30 de novembro de 2011

25 anos na União Europeia

Que modelo de integração económica e política consideraria adequado à União Europeia?

A resposta que hoje dou esta pergunta é, com toda a certeza, muito diferente da que teria dado há uns anos atrás. A aceleração das questões em torno do projeto europeu, em especial depois dos últimos alargamentos, da falência objetiva do tratado de Lisboa e da crise do euro obrigam a que qualquer observador sensato pare um pouco para pensar e, muito em particular, deva ser tentado, por um proverbial bom-senso, a assumir uma atitude “possibilista”, para utilizar um termo da história politica que já poucos lembram mais muitos, mesmo sem o saberem, praticam.

Faço parte de uma geração que começou por usar a ideia da integração europeia como um desafio provocatório à nossa ditadura, que depois a olhou como um projeto ideológico de contornos algo duvidosos e que, posteriormente, a acabou por aceitar como o modelo mais óbvio para assentar o desenvolvimento e a estabilidade democrática do país. Mas, como muitos da minha geração, não cheguei à Europa por um sentimento europeísta. Aderi ao projeto por uma opção utilitária, com muito egoísmo soberanista à mistura, porque então me parecia o mais adequado formato, no mercado possível das opções estratégicas, para assegurar o que entendia ser o interesse português. Só depois de ter vivido por dentro o processo integrador, apenas após o ter interiorizado como parte do meu próprio destino, é que comecei a pensar a Europa a partir dela e das suas finalidades próprias. E, desde essa altura, passei a entender que na sua construção reside também aquilo que se pode definir como a essência do nosso interesse nacional.

Hoje, perante a realidade que vivemos, e na impossibilidade de se conseguir, em tempo útil e de forma adequada, uma consensualização “a 27” para uma alternativa ao Tratado de Lisboa, considero que deve caminhar-se, tão rapidamente quanto possível, para um modelo de “cooperação reforçada”. Esse modelo deveria ser construído em torno da “eurozona”, com a fixação de critérios fortes de monitorização das “performances” macro-económicas e de aproximação das políticas económicas, fiscais e sociais, em tudo isso assegurando sempre um papel central à Comissão Europeia. Essa “cooperação reforçada”, que está prevista como possível nos tratados, conviveria com o aparelho tradicional da União e, em caso de um eventual sucesso na aplicação do seu modelo específico, poderia vir a ser o fermento político inspirados para uma futura reforma dos tratados. Esta dualidade permitiria estabilizar o modelo da União previsto nos tratados, sem os sujeitar às tensões induzidas pelos problemas específicos da zona euro. A presença da Comissão Europeia no seio da “cooperação reforçada” garantiria a coerência necessária entre os dois modelos. Atentas as questões especiais de cedência de soberania – em termos orçamentais e de políticas económica e fiscal – que a zona euro suscita, nada impediria que os respetivos países estudassem a criação de uma fórmula específica de associação dos respetivos parlamentos nacionais ao processo decisório (ou de consensualização de medidas) da “cooperação reforçada”, sem prejuízo do pleno exercício das competências que, para toda a União, competem ao Parlamento Europeu. Essa associação dos parlamentos nacionais permitiria colmatar o “défice democrático” que a especificidade dos processos decisórios no seio da “cooperação reforçada” viesse a suscitar.


Existirá uma identidade europeia e em que se traduz?

Confesso que, depois do último alargamento – que continuo a pensar ter sido um passo indispensável para o equilíbrio estratégico do continente depois do fim da URSS –, passei a alimentar sérias dúvidas sobre a existência de um laço identitário, para além de algumas dimensões de cariz geopolítico, que ligue os cidadãos de todos os países do continente europeu. A “familiaridade” que parecia existir na Europa “a 15”, que já tinha sido abalada pela crise com a Áustria em 2000, está hoje seriamente comprometida com práticas políticas de natureza autoritária e discriminatória que se espalham, perante uma complacência pública evidente, por muitos países da atual União Europeia. Aquilo que parecia ser uma espécie de “jurisprudência” em matéria de princípios, que dava à Europa uma autoridade para poder ser um “benchmark” perante países terceiros, com reflexos na credibilidade da sua política externa, tem-se vindo a diluir perante o escandaloso quase silêncio das instituições europeias, devendo à Comissão, neste domínio, serem assacadas as principais responsabilidades. Exclusões linguísticas, pressões sobre os media, discriminações sobre estrangeiros e cidadãos de diferentes etnias, ascensão ao poder nacional ou local de partidos xenófobos e racistas fazem parte de um dia-a-dia europeu que parece já não escandalizar ninguém.

Será que, afinal, uma identidade europeia tem necessariamente de conviver com a “federalização”, pelo silêncio, daquele tipo de práticas? Ou será que o modelo induzido socialmente pela ominpresença da economia de mercado basta como “template” para nos identificar como europeus? Já soube a resposta, agora tenho muitas dúvidas.

Como avalia os efeitos da adesão às Comunidades sobre a economia portuguesa?

Constituiu sempre para mim um mistério a falta de uma avaliação concreta e rigorosa das opções feitas aquando da nossa adesão, no tocante aos respetivos efeitos sobre o tecido económico português. Enquanto, no plano industrial, as coisas me pareceram sempre mais ou menos transparentes, fico com a sensação de que algumas das decisões tomadas em matéria agrícola derivaram de um voluntarismo político que pôs de lado certas precauções para acelerar o final da negociação. Sempre me perguntei sobre se, nessa postura, não estava também uma leitura determinista de que não valeria a pena estar a lutar excessivamente por determinadas produções, porque elas estariam sempre condenadas perante o padrão predominante na política agrícola comunitária. Se olharmos para a deliberada aceleração do desmantelamento pautal que, a certa altura da nossa presença na então CEE, foi autonomamente determinada pelas autoridades portuguesas na área agrícola, com vista a baixar artificialmente baixar a inflação, encontro boas razões para acreditar que então se atuou pela mesma lógica.

Dito isto, e em termos globais, creio que é inegável que o impacto global da nossa integração no tecido comunitário acabou por ser muito positivo. Não que a cultura empresarial portuguesa tivesse mudado automaticamente por esse facto, no que toca à sua tibieza e até ao modo como se “refugiou” no mercado europeu, confortada por uma malha legislativa e por um ambiente de negócios que não exigiam muita imaginação e audácia. Com os anos, porém, a formação dos nossos empresários, e o seu assessoramento técnico, evoluiu bastante, como hoje se torna evidente em muitas áreas, da indústria aos serviços e em setores agrícolas de ponta.

Porém, e por décadas, é importante que se diga que, em importantes faixas do tecido industrial português, em especial na área têxtil, uma política de complacência, socialmente motivada, permitiu a sobrevivência no tempo de empresas condenadas tecnologicamente, não tendo havido coragem política, como aconteceu noutros países, para promover uma reconversão industrial que triasse com rigor as unidades produtivas a salvar, reforçando e capacitando as mais viáveis para arrostar com um mundo competitivo. A prova provada desse erro político surgiu quando, na abertura da Europa à globalização, muitas empresas nacionais foram apanhadas no início ou apenas a meio de um processo de reconversão e modernização tecnológica, não tendo conseguido resistir ao impacto da chegada de produtos de terceiros e mais competitivos fornecedores do mercado europeu. 

Felizmente, algumas unidades ainda oriundas desse tecido tecnológico mais antigo conseguiram, entretanto, recuperar e colocar-se de forma competitiva no mercado internacional. Outras desapareceram, como alguns cemitérios industriais por aí nos testemunham. E, vale a pena dizer, foi em grande parte o investimento direto estrangeiro e, mais recentemente, um novo tecido de PME dirigido por outra cultura empresarial que conseguiram garantir aquilo que é hoje o essencial da nossa capacidade exportadora.

Que efeitos teve a adesão sobre a sociedade portuguesa, no seu conjunto?

É difícil sintetizar os efeitos, em termos de choque de modernidade, que a integração europeia teve para o nosso país. À vista dos portugueses, na paisagem e nos bolsos, quiçá de uma forma algo ilusória face à realidade profunda da nossa capacidade de produção de riqueza, embora com desequilíbrios e agravamento de algumas injustiças sociais, o país mudou e, por algumas décadas, hipotecou, de forma confiante, o seu futuro ao projeto europeu. Setores de uma classe média, que se tornou dominante no plano político e social, tiveram um banho de cosmopolitismo ou, pelo menos, daquilo que identificaram como tal. As “idas à Europa”, os contactos técnicos e culturais com o estrangeiro, a participação da juventude num mundo sem fronteiras, tudo isso deu a Portugal uma animação que alterou o modo do país se olhar a si próprio, com a geração de confiança e a criação de uma mentalidade mais competitiva, embora fazendo desaparecer progressivamente o país mais solidário, no sentido paroquial, que era a nossa imagem de marca tradicional.

