1 de novembro de 2013

A Europa possível?

Se acaso fosse necessária uma prova indireta do êxito do processo europeu, ela estaria no facto de ser evidente que é à escala da Europa que hoje problematizamos o essencial do nosso destino como país. No entanto, isso não deixa de estar em relativa contradição com a circunstância de ser a nível nacional que as principais respostas políticas para a resolução desses problemas têm de ser assumidas. E essa eventual contradição afeta hoje, também entre nós, a imagem da Europa.
Poder-se-á argumentar que estamos num período de transição, em que a maturação europeia das soluções só lentamente começa a fixar-se. Pode ser que assim seja, mas isso não atenua o evidente desconforto que atravessa as nossas sociedades, incapazes, pelo menos por ora, de encontrarem um ponto confortável de coerência entre uma macro-estrutura europeia que se impõe como inescapável “template” e, por outro lado, a disfunção provocada por uma diversidade, muito pouco harmónica, de modelos institucionais de natureza nacional, hoje agravada pela diferente exposição dos países aos efeitos da crise económico-social à escala global.
No essencial, fica crescentemente patente que a Europa parece estar a pagar um preço elevado pela recente aceleração da História – por muito que este conceito seja, em si mesmo, contestável. Nas suas décadas de existência, o modelo europeu sempre constatou a necessidade de completar plenamente as suas sucessivas etapas de construção, utilizando-as como base de assentamento para os passos seguintes de integração sectorial, alguns dos quais só se impuseram, como necessidade mais ou menos imperativa, após a plena consciência do sucesso e relativo completamento dos anteriores.
O fator “tempo” veio assim a revelar-se um elemento essencial para a construção da aceitabilidade pública dos sucessivos processos integradores, só atenuado por urgências geopolíticas (como foram os alargamentos) ou por surtos de conjuntural euro-entusiasmo (como o mercado único ou a construção do euro). Quando Jacques Delors falava da “bicicleta europeia” (a qual, se parasse de prosseguir, cairia para o lado), estava a tentar forçar essa realidade, a provocar as consciências, tentando fazê-las entender que o ritmo a que o processo de integração se tinha desenvolvido no passado começava a ser menos compatível com as exigências que se colocavam à Europa. Isso tanto era válido face aos problemas tido como internos ao continente, como o era perante a iminência do surto de globalização que se aproximava no horizonte, sendo que ambos os movimentos rapidamente se revelaram interdependentes.
Esta desconformidade temporal, entre a urgência forçada pelas circunstâncias e a muito diversa disponibilidade das várias opiniões públicas para aceitarem novos passos integradores, veio trazer à discussão aquilo que hoje se converteu numa questão central, que está claramente por detrás de muitas das perplexidades que atravessam o processo europeu: a questão da legitimidade das decisões políticas à escala europeia.

A representatividade na Europa

As instituições europeias são vistas, pela generalidade dos cidadãos, como não dispondo ainda de um grau de representatividade que possa justificar a sua preeminência sobre os sistemas políticos nacionais. Por essa razão, vive-se num limbo de poder, em que os parlamentos nacionais reivindicam a última palavra, ancorados na legitimidade dos seus eleitos e na necessária “accountability” destes perante os seus eleitores. Por muito que o politicamente correto europeu tente consagrar a importância crescente do Parlamento europeu no processo de decisão, conferindo-lhe novos poderes, a verdade é que, não havendo uma opinião pública europeia – mas 27 opiniões públicas nacionais, mobilizadas por diferentes agendas de interesses e preocupações -, é à escala nacional que as respostas políticas essenciais têm ainda de ser dadas.
Ora a tomada de decisões europeias, com impacto sobre todo o tecido da União, em especial nos dias subsequentes ao Tratado de Lisboa, faz-se sob um peso muito diferenciado dos países que se sentam à mesa dos Conselhos europeus de ministros. Um ministro português e um ministro alemão não têm a mesma capacidade para fazer valer os seus interesses. No entanto, um eleitor português e um eleitor alemão, ao colocarem o seu voto na urna, estariam, na aparência, a escolher titulares com um idêntico mandato. É perante a progressiva consciência dos eleitores de que, ao selecionaram os seus representantes, estão a mandatar figuras com uma abissal diferença no poder de influência sobre decisões que a todos importam que, subliminarmente, começa a minar-se a legitimidade dos agentes políticos que representam os Estados menos poderosos.  
Esta crise de legitimidade de alguns agentes políticos nacionais perante os seus cidadãos converte-se num fator altamente preocupante para o funcionamento dos sistemas políticos nacionais. Com efeito, em muitos casos, os eleitores começam a perceber que estão a escolher mandatários cujas mãos estão “atadas” à partida, cuja capacidade de influência nas decisões que lhes importam é cada vez mais limitada. E isto põe claramente em causa a autoridade democrática à escala nacional.
Dir-se-á que, atenta a bondade intrínseca do processo europeu, os cidadãos podem tender a dispensar essa expetativa de um efeito direto da representação nacional nas decisões tomadas em Bruxelas, confiando que uma progressiva integração acabe por resolver os seus problemas, “europeizando” cada vez mais os processos de legitimação dessas decisões. Talvez isso devesse ser assim, mas não é. Os cidadãos europeus só se mostram abertos a aceitar “mais Europa” quando se sentem confortáveis com a Europa que já têm ou quando pressentem que é a via da integração aquela que melhor protege o seu futuro ou, em tempos de maior crença, onde melhor conseguem ancorar as suas esperanças políticas. Ora os tempos não parecem ir por aí. E enquanto assim não for, a resistência à mudança continuará, agravada pelo conhecido facto de muitas das vantagens trazidas pela Europa serem vistas como “taken for granted” e não colocadas a crédito do processo integrador. Esta “ingratidão” funciona contra a Europa, mas parece hoje inevitável, num ambiente político onde os dirigentes não favorecem um proselitismo otimista em favor do processo integrador, antes utilizam frequentemente Bruxelas como bode espiatório para a insatisfação dos seus eleitorados.

