2 de outubro de 1997

Para além de Amsterdão

À hora a que a maioria dos leitores tiver tido a paciência para iniciar a leitura deste artigo, os ministros dos Negócios Estrangeiros dos países da União Europeia terão, com certeza, assinado já o Tratado de Amesterdão, o resultado dessa laboriosa e, para muitos, pouco produtiva revisão de Maastricht.

Para trás ficaram mais de dois anos de esforços na busca de consensos para dar à União alguma maior operacionalidade em áreas como a segurança interna e a acção diplomática externa, uma maior eficácia funcional com vista a adaptá-la aos futuros alargamentos, uma maior transparência para a tornar mais simples e perceptível aos olhos de uma opinião pública cujo desejo por “mais Europa” hesita no limiar da sua incapacidade de entender o que fazemos de útil com a Europa que já temos.

Ao olhar para o novo Tratado, alguns acabarão por nele reconhecer uma espécie de denominador comum de uma ambição europeia revista em baixa, para além de uma “shopping list” de interesses mais ou menos de capelinha, para contentar franjas de eleitorado ou de grupos de pressão e para evitar imprevisíveis referendos. Outros - e neles nos incluímos - entendem que este Tratado é o salto de qualidade possível num tempo europeu marcado por factores conjunturais bloqueantes, pela crescente prevalência de uma clara lógica de interesses nacionais e da emergência de grupos de países em confronto aberto (e, por vezes, despudorado) pela gestão do poder de influência. Mas, acima de tudo, num momento caracterizado por um horizonte de projecto onde se detecta que a inevitabilidade de novos desafios é paradoxalmente acompanhada por um débito de crença e entusiasmo em todos quantos deveriam a eles responder.

Agora que tudo já passou, talvez se possa revelar que, nas últimas semanas da negociação daquilo que viria a designar-se por Tratado de Amesterdão, algumas reuniões houve em que os representantes de um grupo significativo de Estados de pequena e média dimensão tentaram articular entre si uma estratégia que evitasse o que se temia pudesse vir a ser uma forte pressão para a sua menorização institucional no termo da Conferência.

Embora com um leque de interesses diversificado em muitas áreas - esta Conferência demonstrou claramente que as alianças só podiam ser pontuais -, os representantes desses Estados tinham de comum a percepção de que seria impossível que as respectivas opiniões públicas viessem a aceitar um saldo negocial final em que a sua “quota” de poder no processo decisório da União aparecesse reduzida, isto é, que a sua igualdade de princípio como entidades soberanas no plano internacional viesse a ser afectada no resultado final, nomeadamente em matéria de representação na Comissão Europeia e de um agravamento das diferenças de poder de voto no Conselho de Ministros. O resultado dessas alianças “clandestinas” foi o adiamento da resolução do binómio Comissão/ponderação, uma solução que não nos agradou mas que acabou por ser preferível aos modelos de menorização institucional que andaram no ar.

Isto leva inevitavelmente a interrogarmo-nos sobre se a principal questão divisiva no seio da União Europeia (UE) se reduz à luta de “pequenos” contra “grandes”, se o factor demográfico é o elemento central de afastamento entre os Estados membros e, em especial, se foi isso que marcou o resultado desta Conferência.

Tentemos uma resposta aparentemente simples: essa contradição é mais importante para uns do que para outros mas, para todos, assume um valor simbólico que não é possível ignorar e, como tal, reflecte-se inevitavelmente no exercício total da afirmação política dos Estados membros.

Em nosso entender, o que essencialmente divide ou aproxima os Estados membros da União Europeia é a afinidade ou a divergência face aos interesses, em particular de ordem económica, que estão subjacentes à execução das políticas, muito mais do que as diferenças demográficas que se espelham no poder institucional ou as concepções várias do projecto europeu em confronto. Só que a possibilidade de fazer prevalecer esses interesses depende, em grande escala, do modo como se conseguir influenciar a máquina comunitária - e isso tem muito a ver com a representação nas instituições (e não apenas com o poder de voto). É uma espécie de círculo vicioso de que não é possível sair e que alguns sofrem mais do que outros.

Para melhor entender o cenário em que todos nos movemos na União, convém ainda ter presente que uma das mudanças mais significativas ocorridas nas últimas décadas no processo comunitário resultou daquilo que terá sido o seu mais bem sucedido e fácil alargamento: referimo-nos à entrada da Áustria, da Finlândia e da Suécia. Com a adesão destes Estados, com um padrão económico e tecnológico bem mais próximo dos países mais desenvolvidos da então União a “Doze”, com uma geografia de interesses estratégicos que a evolução recente do Leste europeu veio a revelar complementar de grande parte desses mesmos países, houve como que um subliminar mas expressivo desequilíbrio dentro da União Europeia.

A curto prazo, essa evolução acabou por conduzir à assunção pela Comissão de uma lógica de comportamento maioritariamente reprodutora dos interesses comuns a essa maioria de Estados. Trata-se de uma evolução com alguma legitimidade e até de aparente democraticidade: as iniciativas da Comissão passaram a representar uma maioria de países e, seguramente, uma esmagadora maioria da população comunitária. E as decisões do Conselho que as legitimam passaram a seguir, naturalmente, a mesma lógica, só perturbada por esporádicas divergências, que frequentemente não é possível evitar, entre os interesses concorrenciais existentes mesmo entre Estados que alinham por uma lógica correntemente comum.

Para os Estados que se situam nesse patamar de interesses, a questão da sua presença e influência no mecanismo institucional da União tem, naturalmente, uma dimensão prática muito menos importante do que para países que se confrontam com a realidade de terem de defender padrões de desenvolvimento, e encontrar meios de execução das políticas europeias para os acompanhar, que estão em contraciclo com os interesses maioritários do processo comunitário. Daí resulta a dupla desvantagem que esses últimos sofrem, ao pretenderem fazer vingar interesses marginais aos da maioria e, ao mesmo tempo, terem uma limitada capacidade institucional para o fazer. Este é, inquestionavelmente, o problema português.

Dir-se-á que esta é uma situação inevitável, inerente à própria filosofia de um processo de conciliação internacional que se resolve em favor do maior número. Só aparentemente isto é verdade, dado que a UE está longe de corresponder ao modelo tradicional das organizações internacionais e da sua essência constitutiva resulta precisamente uma dimensão sui generis de projecto colectivo que, pelo menos na teoria, deveria encerrar uma lógica distintiva, assente num modelo de solidariedade e de ajuda intraeuropeia que assegurasse uma evolução num sentido de coesão de todo o seu espaço e de tendencial aproximação no mesmo dos padrões médios de desenvolvimento. Tudo isto no pressuposto que o crescimento e o bem-estar colectivos são um interesse comum, que dele decorrem vantagens gerais da estabilização social e económica criada e, num plano muito mais prático, que da criação de mercados mais poderosos e sólidos, dotados de infraestruturas de que todos beneficiam, todos lucram, numa perspectiva de regular “retorno” financeiro e numa leitura das contribuições líquidas numa lógica de investimento que é perfeitamente possível fundamentar.

A preservação desse interesse comum, a descoberta de modos de o objectivar e a propositura de formas de compensação para garantir que a diversidade de interesses não deriva numa inevitável disfunção, compete, no figurino teórico europeu, à Comissão - dita “guardiã” dos Tratados e, nessa qualidade, alheia às diversas pressões nacionais que o Conselho ou o Parlamento obviamente têm que reflectir. Só que, na vida, as coisas são o que são e nós sabemos que a Comissão é um reflexo, infelizmente perfeito, desse estado de coisas.

Marcada por uma preeminência dos interesses nacionais, dotada de instituições fragilizadas perante a pressão desses mesmos interesses, a pergunta pode colocar-se: vale a pena uma União deste tipo, compensa o empenhamento num projecto que parece tender à dualização da Europa, em lugar de aproximar as suas diversas componentes ? A resposta é obviamente sim e as razões subjectivas da crítica não se podem sobrepor às virtualidades objectivas do projecto.

A Europa que temos perante nós é, muito provavelmente, uma Europa muito diferente daquela a que aderimos em 1986 - essa mesma diferente da Europa do Tratado de Roma. Durante uma década tivemos uma oportunidade, porventura única na história contemporânea do nosso país, de usufruir em pleno de um processo de articulação política e económica com o centro europeu. Tivemos o ensejo de acumular mecanismos de fuga à perifericidade e tivemos ao nosso dispor meios para o reforço das infraestruturas, para a melhoria da qualificação profissional que nos garantisse a maturação dos factores de produção e para a reconversão de sectores em perca de competitividade no plano externo. De que maneira aproveitámos essas ajudas? Se querem uma resposta, ela está na radiografia sectorial e tecnológica do nosso tecido produtivo, na estrutura das nossas exportações e, muito em particular, na nossa produtividade relativa no quadro europeu. À bon entendeur...

Acresce a esta realidade que, como dissemos, o processo de integração que, em 1986, se iniciou em Portugal, que Maastricht reforçou pela adopção do conceito de coesão económica e social, não vai completar-se no modelo previsto. As exigências estratégicas provocadas pela necessidade de garantir uma acomodação das novas democracias emergentes no centro e leste do continente acabaram por forçar os Quinze a redesenhar as suas prioridades e elas passam agora pela definição de um padrão médio de integração mais baixo, pela diferenciação nos diversos modelos dessa mesma integração e, naturalmente, por um repensar das políticas que sustentavam o anterior projecto. A circunstância de a Europa ser, em grande parte, atravessada por uma onda de desemprego que reforça o egoísmo nacional e limita a vontade em reforçar modelos de solidariedade, a que acrescem os rigores macroeconómicos do processo colectivo de convergência nominal, tudo isso contribuiu para o estabelecimento de um ambiente europeu qualitativamente diferente, com consequências visíveis nas propostas, em discussão, do próximo quadro financeiro comunitário.

A saída deste tempo de redução de ambições, de alguma indefinição sobre os novos modelos de integração e sobre a
(
própria) nova filosofia que prevalecerá na Europa só poderá fazer-se, a nosso ver, através do sucesso do projecto da União Económica e Monetária. E aí Portugal terá que estar presente, para garantir a sua inserção no centro decisório e no quadro de estabilidade e crescimento que a Moeda Única vai proporcionar.

Em todo este contexto, o Tratado que hoje se assina em Amesterdão é um compromisso de passagem entre dois tempos da Europa comunitária. E é também a consensualização possível da vontade média de integração em áreas que, para muitos, roçam já os limites da sua soberania tradicional. Além de outras óbvias virtualidades, comporta os elementos de esperança no aprofundamento em dimensões próximas de algumas das grandes preocupações dos cidadãos europeus, abre caminho ao reforço da vertente social que entendemos essencial para acompanhar o projecto de integração económico-monetária, facilita os instrumentos para a afirmação externa da União. Prolonga, contudo, a indecisão sobre o formato definitivo dos processos de decisão, esses mesmos entretanto mais simplificados.