Numa avaliação mais fria, Portugal terá desperdiçado muitas das oportunidades que os seus primeiros tempos nas instituições comunitárias deram ao país. Mas, independentemente desses eventuais erros, o que o país ganhou neste seu novo processo europeu, mesmo num contexto de aproveitamento deficitário, foi suficientemente importante para justificar que possamos considerar a nossa adesão às instituições comunitárias como a mais relevante decisão política tomada por Portugal em todo o século passado.

A União Económica e Monetária foi um passo lógico ou necessário na integração europeia?

A UEM foi o corolário lógico do processo que levou à criação do “mercado único” e à evolução de todo o conjunto de políticas que lhe estão associadas. Não diria que, em si, a UEM fosse um passo indispensável, mas era, com toda a certeza a decorrência evolutiva natural de um processo de aprofundamento de uma “ever closer union”, que alguns entendiam como devendo fixar um quadro irreversível que atenuasse as tensões historicamente endémicas da Europa e, simultaneamente, abrisse um futuro de progresso e desenvolvimento para todo o continente. Correndo o risco de chocar alguns, arriscaria dizer que a UEM era tão indispensável para o aprofundamento da dimensão económica da União como o alargamento o era para a sua dimensão política. Em ambos os casos, estava-se perante passos estratégicos de elevado risco, mas, igualmente, de medidas que a ambição então prevalecente recomendava que se tomassem, sob pena do projeto correr o risco de estiolar.

A forma como a UEM foi concebida era adequada aos objectivos pretendidos?

A UEM é um excelente projeto e, na sua essência, está tudo quanto a Europa comunitária parecia necessitar para progredir. A alguns, contudo, a simplicidade aparente do modelo suscitava algumas dúvidas, precisamente pela diversidade de situações, em especial em termos de competitividade das economias, de culturas fiscais e de gestão monetária, que a UEM parecia querer combinar, num ambicioso salto de cariz quase federalizante. Poucos falam, nos dias de hoje, numa expressão, à época muito referida, que sempre me pareceu muito importante mas muito pouco levada em conta: os efeitos assimétricos da introdução da moeda única. Confesso que sempre me surpreendeu o simplismo com que os economistas olhavam para a aplicação dos critérios da UEM. Mais tarde, também me espantou ver o modo linear como foi lido o “pacto de estabilidade e crescimento”, com que os alemães nos deixaram “aderir ao marco”, travestido sob o nome de euro. Hoje, a evolução das coisas parece provar que a “blindagem”, quer do acesso à moeda única, quer do seu funcionamento, deveria ter sido muito mais rigorosa. Mas também revela que, pelo menos no primeiro caso, se assim tivesse acontecido talvez Portugal não fosse hoje membro do euro.

O euro irá sobreviver à crise actual?

Julgo que sim, porque se tornou tão central no processo de imbricação das economias europeias que a sua falência teria um efeito de recuo que dificilmente pouparia as próprias bases do “mercado interno”. E essa seria uma tragédia para todos, em especial para as grandes economias europeias. Aliás, em termos financeiros, já se percebeu que a “salvação” do euro não é necessariamente uma medida cara, desde que os países que o adotaram consigam reunir as condições políticas nacionais necessárias à consensualização das reformas internas que – finalmente agora! – se consideram essenciais para a sua permanência no sistema. A grande questão está em saber se o calendário apertado em que se pretende conseguir corrigir os desequilíbrios macroeconómicos é compatível com a introdução temporalmente eficaz de medidas indutoras de crescimento, que permitam sustentar, precisamente, esse mesmo processo de redução da dívida.

Portugal deve permanecer na zona euro?

Claro que sim, por todas as razões – político-estratégicas e económicas. Todo o esforço que Portugal tiver de fazer para conseguir manter-se no euro será sempre inferior ao preço que teria de pagar pelo facto dele ser excluído ou decidir dele sair.

(Contribuição para o livro “25 anos na União Europeia: 125 reflexões”, Instituto Europeu da Faculdade de Direito de Lisboa, Almedina, 2011)

22 de outubro de 2011

Eugénio Lisboa - o conselheiro cultural

Por décadas, li o nome de Eugénio Lisboa em textos críticos sobre literatura portuguesa que me iam passando à frente dos olhos. Como essa era uma “praia”, como agora se diz, que eu apenas tocava pela rama, tinha, acerca dele, alguma, mas não excessiva, curiosidade, apenas potenciada pela raridade do facto de se tratar de um “engenheiro”, qualidade que partilhava com o Jorge de Sena – mas isso num tempo em que os engenheiros ainda não assumiam a importância que, entre nós, viriam a ter…

A circunstância de ter raízes em Moçambique e de, mais tarde, ter andado por França e pela Suécia, situavam Eugénio Lisboa, no meu imaginário, na prateleira prestigiada dos expatriados da nossa cultura, essas figuras com cujas assinaturas eu tropeçava em livros e artigos e que, de quando em quando, entrevia em colóquios ou na televisão, saídos da sua habitual geografia. Mas eu nunca fui fã de José Régio (o Eugénio não me vai perdoar esta) e esse era o terreno de estimação do nosso crítico, pelo que não atentava, como seguramente deveria, ao que ele escrevia sobre o poeta – no “Colóquio Letras”, no JL e noutras folhas cultas e de culto.

Um dia, no início dos anos 90, ao ser colocado em Londres, tive oportunidade de pôr finalmente uma fotografia no nome do Eugénio Lisboa. E, simultaneamente, no de Rui Knopfli, com quem ele fazia um singular “par” de conselheiros da coisa escrita – o Lisboa, da cultura, o Knopfli, da imprensa – dentro da nossa Embaixada. Durante mais de quatro anos, convivi diariamente com ambos e, no meu saldo pessoal, julgo neles ter feito dois amigos. Era muito interessante observar a sua complementaridade, o sublinhar das comuns raízes moçambicanas, distintos no trabalhar de certas memórias, sobre figuras do passado frequentado e no modo de viver o presente de então. Porém, onde o Eugénio era uma formiga de trabalho, o Rui era uma cigarra, de cigarros seguidos e outros vícios, onde parecia assentar a alegria residual da sua vida e em que preparava, com uma certeza que íamos visualizando, o caminho apressado para a morte. Por mais de uma vez, fui aliado do Eugénio Lisboa – cuja óbvia ternura pelo Rui sempre mascarava – na tentativa de salvar o poeta de si próprio. E ambos sofríamos, cada um a seu modo, a inglória certeza, a prazo, desse esforço. 

Sou testemunha privilegiada de que, em Londres, Eugénio Lisboa desenvolveu um trabalho notável na promoção da nossa cultura. Para além de animar, frequentemente com a sua presença, muitas iniciativas, dedicava-se, com afinco, à edição de traduções de clássicos da nossa literatura, através da “Carcanet Press”. Com o Hélder Macedo e com Michael Collins, seus principais cúmplices em iniciativas a que, com pertinácia, se dedicava, o Eugénio procurou “furar” o complexo mundo do tecido cultural britânico, tendo, a seu lado na Embaixada, a ajuda entusiasta e atenta de Mercês Gibson. Olhando para trás, tenho consciência de que procurei ser útil, à medida do que me era possível, a esse labor, onde frequentemente nos deparávamos com boas vontades – como era o caso da Fundação Calouste Gulbenkian – mas, igualmente, com alguns egos de estimação, às vezes de natureza institucional, bem difíceis de contornar.

Foi pela mão do Eugénio Lisboa que vim a conhecer figuras como o jornalista António de Figueiredo, lendário representante de Humberto Delgado em Londres, o advogado Adrião Rodrigues, nome destacado dos “Democratas de Moçambique”, ou Alexandre Pinheiro Torres, um escritor cuja obra justificaria maior reconhecimento público. Em Londres, o Eugénio funcionava como uma espécie de “placa giratória” por onde passava muito do mundo cultural português, mas onde a África lusófona estava sempre presente.

Esse “carrefour” londrino nem sempre era tão pacífico como se poderia pensar – mas, com o tempo, habituei-me a perceber que o mundo cultural é um espaço onde, com alguma facilidade, as personalidades se chocam e as palavras podem desencadear grandes fogueiras. Recordo-me de uma polémica, que envolveu o Eugénio Lisboa e o José Saramago, a propósito de um almoço que eu havia oferecido ao escritor, com a presença do Hélder Macedo, da Paula Rego, do Bartolomeu Cid dos Santos, do Luís de Sousa Rebelo e do Rui Knopfli. O modo como Saramago relatou uma cena desse repasto, nos seus “Cadernos de Lanzarote”, criou uma fúria no Eugénio, que zurziu o escritor no JL. A diplomacia não exclui a indignação.  