Efeitos institucionais da crise

A crise económico-financeira, e a necessidade de lhe dar resposta urgente através de decisões constrangentes e disciplinadoras sobre as vontades nacionais, veio introduzir novos fatores de tensão no modo como as opiniões públicas nacionais interpretam essa sucessão de gestos políticos, cuja coerência não é imediatamente percetível, até porque são interpretados, justa ou injustamente, como “remendos” de natureza conjuntural, cuja ausência de efeitos imediatos contribui para afetar a imagem da sua racionalidade. Daí decorre também a crescente dificuldade de aceitação dos processos de legitimação dessas mesmas mudanças no quadro político-constitucional de cada Estado.
Estamos assim, e uma vez mais, perante o eterno debate entre “eficácia” e “legitimidade”, que sempre esteve subjacente ao processo de construção europeia. Como é sabido, e por muito tempo, o caminho europeu foi sendo seguido num discreto movimento de aproximação/harmonização que privilegiava a primeira dessas ideias, justificando-a com a coerência indispensável ao desenvolvimento de algumas das dimensões económicas que iam estruturando o tecido integrador. Recorde-se, a propósito, que poucos foram os que então alertaram, nomeadamente aquando do entusiasmante projeto do “mercado interno”, para o facto de que ele dificilmente seria sustentável se não fosse complementado por um trabalho conjunto em terrenos que, habitualmente, se situavam perto do “core” das soberanias nacionais. E o avanço da União por esses terrenos revelou-se muito difícil de desbravar.
Pode dizer-se, com alguma simplicidade expressiva, que a Europa está a ser vítima do seu próprio sucesso. Sendo verdade que há muitas outras razões para explicar o “malaise” europeu, a verdade é que o fantástico êxito que rodeou o processo de integração foi criando expetativas que vieram a revelar-se menos conformes com a hesitação que tem vindo a ser demonstrada na descoberta de soluções atempadas para enfrentar as recentes crises. Uma vez mais, parece evidente que o ritmo de adaptação das instituições europeias está desfasado das exigências do quotidiano político-económico e que isso tem consequências muito negativas no modo e na competência da Europa para responder ao desafio das crises.
A história da União Europeia já demonstrou que, por muito que se tente edulcorar a racionalidade intrínseca ao projeto, este foi sendo construído num balanço, nem sempre muito harmónico, entre as condicionantes que o tempo ditou e a gestação da vontade comum interna de lhes fazer corresponder os necessários avanços institucionais, suscetíveis de enquadrarem as novas realidades emergentes. Goste-se ou não, a política da “navegação à vista” foi sempre a linha condutora do processo de integração. E nem por isso, reconheça-se, as coisas funcionaram menos bem.
Com os sucessivos alargamentos a introduzirem uma diversidade que foi muito para além daquilo que, há uns anos, era imaginável como gerível, a União comporta-se hoje como um organismo sob constante “stress”, com uma capacidade de reação às situações fortemente limitada por condicionantes nacionais que teimam em não desaparecer. Além disso, o seu discurso agregador, que durante muito tempo continha uma dose de idealismo que motivava setores nas suas diversas opiniões públicas, e no plano externo convertia a Europa num “soft power” de esperança, perdeu já muito do sentido solidário e vive hoje marcado pelo pragmatismo de uma mera gestão de egoísmos.

A hipótese federal

Perante este impasse, na busca de um modelo funcional onde a eficácia dos mecanismos seja compatível com o sentimento de legitimidade das decisões, a ideia federal voltou a surgir, curiosamente sugerida agora através daquilo que era a improvável via da crescente harmonização na área financeira.
O modelo federal fez parte do imaginário europeu desde o início do processo integrador. Os grandes ideólogos da “Europa unida” mantiveram-no como referente último, como uma espécie de “amanhãs que cantam”, que surgiriam numa alvorada de racionalidade e de entusiasmo dos povos do continente. A ambiguidade permanente em torno desse modelo último é talvez a prova mais evidente de que o realismo os fazia hesitar em ir muito longe na explicitação do projeto.
Algumas figuras, hoje incensadas na hagiografia bruxelense, sonharam um dia com uns “Estados unidos da Europa”, eventualmente sob um formato atípico que conseguisse compatibilizar as idiossincrasias nacionalistas que haviam conduzido às tragédias passadas. Porém, há a sensação de que, salvo em alguns escassos países cuja própria existência pode depender do sucesso do processo europeu, a mitologia federal foi apenas mantida politicamente como um pano de fundo distante, como um apelo afetivo a um movimento no sentido de uma crescente aproximação/harmonização.
De facto, nunca pareceu que alguns importantes Estados europeus, em particular após os alargamentos que se seguiram ao tempo dos “seis” de Roma, revelassem uma disponibilidade para subsumir o seu poder de afirmação num modelo em que, mesmo que apenas num único setor do aparelho institucional, viessem a surgir equiparados a países de menor dimensão. Ou melhor, talvez estivessem dispostos a ir por uma via formalmente similar, mas apenas na condição do seu controlo do processo decisório ser garantido por um qualquer método que pudesse garantir a prevalência do modelo de “diretório”.
O “Tratado de Lisboa” configura, aliás, a expressão formal do equilíbrio de poderes que os Estados de maior dimensão e poder económico consideraram essencial para virem a aceitar uma União com a diversidade introduzida pelos últimos alargamentos. Um equilíbrio que, de uma vez por todas e de forma aparentemente irreversível, anulou o caráter proto-federal que o papel da Comissão europeia chegou a prenunciar e reconduziu ao Conselho, no seu modelo de desigualdade objetiva de forças, o essencial da expressão da vontade política.
Uma coisa é evidente: mesmo se o cenário parece hoje implausível, há que assumir que a adoção de modelos de natureza federalizante teria, com toda a certeza, a capacidade de representar, bem melhor que o atual sistema, uma partilha equilibrada de soberanias e daria muito mais garantias, em especial aos Estados com menor capacidade no processo de representação de poder.

Que fazer?

