2 de janeiro de 2004

Côte d'Azur

Que se há-de fazer !? Eu gosto da “Côte d’Azur” no inverno e o inverno não costuma ser fácil no sul de França. Sob trovoadas, quando chuvas e ventanias fortes batem a costa, que esfrangalham estruturas mais frágeis, rompem estradas antes pacíficas e desequilibram a rotina. Por exemplo, a “Promenade des Anglais” abandona os seus dias gloriosos do sol estival, o lugar de exibicionismo habitual nos tempos serenos, para se tornar num local agreste, desabrigado e frequentemente inóspito.

Mas eu, confesso, gosto muito de Nice, mesmo no inverno. Ou melhor, ainda gosto mais desse tempo desafiante, de lutar contra a fúria dos elementos que pretendem derrubar-nos, da vontade afirmada de nos mantermos de pé, sob a borrasca forte, não temendo o vento, dando a cara à água, enfrentando o frio. Verdade seja que não somos muitos os que ainda nos aventuramos pelos passeios de Nice, nestes dias de inverno. Mas, que diabo!, orgulhamo-nos de ser os que têm a coragem de enfrentar essa espécie de luta desigual. E de gostar dela.

Há, porém, quem, em tempos de borrasca, e também sendo obrigado a andar por Nice, prefira abrigar-se nos lugares onde a maioria se recolhe, no conforto do grupo, fugindo a apanhar um resfriado. E, quando têm de sair dessa comodidade instalada, porque obrigados pela debandada colectiva a atravessar a rua, espiam antes para ver de onde sopra o vento e só então arrancam, cuidadosos, num passo hesitante, quase sempre sob um guarda-chuva alheio, por entre as pingas da chuva, num zig-zag de prudência, encostados às colunas e aos beirais, evitando as poças de água, escapados à ventania de frente. O seu objectivo íntimo é saírem de Nice sem se molhar, passar ao lado do vento sem desarranjar o cabelo, chegar ao destino como se nada se tivesse passado, ou melhor, suspirando de alívio por tudo já ter passado. A experiência mostra que alguns preferem sair de Nice porque sim, outros podem lá ficar se isso lhes não for demasiado custoso e, finalmente, a outros tanto se lhes dá, desde que os não incomodem demasiado ou os não obriguem a escolher destino.

As férias de inverno têm estes riscos. A Europa é um continente marcado pela imprevisibilidade do clima, oscilando entre a borrasca e a bonança. Saber passear pelo continente nestes tempos é uma arte que se aprende, que se estuda, que resulta do modo como soubermos ir enfrentando as cidades e os seus desafios. E cada uma é um caso. Há – imaginem ! – quem prefira Bruxelas, quem adore a modorra fria da “Rue de la Loi”, não se aventurando pelas vias paralelas, menos na moda mas com mais graça. São geralmente gente com uma constituição que o tempo prova débil, pouco dada a enfrentar as ventanias da vida, onde se enrijesse e nos tornamos mais maduros. Enfim, são gostos.

Mas, como disse, eu prefiro Nice, mesmo no inverno. E os meus leitores, se conhecessem melhor Nice, mesmo no inverno, estou certo que também prefeririam.

1 de janeiro de 2004

Portugal e o Tratado Constitucional

O debate que se instalou em Portugal, a propósito da Constituição Europeia, durante a Convenção e a Conferência Intergovernamental que se lhe seguiu, foi talvez o primeiro grande momento, desde o início da presença portuguesa nas instituições comunitárias, em que se verificou uma efectiva contraposição de argumentos, em termos públicos, sobre a construção europeia e o papel que o nosso país nela desempenha.

Em grande parte suscitado pelos mais críticos ao curso que as discussões institucionais europeias estavam a levar, esse debate nacional teve a virtualidade de trazer a público, com grande franqueza, a avaliação das consequências de determinadas opções, fugindo mesmo ao tom esforçadamente consensual com que estes temas eram muitas vezes tratados no passado. A circunstância de muitos sectores da sociedade se terem sentido motivados para nele participar demonstrou a importância do momento que se atravessava e contribuiu para alargar o campo da polémica a sectores que vulgarmente o não frequentavam.