É um Tratado que fica à espera da UEM, do impulso desta para se determinar se é possível e necessário ir mais longe, na certeza de que qualquer evolução tem de se fazer para além do presente quadro institucional, de uma união híbrida de países onde a permanência dos excessos de intergovernamentalidade acaba frequentemente por agravar os riscos que, precisamente com a insistência nela, se pretendia evitar.


(Publicado no “Público”, em 2 de Outubro de 1997)

24 de julho de 1997

Pela mão de Boaventura



Através do sugestivo título “Diplomortos e etnocêntricos”, o prof. Boaventura de Sousa Santos simplificou num texto a sua visão sobre os diplomatas portugueses, corpo profissional de cujos deméritos fez uma leitura impressionista, reflexo assumido de alguns contactos pessoais e, em especial, da ressaca de dois incidentes recentes que o tocaram. Para quem nos habituou ao rigor da análise e à objectividade da intervenção, convenhamos que terá havido alguma ligeireza metodológica e o recurso a uma generalização um tanto grosseira.

É difícil operar aqui, em escassas linhas, a desmontagem de um processo de denegrimento que se apoiou num inventário de acusações avulsas mas cumulativas: uma diplomacia “parada no tempo”, atrasada face “às exigências da globalização”, desatenta às correntes que combatem o eurocentrismo e abraçam o multiculturalismo, constituída por “pessoas muito conservadoras, etnocêntricas, pedantemente elitistas”, desinteressadas pelas Comunidades portuguesas, etc. Tudo isto para concluir “que o 25 de Abril ainda não chegou à diplomacia portuguesa”.

A acreditar no prof. Sousa Santos, a cultura de Steinbroken será ainda hoje a matriz referencial dos profissionais que as Necessidades enviam pelo mundo, dedicados à promoção de cocktails, ao cultivo da snobeira diletante, à produção de um discurso analítico perdido no tempo real, à marcação de uma confortável distância face aos problemas dos seus concidadãos expatriados. Enfim, uma profissão por onde se esvaem os bens do erário, sem glória nem préstimo.

Interessante será, todavia, constatar que esse mundo da diplomacia que o prof. Sousa Santos persistentemente frequenta, parece coexistir com o dos profissionais competentes que têm posto Portugal no mapa da promoção internacional dos Direitos Humanos, dos que esforçadamente conseguem conferir visibilidade e dinâmica diplomática à luta do povo timorense, dos que, em Kinshasa ou Bagdad, colocaram o serviço aos portugueses à frente da sua segurança pessoal.

Por esse azar que manifestamente o persegue, o prof. Sousa Santos não se terá também cruzado com quantos contribuíram para uma segura presidência portuguesa na Europa comunitária ou dos que souberam mobilizar uma campanha eficaz para colocar Portugal no Conselho de segurança da ONU.

Pena foi, também, que o prof. Sousa Santos não abandonasse por algum tempo o conforto dos Gerais e passasse uns dias, rodeado de metralhadoras e sons de bombas, no bunker que foi a nossa embaixada em Argel ou em que se converteu a missão portuguesa em Luanda após Bicesse, que desfrutasse por alguns meses do isolamento de um consulado em Benguela ou na Beira, que experimentasse os riscos da malária cerebral em S. Tomé ou a insegurança quotidiana de algumas capitais de cujo nome, como Cervantes fazia para certo lugar da Mancha, me não quero nem lembrar.

Se acaso tivesse ido um pouco mais longe nos contactos fortuitos que teve, talvez a formalidade se tivesse desvanecido e os diplomatas falassem ao prof. Sousa Santos das profissões que os cônjuges perderam ou atrasaram irremediavelmente para os acompanhar, do saltitar regular de escolas e de amigos que os seus filhos tiveram de enfrentar, das doenças e dos climas estranhos que são obrigados a suportar. E, quem sabe, talvez mesmo algum deixasse cair, na conversa com o autor de “Pela mão de Alice”, com a ironia pontuada de prudência que a profissão ensina, uma fugaz referência à degradação relativa da sua carreira face a outros corpos especiais do Estado, como o professorado universitário. É que nem tudo são ainda rosas, no Portugal de Abril que eu e o prof. Sousa Santos coincidimos em apreciar.


(Publicado na revista "Visão", 24.7.97)

26 de junho de 1997

A ultraperiferia atlântica


No termo da Conferência Intergovernamental (CIG) que há dias terminou em Amesterdão, ficou criada nas diversas opiniões públicas europeias uma ideia muito pronunciada de que esta revisão do Tratado de Maastricht tinha acabado por ser um exercício minimalista, um pequeno rearranjo sem grandes consequências para o futuro da União Europeia.

A nosso ver, esta leitura corresponde maioritariamente à desilusão de quantos haviam apostado em transformar esta Conferência num momento para provocar algum desequilíbrio na relação interna de forças dentro da União Europeia - que, sejamos claros, seria sempre no sentido de favorecer os países mais populosos - e garantir, à luz do argumento da preparação da União para o alargamento, uma recentragem em termos de poder de decisão.

O que Amesterdão acabou por consagrar foi a vitória de algum realismo, uma moderação de expectativas devida à consciência de que as reformas institucionais e alguns avanços no aprofundamento das políticas têm como limite imperativo o grau de aceitabilidade da mudança por parte das opiniões públicas de todos os Estados membros.

Todos temos que ter consciência que à medida que a União Europeia avança em terrenos que cada vez mais se sobrepõem a áreas em que o tratamento nacional era tradicionalmente visto como de difícil alienação - estamos a referir-nos, a título de exemplo, à política externa e de segurança, às questões judiciais e de administração interna - se torna progressivamente mais difícil garantir que todos os Estados estejam preparados para avançar ao mesmo ritmo. A pressão das opiniões públicas é diferente, marcada por agendas nacionais diversas, por idiossincrasias muito particulares a que os dirigentes políticos têm forçosamente de atender.

Essa é a razão pela qual vemos, cada vez com mais frequência, alguns países demarcarem-se das políticas comuns (através dos chamados “opt out”) e a própria União Europeia instituir no seu interior mecanismos institucionais que permitem aos Estados que queiram ir mais além poder fazê-lo sem esperar pelos restantes - as chamadas “cooperações reforçadas” ou “flexibilidade”.

A aceitação destes novos modelos em que nem todos os países estão representados está, por outro lado, a contribuir para tornar os Estados membros cada vez menos solidários e mais egoístas, cada vez mais concentrados exclusivamente nos problemas que directamente lhes respeitam. A sua vontade de instituir mecanismos susceptíveis de mobilizar verbas para áreas geográficas, sectores ou actividades em que directamente não estão interessados começa, assim, a ser cada vez menor, as mais das vezes tendo como argumento os constrangimentos orçamentais a que a convergência macroeconómica obriga.

Daí a disposição maioritária detectada nesta Conferência no sentido de não abrir espaço para novas políticas. A inclusão da política social, decorrente de compromissos anteriores e da nova posição britânica, e da política de emprego, facilitada esta última pela nova conjuntura governativa em França, acabam por ser as excepções que praticamente confirmam a regra.

Mas uma outra excepção houve e essa prende-se com a tão falada questão da “ultraperifericidade”, tema de importância para os Açores e para a Madeira e que, desde o início destas negociações, o Governo português colocou e manteve no topo da sua agenda negocial.

Mas afinal, perguntarão alguns, que importância tem esta questão das Regiões Ultraperiféricas ?

No anterior tratado, o Tratado de Maastricht, reconhecia-se, numa Declaração anexa, que as Regiões Ultraperiféricas da Comunidade (departamentos franceses ultramarinos, Açores, Madeira e Canárias) sofriam de um “atraso estrutural importante, agravado por diversos fenómenos (grande afastamento, insularidade, pequena superfície, relevo e clima difíceis, dependência económica em relação a alguns produtos)”. O ponto significativo da Declaração - que é, contudo, o documento jurídico mais baixo da hierarquia legal comunitária - era o reconhecimento de que o Tratado se aplicava a estas regiões e de que, “na medida em que exista e enquanto existir uma necessidade objectiva” poderiam ser adoptadas medidas específicas em virtude daquelas condições particulares.

O Tratado de Maastricht não incluía, assim, nenhuma base jurídica específica que permitisse mobilizar políticas próprias para estas regiões; apenas admitia - e, relembre-se, só “na medida em que exista e enquanto existir uma necessidade objectiva” - que na execução das normais políticas da União fosse tomada em consideração a situação particular daqueles territórios.

Convirá referir que o Tratado contemplava no seu artigo 227º apenas os departamentos franceses ultramarinos, continuando os restantes territórios (entre os quais os Açores e a Madeira) ausentes do texto do articulado ou dos protocolos, e apenas referidos na citada Declaração.

Esta situação era, como se torna evidente, de grande precariedade. Não apenas porque não garantia a consagração do carácter permanente das condições de ultraperifericidade (fazendo-as depender de uma “necessidade objectiva”), mas principalmente porque não fornecia uma base jurídica específica e não elencava as áreas em que as políticas particulares se poderiam aplicar.

A questão fora já abordada em 1993 no quadro dos encontros dos Partidos socialistas das Ilhas Atlânticas, na linha da necessidade de reforço do reconhecimento da ultraperifericidade, tendo passado a fazer parte das preocupações dos Governos regionais, cujo impulso e mobilização com os seus congéneres muito contribuíram para o reconhecimento do tema a nível dos Governos centrais, com posterior expressão em Bruxelas.

No documento em que apresentava as suas posições para a CIG (publicado em Março de 1996), o Governo português defendia que  “o Tratado revisto deveria consagrar uma atenção mais substancial às regiões ultraperiféricas”.

Em Setembro de 1996, Portugal avançou na CIG com uma proposta autónoma no sentido de alterar o já mencionado artigo 227º (o texto de articulado é, como é sabido, o mais vinculativo juridicamente, em linguagem de tratado), acompanhado de um Protocolo (que é um instrumento de dignidade jurídica complementar do articulado e, por essa razão, de valor jurídico muito mais forte que uma simples Declaração).

Em inícios de Dezembro, Portugal fundiu a sua proposta com outras, oriundas da Espanha e da França. Essa nova proposta, que no essencial retomava a nossa e seguia de perto as posições conjuntas apresentadas pelos executivos regionais, criava uma base jurídica específica e definia, num projecto de Protocolo, áreas de interesse prioritário: políticas aduaneira e comercial, em especial no âmbito das zonas francas, política fiscal, política agrícola e de pescas e o aprovisionamento em matérias-primas e bens de consumo essenciais.