Perante o estado atual do projeto europeu, em face da diversidade das situações que o mesmo é obrigado a comportar e, muito em especial, como forma de fazer frente às dinâmicas financeiras que o ameaçam na sua estabilidade, os dirigentes europeus optaram por tentar um modelo de governança financeira que se exprimiu no “Tratado orçamental”, eventualmente a ser complementado por um conjunto de outras regras de governo coletivo (União bancária, entre outras), algumas das quais ainda por consensualizar por completo.
Esse tratado mais não foi do que uma tentativa, só parcialmente bem sucedida, de apaziguar os humores dos mercados e criar a expetativa de um tendencial cumprimento de regras comuns. O caráter radical de algumas das medidas nele previstas, associado ao tradicional tropismo europeu para uma flexibilização de regras, quando algum dos principais parceiros nele vier a sentir-se desconfortável, não augura a sua sobrevivência gloriosa e, muito menos, rigorosa.
A vida é o que é, e a da União Europeia também. Um juízo de meridiano bom-senso recomenda assim que procuremos, em prioridade, proteger o acervo do processo de integração já percorrido, muito em especial os fantásticos avanços conseguidos no mercado interno e, nesse âmbito, os ganhos das diversas liberdades introduzidas no espaço europeu. Por forma a tornar o processo europeu compatível com a inescapável diversidade dos seus componentes, a via de uma integração diferenciada, ou de “cooperações reforçadas”, é aquela que surge como a resposta mais evidente e mais prática.
Dir-se-á que, desta forma, se está a optar por um modesto “possibilismo” europeu, sem ambição e sem garra mobilizadora, perante as opiniões públicas. Talvez isso assim seja, mas o bom-senso aconselha, num tempo onde os grandes entusiasmos parecem colocados a recato, recolhidos nas gavetas da História, a que se aposte no essencial, no adquirido sem grandes contestações, à espera de melhores dias. A Europa é demasiado importante para que corramos riscos desnecessários.

Nós na Europa

A atual posição de Portugal no contexto da União é de uma inédita debilidade. Por um lado, a sua fragilidade económico-financeira, sem possibilidade de ser invertida de forma significativa a médio prazo, induz-lhe hoje um afastamento face aos interesses médios que se projetam no processo decisório comunitário. Neste último, a irrelevância objetiva do país, substancialmente agravada pelo Tratado de Lisboa, e cumulada ainda com o irrecuperável esbatimento da função arbitral da Comissão, configura um quadro crescente de riscos para a capacidade do país conseguir assegurar uma proteção eficaz no âmbito do Conselho. Por essa razão, talvez mais do que no passado, importa a Portugal desenhar uma postura eficaz na coreografia europeia, procurando furtar-se a todos os fatores que apontem para a sua imersão num novo ciclo de periferização.
Para o nosso país, nenhum modelo plausível de enquadramento externo, alternativo ao da União Europeia, foi até agora apresentado com uma consistência que mereça um mínimo de credibilidade. Já um cenário fora do euro pode ser debatível, mas somos levados a considerar que todos os esforços que possam ser empreendidos para que o país se mantenha na moeda única, por maiores que eles possam ser, serão sempre inferiores ao custo que Portugal teria de suportar se acaso viesse a sair do euro ou a ser colocado num limbo monetário secundário.
Assumida assim esta opção integradora, as alternativas não são muitas. Assim, e para pôr as coisas muito claras, parece óbvio que Portugal terá que se conformar com a aceitação do conjunto de medidas de natureza económico-financeira que venham a ser definidas para a governabilidade da zona euro.
Mas não há uma única forma para o país se situar nesse debate. Portugal não tem, necessariamente, de interiorizar uma política seguidista de subserviência aos modelos que lhe sejam propostos. O grande mito incutido nos últimos anos foi o de que a situação devedora do país lhe limitava, quase em absoluto, a margem de manobra negocial externa. Não contestando que essa margem se estreitou, é tarefa de qualquer governo competente conseguir relevar, à escala da interlocução externa, os efeitos nefastos, no plano sócio-económico e político, do modelo de ajustamento que é favorecido pelos seus credores, sublinhando com firmeza as consequências concretas das medidas adotadas sobre o equilíbrio do seu tecido interno – que está longe de ser irrelevante para a Europa. Para isso, sem ficar preso a modelos ideológicos ou a “fezadas” doutrinárias de gabinete, compete a quem dirige o país o dever de gizar políticas de alianças que apontem para toda a inflexão que for possível conseguir, com vista a alterar as políticas de rigor em curso.
Para tal, Portugal tem de abandonar, muito rapidamente, o discurso de culpabilização em que se deixou enredar, do qual decorre a aceitação automática de um conjunto constrangente de medidas que já se provou que asfixiam o futuro do país, da sua economia, a legitimidade das suas instituições e, mais do que tudo, induzem um ambiente de desânimo e descrença sobre o qual não é possível reconstruir qualquer projeto nacional consensualizado.
No plano europeu e mundial, todos os compromissos estão sujeitos, em permanência, à aferição diacrónica das medidas com os termos de referência que estiveram na base do seu desenho original. Tudo se negoceia e renegoceia a todo o tempo, em especial se for patente, como é evidentemente o caso, que muitas das condicionantes que se impõem ao devedor relevam de fatores que este não pode controlar. Só o saldo final desse debate, que é técnico mas essencialmente é político, e no qual o bom senso e a ética cívica recomendam que nos coloquemos do lado que acarrete menos efeitos gravosos para o Portugal dos nossos dias, é que corresponde àquilo que nos devemos disponibilizar para aceitar.  
A vida europeia de qualquer país não se esgota, contudo, nestas dimensões económico-financeiras, embora, nos dias que correm, elas sobredeterminem como nunca o nosso quotidiano. Outras áreas existem em que o empenhamento de Portugal no projeto europeu pode e deve continuar a expressar-se com a possível visibilidade. No passado, o voluntarismo colocou-nos em todas as formas de integração diferenciada. No futuro, a simples determinação política pode revelar-se insuficiente para sustentar essa constante postura centrípeta. De toda a forma, a experiência demonstrou claramente que foi graças a um subliminar compromisso político, de natureza transversal no espetro partidário relevante, que se foi gerando a filosofia integradora que marcou a nossa atitude como país, desde a adesão às instituições europeias. Esse compromisso, para não dizer consenso, permitiu construir uma postura pró-ativa em todas as áreas de intervenção europeia, que contrasta, de forma chocante, com a atual posição reativa e tímida, que projeta uma imagem de resignada impotência e de dependência fatalista.  

* Texto publicado na revista "XXI - Ter Opinião", 2014

16 de outubro de 2013

A política externa portuguesa e Angola

Num dia dos anos 80, numa conversa em Luanda, quando era por lá diplomata, uma figura que viria a ter responsabilidades nas relações externas daquele país disse-me, mais ou menos, esta frase: "O peso da guerra colonial é muito forte. Portugal e Angola estão "presos", um ao outro. Umas vezes, isso será uma coisa boa, noutras vai ser bastante má. O futuro estará nas mãos dos que melhor souberem gerir a impaciência e a irritação que, durante muitos anos, vai continuar a existir entre nós". Isto foi afirmado num momento menos bom das relações bilaterais, com guerra civil angolana e fortes tensões entre Luanda e Lisboa. Lembro-me dessa frase muitas vezes e ainda não encontrei razões para infirmar a sua justeza.