Julgo, por isso, que poderá ser interessante tentar caracterizar as diversas posições que foram assumidas nesse contexto, porque elas nos permitem avaliar melhor as percepções do projecto europeu que estão fixadas entre nós e que, sem dúvida, se projectarão em debates futuros. Mas antes de entrarmos nessa análise, valerá a pena fazer um breve bosquejo sobre o que se passou em Portugal em anteriores momentos da construção europeia.


A “bondade” da opção europeia


Diferentemente de outros países, Portugal viveu, durante muitos anos, sem levar a cabo uma reflexão profunda sobre o processo da construção europeia e o modo como o país era por ela afectado. A Europa havia sido “vendida” sem grande dificuldade no percurso que conduziu à adesão, porque esta foi sempre vista como uma opção de natureza essencialmente política, destinada a ancorar o nosso jovem regime democrático a um projecto alargado de estabilidade, que o protegesse de indesejáveis regressões. As injecções financeiras davam, além disso, alento aos que entendiam que o saldo da integração sobrelevava os custos que determinados sectores económico-sociais iriam ter de pagar, como efeitos colaterais da adesão. A magnificação desse saldo positivo – que é real – escondeu sempre alguns impactos negativos e, principalmente, evitou uma análise serena do modo como a própria adesão foi negociada. A circunstância de nela terem estado profundamente comprometidos os partidos que, desde há muito, dominam a vida política democrática portuguesa também ajudou a que essa avaliação nunca tivesse sido feita com grande rigor. Algumas surpresas poderiam aparecer, se essa análise tivesse sido desenvolvida, e talvez os portugueses percebessem melhor a razão de ser de algumas das dificuldades com que o país hoje se defronta no plano europeu.

Àparte algumas vozes mais reticentes, tidas como cassandras ou saudosas do tempo da autarcia, a bondade genérica da integração europeia impôs-se à maioria dos portugueses como uma evidência, potenciada pelo efeito miraculoso dos fundos nos bolsos e na paisagem quotidiana. A isso somou-se, no pensamento de alguns, o sentimento implícito de que um país como Portugal só tem vantagens em ser forçado a mudar por pressão exterior, dada a sua atávica dificuldade em se auto-reformar.

A aceitação do princípio de que o que vinha “de Bruxelas” era, à partida, de sinal positivo foi também garantida pelo facto de, no início, haver uma manifesta falta de massa crítica em determinados sectores da Administração Pública, para o escrutínio cuidado das propostas legislativas comunitárias, que repousavam num nível técnico que, por vezes, se situava acima da capacidade nacional para a desmontagem dos respectivos efeitos potenciais.

Acresce que essa mesma Administração Pública, com muito escassas excepções, vivia, de há muito, num confortável registo autista face à sociedade real, tendo sempre as mãos muito livres para interpretar, a seu bel-prazer, o conceito de interesse nacional no quadro das negociações externas. O facto das instituições da nossa sociedade civil serem pouco actuantes e condicionantes, dos partidos políticos serem então um deserto na análise aprofundada e desideologizada dos temas europeus e, em especial, dos agentes económicos e sociais terem uma capacidade muito limitada de influência técnica nas opções que o Estado fazia em Bruxelas levou a que este se comportasse como bem entendia nas opções que tomadas no plano comunitário.

 

Limitações do debate interno


Neste quadro de responsabilização do Estado perante a sociedade houve duas falhas muito importantes.