Devo confessar que tenho alguma saudade das conversas que, aos fins de tarde, mantínhamos no meu gabinete, muitas vezes acompanhados pelo fumo e pela ironia do Rui Knopfli. Ouvia-os então cruzar memórias africanas, referências literárias, leituras pessoais de episódios comuns do passado, tudo envolvido na agudeza crítica que, quando inteligente, não faz mal a ninguém.

Homenagear o Eugénio Lisboa, como grande figura da cultura portuguesa – não esquecendo a imprescindível serenidade da Antonieta, a seu lado –, é um ato mínimo de justiça. E, para mim, é também uma oportunidade para lhe enviar um abraço de sólida amizade.

19 de outubro de 2011

"Cais das Necessidades" - Diário


27 de Agosto
Adeus, verão

O "Le Parisien" titula "On veut le soleil!". Lá fora, à parte umas nuvens, o gestor climático supremo parece fazer-lhe a vontade. Com a casa deserta e Paris em férias (“de Rodriguez”, como se diria em Espanha), nada melhor que assentar numa esplanada de brasserie, com os jornais da manhã à mistura. E com estacionamento quase em frente, felicidade terrena que vai acabar, com o regresso dos parisienses. A meio do repasto, uma leve chuvada. Corrida geral para o interior. Amansadas as iras celestiais, passeio pelas montras até uma livraria. No final da compra, a vendedora oferece-me um elegante saco de pano, cadeau do dia. Chegado à rua, cai uma bátega imensa. Afinal, é melhor recolher a penates, para acabar um Céline, agora que os tempos recomendam a revisita a alguns "malditos". No carro (afinal estava longe, caramba!), molhado como um pinto, olho para o saco-prenda. Escrito por fora: "L'été est là". Pois, pois - como os brasileiros acham que os portugueses dizem.


5 de Setembro
A mão visível

Tem imensa graça ouvir o canto dos reconvertidos próceres do novo federalismo. Depois de nos terem bombardeado, por décadas, com o paraíso da “mão invisível”, de terem entoado loas embevecidas às maravilhas do mercado, ei-los que chegam, novos e já velhos, a uma cada vez mais alargada comunhão na ideia de que se torna imperativo um salto político federal europeu para a sustentação do euro. Que grande ironia! Quem havia de dizer que seria a Europa financeira a "puxar" pela Europa política! Sejam muito bem-vindos ao Estado!


10 de Setembro
Vieille vague

Era uma senhora bonita, de sorriso radioso, com sessenta e tal anos. Fui-lhe apresentado hoje, no fim de um concerto, na baixa Normandia. Disse-lhe: "Lembro-me de si a passear de motocicleta, em Clermont-Ferrand". "Mas eu nunca vivi em Clermont-Ferrand!", respondeu-me, amável. "Pois não! Mas andou por lá, de motocicleta. Ou não?" Reação, alguns segundos depois: "Ah! no filme?!" e fez um largo sorriso: "Que simpático! Ainda se lembra?"

Era Marie-Christine Barrault. Em 1969, no seu primeiro filme, aos 25 anos, protagonizou momentos inesquecíveis do cinema da "Nouvelle Vague" francesa, no "Ma nuit chez Maud", com Jean-Louis Trintignant. Foi um prazer cruzar a memória com a vida, ainda que cinematograficamente virtual. E lá bebi, com Marie-Christine Barrault, uma cidra normanda, saudando, sem saudade, esses tempos em que ambos não éramos sexagenários. 


23 de Setembro
O novo bailinho

Não deve haver português com internet que, nestas últimas semanas, não tenha recebido uma anedota, um poster ou outra graça alusiva à Madeira e à respetiva gestão financeira. Às vezes pergunto-me como é que os estrangeiros olham para esta nossa propensão para aliviar as dores pelo humor. Uma coisa me parece bem clara: não convirá que a "troika" se convença de que, lá porque afivelamos um sorriso amarelo, andamos felizes.


25 de Setembro
Certezas

A conversa, à minha frente, entre dois amigos, ia animada, numa esplanada parisiense. Nesse final de tarde, tinha-lhes dado para a política portuguesa. Eu estava a ser um espetador algo distante do diálogo. Para imenso espanto deles (e, vá lá!, até de mim próprio), havia decidido não me imiscuir na conversa, enquanto falassem desse tema. Expliquei, simplesmente, que, como era fim de semana, tentava não me incomodar. 

Um dos amigos, que anda mais cético, dizia já não acreditar em nada. O outro, afirmativo, tinha certas coisas por adquiridas, de "fonte limpa". A certo passo, já nem sei bem a propósito de quê, disse: “Tenho a certeza absoluta!” Resposta pronta e indignada do outro: “Certezas absolutas?! Tu estás é doido! Hoje só há incertezas absolutas!” De facto.


29 de Setembro
Rosário

Estou certo que a Rosário teria gostado do momento que os seus familiares e amigos criaram, no Père Lachaise, na muito triste e emocionada despedida que hoje lhe fomos prestar. Com o Álvaro Vasconcelos, seu marido, a Rosário de Moraes Vaz foi a espinha dorsal do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais.

A Rosário era uma personalidade forte, frontal, com muitas ideias e com vastas razões para as afirmar. Muito culta, atenta às questões do mundo, iluminava as discussões e revelava a sua inteligência brilhante, num "tandem" sempre criativo com a serenidade profunda do Álvaro. Recordo, agora com saudade, a nossa última conversa, na sua casa, em Paris, ela com o seu inseparável cigarro e o seu entusiasmo transbordante. E, depois, o último dia em que brevemente falámos, no ano passado: ambos de muletas, fruto de acidentes, saídos de uma conferência sobre a Europa, na Gulbenkian de Paris. Ironizámos que estávamos ambos como o próprio projeto europeu...


3 de Outubro
O outro défice

Passo, às vezes, pelos blogues da política portuguesa, um espaço que se assemelha a uma guerra de trincheiras, onde os índios e os cow-boys se revezaram, há pouco. Com louváveis exceções, trata-se de um terreno virtual de guerrilha, às vezes muito pouco urbana, feita de uma imensidão de ressentimentos ou de vontade de "explorar o sucesso", de muito mau-perder e de muito mau ganhar. Velam-se espetros e incensam-se aparições, num mundo maniqueu, com os erros de uns a transformarem-se, patética e patetamente, no gozo dos outros. Esses uns agora esquecendo, como já antes essoutros esqueciam, que, no final da linha, há por aí um país e que, quando as coisas correm mal, correm mal para todos! Também isto faz parte do nosso défice.


6 de Outubro
Nobel

Confesso que nunca tinha ouvido falar do novo prémio Nobel da Literatura, hoje anunciado, o poeta sueco Tomas Tranströmer. O que, aliás, já me sucedeu, no passado, com alguns outros nomes galardoados com idêntico prémio. Fiquei a pensar se isso não seria uma imperdoável lacuna cultural da minha parte. E, pelo sim pelo não, durante um almoço de trabalho, perguntei ao meu colega sueco se os nomes de António Ramos Rosa ou de Herberto Hélder lhe diziam alguma coisa. Disse-me que não e sosseguei. Ótimo! Também ele não conhecia dois génios da poesia portuguesa. O meu descanso durou pouco, ao ouvi-lo dizer, logo de seguida, que, como poetas de Portugal, apenas conhecia Pessoa e Camões. Ora eu não recordava nenhum poeta sueco (lembrei-me, depois, mas só lá cheguei com ajuda do Google, do nome, mas não da poesia, de Pär Lagerkvist)! Aquietei finalmente o espírito com a reconfortante ideia de que, se isso acontece, é seguramente porque a nossa poesia é bem melhor do que a sueca. Deve ser isso! Pena é que a literatura não conte para o nosso PIB.


8 de Outubro
Sermão dominical

As pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. Em particular, acreditam no que lhes prolonga as ideias feitas, no que entendem como sendo "lógico" e no que lhes aparece como podendo desenhar-se como "óbvio". E se o que lhes é servido como verdade tem o condão cumulativo de adubar sentimentos pré-existentes, então o processo de convicção pode dar-se como adquirido. Essa é a glória do criador da crença, para quem o supremo objetivo é construí-la, dá-la como evidência e vê-la partilhada, difundida e aceite como "a verdade". Ingenuamente, pode argumentar-se que, para além da crença, haverá que ter em conta esse pormenor, quiçá marginal, que são os factos. E que, às vezes, os factos apontam, de forma cristalina, no sentido de infirmar, em absoluto, a crença entretanto estabelecida. Neste caso, "tant pis" para os factos. Se eles não acompanham o rumo da crença, esta dispensa-os, por irrelevantes e incómodos. É dos livros. Pirandello dizia que "a cada um a sua verdade". É verdade, cada um fica na sua. Apesar da verdade, na verdade, ser só uma. E, às vezes, a crença nada ter a ver com ela. Mas que importa? As pessoas acreditam naquilo que querem acreditar.    