Durante quase quatro décadas de diplomacia, assisti a todos os registos possíveis na atitude portuguesa face a Angola. Não os vou tipificar a todos, mas sempre direi que foram desde um seguidismo quase subserviente, para "não aborrecer o Futungo", até a atitudes de grosseira ingerência na vida interna do país, deliberadamente provocatórias para o governo de Luanda. No primeiro dos casos, por "realpolitik", económica ou estratégica, noutros casos pelo exacerbar de raivas de quem parece não se conformar com o fim do prazo de validade da atitude neo-colonial. Ambas as posturas permanecem ainda hoje por aí, continuando a ser caricaturalmente ridículas. E perigosas.

A primeira apressa-se a calar qualquer reação a tudo quanto emane, oficial ou oficiosamente, de Luanda. Perante declarações de responsáveis ou editoriais furibundos da imprensa local, que descarregam ácidos comentários sobre Portugal e a figura de alguns portugueses, a propósito da atitude da nossa Justiça face a atos praticados por cidadãos angolanos em território português, logo surge a conhecida legião dos "angolorealistas" a recomendar silêncio, à luz da sacrossanta proteção dos "interesses portugueses em Angola". Nalguns casos, a tese do “apaziguamento” vai até onde agora se viu.

A segunda é a velha escola da contestação da legitimidade do MPLA e das autoridades políticas angolanas em geral. Num primeiro tempo, essa doutrina apoiava-se numa patética hagiografia da UNITA, titulada pelos utentes dos "Jamba tours", cegos para a barbárie do líder do “Galo Negro”. Mais recentemente, essa atitude transmutou-se e surge escudada nas preocupações éticas, apoiadas numa espécie de “droit de regard” paternalista, que parece autorizar a que Portugal possa dar-se ao luxo de ter opiniões firmes quanto ao modo como os angolanos, não apenas organizam o seu poder político, mas a própria distribuição interna dos seus recursos.

A relação entre Portugal e Angola é demasiado importante para ficar limitada por esta dicotomia. Como antigo profissional da diplomacia portuguesa, só posso lamentar que o nosso entendimento bilateral com Angola esteja, em permanência, dependente de humores induzidos do exterior ou motivada por agendas ideológicas. Da mesma forma, a nossa política externa não pode continuar num tropismo quase exclusivamente reativo, enredando-se, ciclicamente, em epifenómenos tristes e degradantes. E, embora nada tendo a ver com isso, devo admitir que isso possa também corresponder também ao interesse de Angola, um Estado com um crescente perfil internacional, uma potência regional que não parece poder ter a menor conveniência de deixar-se arrastar, diretamente ou por intemediários oficiosos, numa espécie de esquizofrenia diplomática com a antiga potência colonial, a qual, a prolongar-se neste registo, se arrisca a conferir-lhe uma imagem de imaturidade no plano internacional.

Separemos, de uma vez por todas, as coisas: à Justiça o que é da Justiça, à política o que é da política!

Meço bem estas palavras: aos responsáveis angolanos deve ser dito, de forma clara e frontal, que não podemos deixar de considerar inamistosos comentários oficiosos, ou sem visível reação de distanciação oficial interna, que põem em causa a imagem de Portugal, bem como a honra e o funcionamento das nossas instituições judiciais, a pretexto de incidentes que envolvam figuras angolanas no nosso território; da mesma forma que não seria admissível, da parte oficial portuguesa, a expressão de suspeitas sobre o comportamento da Justiça angolana, num conjunto de casos em curso, que, embora pouco conhecidos, envolvem hoje interesses e a liberdade de cidadãos portugueses que vivem ou trabalham em Angola.

Cá como lá, nenhum operador da Justiça está acima da crítica, mas convém lembrar que os sistemas judiciais dispõem de meios próprios de contestação e recurso, que permitem regular posições que se opõem. A Justiça faz-se nos tribunais, não nos jornais. E, em Angola como em Portugal, ela deve atuar de forma independente, sem atender aos apelidos e às “cunhas”.

Temos o dever, de uma vez por todas, de acabar com a ideia de que Portugal e Angola são dois países eternamente reféns um do outro, através de misteriosas conspirações, chantageados por interesses ou por ódios ideológicos ou outros. É obrigação dos responsáveis de ambas as partes dar passos através de um diálogo político frontal, no sentido de descrispar este ambiente, que não é salutar nem digno de dois Estados soberanos, unidos por muitos e legítimos interesses, que estão muito para além dos "fait-divers" de conjuntura.

Para o futuro, temos a obrigação de saber estruturar com Angola uma relação diplomática madura e sem tabus, por muito que isso possa desagradar aos "enragés" da vingança pós-colonial, de ambos os lados da fronteira, a qual, aliás, não existe entre nós. Resta a convicção, de que, com o tempo, e também de ambos os lados, esses persistentes militantes da acrimónia bilateral acabem por cair no "caixote do lixo da História", citando um clássico que, cá como lá, já esteve mais na moda.

*Artigo publicado no "Diário de Notícias" em 16.10.13.

5 de agosto de 2013

Voltamos ao Kosovo?