A primeira prende-se com os sectores intelectuais e académicos, bem como com a representação de interesses económico-sociais. Portugal deve ser o único país da União Europeia onde não existe um Instituto de Estudos Europeus com uma participação alargada, capaz de ser o lugar de encontro dos sectores relevantes da sociedade civil, do empresariado e da vida universitária. Todo o debate europeu com algum significado e profundidade deslocou-se, no nosso país, para think tanks de carácter generalista em matéria externa ou para eventos temáticos de natureza episódica, grande parte das vezes centrados nas questões da “grande política”, vulgarmente identificadas com a PESC ou com os temas de segurança e defesa. Por seu turno, algumas iniciativas universitárias, ou o aprofundamento temático em revistas especializadas, redundaram, também frequentemente, em debates microscópicos de natureza teórica, quase sempre protagonizados pelos mesmos actores. Com isso diminuíram o seu potencial de impacto no processo decisório oficial, que a Administração Pública, por seu turno, ciosamente cuidava em monopolizar e nunca foi forçada a partilhar.

Esta é uma característica do processo de decisão europeia em Portugal: a dificuldade de interacção criativa entre a Administração Pública e os meios pensantes da coisa europeia, bem como com os sectores representativos de interesses a ter em conta. Há uma evidente falta de estruturas e de cultura política que forcem a uma regular accountability pública por parte dos decisores oficiais, nomeadamente face aos interesses por que tem de cuidar. Por outro lado, no outro lugar do cenário, a escassez do debate estruturado com quem assegura a representação na negociação diplomática também evita que quem pensa teoricamente a Europa se submeta a testes práticos de realismo. São mundos que só episodicamente se encontram, o que conduz a imagens distorcidas e a falsas percepções de comportamento e ideias.

Uma outra falha, que só mais recentemente começou a ser colmatada, prende-se com o acompanhamento parlamentar da acção governativa no plano europeu. Por muito tempo, a Assembleia da República apenas desenvolveu debates de natureza esporádica e fixados em agendas de circunstância, quase sempre com uma abordagem muito impressionista, dependente de deputados supostamente versados em determinadas temáticas, que prevaleciam desmesuradamente no produto final dessa reflexão. O regular acompanhamento dos temas europeus pelo nosso parlamento demorou muito tempo a impor-se, pela resistência das maiorias parlamentares a facilitarem o escrutínio da acção europeia dos seus executivos: quando formalmente se iniciou, demorou muito a ultrapassar a fase do tratamento “pela rama" dos assuntos, pelo que tais exercícios se faziam sem grande exigência para as representações governamentais. O facto dos debates, em plenário ou em comissões, resvalarem frequentemente para polémicas de natureza política, em que o tema europeu era um mero pretexto de agenda, facilitou, como é evidente, a desqualificação dessa abordagem.  


A ruptura de Maastricht


Costuma dizer-se que, um pouco por toda a Europa, os passos da integração dados até à conclusão do Tratado de Maastricht foram quase sempre conduzidos à revelia de um escrutínio das opiniões públicas nacionais. Em Portugal também assim foi, mas, no nosso caso, acresceu a circunstância dessas decisões também não terem sofrido, desde o primeiro momento, uma aferição parlamentar atenta, bem como por parte dos grupos de interesses perante os quais os sucessivos governos deveriam ter ajuizado da adequação das suas opções. O Estado esteve, assim, praticamente “à solta” na negociação internacional e, curiosamente, ficou a dever-se à atenção, cada vez mais especializada, de certa comunicação social a necessidade sentida pelos agentes políticos de justificarem certas opções tomadas na área externa. Julgo que o país não tem ainda consciência do que deve aos media nacionais neste domínio.

O tempo de Maastricht foi um acordar colectivo para uma Europa que estava a ser construída com um evidente défice no controlo democrático das decisões. O sobressalto público que então se gerou teve muito a ver com o facto de, pela primeira vez de forma flagrante, algumas das funções tradicionais da soberania terem passado a ser partilhadas, ou encaminhadas para uma partilha futura. As mais importante reservas soberanistas expressam-se então perante a unificação monetária e a definição de uma linha tendencial em favor de uma política de segurança e de defesa comum. Em contraponto, os federalistas encontraram, nesses tempos, razões de júbilo para alimentarem os seus “amanhãs que cantam”, aberto que foi o caminho, graças ao voluntarismo criativo de Jacques Delors, para um significativo salto qualitativo em matéria de integração.

