31 de maio de 2011

Diplomacia em tempo de crise

Não há muito tempo, um colega de um país do norte da Europa, cujo tecido económico foi bastante menos tocado pela crise internacional, perguntava-me de que modo a nossa diplomacia se estava a adaptar ao tempo de exigência acrescida que o país atravessava. A sua curiosidade tinha a ver, não apenas com a possibilidade de estarmos a encarar uma melhor adequação do nosso dispositivo diplomático aos objetivos mais imediatos da ação externa mas, igualmente, quanto ao modo como o nosso próprio trabalho teria, ou não, sofrido uma mutação qualitativa, em função de alguma reversão de hierarquia de prioridades.

A questão era interessante, embora a resposta não fosse óbvia. A diplomacia, como instrumento executivo da política externa, configura-se com a evolução dos tempos, por uma reformulação de prioridades, decorrente de novos objetivos. Embora deva ter-se sempre presente – e sei que isto pode parecer chocante para alguns cultores do imediatismo – que o papel dos diplomatas, na fixação da imagem do país, deve ir sempre um pouco para além das conjunturas. Essa é a razão pela qual a resposta às solicitações prementes do presente deve ser, no seio da nossa ação externa, modulada em permanência com a necessidade de garantir a preservação dos interesses permanentes do país, numa perspetiva de coerência de longo prazo. A nossa história não se improvisa.

Indo por partes, eu diria que, em face da presente crise, a diplomacia portuguesa tem diante de si três linhas de adaptação.

Em primeiro lugar, dentro do Ministério dos Negócios Estrangeiros não deixou de se considerar, desde o primeiro momento, a importância de repensar a rede diplomática existente, dando atenção particular a áreas geográficas que, não tendo sido privilegiadas nas opções de distribuição de recursos funcionais no passado, convinha que passassem a dispor de uma maior atenção no futuro. Quero com isto dizer que zonas como o norte de África, os países do Golfo e certos mercados asiáticos passaram a entrar na nossa ordem de prioridades, com vista a tentar conseguir novos pontos de apoio à atividade empresarial. Isso tornou-se particularmente importante face a mercados cuja evolução previsível de crescimento pudesse, simultaneamente, vir absorver produção nacional que tivesse menos atratividade para os nossos parceiros tradicionais (em especial, europeus) e garantir espaços sustentados de progressão futura de novas linhas de exportação. Assim foi feito e, estou certo, a prazo, os efeitos ir-se-ão sentir.

A segunda linha é de natureza formativa. Não vale a pena esconder que ainda não está ainda criada, no conjunto da nossa administração pública que opera na ordem externa, uma cultura de trabalho em comum. As razões são diversas, do corporativismo a alguma incompetência. Com felicidade, faço parte daquele grupo de diplomatas que sempre teve uma muito positiva experiência de trabalho conjunto com as estruturas de promoção económica externa (do FFE à AICEP, passando pelo ICEP/API). Por razões diversas, sei que essa experiência não é idêntica à de muitos colegas da diplomacia portuguesa. Não vale a pena estar a distribuir culpas, até pela certeza de que elas não estarão sempre do mesmo lado. Algo tem de mudar neste âmbito e, para isso, de há muito que só vislumbro uma solução, que sei difícil de pôr em prática, por escassez de recursos humanos: promover estágios profissionais cruzados, tanto nas instituições como nas empresas e nas associações empresariais, com suficiente duração para que tal possa ter reais efeitos, num esforço geral de aculturação.

Uma terceira vertente tem a ver com a mudança no paradigma da intervenção das nossas embaixadas, com impacto na informação que produzem. Imagino que a abordagem pública da questão, numa publicação desta natureza, possa escandalizar alguns. Mas julgo ter um mínimo de autoridade experiência para exprimir o que adiante vou dizer.