Um dia, a propósito da dimensão económica da nossa diplomacia, afirmei ao "Jornal de Negócios" que o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) necessitava de “mais batatas e menos Kosovo". Com a caricatura, que causou engulhos em alguns meios, queria significar que era importante garantir que o tropismo em favor das temáticas da pura política internacional não deveria fazer esquecer que a rede diplomática tinha obrigação de justificar a sua existência por uma crescente adequação à promoção dos interesses económicos externos - na tripla vertente do incremento das exportações, da captação de investimento estrangeiro e da atração turística. A isso acrescia a importância de manter nas Necessidades uma sólida massa crítica que permitisse executar diligências político-económicas junto de outros Estados para apoio aos negócios, bem como para superar obstáculos não pautais ao comércio, negociar instrumentos jurídicos para a facilitação das trocas e do investimento e, em geral, garantir que o país mantinha uma capacidade de interlocução de elevado nível, à escala europeia e multilateral global, capaz de bem defender os seus interesses.
A referência feita às "batatas" não era casual. Nos anos 70, era assim que a então Direção-geral dos Negócios económicos (DGNE) do MNE era designada, de forma depreciativa, lá pelas Necessidades. Mas "as batatas" dispunham então de uma elevadíssima capacidade técnica, coordenando, com reconhecida autoridade, praticamente toda a negociação político-económica que o país conduzia no exterior.
Em 1985, a DGNE veio a ser fundida com o setor político, sendo criada a Direção-geral dos Negócios Político-económicos (DGNPE). Confirmando as previsões de alguns, a dimensão política quase anulou a vertente económica. A necessidade de uma estrutura económica específica levaria, anos mais tarde, à criação do Gabinete de Assuntos económicos (GAE), cujas insuficiências foram sempre flagrantes. Após a mudança do ciclo político, em 2007, viria a ser criada a Direção-geral dos Assuntos Técnicos e Económicos (DGATE), com uma articulação com a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP), fruto da fusão da Agência Portuguesa para o Investimento (API) com o Instituto do Comércio Externo de Portugal (ICEP). Finalmente, com a alteração governativa de 2011, a DGATE desapareceu e optou-se pela “integração” da AICEP no MNE.
Para além da migração de alguns funcionários do MNE para a AICEP, a colocação formal (pela enésima vez!) dos seus delegados sob a tutela dos embaixadores e a descapitalização funcional das Necessidades, tudo continuou basicamente na mesma. O que verdadeiramente se processou foi a colocação da AICEP sob a tutela pessoal do ministro dos Negócios Estrangeiros, modelo que, aliás, parecia não estar a funcionar mal de todo. Agora, com a saída do MNE do seu anterior titular, é anunciado que ele leva consigo a tutela da AICEP, colocando-a nas novas áreas que passa a coordenar. É a cíclica reedição do “agora é que é!”: a cada mini-ciclo correspondem novas estruturas, sendo estas a adaptar-se às pessoas e não o contrário.
Se o novo modelo que aí vem é bom ou mau só o futuro dirá. O que me parece evidente, até prova em contrário, é que o MNE vai ficar a perder, em termos da sua densidade em termos económicos, o que nomeadamente afetará a cultura de envolvimento da rede de embaixadas e consulados no esforço económico externo. Com toda a criatividade retórica de que o discurso político é sempre capaz, virá por aí uma justificação sossegante para tudo isto, embrulhada numa linguagem hábil sobre a nova articulação interdepartamental, falando de "sinergias", “tutelas partilhadas” e coisas assim. Mas, em termos mais comezinhos e porque “sei do que a casa gasta”, temo muito que a nossa diplomacia volte a ter mais "Kosovo" e menos "batatas".
 
(Artigo publicado no "Jornal de Negócios", em 5 de agosto de 2013)

 

11 de junho de 2013

Europa - o dilema institucional

É vulgar dizer-se que o Tratado de Maastricht representou o primeiro momento de “revolta” das opiniões públicas, face a um processo de construção europeia que, até então, estaria a ter lugar nas suas costas, por acordos intergovernamentais, com escassez de escrutínio legitimador. Esta perceção parece ter sentido e talvez alguma natural justificação pelo facto de ter sido precisamente a partir desse tratado que as instituições comunitárias se aproximaram de áreas temáticas que, no passado, estavam em absoluto, reservadas aos processos nacionais de gestão de soberania.

As dificuldades verificadas em alguns referendos a que a ratificação desse tratado obrigou, bem como o surgimento de uma nova e mais sofisticada cultura de anti-europeísmo nas opiniões públicas de certos Estados, revelaram que as agendas nacionais de interesses e preocupações entravam num processo de alguma divergência. 

O Tratado de Amesterdão, na modéstia substantiva dos seus propósitos, procurou colmatar algumas disfunções que vinham de Maastricht, mas não foi tão longe quanto se pretenderia.

O Tratado de Nice tinha, para alguns, um objetivo bem mais prosaico, disfarçado por detrás de um desejo de aumento de eficácia: operar uma urgente reordenação do poder no seio do processo decisório. De forma não declarada, ele consubstanciava a tentativa de quantos se haviam habituado à preeminência relativamente fácil da sua vontade, na Europa que crescera até quinze membros, de poder garantir que tal capacidade se não perderia num modelo europeu que já se sabia então que viria a ser muito mais alargado. Mas Nice não foi suficiente, como se viu.

A declaração acordada em Laeken suscitou, então, novas questões, unindo, numa estranha ambiguidade de propósitos, quantos, genuinamente, queriam assegurar um impulso mais federalizante ao projeto integrador com aqueles que, numa ambição de diferente matiz, olhavam a Europa na lógica do seu controlo futuro, através de um modelo híbrido de intergovernamentalidade e comunitarização.

Do “Tratado Constitucional”...

A Convenção para o Futuro da Europa, dotada de um processo de produção de consensos mais do que discutível, foi a “mãe” de todos os equívocos que marcaram, a partir de então, o projeto europeu. Com ela se pretendeu criar um ambiente propício à aceitação futura, em todos os Estados, do novo “Tratado Constitucional” que resultaria desse exercício, através do envolvimento, a montante das ratificações, de representantes dos parlamentos nacionais e europeu, bem como de outros atores suscetíveis de facilitarem esse acolhimento. O projeto consagrava, contudo, pela primeira vez, uma subliminar expropriação dos poderes tradicionais da Comissão Europeia, única entidade à volta de cujo reforço de poder poderia, um dia, surgir uma Europa de matriz federal.

Ao conferir ao peso demográfico um papel muito relevante no processo decisório, o “Tratado Constitucional” operava, contudo, um corte epistemológico com a filosofia que tinha conduzido até então a Europa. A “décrochage” entre os maiores Estados e o brutal agravamento das diferenças de relevância de todos os outros induzia um inédito potencial de tensões e suscitava, de um momento para o outro, novas dúvidas e incertezas, a que as opiniões públicas não podiam doravante ser alheias.
 
A conjugação de vários e díspares fatores, em que o que ficou dito não deixou igualmente de ponderar, levou à rejeição do projeto de “Tratado Constitucional” pela França e pelos Países Baixos, quando o processo de ratificações ainda estava em curso, levando ao seu abandono formal.