Em Portugal, a negociação de Maastricht escapou, como era de regra, a qualquer debate público. Com excepção da rede de consultas entre departamentos de Estado, e de alguns tímidos colóquios, não houve lugar a uma avaliação mínima das vontades exteriores, tidas por adquiridas para os benefícios dos avanços a acordar. Esta constatação não é, necessariamente, uma crítica: o Estado responde aos impulsos exteriores e, na ausência destes, substitui-se-lhes.


A atitude negocial portuguesa


Ao olharmos para o posicionamento do nosso país na negociação europeia – e refiro aqui apenas a negociação institucional e das políticas comunitárias – verificamos que há algumas linhas constantes que atravessaram os sucessivos processos, não obstante as adaptações que o tempo e o realismo foi impondo.

Essas linhas partem de Maastricht e vão até ao Tratado Constitucional, passando pelas negociações de Amsterdão e de Nice.

No plano institucional puro, é importante assumir que a doutrina oficial aculturada no Ministério dos Negócios Estrangeiros – que definia o essencial da “linha”, sujeita a afinação por parte dos responsáveis políticos – foi sempre marcada por um arreigado conservadorismo. Nela prevalecia um pensamento favorável à preservação do status quo em grande número de domínios, de que são paradigma as reticências à atribuição de mais poderes ao Parlamento Europeu, bem como aos Comité das Regiões ou ao Comité Económico e Social. A consciência de que Portugal se situa frequentemente à margem de alguns dos interesses médios projectados em Bruxelas tornou o nosso MNE muito resistente à extensão das decisões por maioria qualificada, não optando por uma perspectiva dinâmica. A unanimidade deveria, assim, ser mantida no maior número de áreas possível, orientação que igualmente prevalecia na área da Justiça e Assuntos Internos e, por maioria de razão, em temas de Política Externa e de Segurança Comum (PESC).

Nas políticas comunitárias, prevalecia aquilo que poderíamos designar como um “europeísmo utilitário”. Por regra, Portugal associava-se ao desenvolvimento ou à comunitarização tendencial de políticas que pudessem, directa ou indirectamente, beneficiar o país na distribuição dos pacotes financeiros, o que era confundido, aos olhos de alguns, como uma verdadeira vontade integradora. Essa falsa imagem europeísta, produto de uma miopia de curto prazo, foi igualmente reforçada por uma sistemática colagem à Comissão Europeia e à preservação dos seus poderes, tida, durante muito tempo, como o principal aliado no carrear de vantagens económicas para o país.

Tendo como eixo estas posições-chave, verifica-se, contudo, que a atitude portuguesa se foi adaptando ao longo dos tempos, fosse pela realidade das coisas ou pela imperatividade de pressões externas dominantes, fosse por uma efectiva maturação do debate interno, que conduziu a inflexões e algumas evoluções no nosso discurso europeu. Infelizmente, Portugal acabou muitas vezes por adaptar o seu discurso muito tarde e à contre-coeur, o que não contribuiu para prestigiar a nossa imagem negocial. Digo-o com a consciência de quem também titulou alguns desses erros.

Um ponto interessante na posição portuguesa foi o facto de sempre se ter procurado evitar a sedimentação de factores que pudessem vir a agravar a periferização do país. Isso levou os negociadores a, simultaneamente, tentar limitar ou controlar os riscos das fórmulas de integração diferenciada (ou “cooperações reforçadas”) e a seguir algum voluntarismo centrípeto de adesão aos modelos desse tipo de integração entretanto criados (Schengen, moeda única), nunca arriscando alinhar em sistemas de opt-out.

Com honestidade, há que reconhecer que, na linha orientadora da negociação por parte de Portugal, a assunção de uma postura mais europeísta se fez sempre de uma forma algo subordinada à perspectiva intergovernamental tradicional. E não será novidade se se afirmar que foram os decisores políticos que, quase sempre, tiveram de vencer a considerável resistência da Administração Pública às opções mais integradoras.


