas em que o Brasil está cada vez mais presente. Mas alguém terá a coragem para dizer que houve alguma virtualidade em ter mantido uma guerra de 13 anos em Angola ou de 10 em Moçambique e na Guiné? A nossa independência passava por aí? Ou não passa muito mais pelo entendimento fraterno que hoje estamos a desenvolver e que poderia ter começado a gerar-se mais cedo, se uma solução negociada tivesse sido assumida como possível, desde a década de 50?

Sei que este é um terreno polémico, mas há que dizer que os interesses de Portugal, como nação independente, assentam hoje nesta magnífica capacidade de nos termos sabido reconciliar connosco mesmos, neste sentido de descoberta de um novo destino, que pode não ser tão glorioso e heróico à luz das epopeias históricas, mas que é singelamente útil a todos nós. Esse destino é saber aproveitar a democracia, a liberdade, o usufruto da nossa cultura e a nossa inata capacidade para nos relacionarmos com todos.

O mundo multilateral

Perguntar-se-ão alguns se, ao entregarmos alguma gestão do quotidiano aos braços das instituições internacionais em que participamos, não estará a nossa independência em risco. Em minha opinião, o actual quadro de inserção de Portugal na ordem internacional, podendo formalmente aparecer como beliscando um tradicional conceito de independência, e mesmo como gerador de novas dependências, é aquele que melhor serve os interesses do nosso país. Senão vejamos alguns exemplos.

Em matéria de defesa e segurança, e tendo em atenção a nossa insuperável debilidade, a pertença a uma organização de defesa colectiva – como é a NATO – que tem no seu cerne a preeminência dos interesses dos Estados que a compõem e uma cultura de entendimento em torno de valores comuns, é a nossa única protecção eficaz no mundo de hoje. Independência no seio da NATO impõe, contudo, que saibamos posicionar-nos de forma a preservar os paradigmas fundamentais que fizeram o sucesso da organização, adaptando-os às novas realidades em termos de ameaças, mas evitando tentações de extrapolação de objectivos que podem pôr em causa a sua própria identidade.

Numa outra área, como é a segurança pública, atento o carácter transversal da criminalidade e das novas ameaças, julgo evidente que só uma participação activa e cooperante num quadro internacional alargado tem condições de nos dar o mínimo de capacidade para a preservação dos nossos interesses. Mas ser independente no quadro dessa política é, da mesma forma, ter a coragem de carrear para o debate europeu as temáticas da luta contra a intolerância, o racismo e a xenofobia, a necessidade de respeito pelo Direitos Humanos, de atenção às minorias, de defesa de políticas migratórias sãs e solidárias.

Em matéria de integração política, económica e social, por determinantes geográficas e económicas, a pertença à União Europeia é a melhor garantia de que os nossos cidadãos têm o usufruto de um espaço comum para a sua realização, marcado por uma cultura democrática, de defesa de liberdades e como fonte de progresso e desenvolvimento. A Europa comunitária é um pólo de estabilidade no mundo mas, no seu seio, devemos sempre lutar pela adopção de uma visão aberta e cooperativa com áreas like-minded, como é geralmente o caso dos Estados Unidos e da América Latina.

Por razões óbvias, e para um país como Portugal, ter uma voz independente na definição da política externa da União Europeia significa também, por exemplo, lutar para definir uma estratégia solidária para a África e para a América Latina, ajudar a desenhar rotas para a paz e segurança nas várias regiões do mundo e garantir que a Europa se mantém na linha da frente dos processos multilaterais de ajuda ao desenvolvimento.

Em termos da promoção de valores à escala global, e para além de trabalhar para a respectiva aculturação no quadro da União Europeia, importa destacar que Portugal dispõe hoje de uma posição altamente confortável no quadro das Nações Unidas. Aí somos vistos como um poder moderado e moderador, com importantes laços com África, com um registo muito positivo de diálogo com o mundo árabe, com um excelente relacionamento com a América Latina, com um património histórico de prestígio em muitos lugares do globo. Quando fui embaixador na ONU, pude testemunhar esse imenso capital de simpatia de que o Portugal democrático hoje dispõe no quadro internacional, não obstante termos meios económicos muito limitados para sustentar de forma significativa políticas activas de cooperação e ajuda ao desenvolvimento. Portugal é visto, no quadro mundial hoje, um soft power que – acreditem! – joga numa divisão acima daquela que o seu peso demográfico e económico justificariam, com uma capacidade de interlocução muito superior a países mais ricos da nossa dimensão.
Será que isto não reforça a nossa independência? Ou será que éramos mais independentes quando vivíamos acantonados pelo mundo nas organizações internacionais e “orgulhosamente sós” contra a História?

Por que razão isso acontece hoje? Isso é produto de estarmos fixados no imaginário do mundo como um país com uma longa história, com interesses materiais limitados, mas com uma projecção cultural muito interessante – que a expansão da língua portuguesa tenderá sempre a potenciar. O grande desafio que se nos coloca é sabermos utilizar este poder cultural e humano que fomos criando, não obstantes alguns recuos históricos, para, em conjunto com aqueles Estados e povos que nos acompanham nos mesmos terrenos, construir uma mais alargada identidade colectiva à escala global. E o Brasil é, sem a menor dúvida, o parceiro nº 1 para essa nova aventura. Essa é, nos dias de hoje, a chave para afirmar um voz portuguesa própria no cenário internacional. À luz dos interesses que, nos dias de hoje, nos compete defender, essa é a chave da nossa verdadeira independência.

Texto baseado na intervenção proferida no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, em 1 de dezembro de 2008