... ao Tratado de Lisboa

Mas os seus promotores não desistiram e logo enveredaram por uma apressada retificação semântica, aliada a alguma cosmética substantiva destinada a contentar setores potencialmente relutantes, dando origem àquilo que veio a chamar-se o Tratado de Lisboa. A capital portuguesa, com laivos de duvidosa glória, ficou assim ligada a uma espécie de genérico do falecido “Tratado Constitucional”, o qual contém no seu seio todos os desequilíbrios interinstitucionais que este último já pretendia consagrar.

Com o Tratado de Lisboa, cuja ratificação a 27 se revelou um pouco mais fácil e foi feita com um sentido de urgência que nada objetivamente justificava, a União Europeia passou a dotar-se de uma complexa titularidade na sua direção quotidiana, cumulando fórmulas tributárias de óbvia intergovernamentalidade (o presidente do Conselho europeu) com a preservação de elementos do modelo comunitário (o presidente da Comissão europeia), numa simbiose que tem o seu expoente de conjugação operativa na criação de uma figura, sujeita a uma dupla tutela, que teoricamente chefia a representação externa comum da União. Face a esta tríade surge ainda, em evidente perda de velocidade institucional, a presidência rotativa.

A Europa institucional e a crise

A crise económico-financeira veio rapidamente colocar este novo modelo sob teste. Com o Reino Unido e a Polónia fora do euro e com a Espanha e a Itália em evidentes apuros, o chamado “eixo” franco-alemão tomou, com alguma naturalidade, as rédeas da gestão da reação europeia à crise, o que também foi claramente facilitado pelo perfil complacente dos titulares institucionais da União, os quais, desde o primeiro minuto, se revelaram disponíveis para se colocarem ao serviço dos poderes fáticos que se impunham. Não tinha sido outro, aliás, o objetivo da sua institucionalização.

Não obstante a coreografia do poder europeu ter surgido ancorada na relação entre Berlim e Paris, a realidade das coisas passou a mostrar que o verdadeiro “novo eixo” europeu se estabelecia entre Berlim e Frankfurt, sede de um Banco Central Europeu cuja nova liderança se revelou surpreendentemente eficaz e criativa, com a serenidade suficiente para se firmar como um positivo elemento estabilizador, embora só limitadamente pudesse forçar a dinâmica da vontade política de Berlim. Como contrapartida à efetivação dos novos mecanismos de apoio financeiro para ajudar à saída da crise, surgiu, entretanto, o Tratado Orçamental, que impõe modelos de condicionalidade, em termos de objetivos e de coordenação de políticas financeiras nacionais, que acrescem aos que o Pacto de Estabilidade e Crescimento tinha previsto como necessários para a regulação do comportamento macroeconómico que servia de cenário de fundo à zona euro.

O fim do sonho federal?

Olhando em perspetiva estas duas décadas, bem como o modo como nelas evoluiu o projeto europeu, é-se forçado a constatar que o aprofundamento desse projeto, a inclusão nele de novas valências que o tornaram bastante mais coerente, com um acervo muito apreciável, não foi de par com a gestação de uma vontade comum no sentido de se caminhar para um modelo verdadeiramente federal. As razões porque isso não aconteceu podem ter sido várias, mas basta lembrar algumas.

A heterogeneidade de culturas políticas introduzida pelos alargamentos pode ter sido uma dessas razões. Outra poderá ser o impacto diferenciado das políticas da União no tecido social dos diversos países, com uma visão de “ganhos-e-perdas” cada vez mais diversa, com os cidadãos a demonstrarem que só estão disponíveis para aceitar “mais Europa” quando se sentem confortados com a Europa que já têm, o que muito frequentemente não acontece. Essas disfunções ao nível dos Estados conduziram, além disso, à frequente perda dos consensos nacionais que se haviam criado em torno do investimento político no projeto integrador, com o surgimento, nos executivos nacionais, ou condicionando-os de fora, de formações partidárias que colocam abertas reticências ao compromisso europeu e não têm pejo em assumir agendas nacionais “egoístas”, antes dificultadas pelo “politicamente correto” que protegia a bondade da opção comunitária.

Nestas condições, parece estar a gizar-se um novo consenso, mesmo entre os mais euro-entusiastas, no sentido de que é hoje inviável, à escala da União como um todo, vir a concretizar um modelo federal dotado dos clássicos equilíbrios, com a ponderação das desigualdades demográficas a ser compensada pelo princípio da igualdade dos Estados, expressa num “senado” com representação equitativa. De facto, não me parece que já seja minimamente plausível que venha a haver condições para se criar, um destes dias, uma “câmara” onde Malta e a Alemanha tenham o mesmo peso...

A moeda como cimento?

Neste cenário de uma Europa com poderes nacionais muito desiguais e sem vontade de dispensar a consagração institucional dessa realidade, mesmo os mais euro-entusiastas parece terem já abandonado os sonhos de uma “grande União Europeia” e, numa opção de recuo tático, começam a colocar as suas cartas numa União política a construir em torno da moeda única, aceitando assim, explicitamente, um modelo de Europa diferenciada.

Esta espécie de federalismo funcional, que o Tratado Orçamental e o Mecanismo Europeu de Estabilidade pré-anunciam, parece ser, na realidade, o elemento mais consistente e unificador no mercado das possibilidades.

Duas grandes questões se colocam, porém. A primeira, a de saber em que medida será viável compatibilizar, de forma institucional simultaneamente aceitável e legítima, esse “núcleo duro” com o restante tecido da União, em matéria de condução política do projeto, tornando coerentes realidades que, com o andar dos tempos, tenderão forçosamente a ganhar ainda maior distância entre si. A segunda, bem mais importante, será saber se o próprio projeto de “cooperação reforçada”, que o núcleo em torno da moeda única parece pretender construir, tem, ele próprio, um cimento que vá para além do conjuntural estado de necessidade que a zona euro atravessa nos dias de hoje.

Alguns, mais otimistas, arguirão, porventura, que um eventual sucesso e uma saída da crise acabarão por desencadear uma vontade europeia nova em alguns Estados que hoje são atravessados por um evidente recuo cético. Isso, porém, só será possível de testar se e quando a Europa “der a volta” à presente crise, o que parece dever implicar a preservação, a todo o custo, da integralidade da atual zona euro. E até lá, neste domínio, as dúvidas sobrelevam as certezas.