Debate sobre a Constituição


Como referido no início deste texto, a discussão sobre o Tratado Constitucional – o que viria a ser a Constituição Europeia - trouxe à evidência um conjunto de posições mais alargado do que aquele que costumava dominar o debate europeu entre nós. Tentar-se-á tipificá-las.

Desde o anúncio da instituição da Convenção Europeia, o campo dos chamados Eurocépticos denunciou aquilo que considerou ser a pretensão de alguns Estados de, com este Tratado, reforçarem o seu poder efectivo no controlo da União Europeia, anulando institucionalmente os efeitos do novo alargamento e liquidando, de caminho, a capacidade de representação dos Estados de menor dimensão.

Tratava-se, assim, e como única solução para pôr cobro a esta deriva, de garantir uma radicalização aberta de posições, forçando um referendo em que a força objectiva daquela denúncia teria forçosamente de conduzir à rejeição do Tratado. Este foi o cenário de crise preferido por forças situadas bastante à direita e à esquerda do espectro político, com algumas nuances que não permitem uma total generalização e identificação de posições.

Um grupo que designaremos por Realistas viria a adoptar uma posição táctica mais moderada ou contemporizadora. Partindo do mesmo princípio que os Eurocépticos – este Tratado consagra a tomada do poder por um “directório”, pelo que o sistema de votação por dupla maioria (população/Estados) é basicamente negativo –, esse grupo cedo entendeu, contudo, que era impossível resistir às tendências que se iam consagrando como maioritárias e que Portugal nunca se poderia dar ao luxo de ficar responsável por uma ruptura negocial. Assim, os cultores dessa orientação limitaram-se a alvitrar soluções de compromisso, destinadas a atenuar alguns dos aspectos mais gravosos do texto do Tratado.

Nesse grupo Realista é possível identificar, por assim dizer, duas correntes: aquela que via na potencial rejeição do Tratado, por falta de ratificações alheias ou pela cumulação de referendos falhados, a solução ideal, o que a aproximou dos Eurocépticos, embora sem querer pagar o preço político de uma atitude singular de aberta rejeição do Tratado por parte de Portugal; e aquela que, encontrando virtualidades em grande parte do texto do Tratado, centrou as suas objecções essencialmente no processo decisório proposto, porque baseado no predomínio do factor demográfico, pelo que se inclinou para soluções que pudessem conduzir à sua atenuação (diferentes limiares na dupla maioria) ou ao recurso, ainda que temporalmente parcial, ao sistema de Nice.

No extremo oposto, encontramos naturalmente os Federalistas, aqueles que continuam a defender a instituição de um modelo federal para a Europa.

Parte desse grupo terá já percebido que o caminho a que a nova Constituição Europeia conduziria aponta para uma via que acaba por ser divergente do modelo federal, em especial pela ausência de uma, agora já irrecuperável, instituição de tipo Senado, com representação equitativa de todos os Estados. No entanto, essa escola de pensamento assume, mesmo assim, uma atitude do tipo “do mal, o menos”, pelo que acha preferível apoiar este passo constitucional, até pelo peso do seu simbolismo, ficando a aguardar melhor ocasião para outros saltos de qualidade no processo europeu.

Ao lado dessa facção, que saiu algo desiludida do resultado final obtido, existia uma outra linha federalista, mais radical e optimista, que achava que nenhum preço era exageradamente alto, desde que se pudessem obter todos os avanços no plano europeu que o Tratado consagra. Para os cultores dessa escola, parecia preferível correr o risco de entrar numa Europa subordinada ao poder objectivo de alguns Estados – e menorizavam os risco de um “directório” – do que escudar o país atrás de uma perspectiva defensiva e “nacionalista”. Esta escola de pensamento federalista entendia que, a prazo, não haveria qualquer contradição entre quaisquer interesses portugueses e o interesse médio europeu que justificasse a luta pela preservação de uma capacidade decisória nacional significativa no processo europeu.