11 de Outubro
Mail diplomático

Com uma excitante irregularidade, todos (mas todos!) os funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros recebem, de tempos a tempos, num "block-mail" (que não discrimina quem está em Sidney de quem trabalha em Lisboa), mensagens, muitas vezes pessoais, sobre as mais variadas questões práticas. Já houve anúncios de falta de água ou de luz numa certa tarde, de óculos encontrados junto à casa de banho das Necessidades (decisivas informações, como se imagina, para quem está em serviço em Toronto ou Windhoek), até à abertura de cursos de francês em Lisboa (bem úteis, especialmente para quem está colocado em Paris e Bruxelas, apenas com a dificuldade dos horários dos aviões, para ir e vir no mesmo dia). Um dia, um guarda da Securitas deixou o serviço do MNE. Logo, carinhoso, escreveu-nos a todos, espalhados pelo mundo, para benefício dos administrativos da cidade do México ou de Tripoli, bem como dos embaixadores em Zagrebe, Montevideu ou Seoul - lembrando, com frases sentidas, as boas horas em que tinha tido à sua cuidadosa guarda a sede da nossa diplomacia. Calou fundo.

Alguns anúncios são verdadeiros ícones. E a sua falta ou atraso induz angústias, porque faz presumir que alguma coisa de grave se está a passar. Foi por isso, que, ontem, respirei de alívio ao receber uma circular relativa à disponibilização dos bilhetes para o circo de Natal. Uhf! Pensei que nunca mais chegava! 

(Publicado no nº 1071 (19.10.11 a 1.11.11) do "Jornal de Letras, Artes e Ideias")

17 de outubro de 2011

Homenagem à Fundação Calouste Gulbenkian

Permitam-me que comece por saudar o senhor ministro Nuno Crato, que temos o gosto de receber nesta sua casa pela primeira vez. Não vale a pena falar das dificuldades do lugar que exerce: outras pessoas aqi presentes, nomeadamente anteriores titulares da pasta que hoje ocupa, estariam bem mais qualificadas para o fazer. Apenas quero aproveitar esta ocasião para lhe desejar, com toda a sinceridade, as maiores felicidades para as tarefas que tem pela frente. É do sucesso da sua ação que vai depender muito do futuro do nosso país.

Hoje celebramos o primeiro dia do resto da vida da Fundação Gulbenkian em Paris. Foi por isso que fiz chegar à Fundação o meu desejo de associar a representação do Estado português em França a este dia, com a organização deste almoço.

Este poderia ser uma espécie de almoço de amigos, porque tenho o privilégio de contar com muitos bons amigos na Fundação Calouste Gulbenkian, na sua administração como em vários dos seus colaboradores, desde logo, a começar pelo seu presidente, Dr. Emílio Rui Vilar.

Mas esta é uma ocasião um pouco mais formal, em que, como Embaixador de Portugal em França, tenho a oportunidade de relevar o excelente trabalho que a Fundação leva a cabo, desde há muitos anos, neste país.

A Gulbenkian é uma outra embaixada nossa em Paris, é uma bandeira da cultura portuguesa em França e é um nome que consigo acarreta um grande prestígio para Portugal. Digo-o como embaixador, mas digo-o também como cidadão, pelo grande orgulho que sempre sinto ao notar o modo como a Fundação Gulbenkian se e nos prestigia, um pouco por todo o mundo.

Tenho pena de não ter aqui espaço, nesta ocasião, para poder homenagear, várias pessoas que, como diretores do Centro Cultural Gulbenkian em Paris, honraram a Fundação e nos honraram a todos. Algumas já desapareceram, outras estão, felizmente, entre nós. E não podendo fazê-lo a todos, permitam-me que o faça, em sua representação, na pessoa do seu atual diretor, o Dr. João Pedro Garcia.

Para além de um estimado amigo pessoal, o Dr. João Pedro Garcia foi para mim, ao longo destes quase três anos que levo de Paris, uma figura que soube estabelecer com a embaixada uma relação de extrema lealdade e colaboração. A vida dá muitas voltas, mas as voltas da vida não nos devem afastar do dever de ser gratos a quem se manteve solidário e colaborante conosco. Por isso, ao Dr. João Pedro Garcia, quero expressar o meu muito obrigado por tudo.

O senhor presidente vai-me permitir que tenha, nesta ocasião, uma palavra especial sobre a residência André de Gouveia. Falo dela hoje, porque o seu nascimento, explícita ou implicitamente, está ligado ao Centro Cultural, que hoje muda de endereço. A residência André de Gouveia, que hoje, na Cité Universitaire de Paris alguns já tratam apenas por RAG, mas que eu teimo em designar por Casa de Portugal, tem uma história e uma memória que nos deve orgulhar a todos. O seu destino evoluiu, entretanto, no plano administrativo, mas gostava de deixar claro – e o senhor presidente da Fundação sabe isto bem - que, pelo menos durante o tempo em que eu ainda vier a permanecer em Paris, manterei a firme determinação de tentar que ela conserve bem viva a sua matriz portuguesa. A colaboração que, por intermédio do Instituto Camões, tenho procurado assegurar à atividade cultural da Casa de Portugal, pode ser testemunhada pelos dois diretores com os quais, sucessivamente, tenho cooperado, o dr. Manuel Rei Vilar e a Dra. Ana Paixão. E ela vai continuar, sem falhas

Para além da administração da Fundação Gulbenkian e de alguns dos seus colaboradores, tenho hoje o grato prazer de ter aqui comigo alguns colegas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que saúdo, nesta ocasião

Começaria pelo chefe da carreira, o secretário-geral do MNE, o embaixador Vasco Valente, que, bem melhor do que eu, aqui representa a nossa “casa”. Se há colaboração entre instituições que julgo que tem funcionado de forma exemplar no nosso país – e os exemplos não são assim tantos como isso… - creio que essa é a ligação entre a Fundação Calouste Gulbenkian e a diplomacia portuguesa, pelo que é para mim um grande prazer que a presença do embaixador Vasco Valente a possa aqui simbolizar.

É também uma feliz coincidência que esteja hoje colocado em Paris o embaixador Luís Castro Mendes, como representante português junto da UNESCO, uma figura consagrada da nossa literatura, que acumula com a circunstância de ser um dos mais qualificados diplomatas da sua geração – que, por acaso, é também a minha. Num dia em que homenageamos a Fundação Gulbenkian, é-me grato ter a meu lado o embaixador Castro Mendes, alguém que muito dignifica a dimensão cultural da nossa diplomacia.

Deixei para o fim uma menção à presença do embaixador Leonardo Matias. Fiz isso de propósito, porque quero que as minhas últimas palavras sejam sobre os primeiros tempos. Para além de ser uma reconhecida grande personalidade da nossa história diplomática recente, a presença do embaixador Leonardo Matias dá-me o ensejo de evocar aqui um tempo importante desta bela aventura que é a Fundação Gulbenkian. É que foi graças ao seu pai, uma figura ilustre da diplomacia portuguesa, ao seu génio negocial e ao estatuto que soube ganhar, ao longo de anos, na sociedade política francesa, que foi possível concluir o difícil acordo que permitiu transferir, de França para Portugal, o espólio artístico com que se iniciou o museu Gulbenkian em Lisboa. É um grande gosto poder ter ocasião de homenagear, desta forma simples, mas com grande sinceridade na minha admiração, o diplomata ilustre que foi Marcello Mathias, também ele – convém lembrá-lo - um homem da cultura e da literatura.

Estou certo que todos desejamos que a nova Gulbenkian de La Tour Maubourg tenha um sucesso pelo menos tão grande como aquele que viveu durante tantos anos na avenue Iéna, de que eu, confesso, já tenho algumas saudades.

(Intervenção proferida no almoço de homenagem à Fundação Calouste Gulbenkian, Paris, 17.10.11)

16 de outubro de 2011

Carta ao diretor do "Correio da Manhã"*

O “Correio da Manhã” publicou, na passada semana, uma notícia relativa à admissão do Engº José Sócrates no Instituto de Estudos Políticos, na qual se afirmava que o embaixador de Portugal em França “mexeu e remexeu os cordelinhos para permitir a entrada do ex-chefe do governo na universidade”, após uma suposta “terceira recusa” à sua admissão. 