Creio que não valerá a pena fazer aqui o historial do que foi a evolução da negociação desde então, mas a verdade é que foi extremamente difícil, não apenas conseguir mobilizar as presidências irlandesa e holandesa para o tema, como foi visível na evolução dos textos que iam sendo submetidos à Conferência, mas igualmente ultrapassar a oposição que vários países manifestaram. Essa hostilidade manifestou-se mesmo de forma crescente nas últimas semanas e apenas foi superada por negociações já em Amesterdão, directamente com os responsáveis governamentais desses Estados.

O resultado final, que reflecte uma nova proposta portuguesa apresentada durante o próprio Conselho Europeu, não podia ser melhor. O novo Tratado consagra, em letra de articulado (sem introdução de protocolos adicionais ou de declarações) que o regime geral comunitário se aplica às regiões ultraperiféricas e que um regime derrogatório particular será instituído em permanência, tendo em conta a especificidade dos territórios, elencando, sem carácter exaustivo, as áreas em que tal poderá ter lugar. Esta lista, registe-se, comporta todas as áreas que pretendíamos (sendo mesmo mais extensa que a lista inicial) e, ao ficar incluída no articulado, tem um valor jurídico insuperável. Além disso, é instituída uma base jurídica própria, o que significa que as medidas excepcionais serão tomadas, não recorrendo às diversas políticas comunitárias, mas constituindo o tratamento das Regiões Ultraperiféricas, por si só, uma nova política.

Acabada que foi a Conferência, podemos confessar que o modelo que acabou por vingar representava a proposta mais maximalista que julgávamos possível ambicionar. O vigor e a determinação com que nos batemos por ela acabou por ter os seus efeitos, para bem das Ilhas Atlânticas portuguesas e da posição de Portugal em geral. Creio que todos estamos de parabéns.


(Publicado no “Diário de Notícias” do Funchal, em 26 de Junho de 1997)


1 de março de 1997

Tratado de Amesterdão - para a história de uma negociação


Ao abordar, em perspectiva, o processo de revisão do Tratado da União Europeia (TUE), que durante cerca de dois anos mobilizou milhares de especialistas nos diversos Estados membros e obrigou a largas dezenas de reuniões consagradas a uma panóplia de temas, e o compararmos com o resultado final que o Tratado de Amesterdão constituiu, poderá criar-se, no espírito de alguns, a ideia de que se tratou de um esforço algo inglório e desproporcionado, face à qualidade do produto final do exercício.

Sem entrar aqui num debate sobre as virtualidades do novo Tratado - assunto sobre o qual nos pronunciámos já noutros textos e em outros locais - gostaríamos de começar por referir que todo o trabalho de elaboração teórica feito durante o processo de revisão constituiu, a nosso ver, um significativo enriquecimento na reflexão geral sobre o processo de aprofundamento da Europa e contribuiu para garantir um acompanhamento doutrinário de uma fase da vida comunitária caracterizada, como muito raramente aconteceu na sua história, por um intrincado conjunto de incógnitas, algumas das quais envolvem mesmo a essência do próprio projecto comunitário e a sua sustentabilidade como elemento estruturante da integração político-económica do continente.

Com efeito, num momento em que a União Europeia matura o salto qualitativo dado em Maastricht e procura, simultaneamente, encontrar soluções para fazer face à inclusão de um vasto conjunto de novos Estados, num quadro global de rigor financeiro que tem como referente limitador o esforço para a passagem à 3ª fase da União Económica e Monetária (UEM), o trabalho feito em torno da revisão do Tratado acaba por ter uma importância que vai para além do que ficou consignado nos resultados de Amesterdão.

Se em Maastricht se consolidaram os avanços do Acto Único Europeu e se assentou no calendário da UEM, abrindo a transição em áreas como as da segurança interna e da acção externa da União, no caminho para Amesterdão procurou-se, essencialmente, conseguir concretizar três objectivos: (1) rever o processo institucional, à luz dos futuros alargamentos e das exigências de funcionalidade, de democracia e de transparência das instituições, (2) encarar as possibilidades de estender a acção comunitária a novos domínios e tentar o aprofundamento de algumas políticas sectoriais não encaradas ou menos desenvolvidas em Maastricht e, finalmente, (3) procurar reflectir sobre os limites possíveis no esforço para ultrapassar o híbrido equilíbrio intergovernamental/comunitário que o TUE manteve em algumas áreas tidas como relevantes para a própria credibilização da União perante os seus cidadãos. Tudo isto num ambiente geral tocado por algum decréscimo geral da popularidade da ideia e das soluções europeias e sob o espectro da necessidade de garantir que a eficácia dos resultados a atingir fosse compatível com a sua aceitabilidade a nível dos Quinze, evitando o risco de uma não ratificação do novo Tratado que poderia pôr em causa o percurso integrador e, o que seria mais dramático e fautor imediato de crise, os futuros alargamentos.

Foi esta a tarefa que se levou a cabo no “Grupo de Reflexão”, entre Junho e Dezembro de 1995, e na Conferência Intergovernamental (CIG), que se prolongou de Março de 1996 a Junho de 1997. A circunstância de esse trabalho não ter tido, necessariamente, um reflexo total no texto consensualizado em Amesterdão não reduz, de forma alguma, a importância do exercício. Os debates realizados e os relatórios produzidos, que reflectem a pluralidade das perspectivas e a conflitualidade de interesses que a diversidade europeia justifica, constituem uma importante contribuição para o património doutrinário da União e irão servir de base de experiência a tempos negociais futuros - da mesma maneira que Maastricht foi, para todos quantos participaram nas discussões que culminaram no novo Tratado, uma referência permanente. 

No caso do nosso país, o efeito dinamizador dessa reflexão terá sido ainda mais evidente, por assumidamente ter havido a preocupação de, durante a negociação e na fase de preparação que a antecedeu, romper com aquilo que interpretamos como uma prática anterior de intervenção algo defensiva que, embora porventura ditada por razões respeitáveis de táctica negocial, manifestamente terá optado por subalternizar a afirmação de uma visão portuguesa do projecto global europeu. A nosso ver, a prevalência de uma agenda marcadamente voltada para uma perspectiva nacional, que foi evidente na condução de toda a negociação de Maastricht, redundou num défice de elaboração teórica interna e não ajudou a criar uma “massa crítica” coerente a nível de diversos departamentos da Administração Pública, susceptível de nela gerar e promover uma filosofia autónoma de intervenção europeia. A propensão manifesta para o imobilismo e para uma leitura redutora das mudanças necessárias a um novo tempo, que foi o sinal mais característico da reacção de muitos serviços na primeira fase do processo negocial, parece confirmar esta tese.

Talvez a existência de uma vontade e de condições políticas diferentes, cumuladas com o saldo da experiência anterior, tenha permitido que tivéssemos conseguido imprimir um novo modelo de intervenção, impulsionado ao mais alto nível governamental. Se tal será substancialmente eficaz e perdurável, ou não, só o tempo e o juízo de terceiros o dirá. O que, com certeza, podemos assegurar é que não faltará a quem, no futuro, tiver a tarefa de prosseguir o desenvolvimento da doutrina de intervenção portuguesa, no contexto das instituições europeias, uma completa e estruturada documentação relativa ao trabalho desenvolvido nesta Conferência, acompanhada de reflexões práticas e doutrinárias sobre todos os temas que estiveram em análise, à luz do que considerámos serem os interesses nacionais e da leitura que então fizémos do próprio interesse europeu.

É como contributo para fixar a memória pública possível desse exercício que este texto se pretende constituir. Nele procuraremos deixar algumas notas sobre a metodologia organizativa seguida em Portugal para a preparação e acompanhamento da Conferência e sobre o evoluir dos respectivos trabalhos, tentando identificar os eixos de preocupação temática em torno dos quais se foram fixando, e frequentemente modificando, as tácticas dos vários Estados membros. É uma perspectiva assumidamente subjectiva, concerteza marcada pela excessiva interioridade da leitura dos factos por quem neles esteve totalmente envolvido e, o que talvez seja mais limitador, por uma ausência de distância temporal que permita a relativização das apreciações à luz do efeito prático daquilo que foi obtido. Julgamos, contudo, que vale a pena correr o risco.


O método

Em Outubro de 1994, quando se iniciaram, na Direcção-Geral dos Assuntos Comunitários (DGAC), do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), os primeiros estudos preparatórios para a CIG que, a partir de meados de 1996, empreenderia a revisão do TUE, cedo se verificou que o que restava da memória da anterior Conferência, que conduzira ao Tratado de Maastricht, era constituído por um conjunto de meras e desgarradas reflexões sectoriais e que, para suporte do esforço negocial futuro, não tínhamos ao nosso dispor, como base de partida, um corpus doutrinário consolidado e coerente, assente numa filosofia global de intervenção. Na ausência dessa leitura de conjunto, as reflexões sobre os grandes dossiers de Maastricht que teriam estado na base de posições então assumidas, apareciam como peças soltas, por vezes inapelavelmente datadas, de um puzzle que, por difícil de reconstituir, se optou por manter apenas como apoio esporádico às análises que se começou a levar a cabo.

Essas análises iniciam-se através de dois textos de reflexão prospectiva (datados respectivamente de Novembro de 1994 e de Fevereiro de 1995), que tiveram apenas uma circulação interna na Direcção Geral, os quais foram produzidos com o objectivo de trabalhar os cenários previsíveis da negociação futura e balizar os grandes objectivos que, na perspectiva dos serviços, deveriam presidir à posição portuguesa.

A considerável experiência de alguns poucos funcionários, que aliavam à memória prática da negociação anterior uma qualificação excepcional nos domínios comunitários, levou a que fosse proposta, em inícios de 1995, a criação de um grupo de trabalho, encarregado de produzir um primeiro texto que consubstanciasse os interesses que Portugal poderia projectar na futura Conferência.  Do trabalho desse pequeno grupo, criado por despacho do então Secretário de Estado dos Assuntos Europeus (SEAE) e constituído por quatro funcionários superiores (três da DGAC e um outro da estrutura nacional da PESC - Política Externa e de Segurança Comum), sairia em Março de 1995 um primeiro “documento de orientação”, que procurava fixar aquilo que poderia vir a ser a base de partida para uma posição negocial portuguesa. Sujeito a debates mais alargados, esse documento viria a ter sucessivas versões, mas nunca terá sido formalmente aprovado pelo XII Governo constitucional, embora manifestamente tivesse sido a fonte inspiradora de um artigo surgido no jornal “Público”, em 2 de Junho de 1995, assinado pelo então Primeiro-Ministro, precisamente na data de início dos trabalhos do “grupo de reflexão”. Na ausência de um assentimento oficial sobre o teor daquele “documento de orientação”, e que, por isso, nunca foi divulgado, esse artigo de jornal acabaria por servir, até Outubro desse ano, para os serviços do MNE, como única fonte de doutrina oficial sobre a matéria.