Finalmente, nesta tipificação de atitudes no debate constitucional europeu, valerá a pena qualificar quantos entenderam que o resultado desta Constituição Europeia não tinha para nós uma relevância que justificasse que o país se empenhasse, com custos políticos elevados, em combater os seus supostos aspectos negativos. Essa escola de atitude, porque não é uma escola de pensamento, privilegiou a “fuga entre as pingas” às complicações de um debate europeu mais profundo. Trata-se da adopção de uma espécie de situacionismo europeu, de estar com o ar do tempo, à espera que o tempo passe. Tacticamente, foram escolhendo pontos menores como “cavalo de batalha” e, acomodados estes, reclamaram vitória. Para quem estava distraído, foram os eternos vitoriosos.

O cruzamento público de todas estas diferentes perspectivas enriqueceu, de forma evidente, o debate europeu em Portugal. Além disso, se atentarmos na evolução da linguagem assumida perante este processo pelas forças políticas que se assumem como alternativas de governo, facilmente concluiremos que o debate constituinte europeu acabou por gerar, no nosso país, uma atitude política, que se afigura maioritária, muito mais aberta às soluções que acabaram por se ver plasmadas no texto da Constituição Europeia. Isso também ficou evidente em sectores importantes da comunicação social, que, em grande parte, foi conquistada para as virtualidades da Constituição e para a irrelevância da maioria das objecções que o mesmo suscitou em certos sectores. Só o futuro da Constituição Europeia, ou do que dela vier a sobrar, se encarregará de demonstrar se essa visão corresponde, ou não, ao interesse de Portugal e dos portugueses no plano europeu.


(Publicado na revista "Relações Internacionais", nº 2, Lisboa, 2004)

A OSCE e a Segurança Europeia

A Organização para a Segurança e para a Cooperação na Europa (OSCE) é hoje vista como o parente pobre das organizações multilaterais de segurança. E, no entanto, será justo creditar-lhe historicamente um papel central na paz e na estabilidade que hoje se vive no continente europeu e, mesmo, no espaço euro-asiático.

Para um observador exterior, menos atento aos meandros políticos subjacentes ao projecto da OSCE, a fragilidade institucional da organização é a primeira grande surpresa com que se defronta. A ausência das estruturas que normalmente caracterizam modelos internacionais comparáveis, bem como a inédita flexibilidade/adaptabilidade dos respectivos instrumentos, tornam a OSCE muito menos uma organização internacional de tipo tradicional e, muito mais, uma espécie de sedimentação relutante da antiga Conferência para a Segurança e Cooperação na Europa (CSCE). E escrevemos “relutante” porque alguns parecem continuar a preferir a subsistência no tempo do modelo de conferência em detrimento do reforço da instituição.

A Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE) foi estabelecida através do Acto Final de Helsínquia, assinado em 1 de Agosto de 1975, que lançou as bases para a chamada nova arquitectura de segurança europeia. Correspondeu ao culminar de um processo negocial de dois anos, que a Ostpolitik e a détente do início dos anos 70 tornaram possível. A Conferência tinha como objectivo ser um fórum multilateral de diálogo e de negociação entre o Ocidente e o Leste europeus, área onde o papel da URSS era então predominante. A assinatura, em Novembro de 1990, da Carta de Paris para uma Nova Europa, que consagrou o final da Guerra Fria, conferiu outro vigor à CSCE, a qual, na Cimeira de Budapeste, em 1994, se converteu finalmente na OSCE.

Para melhor se interpretar a OSCE e as suas limitações actuais é, assim, essencial começar por entender que esta sua “desestruturação” foi, desde o início, uma opção deliberada de alguns. Hoje, ela prolonga-se pela prevalência de uma cultura funcional onde se projectam, com um singular efeito conjugado na inércia reformadora, as diferentes filosofias de abordagem da organização mantidas pelos seus parceiros centrais – os EUA e a Rússia.