Isto não corresponde à verdade. Nunca me foi pedida, nem eu levei a cabo, qualquer diligência para facilitar o acesso do Engº José Sócrates ao Instituto de Estudos Políticos, nem nunca chegou ao meu conhecimento que tenha havido qualquer dificuldade na respetiva admissão naquela escola. 

No que me toca, e sobre este assunto, os factos são muito simples e não admito que sejam contestados. 

Em inícios de Julho, o antigo Primeiro-Ministro contactou o embaixador de Portugal, porque gostaria de obter uma informação sobre os cursos existentes em Paris, numa determinada área académica que estava a pensar frequentar. Como na altura veio publicado na imprensa portuguesa, foi-lhe proporcionado um contacto com dois professores universitários, que melhor o poderiam elucidar sobre o assunto. A intervenção do embaixador de Portugal neste processo começou e acabou ali. 

Só no final de Agosto, quando regressei a Paris, é que vim a saber que o Engº José Sócrates havia escolhido aquela escola e que nela fora admitido. 

* Publicado no "Correio da Manhã" em 16.10.11

4 de outubro de 2011

Os portugueses em França

Entrevista concedida à revista "Portugal Mag", nº 21, outubro de 2011

Que posição tem a França tomado, no que respeita à crise em que se encontra o nosso país ?
Como é sabido, a França tem estado, juntamente com a Alemanha, no centro das propostas de decisão que, ao nível europeu, têm vindo a ser sugeridas para tentar ultrapassar a presente crise – que, como se sabe, esta é uma crise à escala internacional, nomeadamente europeia, e não apenas uma crise portuguesa. No que respeita especificamente ao nosso caso, posso afirmar que a França tem mantido uma grande solidariedade com os esforços que Portugal tem vindo a fazer, no sentido da recuperação do equilíbrio das suas contas públicas. Ainda há dias, durante a visita a Paris do Primeiro Ministro, Dr. Pedro Passos Coelho, quer o Presidente Nicolas Sarkozy, quer o Primeiro Ministro François Fillon, sublinharam o seu apreço pelo trabalho que Portugal está a desenvolver, no plano interno, para encontrar formas de ultrapassar os problemas que afectam a sua economia e as suas finanças. Temos sempre podido contar com a compreensão da França e, estamos certos, essa atitude de simpatia vai manter-se no futuro. Ela insere-se, aliás, no quadro da grande proximidade que os dois países mantêm entre si.

Nessa recuperação que Portugal procura fazer, nos dias que correm, que tipo de assistência está a ter pela parte das instituições internacionais?

Há alguns meses, Portugal fez um acordo com a FMI, com o Banco Central Europeu e com a Comissão Europeia. Esse acordo destinava-se a aliviar as necessidades de financiamento do país, num momento excepcional de crise. Através desse acordo, o nosso país teve acesso empréstimos com taxas de juro mais favoráveis do que aquelas que o mercado internacional de capitais nos proporcionava. Não se tratou de nenhuma dádiva, tratou-se simplesmente de um empréstimo, com datas de reembolso bem previstas. Em contrapartida, o nosso país comprometeu-se a levar a cabo um conjunto de reformas, quer na nossa economia, quer em áreas que têm directa incidência no funcionamento do nosso sistema económico-financeiro. Isso inclui mudanças no sistema judicial, nas leis de trabalho, na forma de gestão das empresas públicas e em muitas outras áreas da actividade do Estado que podem ter contribuído para as dificuldades com que nos defrontamos. O objectivo é tornar mais saudável o funcionamento da nossa economia, procurando que Portugal se converta num país mais competitivo e atractivo para o investimento estrangeiro, por forma a que a nossa economia possa ganhar competitividade e crescer. A aplicação dessas medidas será, para o nosso país, um período complexo, com custos sociais fortes, mas que tem como objectivo, a prazo, criar um Portugal mais rico e mais próspero.

Como é que a Embaixada acompanha esta problemática?

A Embaixada tem como obrigação manter uma estreita articulação com o Governo francês, com vista a dar conta da evolução do trabalho que desenvolvemos, para além de lhe competir, no diálogo com a sociedade e a imprensa francesa, esclarecer o sentido e os objectivos das medidas que são tomadas em Portugal.

Vamos falar um pouco de emigração. Como é que o Sr. Embaixador vê a evolução da comunidade, em especial nos novos dos emigrantes portugueses que procuram a França, à procura de um futuro melhor?

Infelizmente, estamos a assistir àquilo que parece ser uma nova vaga de emigração portuguesa, que é um produto das dificuldades que Portugal atravessa internamente no seu sector económico, com o aumento do desemprego e o encerramento de empresas. Como se sabe, Portugal é um país de onde, desde há muito, partiram, ciclicamente, vagas de emigração, sempre que a fragilidade da sua economia se fez sentir de forma mais acentuada. Nunca é uma boa notícia os portugueses terem de emigrar. Pelo contrário, quando isso acontece, é sinal que a sociedade portuguesa não é capaz de dar oportunidade aos seus filhos e que os obriga a sair do pais para encontrarem soluções para o seu futuro. Esta é a sina de um país que é pobre de recursos e que, até hoje, não pôde ou não soube encontrar o caminho para uma prosperidade sustentada. Ainda não temos dados muito concretos e quantificados sobre estes novos fluxos migratórios, mas há a ideia que a Europa é, manifestamente, um dos destinos desta nova emigração mais procurados. Verificamos também que, em certo tipo de profissões, há fluxos migratórios recentes para Angola, Brasil e Estados Unidos. Mas a Europa, até pela facilidade de movimentação dos cidadãos, continua a ser o destino mais fácil. E a França, como é óbvio, é um desses países. Esta nova imigração tem algumas características diferentes daquela a que se assistia, nos anos 60 e 70 do século passado. Em muitos casos, estamos perante pessoas já com melhor qualificação académica e profissional, que muitas vezes se deslocam, desde o início, acompanhados das famílias e que, muito mais do que no passado, mudam com frequência de local de trabalho, em busca rápida de uma melhoria de vida. Os nossos consulados em França têm instruções para estarem atentos a esta nova vaga migratória, para procurarmos ser úteis a esses cidadãos e dar-lhes, por parte do Estado, todo o auxílio que for possível.

Nesse sentido, o que é que está a ser feito para ajudar esses novos imigrantes a enfrentar os seus problemas, a trabalho, alojamento e ensino para os seus filhos?
    
Como se compreenderá, não nos compete tomar iniciativas de enquadramento sócio-profissional desses novos imigrantes, que vêm a título individual e cuja movimentação pessoal desconhecemos por completo. Porém, a partir do momento em que essas pessoas se fixam, logo que se inscrevem nos consulados, passam a poder dispor de uma maior protecção nacional, para além daquela que lhes advém pelo facto de serem cidadãos da União Europeia. Estimulamos, por isso, que essas pessoas façam a sua inscrição consular. Quanto ao ensino das crianças portuguesas, e para além daquilo que o Estado francês já proporciona, Portugal contribui, desde há muitos anos, com um largo contingente de professores, destacados em França, para o ensino da língua portuguesa. Neste momento são cerca de 130 profissionais pagos pelo Governo português, um pouco por toda a França. Pode-se argumentar que talvez essa malha de ensino esteja aquém do que seria necessário, mas, atendendo às nossas limitações orçamentais, creio que esse é já um esforço muito significativo.

Ainda no que respeita ao ensino, como está a decorrer a passagem do ensino do português no estrangeiro para a responsabilidade do Ministério dos Negócios Estrangeiros? Houve alterações significativas nesta área?
     
Não me parece. Houve apenas uma mudança de tutela. Aquilo que antes era feito pelo Ministério da Educação passou a ser feito pelo Instituto Camões, que pertence ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Mas nada se alterou no perfil de funcionamento do ensino do português no estrangeiro. Esperamos que, a prazo, essa mudança possa ter efeito benéficos, quer para o ensino, quer para o trabalho dos profissionais nele envolvidos.

Como está actualmente o Instituto Camões? Temos visto poucas iniciativas da sua parte. Ao que se deve esta situação?
Não me parece que haja poucas iniciativas, o que pode é haver alguma menor visibilidade naquilo que o Instituto faz em França. O Instituto Camões apoia muitas acções culturais, ligadas a Portugal e à cultura portuguesa, que têm lugar por toda a França, organizadas por entidades francesas ou com ligações a Portugal: ciclos de cinema ou teatro, exposições, seminários e palestras, edição de livros, espectáculos musicais, etc. O Instituto mantém igualmente uma forte ligação às universidades onde se trabalha em temas de cultura portuguesa, promovendo e apoiando muitas das suas iniciativas, financiando cátedras, mantendo leitorados, etc. Além disso, aqui em Paris, o Centro Cultural que o Instituto Camões tem na rue Raffet, perto da Porte d’Auteuil, ministra cursos de português para adultos que têm uma grande procura. E, por exemplo, ainda recentemente levámos a cabo, na Embaixada em Paris, mais um concerto musical, de uma série que temos vindo a manter, com alguma regularidade, para a apresentação de artistas portugueses. Gostaríamos de poder fazer mais coisas, claro, mas os meios financeiros disponíveis são limitados.