A entrada em funcionamento do “Grupo de Reflexão”, em Junho de 1995, em que a titularidade portuguesa foi atribuída ao professor André Gonçalves Pereira e em que ao signatário coube a função de representante alternante, instituiu um terreno de certo modo paralelo à produção doutrinária oficial sobre a futura Conferência, obrigando a um método de trabalho específico, o que levou a que o “documento de orientação” passasse por um período que poderíamos designar de hibernação. A convite pessoal do representante português no “Grupo de Reflexão”, viria então a caber ao subscritor deste texto, naturalmente com o permanente apoio dos serviços da DGAC, a elaboração dos projectos de resposta aos questionários em que assentaram os primeiros dois meses de acção do grupo, os quais serviam de elementos de informação, que não de orientação, para as intervenções do representante português. A circunstância de se tratar de uma personalidade exterior ao quadro hierárquico da Secretaria de Estado dos Assuntos Europeus, que só respondia pessoalmente perante o Ministro dos Negócios Estrangeiros, conferia-lhe uma completa e total liberdade de actuação e o nosso apoio tinha, por isso, um carácter meramente supletivo, sem prejuízo de, na prática, parte substancial das posições que vieram a ser assumidas pelo representante português terem vindo a coincidir com as linhas mestras do citado “documento de orientação”. 

Muito embora o surgimento do relatório intercalar do “Grupo de Reflexão”, em Setembro de 1995, tivesse alterado a metodologia funcional do grupo, que passou a trabalhar em aproximações a textos de síntese sobre os vários temas, a acção de apoio da DGAC manteve-se constante. Com a mudança política ocorrida em Outubro de 1995, o estatuto do professor Gonçalves Pereira em nada foi alterado, sendo confirmado de imediato pelo XIII Governo constitucional como representante do novo Ministro dos Negócios Estrangeiros, até ao termo dos trabalhos do grupo.

Com a aprovação do relatório do “Grupo de Reflexão” pelo Conselho Europeu de Madrid, em Dezembro de 1995, ficou cumprida a primeira etapa do caminho para a Conferência. No âmbito da Secretaria de Estado dos Assuntos Europeus processou-se, a partir de então, um trabalho de reavaliação da posição nacional para a futura negociação, atendendo nomeadamente aos resultados do relatório final do “Grupo de Reflexão” – o chamado Relatório Westendorp - e às tendências que a discussão nele empreendidas indiciavam como podendo vir a marcar a próxima Conferência. Mas, no plano organizativo, os trabalhos passaram a estruturar-se de forma substancialmente diferente.

Assim, e após análise da matéria em Conselho de Ministros, foram criados, por despacho do signatário, já como novo SEAE, núcleos de trabalho destinados a apoiá-lo na sua tarefa de representante pessoal do Ministro dos Negócios Estrangeiros à futura CIG, distribuídos por cinco grandes capítulos: questões institucionais, questões jurídicas, questões de justiça e assuntos internos, questões económicas e financeiras e questões no âmbito da PESC. Esses núcleos de trabalho, coordenados a nível de Director de Serviços, tinham por objectivo garantir a propositura de orientações nos vários domínios que a Conferência viria a abranger e podiam agregar, quando necessário, a colaboração de técnicos de outros Ministérios, sempre através da mediação dos representantes desses mesmos departamentos na Comissão Interministerial dos Assuntos Comunitários (CIAC) - estrutura permanente de coordenação interministerial que, todas as semanas, reúne na Secretaria de Estado dos Assuntos Europeus.

Como elemento básico de referência do trabalho dos diversos núcleos, foi então recuperado o anterior “documento de orientação”, actualizado à luz de algumas novas orientações de natureza política e do resultado da reactualização técnica entretanto efectuada. Uma versão simplificada desse documento, com vista a divulgação pública, viria a ser aprovado pelo XIII Governo constitucional em Março de 1996 e, sob o título “Portugal e a Conferência Intergovernamental para a Revisão do Tratado da União Europeia”, passou a constituir o texto político orientador da posição portuguesa na Conferência. Recorde-se que o nosso país foi dos poucos Estados membros que, no período imediatamente anterior ao início da Conferência, se decidiu pela produção de um texto político que era, simultaneamente, um compromisso público e um mandato negocial. E não podemos deixar de sublinhar que tal documento resiste hoje muito bem à confrontação com a realidade do resultado final do Tratado de Amesterdão.

O método de trabalho implantado a nível dos serviços da Administração Pública, definido em Março de 1996, manteve-se praticamente inalterado até ao termo da CIG e a estrutura da equipa de apoio ao representante português, que desde o início contou com o suporte da Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia (REPER), em Bruxelas, revelou-se perfeitamente adequada aos objectivos em vista. Pela avaliação a posteriori, chega-se hoje à conclusão que eram inadequadas e desnecessárias outras fórmulas mais pesadas, ou ad hoc, para a estrutura de apoio à negociação, que chegaram a ser sugeridas no início desta. Tendo a consciência de que o esforço desenvolvido durante toda a Conferência por alguns funcionários da DGAC roçou os limites do humanamente exigível, constatou-se, contudo, que o assentar da negociação nos serviços correntes foi a fórmula mais eficaz.

Ao longo da Conferência, o Conselho de Ministros foi informado numa base mensal sobre o decurso dos trabalhos, os quais foram igualmente objecto de tratamento técnico a nível da referida Comissão Interministerial. Para a superação de alguns impasses decisórios de cariz mais político, o Conselho de Ministros mandatou o SEAE, sob a orientação do Ministro dos Negócios Estrangeiros, para contactos pontuais directos com um ou vários membros do Governo responsáveis por sectores específicos, método de trabalho que veio a revelar-se da maior utilidade e permitiu ultrapassar algumas dificuldades e responder, com prontidão, às mutações surgidas no decurso da negociação.

O Primeiro Ministro e o Ministro dos Negócios Estrangeiros, este último várias vezes em sede de Comissão de Assuntos Europeus (CAE), informaram a Assembleia da República nos momentos mais importantes da Conferência, tendo sido instituído e rigorosamente cumprido um calendário de presenças regulares do SEAE naquela Comissão, para informação e debate das posições que Portugal ia assumindo na negociação, que completava o envio sistemático a este órgão de soberania de toda a documentação distribuída durante a Conferência. Tiveram igualmente lugar audições deste último membro do Governo na Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias e na Comissão de Negócios Estrangeiros, versando sobre temas específicos da Conferência. A satisfação das forças políticas representadas na Assembleia da República pela eficácia do mecanismo de informação e consulta instituído pelo Governo ficou expressa em várias ocasiões e por parte de diversos quadrantes partidários.

Também aos deputados portugueses ao Parlamento Europeu foi fornecido, em particular numa fase inicial em que o seu acesso à informação sobre a Conferência era mais limitado, um conjunto de documentação técnica susceptível de garantir a sua habilitação sobre os trabalhos em curso. Mas, numa avaliação geral, que é ao mesmo tempo uma autocrítica, e não obstante a realização de duas reuniões de trabalho durante a CIG, considera-se não ter sido satisfatório o modo como se processou a articulação entre o Governo e os parlamentares europeus neste domínio. 

Refira-se que constituiu permanente preocupação tomar em devida consideração todo um conjunto de observações e sugestões para a orientação negocial de Portugal na Conferência, proveniente de pessoas individuais, de grupos de interesses ou de Organizações Não Governamentais (ONG), por se entender que uma prática de gestão política democrática tem o dever de ter em atenção a sensibilidade dos diversos sectores da sociedade e de avaliar as contribuições úteis que eles possam aportar à decisão governativa. Nenhuma carta ou sugestão ficou sem resposta.

Finalmente, e na medida das disponibilidades práticas, foi dada regular informação pública sobre o decurso dos trabalhos da Conferência, nos meios de comunicação social e em dezenas de intervenções de divulgação, estas últimas dedicadas a meios universitários, a cursos de formação de jornalistas, a associações empresariais e sindicais, a ONGs e a estruturas representativas de sectores sociais diversos.

Deixámos, assim, expressas as linhas gerais do trabalho interno estabelecido e cumprido, antes e durante a CIG. A sua referência teve como único intuito fazer um registo de um método negocial  - outros seriam possíveis, como é óbvio - que, em nosso entender, correspondeu no essencial aos objectivos prosseguidos.  

Julgamos chegado o momento de passar a falar do processo negocial em si.

Embora esteja longe dos nossos propósitos sintetizar, em escassas páginas, uma negociação que envolveu 15 países, a Comissão Europeia e representantes do Parlamento Europeu (estes últimos ligados aos trabalhos da Conferência por um modelo de audição e debate algo sui generis) e que lidou, não apenas com todos os dossiers de Maastricht (com excepção do capítulo da UEM), mas igualmente com novos temas que a oportunidade ia fazendo cair na mesa da Conferência, cremos importante tentar fazer perceber os principais movimentos que se estabeleceram em torno dela e o modo como nos posicionámos perante eles.

Torna-se, porém, difícil descrever um jogo sem referir os intervenientes no mesmo. Assim, e assumindo todo o risco de simplificação que isso implica, vale talvez a pena começar por tentar tipificar e caracterizar em traços gerais a posição dos vários países e instituições nesta negociação.


Os parceiros

Pela singularidade da sua atitude durante a maior parte da Conferência, convirá começar por referir que o Reino Unido - na fase conservadora do respectivo Governo - partiu manifestamente para esta Conferência, não apenas com uma posição defensiva e imobilista perante o adquirido em Maastricht, mas igualmente com o objectivo de tentar aproveitar a negociação para conseguir todos os recuos integradores que fosse possível assegurar. A relutância em conceder poderes acrescidos à Comissão e ao Parlamento Europeu, uma total indisponibilidade para avançar nos domínios da Justiça e dos Assuntos Internos bem como em considerar quaisquer novas competências comunitárias, uma leitura extremada da subsidiariedade, com vista a limitar toda a extensão comunitária de poderes e de encargos, e uma perspectiva ultra-liberal em matérias sociais podem considerar-se os paradigmas caracterizadores da posição britânica.

A subida ao poder do novo Governo trabalhista viria, nas últimas semanas da Conferência, a consagrar o abandono por Londres da exclusão obtida em Maastricht para o Acordo Social, a flexibilizar a introdução da maioria qualificada em níveis de implementação da Política Externa e de Segurança Comum (com uma salvaguarda de interesse vital) e a aceitar a inclusão no Tratado de uma versão minimalista do capítulo sobre o Emprego, bem como ligeiras extensões da maioria qualificada em áreas que eram de flagrante interesse para o Reino Unido.