A diplomacia portuguesa não se deve esgotar no apoio à projeção económica externa do país – no comércio, na promoção do turismo ou na captação de IDE. A atenção à imagem do país na ordem internacional, o cultivo das redes de interesses políticos e culturais que o bilateralismo histórico justifica, a promoção da língua portuguesa e a proteção da diáspora são outros tantos pontos importantes a salvaguardar, como decisivo é sabermos potenciar o nosso valor acrescentado nacional de natureza política, como país construtor de pontes e entendimentos, à escala global. Como a eleição recente para o Conselho de Segurança da ONU o provou. Porque tudo isso, ao funcionar positivamente em favor da imagem do país, acaba por ajudar à criação de um ambiente favorável à promoção dos nossos interesses económicos – e dispensem-me de dar exemplos, por razões que julgo óbvias.

Porém, e como um dia já disse, com choque em alguns ouvidos mais sensíveis,  entendo que o MNE precisa de “menos Kosovo e mais batatas”, querendo com isto dizer que a diplomacia portuguesa tem de continuar o esforço já iniciado no sentido de infletir a sua focagem de prioridades, passando a perceber que a “política pura”, embora podendo dar-nos uma base interessante para um bilateralismo com vantagens, deve sempre apontar para uma visão objetiva dos interesses económicos que importa privilegiar, muito em especial numa situação de crise como a que vivemos.

Mas que fique clara uma coisa: não defendo que a política externa portuguesa seja refém da promoção económica externa, que se opte por uma “reapolitik” de interesses, como se o MNE devesse passar a ser, unicamente, uma espécie de agência de promoção externa de negócios. Não deve sê-lo exclusivamente, mas deve sê-lo também. E, para isto, não são precisos novos despachos ou decretos. Basta haver vontade.

Uma das razões pela qual não defendo uma dependência excessiva da nossa política externa face aos nossos interesses económicos tem a ver com o facto, que pude constatar ao longo das mais de três décadas que levo de ação diplomática, de que essa mesma atividade económica está longe de ter uma coerência mínima: os mercados flutuam, as prioridades variam, a oferta “tem dias”, os nossos empresários – desculpem lá! – têm estados de alma flutuantes. Se a ação externa do país ficasse vinculada, rigidamente, às opções do nosso comércio externo, Portugal teria a imagem de um catavento!

Por isso, recomendo apenas prudência, bom-senso e troca intensa de informação. À nossa diplomacia pode e deve ser pedido um grande empenhamento na promoção da atividade dos nossos agentes económicos. Os diplomatas portugueses devem ser mobilizados para servirem de eixo às campanhas de estímulo à atividade económica externa, as nossas embaixadas devem ser a “casa” dos empresários. Mas tudo isto tem de ter uma coerência global, uma hierarquia de prioridades bem estabelecida, uma dotação mínima de meios e uma proporção adequada de empenhamento. Uma missão diplomática ou consular não pode ser mobilizada apenas porque um empresário o solicita: essa solicitação tem de corresponder a uma razoável contrapartida previsível das vantagens potenciais decorrentes para o país.

É para essa avaliação que a diplomacia espera poder contar sempre com o insubstituível papel técnico da AICEP, como estrutura com capacidade de aferição daquilo que é, a cada momento, o interesse económico prioritário do país na ordem externa. É nesse diálogo, que não é complicado se dele forem excluídos os egos e os reflexos de casta, que deve assentar a parceria constante entre a atividade económica externa e diplomacia portuguesas. 


(Texto publicado na revista "Portugal Global", da AICEP, referente a Junho de 2011)

29 de maio de 2011

Portugal e a diplomacia europeia

Alguns comentadores têm vindo a falar de uma possível redução das nossas embaixadas e consulados, por virtude da introdução de medidas restritivas, de natureza orçamental, para a implementação do MoU da “troika”.

Convém começar por dizer que, embora numa visão impressionista possa parecer o contrário, a diplomacia da União Europeia não substitui as representações diplomáticas dos seus Estados membros. O Serviço Europei de Ação Externa (SEAE) trata dos interesses "comuns" do Estados da UE, as missões de cada país tratam dos seus interesses bilaterais (económicos, culturais, comunidades, relacionamento político Estado-a-Estado, etc).