Na área cultural existe também a acção das nossas associações. Como é que vê a vida associativa em França e que papel pensa que ela pode ter para a imagem da nossa cultura?
As associações portuguesas existentes em França têm um papel insubstituível e Portugal tem, para com elas, uma imensa dívida de gratidão. Graças a elas, e ao longo de muitos anos, foi possível proporcionar aos cidadãos portugueses espaços de convívio e ligação, fazendo subsistir na memória colectiva as expressões culturais do nosso país. Se os portugueses são, em geral, muito propensos a manter uma ligação afectiva ao seu país, a verdade é que foram e são as associações quem estruturou essa sua vocação e lhes deu expressão colectiva. Muitas associações, com escassez de meios mas com uma inquebrantável boa vontade, conseguem ter programas culturais muito ricos, que vão desde o ensino do português às manifestações musicais, do cultivo do folclore à promoção de actividades artísticas. Só podemos esperar que o movimento associativo português em França saiba ligar-se melhor entre si, sem rivalidades ou divisões, por forma a melhor afirmar a sua força. A Embaixada e os consulados portugueses terão sempre a melhor boa-vontade e disponibilidade para colaborarem com o movimento associativo dos portugueses em França. E, voltando àquilo de que falámos há pouco, contamos muito com as associações para ajudarem à integração dos novos migrantes que se deslocam para França.

Há dias, teve lugar na Embaixada uma cerimónia da Confraria dos Vinhos Transmontanos. Porque razão decidiu apoiar essa iniciativa?

Porque houve um pedido por parte da Confraria dos Vinhos Transmontanos para poderem organizar aqui uma promoção dos seus produtos regionais. Noto que, além do vinho, foram mostrados outros produtos alimentares portugueses, tendo podido contar com a presença de importadores de produtos portugueses, de proprietários de restaurantes e de outras figuras que podem ajudar a potenciar o comércio em França desses mesmo produtos. Mas esta não foi a primeira iniciativa do género. Já por cá tivemos acções promocionais do Alentejo, de Lisboa, do Douro, dos Açores. Outras haverá, no futuro, como uma sobre o Minho e, muito proximamente, uma outra ligada ao Porto. A Embaixada está aberta a ser utilizada para a promoção de todas as regiões portuguesas. Estimulo que nos procurem.

O Senhor Embaixador deseja deixar alguma mensagem para a nossa comunidade e, em particular, para os leitores da Portugal Magazine?

Apenas uma mensagem simples. Dizer-lhes que Portugal atravessa um tempo de grande exigência, por virtude da sua situação económica, num mundo que está, ele próprio, a atravessar um momento complexo. Estamos a viver um período que exige de nós um grande rigor, um grande controlo no modo como são gastos os dinheiros públicos. É uma crise face à qual se exige de todos os portugueses serenidade, coragem e um grande sentido patriótico. Esperamos poder sair dela, daqui a uns tempos, com um país mais moderno, mais atractivo para o investimento, onde os portugueses se possam sentir felizes e realizados. Até lá, todos temos de ajudar, de incentivar a exportação dos nossos produtos, de incrementar a ida de turistas, de captar novos investimentos. Portugal merece o esforço de todos, porque continua a ser uma terra de oportunidades, onde vale a pena investir, criar riqueza, adquirir propriedades. Os portugueses que vivem no exterior, que sempre deram mostras de grande patriotismo, devem também ajudar a este esforço, como sempre fizeram no passado. Somos um país com quase 900 anos, uma das mais antigas nações do mundo, já passámos por crises bem piores do que esta. Essencialmente, o que gostava de deixar aos leitores do Portugal Magazine é a ideia de que continua a valer a pena acreditar em Portugal.

30 de setembro de 2011

Portugal: a sua economia e a sua imagem


Há dias, quando disse a um amigo francês que vinha a Lisboa para falar sobre a economia e a imagem de Portugal, ele olhou-me com um ar espantado. E quando lhe revelei que havia sido eu próprio quem escolhera o tema, fiquei com a sensação de me achava um incompreensível masoquista.

Julgo que muitas pessoas nesta sala devem partilhar esta perplexidade: por que diabo, um embaixador de Portugal, no exercício de funções, numa das principais capitais do mundo, se arrisca a abordar um tema desta sensibilidade e delicadeza?

A resposta é muito simples: um embaixador de Portugal é-o em todas as ocasiões. As boas e as más.

Não somos diplomatas só para recolher os louros de termos entrado da melhor forma para a União Europeia, de termos feito três presidências com sucesso, de termos sido capazes de ingressar no euro. Não representamos apenas o país que teve teimosa razão diplomática na questão de Timor-Leste, que fez com grande êxito a Expo98, que, por três vezes, montou campanhas de sucesso que o conduziram ao Conselho de Segurança da ONU. Não somos só o país do salto em frente nas energias renováveis, do prémio Nobel de Saramago ou de outras glórias do passado recente.

Somos diplomatas de um país que, no contexto da crise em que vivemos, tem um défice e uma dívida elevadas, que teve de recorrer à ajuda internacional para resolver os seus problemas e que vai atravessar, por alguns difíceis anos, um processo sério de ajustamento. Somos diplomatas de um país cujos cidadãos vão sofrer impactos nos salários e na sua fatura fiscal, nos preços e nos empregos, com redução de apoios na saúde e nas facilidades educativas, com uma retração, que se espera conjuntural, do seu crescimento, com muitas consequências sociais que ainda estão por medir.

Em suma: eu sou embaixador do país mais pobre da Europa ocidental.

E, dito isto, quero que fique claro que tenho o maior orgulho em poder representar o meu país – este meu país - neste tempo difícil. Como dizem os americanos: “my country, right or wrong”.

Os diplomatas profissionais representam o Estado. Desde que entrei para esta profissão, servi sob a orientação de 5 presidentes da República, 15 primeiros-ministros e 21 ministros dos Negócios Estrangeiros. Quero com isto dizer que há um país que está para além da transitoriedade democrática dos titulares do Estado e que compete aos diplomatas uma parte importante na defesa dos interesses permanentes de Portugal – hoje como ontem. Repito: em todas as circunstâncias, as boas e as más.

E isto evoca a questão da nossa imagem externa.

Recuemos uns anos, antes da nossa adesão à União Europeia.

A imagem que Portugal projectava, há pouco mais de três décadas, era a de um país que havia passado por um choque histórico algo traumático, provocado pelo esboroar de uma ditadura que acabou por ditar um fim trágico e quase patético a uma aventura colonial tardia – com guerras sem sentido, privações, tensões e um saldo de sacrifícios humanos muito pesado, que o país pagou fortemente, até pelas consequências no seu tecido económico.

A ditadura não castrou apenas cívica e culturalmente o país. Contribuiu para a criação de uma cultura empresarial retrógrada, protegida, temerosa, pouco audaciosa e, por essa razão, com muito escassos exemplos de sucessos empresariais fora de portas.

Foi esse o Portugal que bateu à porta da Europa no final dos anos 70: um país pobre, uma democracia recente, um tecido económico medíocre, um ambiente social desigual e com elevado potencial de convulsão.

Mas Portugal acabou por ser uma surpresa para o mundo: desde logo, pelo modo muito próprio como havia feito a sua Revolução e, em especial, como dela saiu para a democracia e desta para a integração europeia. Aos olhos externos, o nosso país conseguiu, com uma insuspeitada facilidade, instalar e aculturar um regime democrático que se provou funcional e, sem se afastar da sua herança africana, soube simultaneamente voltar-se, com uma quase naturalidade, para um projecto integrador a que só remotamente estivera ligado, embora já partilhasse a cultura de mercado que lhe estava na génese.

Neste percurso, o mundo poderá ter ficado particularmente impressionado por dois factos.

Em primeiro lugar, pela nossa fantástica capacidade de reconciliação interna, depois de um período revolucionário que, como sempre acontece, teve os seus custos e deixou as suas feridas. A absorção da população que retornou de África, no período pós-descolonização, continua a ser um feito que muitos não entendem bem, em especial alguns Estados, bastante mais ricos, que não souberam resolver o seu próprio problema da forma como os portugueses foram capazes.

Em segundo lugar, terá sido uma surpresa a nossa reconversão rápida ao projecto integrador europeu e, já dentro deste, o modo, competente e dedicado, como nos empenhámos nas tarefas de que fomos incumbidos – de que o excelente exercício das presidências europeias, que já referi, é talvez um exemplo paradigmático.