Uma ironia se impõe: todos, no passado, consideravam que seria o sucesso do projeto europeu, o prosseguimento, sem pausas pelo caminho, da viagem da “bicicleta de Delors”, que iria fazer chegar o continente alargado aos “amanhãs” federais. Afinal, quem sabe se não acabaremos por pôr a crédito de uma crise a realização de um modelo, embora quiçá atípico, de desenho minimamente federal. Se assim acontecer, pode ser que alguém se lembre de atribuir à crise a virtualidade que alguém, um dia, conferiu à violência, tida como “parteira da História”...


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Os riscos de periferização

A irrelevância objetiva de Portugal no processo decisório europeu, substancialmente agravada pelo Tratado de Lisboa, cumulada com o irrecuperável esbatimento da função arbitral da Comissão, configura um quadro de riscos crescentes para a capacidade do país de assegurar os seus interesses no âmbito do Conselho. Se a tal se somar a atual crise económico-financeira, com efeitos diretos sobre a margem de manobra portuguesa, fácil é concluir que o cenário de um novo ciclo de periferização é real e, como tal, tudo deve ser feito para que seja evitado.

Todos os esforços que possam ser empreendidos para que o país se mantenha no euro, por maiores que sejam, serão sempre inferiores ao custo que Portugal teria de suportar se acaso viesse a sair da moeda única ou a ser colocado num limbo monetário secundário, como, por vezes, algumas vozes alvitram. A opção por uma reestruturação da dívida – isto é, o seu não pagamento parcial – teria, do igual modo, um efeito devastador e duradouro sobre a imagem externa do país, descredibilizando todos os esforços entretanto feitos.

Não obstante o voluntarismo que, no passado, colocou Portugal em todas as formas de integração diferenciada possa, futuramente, vir a não ser suficiente, face a modelos dependentes do potencial económico-financeiro, é forçoso continuar a consensualizar internamente uma atitude positiva e “centrípeta” face ao projeto comunitário, nomeadamento no âmbito dos parlamentos nacional e europeu.


Porque o modelo de “cooperação reforçada” em torno do euro se apresenta como aquele que, de forma mais plausível, pode vir a evoluir para um “núcleo duro”, embrião de uma União política, importa centrar nele a atenção prioritária da política que Portugal vier a ter para a Europa. Mas, nesse contexto, o país não deve ficar por aí: tal como sucedeu durante mais duas décadas, a atitude portuguesa deve ser inventiva e pró-ativa em todas as áreas da União, não apenas reativa e tímida, projetando uma imagem resignada de impotência e de dependência fatalista face ao que outros entendam que o país deve fazer. 

21 de fevereiro de 2013

Klaus Hansch

É para mim uma honra poder estar aqui hoje para fazer uma breve introdução, antes da palestra do nosso convidado, o sr. Klaus Hansch, a quem também dou as boas-vindas. Quero, antes do mais, começar por agradecer o amável convite que recebi do Instituto Português de Relações Internacionais e felicitar a Fundação Friedrich Ebert e o Instituto Goethe por esta iniciativa.

Klaus Hansch é uma figura conhecida nos meios europeus em especial pelo seu papel como presidente do Parlamento Europeu, entre 1994 e 1997.

Recordo-me de o ter visitado, nessa qualidade, imediatamente após ter assumido funções políticas na área europeia em Portugal. Guardo dessa visita, nos primeiros meses de 1996, uma forte impressão. Lembro-me que, na ocasião, nos confrontámos a propósito de um certo assunto de natureza institucional, no quadro da revisão do Tratado de Maastricht, naquilo que viria a ser o Tratado de Amesterdão.

Por esse tempo, Portugal, também por meu intermédio, tinha algumas posições algo reticentes nesse domínio e Klaus Hansch, de forma muito clara e frontal, deu-me conta do sentimento maioritário do Parlamento Europeu – que ia numa linha contrária ao nosso pensamento político-diplomático de então. Para o público aqui presente, talvez valha a pena recordar que a posição à época assumida pelo nosso país face à formatação institucional da Europa comunitária, na linha de uma escola doutrinária algo soberanista que por aqui cultivávamos, demorou algum tempo a evoluir.

O Parlamento europeu tinha uma visão muito mais aberta, que nos era transmitida por dois brilhantes deputados, de linhas políticas diferentes, que hoje tenho como amigos pessoais - Elisabeth Guigou e Elmar Brok. Com os anos, as coisas mudaram e a diferença entre a linha portuguesa e as posições mais avançadas do Parlamento europeu foi progressivamente atenuada.

Mas essa primeira conversa, nada fácil, com Klaus Hansch ficou-me na memória.

O nosso convidado nasceu em 1938, em Sprottau, tendo-se licenciado em Ciências Políticas em 1965 e doutorado em 1969. Enveredou por uma carreira de docência universitária, que exerceu até 1994, tendo antes feito uma curta incursão pelo jornalismo.

Politicamente, Klaus Hansch é, de há muito, membro do SPD, um dos partidos centrais do sistema político alemão, uma formação com uma influência determinante na formatação da posição do país na vida europeia, bem como em algumas das grandes opções geopolíticas assumidas pela Alemanha no quadro mundial. O nome de Willy Brandt aí ficou para a História.

A partir de 1979, Klaus Hansch ingressou no Parlamento europeu, onde assumiu sucessivas responsabilidades, nomeadamente no âmbito do Partido Socialista Europeu, antes de assumir a presidência da instituição, em 1994. Mais tarde, viria a ter funções relevantes nos trabalhos que procuraram abrir caminho para o Tratado Constitucional europeu: foi membro do praesidium da Convenção sobre o Futuro da Europa e representou o parlamento na Conferência intergovernamental que desenhou a malograda Constituição, de que o chamado Tratado de Lisboa acabou por ser uma espécie de genérico.

É assim importante podermos ter hoje o privilégio de ouvir uma pessoa com a experiência de Klaus Hansch falar-nos sobre a Europa e o nosso futuro. Por várias razões.

Desde logo, porque Klaus Hansch viveu por dentro uma outra Europa, um outro tempo do projeto europeu, um período de grande otimismo e de grande esperança, que levou a passos decisivos neste inigualável processo de construção da paz e progresso no continente. No tempo em que Klaus Hansch presidia ao Parlamento europeu, o euro não existia, o mercado interno estava no início da sua consolidação, Schengen começava a ser testado, o grande alargamento não se tinha iniciado. Hoje vivemos numa Europa muito diferente e será com certeza interessante podermos perceber como é que Klaus Hansch olha este novo mundo europeu, como avalia a sua solidez e, muito em especial, se acha que todos ainda estamos no mesmo comboio ou se, com cruel realismo, conclui que algumas carruagens, mais cedo ou mais tarde, estão condenadas a se desligarem desse ritmo comum.