Registe-se, contudo, que, no capítulo institucional, o Reino Unido se manteve sempre numa posição algo expectante e não pressionante perante os países de pequena ou média dimensão, parecendo disponível para aceitar o status quo em matérias como a ponderação de votos, embora em determinada fase recuasse visivelmente face à disponibilidade demonstrada em Maastricht para promover a total equidade entre os Estados membros na designação dos comissários. O Reino Unido entrou nesta Conferência como um parceiro auto-excluído do debate e, com ligeiros e inteligentes retoques de posição na parte derradeira dos trabalhos, terá conseguido um resultado amplamente satisfatório para os seus interesses - se bem que tenhamos que considerar que muitos deles continuam ainda a situar-se numa perspectiva meramente defensiva face ao processo integrador.

No extremo oposto à posição britânica poderemos colocar a Bélgica. Desde o primeiro momento abertamente apologista de uma evolução federal que estava longe da agenda desta Conferência, a Bélgica tentou, a todo o tempo, forçar todas as vias que pudessem garantir avanços no sentido que desejava: extensão quase sem limites da maioria qualificada e da co-decisão com o Parlamento Europeu, defesa de uma comunitarização profunda na PESC e na área da Justiça e dos Assuntos Internos (JAI) e ampla extensão de poderes da Comissão Europeia (nomeadamente na política económica externa). A filosofia integradora de Bruxelas só teve como fronteira algumas reticências quanto a um alargamento das competências comunitárias que pudesse desencadear a necessidade de novos recursos financeiros. No plano institucional, depois de ter seguido durante muito tempo uma lógica de auto-sacrifício em matéria de poderes no Conselho, na busca coerente da eficácia funcional à luz do interesse europeu, acabaria por vir a partilhar em absoluto o sindroma dos pequenos/médios países, quando se viu confrontada com uma proposta da presidência holandesa para uma nova ponderação de votos no Conselho que, nomeadamente, reduzia o seu poder relativo precisamente face... aos Países Baixos.   

A posição da Haia é, aliás, das mais difíceis de caracterizar em traços gerais, por assentar numa lógica não totalmente tipificável e por frequentemente ter sofrido algumas, por vezes subtis, alterações durante o curso das negociações. A circunstância de lhe caber a presidência durante o último semestre da Conferência viria ainda a permitir-lhe uma gestão hábil da sua estratégia final de negociação. Foi desde o início patente que os Países Baixos faziam desta Conferência, não um exercício de cumprimento de um programa doutrinal, mas uma racional e pragmática intervenção que, sem deixar de traduzir uma firme leitura integradora da Europa, comportava uma agenda específica, mas não radical, marcada por uma apreciável coerência de objectivos próprios. Vimos assim os Países Baixos defenderem com selectividade as dimensões de cidadania e de direitos, mas sempre numa perspectiva caracteristicamente liberal, nomeadamente em matéria de emprego e direitos sociais. O seu empenhamento na extensão da maioria qualificada e nos poderes do Parlamento Europeu era consistente com uma lógica de interesses próprios que está protegida pela sua centralidade no processo europeu, o que justificou igualmente a sua insistência na extensão de competências do Comité 113º (que gere a política comercial comum) às áreas dos serviços e da propriedade intelectual. Porém, depois de um tempo negocial em que pareciam abertamente dispostos a acelerar a comunitarização da Justiça e Assuntos Internos, os Países Baixos terão recuado um tanto e procuraram fixar durante a sua presidência fórmulas mais moderadas e consensuais. Registe-se que a Haia nunca se mostrou muito activa no apoio à aproximação profunda entre a UE e a UEO e que, sem se afastar do grupo promotor das “cooperações reforçadas”, não foi excessivamente fundamentalista nesta matéria. Fica a sensação que a intervenção holandesa neste processo, se bem que marcada por uma óbvia perspectiva integradora de matriz liberal, terá procurado e conseguido consubstanciar alguns equilíbrios políticos internos que condicionavam a acção do seu Governo.

Para fechar a análise dos Estados do Benelux, resta o Luxemburgo. Como país com uma tradição de empenhamento europeu muito pronunciada, acompanhou frequentemente a Bélgica em parte das suas posições favoráveis a uma evolução federal, muito embora aparecesse, quase sempre, mais moderado nas formulações que defendia. Essa posição parecia derivar de uma constante preocupação pela preservação do seu actual estatuto nos domínios de representação institucional (Conselho, Comissão e Parlamento Europeu), perfeitamente natural num país de pequena dimensão, que só pode ser prejudicado por qualquer deriva no sentido do reforço do factor demográfico no equilíbrio intracomunitário de poderes. Como ponto importante na agenda específica luxemburguesa, ficou patente a sua esperada oposição à utilização da maioria qualificada em questões de fiscalidade. O Luxemburgo confirmou nesta Conferência ser um país com uma filosofia de intervenção que alia uma vincada opção europeia a um grande sentido pragmático, pelo que os resultados da mesma parece terem ido no sentido dos seus interesses essenciais.

A visão federal teve ainda, nesta CIG, a tradicional defesa por parte da Itália, com uma preocupação evidente de visibilidade em todos os domínios que pudessem propiciar o seu interesse pelo aprofundamento da integração. O seu padrão de intervenção seguiu, em muitos pontos, o da Bélgica e revelou que, para os interesses italianos, a comunitarização, nomeadamente nas áreas JAI, bem como na PESC, constituem prioridades inquestionáveis. Tal como sucedera em Maastricht, a Itália procurou introduzir, embora sem sucesso, a questão da hierarquia das normas comunitárias e da codificação dos Tratados, sendo um dos Estados que, desde o início, mais defendeu a concessão de “personalidade jurídica” à União - ideia que não viria a ter acolhimento por oposição minoritária, liderada pelo Reino Unido. Com Portugal, a Itália apoiou a possibilidade de o Tratado revisto incluir uma Carta de Cidadania Europeia[3][**], bem como uma explicitação dos Direitos Económicos e Sociais em termos muito mais avançados do que os que acabaram por ser aprovados. No plano institucional, a Itália esteve sempre ao lado das visões mais radicais em termos da criação das “cooperações reforçadas” e revelou-se muito interessada na revisão dos equilíbrios actuais de voto no Conselho, coerentemente com o seu peso demográfico. A atitude italiana nos principais dossiers em análise na CIG revelou uma determinação em orientar-se sempre pelas linhas de política comunitária, e concomitantes lógicas institucionais, mais próximas das dos Estados centrais europeus de maior dimensão e peso económico, opção a que não serão totalmente estranhas importantes considerações de conjuntura, no quadro dos calendários da integração económico-monetária em curso, dadas as dúvidas suscitadas em alguns meios sobre a sua capacidade de vir a integrar o primeiro pelotão da UEM.

Este último factor pode igualmente ter determinado muito do comportamento da Espanha, cuja política de intervenção na Conferência, em termos institucionais, foi relativamente ambivalente. Desde o início determinada na questão do reforço da sua representação no Conselho (obteria uma declaração sobre a matéria nos últimos minutos da Conferência) e da preservação do seu actual estatuto na Comissão, a Espanha mostrou-se sempre muito mais prudente na questão da extensão dos poderes da Comissão, da maioria qualificada e da co-decisão, vindo a demonstrar apenas uma simpatia reticente pelos modelos de “cooperação reforçada”, que inicialmente rejeitara liminarmente. Totalmente identificada com a posição portuguesa no dossier das “Regiões Ultra-periféricas” (RUP), por virtude dos interesses das Canárias, e das preocupações que manifestámos quanto a uma leitura negativa do conceito de subsidiariedade, Madrid viria, para surpresa de alguns, a não avançar no reforço das áreas da Cidadania que liderara em Maastricht. Com a Alemanha, assumiria até ao final a liderança do grupo que maior oposição colocou à criação do título sobre o Emprego. Nas questões de JAI, colocou acento tónico, por razões conhecidas, no problema da concessão de direito de asilo político por Estados membros a cidadãos comunitários. No quadro da PESC, evoluiu claramente a sua posição nas questões de defesa e segurança na fase derradeira da Conferência, em conjugação com os Estados centrais da União, circunstância a que não seria estranha a sua plena integração na NATO que tinha em curso à época. Em termos gerais, pode dizer-se que a Espanha procurou utilizar a Conferência para reforçar a sua tradicional reivindicação de um estatuto institucional de maior peso, ao mesmo tempo que tentou projectar um empenhamento integracionista, num quadro de procura de identidade crescente com Estados como a França e a Alemanha, embora com a preocupação em manter uma articulação com os países do Sul, com os quais partilha interesses na área dos fundos regionais e de coesão. A permanência de certas questões específicas à realidade espanhola no contexto comunitário (asilo político, Gibraltar) e de algumas condicionantes em termos de desenvolvimento e padrões sócio-económicos (fundos estruturais, desemprego) tornou visivelmente esta dualidade posicional de difícil gestão, embora se possa concluir que do saldo global desta Conferência a Espanha retira alguns resultados positivos.

Posição mais discreta nesta Conferência foi a assumida pela Grécia que, à parte ter manifestado interesse em dar alguma visibilidade à situação específica das suas regiões insulares, bem como ao conceito de solidariedade política no quadro da PESC, não revelou nenhuma agenda positiva particular. Manteve, no entanto, a sua tradicional posição de defesa maximalista da extensão de poderes do Parlamento Europeu, aspecto singular que deriva de considerações tácticas próprias. No resto das áreas institucionais, a Grécia seguiu de perto as preocupações portuguesas. Também nas questões do aprofundamento de políticas, a Grécia manteve uma linha similar à nossa (favorecendo, em particular, a comunitarização do Turismo), embora com empenhamento menor na questão do título sobre o Emprego e nas dimensões sociais do Tratado. No capítulo dos Direitos fundamentais a sua atitude esteve, contudo, na vanguarda da discussão. A Grécia tentou ainda forçar um reconhecimento específico para as regiões insulares, em moldes que pretendia similares aos existentes para as regiões ultraperiféricas, embora com limitado sucesso.

Com uma atitude marcada sempre por uma grande prudência, mas igualmente por uma postura de coerência global, a Irlanda geriu muito bem a sua imagem nesta Conferência, tanto mais que lhe competiu uma das presidências e tinha, à partida, limitações claras em dossiers como a JAI (apenas por virtude da sua dependência geográfica face ao Reino Unido) ou as dimensões de defesa e segurança da PESC (não é membro da NATO e da UEO). Demonstrando estar a levar a cabo uma significativa maturação interna do processo europeu, fruto claro da aproximação crescente de interesses com os países do centro da Europa que o seu desenvolvimento recente facilita, Dublin soube colocar-se com grande abertura nos dossiers institucionais operativos (extensão da maioria qualificada e da co-decisão), revelando contudo uma total sintonia com os países de pequena e média dimensão no tocante às matérias de representação institucional (Conselho e Comissão). Como se disse, nas áreas da JAI e PESC foi tão longe quanto as já referidas limitações lhe permitiam avançar, tendo tido uma atitude de grande abertura nos domínios sociais (produziu uma iniciativa sobre exclusão social que apoiámos desde o início). A sensação com que se ficou desta presença irlandesa é a de que o país está claramente a “mudar de divisão” e que a sua identificação mais completa com o tipo de posições típicas do Benelux é apenas uma questão de tempo.