As estruturas permanentes da OSCE assentam num Secretariado com escasso poder de iniciativa, vocacionado para a gestão administrativa e para a montagem logística de operações de limitada dimensão e, no plano político, totalmente subordinado à orientação das Presidências anuais. Existem, além disso, três instituições - o Escritório para as Instituições Democráticas e Direitos Humanos, o Alto Comissário para as Minorias Nacionais e o Representante para a Liberdade dos Media - dotadas de estatutos diferenciados e com uma autonomia operacional que não facilita uma coerência global de acção. A organização dispõe ainda de 18 Missões operando em vários dos seus Estados participantes, dotadas de diferentes mandatos e designações, correspondentes a objectivos operacionais diversos.

A Presidência anual da OSCE, como cúpula de toda esta estrutura heterogénea, aparece aos olhos exteriores como uma realidade que dispõe de um considerável poder formal, que assume a organização por inteiro, define as respectivas linhas de orientação e marca o ritmo da sua agenda. O Presidente em Exercício, que é o Ministro dos Negócios Estrangeiros do país que exerce a presidência, é o porta-voz político da organização e, nessa qualidade, pronuncia-se regularmente sobre os acontecimentos internacionais relevantes em matéria de segurança, na respectiva esfera geopolítica de responsabilidade. Para tal, é dotado de alguma autonomia decisória e de autoridade opinativa, sem prejuízo de estar sujeito a um controlo a posteriori, pela leitura pública que venha a fazer da vontade política da OSCE. Dispõe, além disso, de uma certa margem de liberdade na selecção de altos funcionários da organização.

No quotidiano do trabalho em Viena, a OSCE é dirigida por um Conselho Permanente, que reúne os representantes diplomáticos em Viena dos Estados participantes e que é presidido pelo Representante Permanente do país que exerce a Presidência.

Mas serão as Presidências anuais efectivamente poderosas? A nosso ver, a realidade difere bastante da teoria. Na boa tradição das conferências internacionais, a OSCE tem a regra do consenso como elemento basilar do seu funcionamento, o que implica a consonância de todos os seus membros com as decisões tomadas no seu seio. Mas, por outro lado, a indispensabilidade de tal consenso baixa, de forma por vezes dramática, a força e a relevância política das decisões, por ser fruto de laboriosos compromissos, muitas vezes assentes numa inescapável ambiguidade. Isso é agravado pelo facto de, contrariamente a outras organizações internacionais, que têm na base sólidas culturas políticas comuns, a OSCE sofrer ainda da sua principal virtualidade – a imensa diversidade dos 55 Estados que a compõem[1], que vão desde estáveis e prósperas democracias a Estados que acumulam tensões, subdesenvolvimento e regimes cuja solidez democrática é muito incipiente, ou melhor, em que os modelos autoritários são ainda o padrão predominante. Se pensarmos que se trata de uma organização focada na área da segurança, matéria que se liga ao âmago da soberania dos Estados, e se reflectirmos na multiplicidade e, por vezes, na conflitualidade de agendas geopolíticas entre os seus membros, fácil será presumir os bloqueios e os impasses que regularmente se registam no seu seio.

Neste contexto, o maior erro que uma Presidência da OSCE pode cometer é levar à letra o seu poder formal, ter a tentação de o explorar de forma desmesurada, tornando-se autista e julgando que pode avançar contando apenas consigo própria, para a formulação das decisões, mesmo que estas teoricamente lhe compitam em absoluto. Qualquer Presidência cedo tem de entender que, nas orientações que projecte em nome da organização, deve garantir um apoio muito alargado, em especial por parte dos Estados tidos como mais influentes.

Uma sabedoria consuetudinária dentro da organização institucionalizou, aliás, dois modelos para atenuar o risco das Presidências serem tentadas a uma deriva autónoma muito radical.

O primeiro, de natureza mais formal, é a Troika. Trata-se de um mecanismo de consulta da Presidência em Exercício, envolvendo o anterior e o futuro titulares da presidência, e que esta pode utilizar para alargar a potencial aceitabilidade das propostas que faz à organização.