Uma outra razão pela qual é importante ouvir Klaus Hansch é porque se trata de um político alemão que teve responsabilidades na Europa e a Alemanha começa a estar hoje para o projeto europeu como os Estados Unidos da América estão para a NATO – isto é, por muito que isso possa desagradar a alguns outros atores, tudo, na realidade, acaba por depender dela.

Devo dizer que, na minha leitura da Europa, o chamado eixo Paris-Berlim (antes Paris-Bona) deu fortes e decisivos contributos para avanços no processo europeu. Mas, com algum realismo e ironia, hoje acho que o grande eixo começa a ser o eixo Frankfurt-Berlim, em detrimento da influência da cidade onde vivi os últimos quatro anos. E, confesso, não fico muito feliz com isso.

Além disso, Klaus Hansch é da família política socialista, uma corrente que já viveu melhores dias na Europa mas que, mais cedo ou mais tarde, com o rodar natural dos ciclos, voltará a ter um papel importante nesse contexto. Seria, assim, interessante conhecer-se o que é que os socialistas têm a propor de decisivamente novo para a Europa e, muito em particular, importa ao eleitorado saber o que fariam ou farão de diferente, em matéria de propositura de políticas europeias, em especial perante o evoluir da presente crise.

Hoje em dia somos confrontados com aquilo que a Europa conservadora coloca à nossa frente como respostas para a crise. E já se percebeu o limite de ambição dessas propostas.

Assim, gostaríamos, por exemplo, de saber: uma vitória do SPD nas eleições alemãs do Outono significará o surgimento de propostas de reforma do estatuto do Banco Central Europeu, com vista a facilitar a sua rápida ação em todos os mercados? Há nos socialistas alemães vontade de caminhar para a mutualização da dívida, através do lançamento de “eurobonds”?

Finalmente, e porque também vivemos um novo tempo dos tratados, importa-nos conhecer a perspetiva de uma figura que assumiu responsabilidades europeias eminentes sobre o modo como ela observa o novo papel do Parlamento europeu, num quadro interinstitucional em que a Comissão europeia está definitivamente menorizada e em que o Conselho é titulado por uma figura que surge como o representante dos interesses comuns dos países dominantes – isto é, fundamentalmente, como um bom representante da Alemanha, como se observou na recente negociação do novo e triste quadro financeiro.

Estas questões, que são questões que atravessam a Europa e quantos se preocupam com o seu futuro, estão muito presentes no espírito daqueles que, aqui em Portugal, continuam a colocar o projeto integrador no eixo do destino do país. Este país, o país que Klaus Hansch hoje visita não é, infelizmente, e no que toca às suas relações com a Europa, o país que ele conheceu no passado. Com o curso dos anos, a capacidade de Portugal influenciar as posições europeias, que nunca foi muita, reduziu-se ainda mais – e o Tratado de Lisboa ajudou fortemente a isso. Mas, muito mais do que essa menorização institucional, a presente situação económico-financeira, com o processo de assistência externa em curso, raptou a soberania do nosso país e colocou-nos num limbo de dependência que começa já a ter consequências no próprio processo de representação política, na própria legitimidade dos eleitos portugueses aos olhos dos cidadãos.

A Europa tem de ter consciência de que o atual estado de coisas em Portugal, se bem que enquadrado por um sistema democrático que já deu provas de grande solidez, e colocado num cenário europeu que oferece ainda mecanismos de apoio e solidariedade, está a criar inéditas tensões e a induzir dramáticas fraturas no tecido económico e social, que podem vir a ter consequências políticas de grande monta. Consequências que, sendo em primeira linha portuguesas, têm iniludíveis repercussões na Europa, tanto mais que elas próprias testam as respetivas dimensões da solidariedade – eu diria mesmo, a própria coerência ética do projeto europeu.

Klaus Hansch está num país onde a democracia se consolidou tendo a Europa como cenário positivo de fundo, um país com uma opinião pública que ainda se mostra maioritariamente pró-europeia, muito embora já bastante longe do entusiasmo que se viveram no passado. Este Portugal democrático é um país amigo e admirador da Alemanha e do seu fantástico esforço nacional. Sem falhas, demos sempre provas disso, ao estar com a Alemanha em favor da sua reunificação, ao apoiá-la no seu objetivo de alargar a Leste o projeto europeu, mesmo pagando com isso um forte preço nacional, em especial no tecido produtivo e na redução dos fundos europeus, que têm de ser vistos como a compensação natural dos fortes ganhos que os países mais ricos obtêm pela exploração do mercado interno.

Por seu turno, a Alemanha deu constantes mostras de apoio a Portugal no seu caminho europeu – e, não obstante Klaus Hansch ser socialista, deixo aqui uma palavra de reconhecimento à permanente e solidária atitude de Helmut Kohl face ao nosso país, um chanceler alemão conservador que sempre revelou compreender os nossos problemas e procurou ajudar-nos a encontrar formas de os ultrapassar.

Aquilo que estou seguro que todos, nesta sala, gostarão de ouvir de Klaus Hansch é a sua leitura de uma Europa onde hoje a Alemanha enfrenta alguma solidão, um país que dá sinais de alguma hesitação sobre o modo como olha o futuro de um continente onde tem cada vez mais poder e onde, por essa via, se espera que assuma um cada vez maior sentido de responsabilidade.

Sabemos que a paz e a estabilidade dizem muito ao povo alemão. Tudo aquilo que em que a Alemanha investiu, política e economicamente, na segunda metade do século XX, colocando-se como centro propulsor do projeto de integração europeia, significou um esforço consideravelmente inferior àquele que a própria Alemanha havia pago durante toda a primeira metade desse século.

Vale a pena investir na Europa da solidariedade e da paz.

Mas vamos ouvir Klaus Hansch, porque foi para o ouvir a ele, e não a mim, que as pessoas hoje aqui vieram.


*Introdução à conferência de Klaus Hansch “O nosso futuro na Europa”, Goethe Institut. Lisboa, 21 de fevereiro de 2013