Essa é, aliás, a ideia que ressalta também da atitude de um país como a Finlândia, aparentemente interessado, tal como a Irlanda, em aproveitar uma linha de identificação com o núcleo central da União como forma de fugir às limitações da sua situação geográfica periférica. Com excepção das questões de representação institucional e de uma reticência óbvia em matéria de defesa e segurança, a Finlândia viria a demonstrar uma vocação federalizante algo inesperada, colocando-se praticamente na vanguarda da maioria dos dossiers que apontavam para a comunitarização, bem como nas versões mais radicais das “cooperações reforçadas”. Desenvolveu, além disso, uma já esperada acção de liderança nas questões da Transparência e do acesso à informação, tal como nas áreas do Ambiente e da Protecção dos Consumidores. A consabida reacção nórdica à ideia da Cidadania da União travou a possibilidade de poder contar plenamente com a Finlândia no reforço da dimensão de Direitos no Tratado. Contudo, verifica-se que estamos perante um país onde a vocação europeia está plenamente assumida e cuja entrada na UEM deverá acabar por consagrar plenamente essa tendência.

Este último ponto é um dos que separa a Finlândia da Suécia, onde a impopularidade da ideia europeia introduz elementos que limitam muito a sua posição negocial externa. A necessidade de captação da sua própria opinião pública obrigou o governo de Estocolmo a reforçar, de forma clara, todo o seu empenhamento nos dossiers de maior visibilidade popular interna, de que se destaca a questão do Emprego (onde foi autor da proposta mais radical), as dimensões sociais, o Ambiente e a Transparência. Evoluindo na área da JAI de alguma reticência inicial para assumir uma postura mais comunitarizante na fase final da Conferência, viria ainda a revelar uma abertura sensível na dimensão externa, situando-se, porém, ao lado da Finlândia, numa atitude de resistência às tentativas integracionistas em torno da UEO, que rejeita por reflexo neutralista. No plano institucional, a atitude sueca foi de evidente prudência no binómio Comissão/Conselho, favorecendo contudo uma linha de extensão da maioria qualificada em áreas em que os seus interesses estão protegidos no contexto do Conselho. As limitações de aceitação interna da ideia europeia pareceram condicionar, de forma clara, a afirmação pela Suécia de um salto qualitativo em matéria de integração nesta CIG.

Posição ainda mais difícil, entre os países nórdicos, é a da Dinamarca, que vive flagrantemente sob o trauma da difícil experiência da ratificação de Maastricht, pelo que a atitude de Copenhague à mesa da CIG tem de ser entendida a essa luz. Tal como os seus restantes parceiros nórdicos, a Dinamarca sublinhou a importância no aprofundamento das questões de maior aceitação junto da sua opinião pública - o Ambiente, a Transparência, a Igualdade entre homens e mulheres e a luta contra a Fraude. No campo institucional, a sua posição foi algo reticente, tendo no início da CIG insistido na questão das Presidências colectivas (tema que não teve seguimento) e mostrando escasso entusiasmo quanto às “cooperações reforçadas”. Na área da JAI, dificuldades de aceitação nacional obrigaram a Dinamarca a obter um regime de “opt out” na fase final da Conferência face ao acordo de Schengen, tendo igualmente revelado alguma resistência aos modelos de integração progressiva na área da PESC, com particular rejeição das propostas na área da segurança e defesa. De qualquer forma, e tendo em atenção a peculiaridade das suas preocupações, pode considerar-se que a Dinamarca saiu desta CIG com os seus principais interesses protegidos e, o que é essencial, com um Tratado que parece menos difícil de ratificar que o de Maastricht.

Uma mescla interessante de posições caracteriza a atitude da Áustria, que partilha muitas das preocupações nórdicas (Ambiente, Igualdade e não-discriminação), com as de alguns países do sul (Cidadania, Direitos Fundamentais) e com as do seu principal vizinho, a Alemanha (leitura negativa da Subsidiariedade e extensão maximalista de poderes do Comité das Regiões). Um dossier que motivou, em especial, Viena foi o do Emprego, onde, com a Suécia (e contra a Alemanha) defendeu as posições mais radicais. No plano institucional, e pelas mesmas razões dos nórdicos e do Benelux, a defesa da extensão da maioria qualificada e da co-decisão esteve sempre na sua agenda, mostrando-se, contudo, com uma posição restritiva nas tentativas de menorização de representação institucional. Para a Áustria, o resultado de Amesterdão pode considerar-se positivo.

Nesta análise por país, resta caracterizar a posição dos dois Estados que tradicionalmente marcam grande parte do ritmo da construção europeia: a França e a Alemanha. Se durante grande parte da Conferência a articulação entre os dois países parecia perfeita, foi notório nos derradeiros oito meses que a vontade evidente de encontrar posições comuns se confrontava com crescentes dificuldades de gerar consensos em dossiers sectoriais, embora tivesse sido patente que Bona terá feito um esforço maior do que Paris para garantir a proximidade de posições. A circunstância da situação política interna alemã ter evoluído de forma clara na projecção externa da vontade de Bona e o facto da França ter, na fase final da Conferência e por estritas razões políticas internas, sublinhado algumas posições muito específicas que não eram passíveis de acompanhamento por parte da Alemanha terá, a nosso ver, marcado muito do ambiente final de Amesterdão. Terá, em especial, criado um clima não propício à confirmação da estratégia de pressão conjunta no domínio institucional - com efeitos na Comissão e na ponderação de votos no Conselho - que parecia inevitável desde os primeiros dias do “Grupo de Reflexão”. Só nos podemos congratular por isso.

Com efeito, em especial para a França, esta CIG representava claramente uma oportunidade para consagrar um reforço do seu poder dentro do Conselho, elemento durante muito tempo considerado essencial para a aceitação da extensão da maioria qualificada e do aumento do leque da co-decisão com um Parlamento Europeu cujas competências Paris se mostrou sempre reticente em alargar. Por outro lado, a França defendia um modelo reduzido da Comissão (10 a 12 comissários) e, com a Alemanha, lançou para a mesa desde muito cedo, embora sem formulação clara, a ideia das “cooperações reforçadas”. Aspecto importante da agenda francesa era o papel dos Parlamentos Nacionais no plano comunitário, dado que o governo de Paris estava preso a uma resolução muito específica da sua Assembleia Nacional, que ia no sentido da instituição de um órgão de representação parlamentar dedicado a avaliações no domínio da Subsidiariedade e de questões na área da JAI (num modelo muito mais ambicioso do que o proposto pela Conferência dos Parlamentos - COSAC). Neste último domínio, porém, o entusiasmo de Paris era bastante limitado em termos de evolução comunitarizante, mantendo até tarde sérias reticências face à ideia de integração de Schengen. Já na PESC, se bem que menos interessada que a Alemanha na utilização da maioria qualificada, a França avançou desde sempre com uma figura de Alto Representante (também conhecida por Sr./Sra. PESC) que, no entanto, pretendeu (sem sucesso) autonomizar das presidências e fazer responder directamente perante o Conselho Europeu - instância que Paris tradicionalmente favorece em termos de decisão. Com a chegada ao poder do novo governo socialista, nos últimos dias da Conferência, a França acabou por reforçar aqueles que, como nós, defendiam a inclusão de um título específico sobre o Emprego no Tratado, sublinhando assim a dimensão social do resultado de Amesterdão.

No que toca à Alemanha, a sua agenda foi evoluindo, como dissemos, desde o início da CIG. Como aspectos determinantes da sua posição, poderemos identificar a sua insistência da comunitarização da PESC (embora durante muito tempo contrários à figura de representação externa, que acabariam por aceitar por insistência de Paris), à evolução de uma aproximação entre a UE e a UEO em matéria de defesa (com algumas “nuances” face à posição francesa), a uma leitura negativa da subsidiariedade (no que eram acompanhados pela Áustria), ao reforço radical do Comité das Regiões (também com a Áustria), ao alargamento substancial de poderes do Parlamento Europeu (o que não é de estranhar, sendo o país com mais parlamentares) e, em especial, à defesa acérrima das “cooperações reforçadas”. Depois de ter defendido durante largos meses uma extensão quase generalizada da maioria qualificada, a Alemanha viria, na fase derradeira da Conferência, e para surpresa de quase todos,  a querer preservar a unanimidade em determinadas áreas específicas, por razões que se prendem com os poderes regionais internos. Refira-se que a Alemanha foi, em especial acompanhada pelo Reino Unido, o país mais renitente em aceitar o capítulo sobre o Emprego. Finalmente, importa dizer que a Alemanha foi o maior promotor das inúmeras Declarações que o Tratado de Amesterdão comporta, como aparente forma de aplacar interesses internos que poderiam objectar à ratificação do novo Tratado.

São estas, em linhas gerais, as posições básicas que se apresentaram na CIG. Não referimos em detalhe as opções apresentadas pela Comissão Europeia e pelos representantes do PE, dada a circunstância de muitas das suas preocupações - geralmente de carácter integracionista e de defesa das prerrogativas das respectivas instituições - terem encontrado acolhimento nas agendas de muitos Estados membros.

Definidas, com o grau de caricatura e de subjectividade já confessado, as posições dos parceiros nesta negociação, tentaremos de seguida dar uma ideia cronológica sobre o modo como ela se processou, dedicando neste caso uma particular atenção ao papel desempenhado por Portugal neste contexto.

  
O jogo

I

O processo negocial da CIG iniciou-se em Março de 1996, no Conselho Europeu de Turim, sob uma presidência italiana que procurou aproveitar os escassos meses da sua gestão do processo para forçar algumas linhas de trabalho relativamente ambiciosas. A metodologia italiana, assente na discussão de temas gerais apoiada em documentos de orientação, com apresentação de alternativas-tipo, contribuiu, na perspectiva de muitos, por transformar esta fase do trabalho numa espécie de segundo “Grupo de Reflexão”, confirmando apenas as posições anteriormente expressas por cada país. Essa orientação confrontou-se, em larga escala, com uma atitude reticente por parte de muitos Estados membros em se comprometerem demasiado cedo com posições concretas, cientes de que isolar e concluir sectorialmente determinados dossiers tornava difícil garantir a respectiva margem de manobra nacional no equilíbrio final. Assim, a presidência italiana teve que aceitar que as respectivas propostas de novos articulados para alguns escassos domínios do futuro Tratado, que surgiriam apenas na fase terminal da sua gestão, fossem simplesmente registadas nas Conclusões do Conselho Europeu de Florença, que, em Junho, tomou nota de um relatório da presidência sobre o decurso dos trabalhos, sem, no entanto, o endossar formalmente.