No caso português, temos uma rede diplomática que foi determinada pela história, pelas nossas vizinhanças, pelas nossas afinidades, pelo tipo específico de interesses que entendemos nos compete defender pelo mundo. É, aliás, essa posição à escala global e os laços que estabelecemos através da nossa rede diplomática que nos permite ter uma voz distinta em Bruxelas, nomeadamente quando se discutem temáticas que diretamente tocam questões em que temos legítimos interesses (Brasil, África, Timor-Leste, etc). Quanto à rede consular, recordo que ela já foi redimensionada, há poucos anos.

O ministro Luis Amado havia anunciado, há meses, uma reflexão suprapartidária, tendente a um possível redesenho da nossa rede diplomático-consular. Perdi o assunto de vista, mas esse é, seguramente, o caminho mais correto, a fim de evitar flutuações de critérios, aquando da mudança de governos. Flutuações essas que costumam ter elevados custos.

Quanto à aplicação do programa assinado com a "troika", embora não veja uma relação direta, naturalmente que uma ponderação sobre o que eventualmente se possa ganhar em economias de escala na racionalização da nossa rede diplomática não pode estar totalmente excluída, como o não estará em qualquer outra estrutura do Estado. Noto, porém, que as eventuais poupanças com um corte de embaixadas seriam sempre muito marginais nos ganhos e, muito provavelmente, bem trágicas nos efeitos sobre a preservação das vantagens da nossa atual presença externa.

É que há dimensões de interesse próprio para cada país que não podem deixar de ser tratadas por cada um, junto de cada um. Como é que uma embaixada da UE num país terceiro defenderia os interesses de uma empresa portuguesa que concorresse com outra empresa europeia no mesmo mercado?

Porém, há um terreno em que temos de evoluir: não nos deveremos fechar, em Portugal, a uma reflexão sobre a estrutura, dimensão e funções das embaixadas que atualmente temos em países da UE. Esse é um tema em que é preciso trabalhar, atento o facto de muito do antigo bilateralismo intraeuropeu estar hoje ultrapassado pela presença comum em Bruxelas. À partida, não faço ideia se fechar algumas embaixadas dentro da UE tem ou não sentido: mas há que ponderar isso ou, pelo menos, caminhar para o seu redimensionamento, tendência que me parece indiscutível. Mas esse é um tema que nada tem a ver com o SEAE. Tem a ver com a informatização, com a qualificação do pessoal, com a redução de valências funcionais tornadas obsoletas, etc.

Uma das vantagens do SEAE pode ser uma maior sinergia entre a diplomacia nacional e comunitária. Temos que ser capazes de utilizar a máquina multilateral para a promoção dos nossos interesses nacionais. E, além disso, temos de conseguir influenciar melhor essa mesma máquina, através da projeção dos nossos interesses específicos, detetados e promovidos pela nossa rede bilateral.

Por esta e por outras razões, acho muito interessante que dois portugueses chefiem missões em duas das sete capitais de países com os quais a União Europeia tem "parcerias estratégicas". Isso revela muito do prestígio que os portugueses conseguiram grangear dentro da máquina da UE. Porém, devo dizer que não vivo obcecado com a necessidade do aumento do número das chefias por portugueses em missões do SEAE. Tanto ou mais do que as chefias, gostaria de ver bons técnicos portugueses, numa estreita articulação com Lisboa que não fira a sua independência funcional, distribuídos por outras missões do SEAE, onde os nossos interesses atuais ou prospetivos são ou podem ser relevantes. Exemplos? Luanda, Nova Deli, Jacarta, Pequim, Rabat, Moscovo, Dili, etc.

Como a nossa recente eleição para o CSNU bem provou, a nossa diplomacia nacional tem um "estofo" que vai muito para além daquilo que se imagina. Somos um país antigo, um dos mais antigos do mundo, temos fronteiras com quase nove séculos, relações históricas testadas e uma marca fixada no imaginário dos cinco continentes. Temos a "cara" de um país que é fiel à sua palavra, que sabe entender os outros, que não tem interesses económicos pressionantes, que não alimenta agendas "imperiais" ou de excessiva "righteousness", que percebe as debilidades alheias e que sabe gerir com sabedoria o fator tempo.