Sem pretender entrar no terreno da polémica, estou perfeitamente convicto que um cidadão português não poderia, quaisquer que fossem os seus méritos pessoais, ser hoje presidente da Comissão Europeia se o nosso país não tivesse demonstrado, nas quase duas décadas que antecederam esse momento, uma imagem de grande eficácia e empenhamento no processo europeu. Desde 1986, embora só algumas vezes com brilho excepcional, mas sempre com grande seriedade e apreciável sentido de responsabilidade, Portugal conseguiu fornecer pessoal, e até ideias, que contribuíram para lhe garantir uma participação de mérito no projecto integrador.

Verdade seja que este inesperado europeísmo não deixou de ser visto como tendo muito a ver com as vantagens, na paisagem e nos bolsos, que os portugueses pressentiram, e bem, que o projecto europeu lhes podia proporcionar.

A Europa entendeu isso muito bem e percebeu também que Portugal soube aproveitar, embora de modo apenas razoável, os benefícios que a pertença ao novo “clube” lhe trouxe.

Aos olhos dessa Europa mais desenvolvida, o usufruto dessa oportunidade não terá sido o melhor, talvez porque não estavam superados no país alguns défices de cultura comportamental que eram, de há muito, a imagem de marca da nossa sociedade - compadrios, facilidades, falta de rigor, inconstância, improviso, escasso nível educativo, vícios de gestão, etc.

Basta entrar numa qualquer livraria, numa grande capital europeia, ir à estante do business internacional e ler o que se diz sobre como fazer negócios em Portugal. A imagem da “ficha” portuguesa é a de um país ciclotímico no seu desenvolvimento recente, isto é, com uma congénita incapacidade de sustentar o sucesso, com uma burocracia apenas atenuada pelo “jeitinho”, uma justiça muito lenta, embora não corrupta. Além disso, a classe empresarial portuguesa é vista como excessivamente convencida da sua própria importância, sendo globalmente – isto é, fora as notáveis exceções - mal avaliada em termos internacionais. A cordialidade e o pendor para a submissão dos portugueses torna-os, nos textos desses livros, fáceis no relacionamento, mas igualmente menos eficazes na constância temporal da sua atitude – e aí estão a falta de pontualidade, de precisão, as reuniões palavrosas, os almoços longos, os atrasos sistemáticos em face dos compromissos assumidos, enfim, a ausência da reliability essencial no exigente mundo competitivo contemporâneo.

Neste ponto, alguns estarão a perguntar-se: mas, afinal, a imagem de Portugal no mundo mede-se, exclusivamente, pelo critério do sucesso económico? Lamento ter de dizer que, a meu ver, o grande indicador para a aferição da performance de um país à escala internacional é, hoje em dia, a sua capacidade de geração de riqueza, de saber distribuí-la sem tensões e proporcionar bem-estar aos seus cidadãos, sempre em liberdade, claro.

Talvez seja a absolutização dos mecanismos de mercado que criou esta percepção, mas não conheço nenhum país pobre que esteja hoje prestigiado à escala global, embora conheça alguns países ricos que, por virtude dos seus sistemas políticos autoritários ou pelas grandes desigualdades sociais internas que mantêm, também não são respeitados, a não ser pelos cultores cínicos da realpolitik.

Por isso, mais do que nunca, a imagem de um Estado perante o mundo depende da eficácia e qualidade das suas políticas públicas, da coragem na execução de reformas essenciais à sua constante melhoria e adequação aos desafios contemporâneos.

E o que é que a sociedade internacional valoriza mais? Valoriza a preservação do equilíbrio macroeconómico, a generalização com qualidade dos sistemas de ensino, saúde e justiça, as práticas de segurança interna com plena preservação de liberdades, os estímulos à afirmação da sociedade civil, o empenhamento oficial na luta contra as discriminações, a cultura ambiental e de promoção de um desenvolvimento sustentável, a protecção dos consumidores e dos utentes públicos – enfim, todo o vastíssimo conjunto de símbolos de uma cultura de modernidade. São esses alguns dos factores que qualificam, contemporaneamente, a imagem dos países.

Neste ponto, alguns poderão estar a pensar: mas, afinal, Portugal tem uma cultura antiga, tem uma História, teve momentos gloriosos na sua muito longa existência como país. Ora isso deve fazer parte, com certeza, do seu reconhecimento exterior.

Receio ter de dizer isto, mas um erro muito comum no imaginário português é o de pensar que o mundo continua a lembrar Portugal pela glória das Descobertas, pelo período áureo de “quinhentos”. O facto de termos hiperbolizado, dentro de Portugal, e em especial durante o Estado Novo, essas imagens de grandeza não significa necessariamente que o mundo ainda seja obrigado a medir-nos à luz delas. Sei que não faz bem à nossa auto-estima lembrar isto, mas temos de assumir que essas glórias, embora constitutivas da nossa identidade como nação, são já longínquas no tempo.

Outros já terão notado que, depois de Sagres, passámos por um declínio muito grande como país, com o lento desfazer da aventura imperial, com quebras drásticas no nosso poder económico e com a consequente perda de importância da nossa afirmação política à escala global. Até o facto de não termos sabido descolonizar a tempo nos agravou uma imagem de perdedores na História, só atenuada pelo contraponto positivo das liberdades que o 25 de Abril, de seguida, nos trouxe. Goste-se ou não, a História que verdadeiramente conta, para a fixação da imagem dos países, é a História contemporânea ou, pelo menos, a versão contemporânea da História. E, nesse retrato, a nossa imagem não é globalmente positiva.

E há, finalmente, um outro ponto também importante: um país que não consiga garantir condições de vida aos seus cidadãos, que acabe por estimular a sua saída em termos maciços, não é prestigiado e respeitado no quadro internacional. Por mais orgulho que tenhamos na aventura de sacrifício que sempre foi a nossa emigração, é para mim hoje evidente que um país que condena a sua população a emigrar, por razões económicas, é um país que não se prestigia e que não sobe na consideração dos outros.

Mas passemos à situação de hoje, à crónica dos dias da “troika”.

Convém começar por deixar claro que esta não é a primeira vez que Portugal recorre à ajuda externa, para reequilibrar as suas contas internas. Na minha vida como diplomata esta é a terceira presença do FMI em Portugal. Desta vez, porém, por razões que têm muito a ver com as limitações que a nossa pertença à moeda única impõe, é aquela que aparece revestida de um maior dramatismo.

Não vou entrar aqui na discussão, que entreteve os portugueses durante a última campanha eleitoral, sobre se a crise é mais portuguesa do que externa, sobre se as responsabilidades nacionais são maiores ou menores do que aquelas que resultam dos efeitos exógenos. Esse é um debate passado, perante a qual o país já tomou posição e que a História, a seu tempo, julgará em definitivo.

A situação é a que temos e esse é o ponto de partida para o que aqui nos traz.

Não lhes vou esconder que a imagem de Portugal, eu diria mesmo, a imagem que Portugal conseguiu projetar de si próprio nos últimos trinta anos, sofreu bastante com a constatação crua, pelo mundo, da difícil situação económico-financeira em que hoje nos encontramos. Digo isto com toda a responsabilidade de quem, como eu e como os meus colegas, teve e tem como obrigação e como objetivo profissional procurar melhorar a imagem do nosso país, e dele salientar os seus aspetos mais positivos.

O retrato de fragilidade que de Portugal está hoje criado veio confirmar, a alguns países do chamado “Norte”, aquilo que fazia parte das suas ideias feitas face ao países do “Sul”: que o nosso salto de modernidade não tinha solidez de fundações, que não fomos capazes de garantir a maturação das ajudas e das oportunidades de que havíamos beneficiado, enfim, que éramos um “trompe l’oeil” de uma realidade diferente. Isto é válido para Portugal, como o é para a Espanha, para a Itália ou para a Grécia. Porém, com o mal dos outros podemos nós bem. A mim, preocupa-me Portugal.

Muitos países desse “Norte” viram agora fundamentadas as dúvidas que tinham quando Portugal quis entrar no euro e que, à época, conseguimos secundarizar.

A diplomacia portuguesa está hoje confrontada com um dos momentos mais exigentes na história recente do país. À nossa escala, temos de encontrar fórmulas para conseguir sublinhar, nesta que é uma conjuntura tendencialmente negativa, todos os elementos de natureza positiva que nos seja possível conjugar, para potenciar o país no plano internacional.

Nesse esforço, tenho para mim que a verdade e a transparência devem sempre constituir os eixos fundamentais da nossa ação externa.

Gostava, a este propósito, de lhes contar uma história que se passou comigo, há mais de duas décadas, num período em estava, transitoriamente, a chefiar a nossa Embaixada em Londres.