O comportamento negocial português durante estes primeiros meses de negociação foi, a exemplo de muitos outros Estados, de alguma prudência e de reafirmação de princípios essenciais que deveriam estar presentes no processo de reforma dos Tratados. Convirá lembrar que, à época, as questões institucionais estavam praticamente afastadas da mesa de negociação e que temas mais específicos, como o regime especial para as regiões ultraperiféricas, continuavam ainda a não ter espaço para inscrição na agenda negocial. Assim, procurámos sublinhar, em conjugação com a presidência, o interesse em dar mais evidência ao domínio da Cidadania europeia e da necessidade de o novo Tratado incorporar um tratamento mais substancial do capítulo dos Direitos (Direitos fundamentais, Direitos económicos e sociais, Protecção das Minorias, Igualdade entre homens e mulheres, Não-Discriminação), defendendo a adesão da União à Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Retomámos, neste domínio, a proposta feita durante o “Grupo de Reflexão”, no sentido da imposição de critérios de comportamento mínimo dos Estados membros em matéria de Direitos democráticos e de observância das regras do Estado de Direito, tese que a Conferência viria a acolher. Fomos, entretanto, acompanhando as propostas nórdicas em matéria de Transparência e abertura da União a um maior escrutínio exterior. Na linha de uma preocupação doutrinária que marcou toda a nossa postura na CIG, manifestámos também o nosso empenho na criação de um capítulo ou título no novo Tratado dedicado ao Emprego, continuando a revelar abertura à possibilidade de dar competências acrescidas à União em matéria de Protecção Civil, de Energia e de Turismo. No que respeita às questões de JAI, e para além da adesão à simplificação de procedimentos e instrumentos e à inclusão de Schengen no Tratado, a nossa atitude negocial esteve nesta fase limitada pelo debate que se processava a nível técnico no nosso país sobre a definição do grau de comunitarização desejável de certos domínios. Na PESC, e porque não prevaleciam então quaisquer discussões em termos do processo decisório, a posição nacional acompanhava a linha dominante entre os EM (no tocante à criação da figura do “Sr./Sra. PESC” e à instituição de uma célula de análise), procurando apenas garantir a preeminência do Conselho na gestão da diplomacia comunitária e evitar uma deriva excessiva para o Conselho Europeu do centro nevrálgico dessa acção.

Com o termo da presidência italiana, a sensação de que a Conferência não estava a ter um ritmo eficaz para os objectivos que lhe haviam sido definidos começou a passar para a opinião pública e a funcionar como instrumento de pressão para consagrar algumas soluções, sob a justificação da necessidade de uma maior “ambição” - expressão que no jargão comunitário funciona frequentemente como simples sinónimo de maior comunitarização e de soluções institucionais simplificadas, frequentemente consagrando o desequilíbrio entre Estados de diferente dimensão, numa lógica que não raramente faz prevalecer a eficácia comunitária sobre a legitimidade nacional. Foi esse o ambiente que dominou a retoma dos trabalhos em Setembro, já sob a presidência irlandesa.


II

Tendo como mandato do Conselho Europeu de Florença a necessidade de elaborar, até Dezembro de 1996,  “um esboço geral de um projecto de revisão dos Tratados”, e correspondendo também ao pedido de alguns Estados membros, entre os quais Portugal, a Irlanda tentou modificar os termos do debate, procurando sair da confrontação conceptual que a presidência italiana elegera como método e assentar os trabalhos em textos concretos de articulado. Esse método, que tinha à partida limitações e resistências, veio a revelar-se produtivo e a presidência irlandesa tentou garantir por seu intermédio a fixação de um conjunto mais alargado de consensos a 14 (a posição do Reino Unido continuava com o seu isolamento tradicional) que ficou expresso no documento que apresentou ao Conselho Europeu de Dublin, em Dezembro. Tratou-se de um texto hábil, que combina os consensos possíveis (menos 1) com uma radiografia do estado dos trabalhos em áreas mais sensíveis ou polémicas. Não consagrando a linha de ruptura com o gradualismo que alguns haviam procurado impor nesta penúltima fase da Conferência, o documento de Dublin representou uma base excelente de trabalho para a presidência seguinte.

Durante a gestão irlandesa, a nossa posição negocial foi substancialmente mais afirmativa e optámos por tentar forçar o debate institucional, nomeadamente nas áreas em que o mesmo pudesse revelar as diferenças de sensibilidade entre Estados de diferente dimensão. Tratava-se, a nosso ver, de procurar reforçar alianças objectivas entre países que não podiam manifestamente chegar ao termo da CIG com uma situação de menorização institucional e que, como tal, tinham toda a conveniência de colocar na praça pública essa sua dificuldade, quanto mais não fosse para provocar uma mediatização europeia do debate que só lhes poderia ser favorável, por denunciar implicitamente a quebra do espírito de solidariedade intracomunitária que presidia à posição contrária.

Foi este também o período em que decidimos assumir com grande visibilidade a tentativa de delimitação e concretização do conceito de “cooperações reforçadas”, como reacção a um documento genérico franco-alemão que deixava a questão colocada em termos de perigosa indefinição. Ao colocarmos sobre a mesa da Conferência um primeiro projecto de articulado sobre os modelos possíveis de “cooperações reforçadas”, e ao avançarmos em diversas reuniões da CIG com um argumentário sólido sobre a questão, temos a consciência de ter condicionado definitivamente o debate e, essencialmente, de ter atingido os objectivos que, nesse domínio, nos motivavam: garantir a preservação do quadro institucional único, assegurar o direito de iniciativa exclusiva da Comissão, manter abertas as portas dos possíveis modelos a futuros aderentes e, o que era básico, não permitir que esses mesmos modelos se pudessem instituir contra os interesses essenciais de qualquer Estado.

Neste período da negociação, Portugal encontrou na presidência irlandesa um aliado para as suas ideias de reforço da dimensão ética da construção europeia (Direitos, Não-discriminação, Igualdade), bem como para a consagração da necessidade de combate à Exclusão Social, tema em que Dublin adiantou uma sugestão concreta à Conferência. A circunstância do Reino Unido continuar a manter uma posição muito reticente nas questões da JAI, levou a que as propostas da presidência - marcadas sempre por uma irrepreensível independência, mas igualmente por uma partilha de algumas das preocupações britânicas - privilegiassem a consensualização dos grandes princípios, que Portugal não teve dificuldade em acompanhar. No caso da PESC, a nossa posição continuava a ser totalmente confortável, com as propostas portuguesas situadas no centro do debate, nomeadamente através da aceitação do conceito de “abstenção construtiva”, entretanto consensualizado. A polémica inserção de um título específico sobre o Emprego continuava a dividir a CIG, encontrando-se o governo português na linha dos países que defendiam uma linha bastante avançada neste domínio. Também nos mantivemos no apoio ao reforço à Protecção dos Consumidores e fomos dos primeiros a manifestar um assentimento à consagração de referências substantivas aos Serviços Públicos (proposta pela França) e às acções de Voluntariado (proposta pela Espanha). Entretanto, a posição portuguesa em matéria de Subsidiariedade ia-se afastando - e foi-o crescentemente até ao termo da CIG - daqueles que pareciam interessados em aproveitar a discussão sobre os níveis desejáveis de decisão para dificultar ou mesmo fazer regredir a intervenção comunitária em determinadas áreas, bloqueando o poder de intervenção da Comissão e baixando o patamar de acção comum a nível europeu, com fundamentos de legitimidade que, na prática, representavam apenas uma atitude restritiva em termos de encargos financeiros. Reticente era, contudo, a nossa posição face a algumas propostas tendentes a generalizar as competências da Comissão em matéria de relações económicas externas, onde um certo afastamento dos interesses nacionais patente na política comercial da União nos parecia poder indiciar o perigo de enveredar por uma generalização a todas as áreas cobertas hoje pela Organização Mundial de Comércio (OMC).  A evolução deste dossier viria, contudo, a fazer-se numa linha mais moderada, já nas derradeiras horas da negociação. Ligada a esta questão estava a da concessão de personalidade jurídica à União, domínio em que o nosso país assumia uma posição de aceitação pragmática de uma leitura limitada de poderes.


III

Com o Conselho Europeu de Dublin a conferir uma generalizada avaliação positiva ao texto apresentado pela presidência irlandesa, entra-se em 1997 com a consciência de que os últimos seis meses da CIG iriam representar o momento de inevitável confronto de perspectivas, nomeadamente nos capítulos mais polémicos. A nova presidência holandesa decidiu, e bem, lançar desde o início para a mesa as questões institucionais, naquilo que por alguns foi considerado como um teste à possibilidade - que, na altura, chegou a ser posta em dúvida - da Conferência terminar dentro do período previsto. Este método negocial tinha a vantagem, a nosso ver, de “dramatizar” o debate e de assegurar uma visibilidade pública às divergências existentes no seio da CIG. Permitiu, desta forma, garantir que os países com preocupações similares em termos de representação institucional pudessem encontrar uma plataforma comum de abordagem desses problemas, o que representava um passo táctico que nos interessava defender.

O tema das instituições, que as anteriores presidências haviam “congelado” por o entenderem inconveniente para o fluir sereno do debate, saltou assim para a negociação e foi interessante ver alguns Estados, que desde o início da CIG haviam tido a preocupação de mostrar um europeísmo “à outrance” em vários domínios, juntar-se à comezinha, mas para nós sempre essencial, preocupação pela representação na Comissão ou por uma ponderação razoável do seu poder no Conselho. Essa aliança, que chegou a ter foros de alguma formalização, foi essencial para cedo deixar claro aos países de maior dimensão que não seria possível apostarem numa estratégia de adiamento constante do debate institucional e que não poderiam contar com uma espécie de “noite de facas longas” em Amesterdão, onde, contra a pressão do cronómetro, fosse tentado desequilibrar o padrão actual de representação institucional.

Para Portugal, a situação nesta matéria era, desde o início, de grande clareza e deixámo-lo bem expresso, de modo frontal, em diversas ocasiões: não admitíamos sair da CIG sem o direito de indicar um Comissário, embora estivéssemos abertos a considerar uma ligeira rectificação da escala de ponderação de votos, funcionando essa nossa abertura na razão directa da disponibilidade que fosse possível obter por parte dos Estados com dois Comissários para prescindirem de um deles. No tocante à utilização da maioria qualificada no Conselho, mantínhamos a nossa tradicional posição de preservar a unanimidade para algumas decisões de natureza institucional ou fortemente estruturante, mantendo flexibilidade para aceitar a sua aplicação em outras áreas, numa perspectiva caso-a-caso - perspectiva essa que acabaria por prevalecer. No tocante à co-decisão com o Parlamento Europeu, a atitude portuguesa tinha uma lógica incontestável: aceitávamos que ela se aplicasse em todas as matérias de natureza legislativa em que o Conselho decidisse por maioria qualificada. Ainda no campo institucional, favorecíamos uma extensão razoável de poderes do Comité das Regiões e um considerável poder acrescido de intervenção por parte do Tribunal de Justiça, para além de uma reforma moderada do papel do Tribunal de Contas. Uma área em que nos mantínhamos com grande abertura era a do papel dos Parlamentos Nacionais na vida comunitária, questão em que naturalmente seguimos de forma estrita os consensos gerados dentro da nossa própria Assembleia da República.