O SEAE é uma construção interessante, destinada a servir e projetar os interesses "comuns" (e não "únicos") que a UE conseguir conciliar no seu interior. Funciona segundo a lógica do Tratado de Lisboa e essa lógica tem muito a ver com a transferência de poder do pilar comunitário para a intergovernamentalidade, a qual naturalmennte favorece os países mais fortes do processo decisório, onde o fator demográfico dilui, de certa forma, o conceito da igualdade dos Estados. Esta é uma inevitabilidade, decorrente da nova UE criada com os alargamentos. Por isso, devemos dar ao SEAE a nossa colaboração, trabalhar nele ativamente, mas não devemos deixar, nem por sombras, que ele se sobreponha minimamente à afirmação dos nossos interesses na ordem externa. É que, por ora, o SEAE vale o que vale... Exemplos? As crises do Haiti, da Costa do Marfim, do Egito, da Líbia ou da Síria. Ou, de uma forma geral, todo o Médio Oriente.

Não hipotequemos a uma incerta diplomacia de potência de futuro, como a Europa ambiciona ser, a defesa dos interesses de um país como o nosso, que sempre se habituou a sobreviver "apesar" dos outros.

(Texto preparado a pedido do "Diário Económico", para apoiar uma reflexão sobre o Serviço Europeu de Ação Externa")

15 de maio de 2011

Délio Machado


Chegou-me a notícia: morreu, em Vila Real, Délio Machado. Era um homem simpático, com um permanente sorriso, uma figura cuja imagem fazia parte do meu cenário da cidade, desde a infância. De uma família visceralmente "republicana" (vocábulo para significar "democrata"), foi um cíclico activista nas escassas aberturas "eleitorais" do Estado Novo.

No pequeno mundo que era Vila Real, no final dos anos 60, aproximei-me dele por via da política. Ele era um moderado, num tempo em que eu era um radical. Recordo, por exemplo, discordarmos fortemente sobre o modo de abordar o tema da política colonial. Trabalhámos juntos, e conhecemo-nos melhor, na montagem da máquina da Comissão Democrática Eleitoral, que, em Vila Real, concorreu às "eleições" de 1969. No alto dos meus 21 anos, com ele e com Otílio de Figueiredo, coube-me então a honra de integrar a delegação que fez a entrega formal da lista oposicionista do distrito ao Governador civil do regime.

Era um eficaz operacional político. No seu rápido NSU - ele que foi sempre um homem dos automóveis - corremos "seca e meca" a tentar mobilizar figuras tidas como "gente fixe", em diversas localidades, pessoas que tinham estado "connosco" (não comigo, claro) nos tempos "do Norton e do Delgado". Tivemos então algumas boas surpresas, muitas outras desilusões e, numa tarde, escapámos por uma unha negra a uma sova de varapau em Abaças, ameaçados por gente da “situação”. No final dessa bela aventura política, levámos uma já esperada "abada", sob a criativa aritmética de resultados da ditadura. Mas divertimo-nos imenso. E ficámos, para sempre, com uma relação de amizade e solidariedade. 

Passaram, entretanto, quatro décadas. A vida fazia com que nos encontrássemos apenas a espaços, nas minhas passagens por Vila Real. Falávamos da política de hoje e recordávamos, por vezes, episódios dessa intensa jornada de outrora. Chegámos mesmo a planear organizar algo para fixar a memória desses tempos. Tal, porém, nunca se proporcionou. 

Há poucos anos, teve a amabilidade de me oferecer a sua documentação política, que ainda não tive oportunidade de tratar. Agradeci-lhe o gesto, numa visita que lhe fiz, no lar onde estava alojado, no último dia de 2009, a desejar-lhe um bom ano. Não tive possibilidade de lhe ir dar um novo abraço, como era minha intenção, no final do ano passado. E, agora, já não o posso fazer.

(Artigo publicado no "Notícias de Vila Real", em 15.5.11)