Um dia, recebi um pedido de Lisboa, perguntando-me o que, no meu entender, poderia ser feito para tentar contrariar uma campanha que se preparava contra Portugal, mobilizada pelos nossos concorrentes comerciais no Reino Unido. Esses grupos, apoiados num filme a ser divulgado pela televisão britânica, iam explorar o facto de haver trabalho infantil em algumas fábricas e unidades familiares no nosso país.

A minha resposta quase me valeu um processo disciplinar. Eu expliquei com candura a Lisboa que a melhor maneira de evitar que a realidade do trabalho infantil em Portugal fosse explorado pelos nossos adversários talvez fosse… acabar com o trabalho infantil. E que, para isso, talvez valesse a pena sermos honestos quanto à existência do problema e sermos credíveis mostrando vontade política de remar contra esse flagelo.

Eu sabia que, até por algumas razões menos nobres, isso era mais fácil de dizer do que de fazer. Mas não negar a realidade e mostrar a existência de uma determinação para a enfrentar era, a meu ver, a melhor solução. Não sei se, à época, alguns industriais têxteis, de calçado ou da construção civil teriam apreciado essa proposta estratégia.

Por isso, e para mim, continua a haver hoje uma ligação dessa situação com aquela que hoje nos afeta: o imperativo de termos coragem para expor, de forma transparente, a nossa realidade e de provarmos que existe uma forte determinação política para tentar inverter essa mesma realidade. Como se costuma dizer, isso já seria meio caminho andado.

Aqui chegados, há que reconhecer que existem, claramente, alguns pontos positivos que Portugal já soube marcar nesta conjuntura – numa conjuntura em que, convém que fique claro, nem tudo depende ou vai depender exclusivamente de nós.

O primeiro é o facto de Portugal ter feito uma exposição muito franca das suas debilidades ao escrutínio externo, no que demonstrámos uma rara transparência política, que é por todos elogiada. O episódio da Madeira, se bem que não nos tivesse ajudado, acabou por ter a dimensão e o caráter pontual que marcou a diferença entre a exceção e a regra.

O segundo ponto foi a constatação, desde o primeiro momento, de que, no seu histórico de relação com a União Europeia, Portugal tinha sempre jogado um jogo leal, sem contabilidades criativas escondidas, para além daquelas que todos praticam. Esse ponto, por óbvias razões de contraste, favoreceu-nos.

Um terceiro ponto, muito importante, foi o facto do nosso país ter sido capaz de mostrar, no exterior, um largo espetro de apoio político interno ao acordo feito com as instituições internacionais.

Um quarto ponto, que deverá continuar a ser essencial, prende-se com a avaliação positiva feita pelas missões das instituições internacionais, sobre o cumprimento tempestivo, por parte de Portugal, de todas ações a que nos obrigámos, seja no processo legislativo, seja no campo das medidas administrativas. Neste domínio, imagino mesmo alguma surpresa nos nossos interlocutores institucionais face à intenção de levar à prática medidas cumulativas de austeridade, complementares às que haviam sido acordadas internacionalmente.

Finalmente, um quinto ponto, que é lido como traduzindo uma atitude nacional merecedora de grande respeito, nomeadamente à luz de outros exemplos externos, liga-se ao caráter até agora limitado das reações públicas às políticas de austeridade.

Nos contactos que tenho com colegas estrangeiros e com entidades oficiais, estes cinco pontos são tidos como caraterizadores da especificidade positiva da nossa posição, não obstante a constatação da dificuldade da situação geral em que nos encontramos.

Mas – não nos iludamos! - permanecem, no nosso cenário, lido pelos olhos exteriores, alguns fatores negativos que temos de assumir, até para melhor os conseguir ultrapassar.

Desde logo, todos os vícios comportamentais que referi no início desta intervenção. Se não formos capazes de lhes pôr cobro, tudo andará de forma mais lenta. Eu sei que pode ter graça, particularmente para atlânticos, continuar a fazer o papel de mediterrânicos. Mas o “Clube Med” é para as férias e o tempo agora é de trabalho.

À luz do que aprendi nos últimos meses, o principal fator negativo na avaliação que os mercados fazem da nossa economia é a nossa quase endémica incapacidade de promover um crescimento autónomo. Essa realidade fica bem mais patente se descontarmos os efeitos artificiais sobre o nosso PIB que tiveram as transferências comunitárias.

A crise do nosso crescimento é considerada, por todos os observadores, derivada do facto de termos hoje, por razões estruturais e não meramente conjunturais, uma competitividade média inferior à de muitos dos nossos concorrentes diretos. Essa situação é fruto de vários erros cometidos no passado, o menor dos quais não terá sido o facto de termos concentrado, até muito tarde, os nossos fluxos de exportação no “cómodo” mercado europeu, não ousando, na maioria dos casos, ter a audácia para sair para terceiros mercados. A abertura da Europa à globalização veio, assim, apanhar certos setores da nossa economia num processo ainda incompleto de reconversão industrial, o que conduziu a uma desigual capacidade de sobrevivência das nossas unidades produtivas que se centravam nesse mesmo mercado.

Face a esse conjunto de notas de sinal negativo, temos hoje, porém, alguns importantes sinais positivos que importa destacar.

Por exemplo, desde o ano passado, as coisas estão a mudar, bem para melhor, no campo das exportações. No diálogo que tenho tido com empresários, em várias feiras comerciais que tenho visitado, o otimismo é a regra e a dúvida a exceção.

Também na preservação do investimento estrangeiro, já que a sua captação, na atual conjutura, é bem mais difícil, temos vindo a conseguir, nos últimos anos, continuar a potenciar aquilo que são algumas das nossas vantagens comparativas – de que a pertença ao euro é uma das mais importantes, o que, às vezes, se esquece.

E, finalmente, na promoção turística, estamos a trabalhar bem e com resultados concretos, fruto de uma estratégia inteligente e que me parece cada vez melhor coordenada.

Estes são os três domínios que, na área externa, nos importa e face aos quais a nossa diplomacia se encontra atenta e mobilizada. Essas são também as áreas onde se espera que as coisas venham ainda a melhorar, se e quando os efeitos das medidas de reforma e de ajustamento, em curso de implementação, vierem a conduzir a resultados à altura da expetativa que os motivou e dos esforços que o país está a fazer para os levar a cabo.

Aproveito, aliás, neste tempo de anunciadas reformas na área da promoção económica externa, para deixar aqui uma nota pública de grande apreço pelo magnífico trabalho da AICEP, que tenho vindo a testemunhar e a admirar. É preciso preservar a qualidade desse trabalho em qualquer modelo que venha a ser criado para tentar melhorar a diplomacia na área dos negócios.

Sou disso uma testemunha privilegiada. Sou embaixador em França, um país que é hoje o principal investidor externo em Portugal. Um país que, nestes tempos de queda generalizada dos fluxos do turismo, foi o único a aumentá-los em direção ao nosso país. Um país que, por exemplo, já é hoje o principal destino de exportação do nosso vinho do Porto.

Acho que, agora mais do que nunca, deveremos fazer “benchmarking” dos exemplos de investimento mais bem sucedidos em Portugal, relevando junto do mercado internacional as razões positivas que levam certas empresas de qualidade e prestígio a confiar em nós.

Por tudo isso, porque acredito que Portugal não “fecha para obras”, porque sou teimosamente otimista, quero terminar com uma mensagem de confiança.

Essa mensagem é a de que a imagem dos países também se reverte. Há um bom exemplo europeu, que são os países nórdicos. Eles são a melhor prova de que, em escassas décadas, partindo de patamares de desenvolvimento muito baixos, foi possível modernizar essas sociedades, assentando a mudança na educação e no conhecimento, estimulando um empreendedorismo eficaz, socialmente responsável, compatível com a preservação de padrões essenciais de solidariedade social. Para isso, foi também muito importante criar uma cultura comportamental sólida, assente em valores consensualizados pela sociedade. E hoje, bem ao contrário daquilo que acontecia há algumas décadas, esses países  estão no topo das estatísticas de qualidade de vida, de defesa dos direitos das suas populações, da preservação de valores de modernidade. Os países nórdicos são a prova de que é apostando nos fatores de competitividade que é possível atingir a prosperidade, apoiada numa cultura empresarial sólida, geradora de auto-confiança nacional, criadora uma imagem de independência e de capacidade de livre escolha do destino.

Estamos ainda longe disso? Estamos. Parece difícil? Parece e é. Mas esse é o único desafio pelo qual vale a pena Portugal lutar.

Muito obrigado pela vossa atenção.


Intervenção na conferência “Economia portuguesa: economia com futuro”, Lisboa, 30 de Setembro de 2011