Nas restantes áreas em discussão, prosseguíamos coerentemente a linha negocial anterior, nomeadamente no tocante às dimensões éticas, às questões sociais (incluindo o Emprego e a luta contra a Exclusão Social). Mas seria durante a presidência holandesa que a nossa posição em matérias de JAI evoluiu em Portugal de forma mais clara, por decisão política ao nível mais elevado, implementada pelos titulares das pastas da Administração Interna e da Justiça. A equipa negocial portuguesa foi então habilitada com um mandato claro que permitiu compatibilizar uma perspectiva integradora extremamente avançada com a preservação de interesses nacionais essenciais. O nosso assentimento a determinadas soluções neste domínio ficou, assim, ligado à afirmação pela Conferência de três declarações interpretativas que reputávamos fundamentais. A circunstância de Portugal ter a presidência do Acordo de Schengen no último semestre da negociação permitiu-nos reforçar a expressão do nosso interesse na integração do Acordo no Tratado, tendo-nos cabido a definição do respectivo acervo legislativo a inserir no Tratado.

No capitulo da PESC, e sem prejuízo do decurso da negociação apontar para soluções perfeitamente conformes à nossa leitura do interesse comunitário, foi necessário garantir que o respectivo processo de decisão teria sempre, como salvaguarda última, um elemento de interesse nacional com possibilidade de ser invocado - fórmula que Portugal deixou bem claro considerar essencial para a aprovação do Tratado pelo nosso país. Em matéria de segurança e defesa, reiterámos sempre o interesse com que víamos a possibilidade de o Tratado revisto consagrar uma aproximação formal mais concreta entre a UE e a UEO, perspectiva que, embora maioritária, acabaria por não ter aceitação final em virtude da conjugação bloqueadora de algum atlanticismo radical com tradições neutralistas, ambas decorrentes da sobrevivência de síndromas da “guerra fria”.

Avançada ainda na presidência irlandesa, a proposta portuguesa para o reforço do estatuto das Regiões Ultraperiféricas, que viria a articular-se com textos no mesmo sentido da França e da Espanha, acabou por converter-se num eixo central da agenda nacional nesta Conferência. Durante a presidência holandesa, deixámos muito claro que não tínhamos condições para aceitar o equilíbrio geral da revisão do Tratado se não conseguíssemos dar passos substanciais nesta matéria. Esta mensagem passou e isso acabou por ser essencial para o êxito da nossa estratégia, embora a solução final só tivesse sido possível já no próprio Conselho Europeu de Amesterdão.

Refira-se ainda que Portugal teve iniciativas autónomas no tocante à protecção das Instituições Religiosas e à especificidade das Estruturas Desportivas, as quais acabaram por se projectar de forma decisiva nos textos que a CIG aprovou nestes domínios. Ainda no tocante às políticas comunitárias, saliente-se que nos associámos a novas propostas entretanto surgidas nas áreas do Ambiente e da Saúde, para além da preservação do Serviço Público de Radiodifusão, mantendo-nos, naturalmente, na linha de continuidade em relação aos restantes domínios que tínhamos vindo a privilegiar na nossa posição negocial desde o início da Conferência.

Como é uso neste tipo de Conferências, o Conselho Europeu final revelou-se decisivo para o encerramento de alguns dossiers nucleares. Assim, a “não-decisão” sobre o binómio Comissão-ponderação de votos, a fixação do modelo aberto nas “cooperações reforçadas”, a consagração do critério do “interesse vital” na PESC, bem como os modelos de “geometria variável” na JAI acabaram por resultar de uma laboriosa negociação final a nível de Primeiros-Ministros. Do mesmo modo, a fórmula conseguida para o título sobre o Emprego (com uma declaração interpretativa que negociámos nas últimas horas e que garante a não utilização da rubrica financeira das políticas estruturais para este fim) só foi possível nesse mesmo contexto final, contando, na ocasião, com a pressão positiva do novo Governo socialista francês e com uma posição mais dúctil por parte do novo executivo trabalhista britânico.

Como no início afirmámos, do saldo de Amesterdão outros textos trataram e tratarão, na certeza que temos de que a leitura das qualidades e deméritos do novo Tratado está longe de ser unívoca. Pela nossa parte, ficámos com a ideia, porventura imodesta, de que os principais interesses portugueses ficaram perfeitamente salvaguardados e que foi possível projectar, ao longo de toda a negociação, uma ideia portuguesa do processo europeu com um mínimo de coerência e consistência.

Mas porque o objectivo deste texto era, desde o início, reflectir sobre a CIG na perspectiva de um exercício de prática diplomática, talvez não seja despropositado encerrá-lo com alguns juízos conclusivos sobre o método seguido.


Conclusões

Assim, e para terminar, num esforço de racionalização e de aplicação útil da memória, e como testemunho de uma experiência diplomática que entendemos dever partilhar, julgamos interessante poder deixar ficar aqui algumas conclusões de carácter prático que este exercício nos suscitou.

A primeira conclusão diz respeito ao planeamento dos trabalhos para uma negociação deste teor. Importa proceder com antecedência a um debate interno alargado, assente em textos de reflexão e cenarização, que permita fixar e hierarquizar os objectivos essenciais a defender e colocar propostas para um conjunto de iniciativas ou contribuições doutrinárias nas mãos da equipa negocial, dando-lhe um sólido argumentário para as defender. A definição do tempo certo para a introdução dessas propostas é o elemento-chave do processo negocial, podendo uma boa proposta perder-se se imersa na voragem de um tempo errado do debate. No caso português, este exercício demonstrou que se poderia ter ido mais longe no espectro de propostas a colocar sobre a mesa da Conferência, particularmente em áreas não excessivamente conflituais ou polémicas, como forma de garantir uma visibilidade permanente em grande número de temas e ao longo de todo o exercício. A fixação dessas propostas, ainda que em termos genéricos, num documento de natureza política, amplamente divulgado no tempo certo, constitui um elemento muito positivo para a imagem negocial do país.

A segunda conclusão tem a ver com a organização interna do apoio técnico especializado. Neste domínio, e sem prejuízo do interesse que haveria em ter conseguido formar um núcleo central um pouco mais alargado, cremos que o formato dos grupos de trabalho e a sua inter-articulação se revelaram em geral eficazes e garantiram um bom grau de coesão. Importa deixar claro que esta experiência demonstrou que é forçoso criar, muito cedo, uma “massa crítica” mínima no núcleo central da equipa negocial, dada a impossibilidade, a partir de certa altura, de responder ao ritmo da CIG através de uma consulta de rotina aos departamentos sectoriais, salvo para questões pontuais. Tal obriga a conjugar, nesse mesmo núcleo, personalidades com valências técnicas que sejam, ao mesmo tempo, relativamente especializadas mas com um conhecimento concreto da realidade comunitária global.

A terceira conclusão reporta-se à necessidade de manter uma grande abertura do processo negocial ao exterior, seja no plano mediático, seja às diferentes áreas da sociedade (associações de interesses, universidades, associações profissionais, etc.), seja às forças políticas, nomeadamente no quadro parlamentar. Durante esta negociação foi possível gerar um grau de articulação, e até de objectiva cumplicidade, entre o governo e a CAE da Assembleia da República, que veio a revelar-se fundamental, não apenas para colher regularmente a sensibilidade dos representantes eleitos, mas igualmente para lhes proporcionar uma informação directa e permanente, que não deixará de ter importância na sua avaliação do Tratado, no curso da respectiva ratificação.

A quarta conclusão prende-se com a substância da intervenção e com a necessidade de resultar essencial para os interlocutores externos uma imagem global de coerência da posição nacional em todos os domínios. Para qualquer país, torna-se importante reduzir o risco de, simultaneamente, ter um discurso de cariz comunitarizante e continuar a pontuar o centro do debate com temas menores da sua agenda nacional, que possam ser vistos como contraditórios com essa mesma orientação. Sendo óbvio que a qualquer Estado é impossível evitar manter em permanência uma afirmação de importantes interesses sectoriais de natureza e objectivos tipicamente nacionais, a experiência demonstrou-nos ser preferível explicitar com frontalidade essas limitações e assumi-las abertamente à mesa da negociação, evitando procurar iludi-las com argumentação falaciosa.   

A quinta e última conclusão respeita à necessidade de cedo ficar visível aos olhos dos nossos parceiros quais são os nossos limites efectivos de flexibilidade negocial, abaixo dos quais qualquer compromisso será inviável, embora sem abrir por completo o jogo táctico. Para isso, importa modular as nossas “exigências” e credibilizá-las no decurso do debate. A prática diplomática portuguesa é tradicionalmente marcada por uma grande seriedade de objectivos, não tendo por hábito apoiar-se em agendas maximalistas, que “deixa cair” nos momentos derradeiros, como acontece com outros parceiros. Terá sido a firmeza com que manifestámos, desde o primeiro dia, que nos era essencial um resultado efectivo na questão das regiões ultraperiféricas e que não admitíamos sair desta CIG sem a possibilidade de indicar um Comissário que terá convencido a Conferência da nossa determinação. O mesmo é válido para a aceitação condicional que demos aos mecanismos decisórios na PESC e na JAI, no primeiro caso exigindo a salvaguarda do “interesse vital” e, no segundo, obrigando à produção de Declarações da Conferência que abrem a porta à possibilidade futura de invocação de regimes específicos que nos interessam. Se há algo que importa perceber é que a assunção de uma atitude táctica num processo negocial não é sinónimo de tergiversação no discurso central que se projecta ao longo desse mesmo processo.

São estas algumas das várias conclusões práticas que será possível extrair de um longo e laborioso processo negocial como aquele que constituiu esta Conferência Intergovernamental para a revisão do Tratado da União Europeia. A certeza sobre a validade objectiva dessas conclusões não existe. Essa validade só poderá, porventura, ser aferida à luz da eventual adequação dos resultados da Conferência aos interesses que ao Governo competia nela salvaguardar: aos interesses portugueses e ao interesse europeu, este último sendo para nós - não o esqueçamos - parte integrante do primeiro.





[1]  A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que veio a sera aprovada no Conselho Europeu de Nice, em Dezembro de 2000, inclui precisamente os direitos económicos e sociais que esta iniciativa portuguesa pretendia consagrar.


 (Publicado na revista “Política Internacional” (vol. 7, nº 15/16, 1997), Lisboa)