O segundo é o mecanismo regular de consultas com os mais importantes parceiros – política e financeiramente. Uma boa gestão deste mecanismo, que funciona exclusivamente a nível dos Representantes Permanentes em Viena, permite assegurar um ritmo de trabalho seguro a qualquer Presidência, que nele deve também saber jogar com a potencial conflitualidade de interesses que, por vezes, se regista entre os parceiros mais influentes.

Se a Troika existe como um filtro de teste e legitimação de iniciativas, as consultas são um reflexo de bom-senso e de realpolitik. E as propostas acolhidas favoravelmente pela Troika antecipam muitas vezes a sua aceitação nas consultas, que o mesmo é dizer, abrem caminho a uma sua aprovação pela generalidade dos membros da organização. É um mecanismo delicado, de gestão à vista, cujo sucesso está também muito dependente da natureza e relevância das crises eventualmente emergentes.


A questão do poder na OSCE

Mas, na realidade, onde se situa o poder dentro da OSCE?

Embora possa não ser politicamente correcto escrevê-lo, é forçoso reconhecer que a OSCE constitui uma espécie de “condomínio” onde prevalecem, em primeiro lugar, os EUA e a Rússia – sem cujo acordo conjunto, implícito ou explícito, nada de significativamente importante avança. Esta é uma realidade que tem as suas origens históricas no processo que levou à criação da CSCE e de que a OSCE se não libertou. Segue-se, na hierarquia dos poderes fácticos, um grupo relativamente homogéneo de países ocidentais (Alemanha, França e Reino Unido), os quais, pelo seu peso individual, compensam a fragilidade afirmativa da União Europeia, enquanto entidade política. Pode dizer-se que estes cinco países acabam por constituir um “directório” informal que marca o ritmo da organização, pela sua expressão orçamental e peso diplomático, bem como pela sua contribuição para os recursos humanos da estrutura da OSCE[2]. O sentimento emergente deste “directório” informal tem de ser levado em permanente conta por qualquer Presidência, se pretender garantir um mínimo de eficácia nas suas iniciativas. Alguma capacidade de manobra das Presidências reside, precisamente, na habilidade em explorar, com efeitos no reforço do seu próprio poder, as eventuais contradições emergentes no seio do “directório” - normalmente entre a Rússia e os membros ocidentais, mas que igualmente ocorrem entre estes últimos.

Importante se torna, também, assegurar uma consulta permanente a alguns outros países que conseguiram granjear algum peso específico no seio da organização – tais como os chamados like-minded (de que fazem parte Estados com o Canadá, a Noruega e a Suíça) e a Turquia. No primeiro caso, por virtude das respectivas contribuições financeiras e/ou expressão diplomática, e no último caso, por se tratar de um país com laços importante a áreas mais a Leste da organização, além de relevante membro da NATO.

Todas estas peculiaridades dão à OSCE uma natureza muito especial e justificam uma gestão cuidadosa pelas Presidências das suas diversas estruturas, implicando um respeito permanente pela cultura organizativa dominante – a qual é, à partida, muito conservadora e refractária à mudança, pelo temor de afectar os delicados equilíbrios em que a organização assenta. Tentar afrontar abertamente tal cultura com propostas muito ousadas, centrar a gestão de iniciativas da Presidência à luz de uma ostensiva agenda nacional de interesses, em especial se não testada de forma alargada, torna-se a receita mais fácil para o desastre. Tais crises pagam-se, em especial, no termo do exercício anual – altura em que tem lugar o Conselho Ministerial, por cujos resultados acaba quase sempre por ser medido, às vezes um tanto injustamente, o exercício global de cada Presidência.

Há que notar que, para uma estrutura marcada por uma debilidade institucional tão evidente, a OSCE se comporta surpreendentemente bem no plano operacional, em particular se atendermos à exiguidade do seu orçamento, recursos humanos e estruturas permanentes. A sua flexibilidade institucional, que é uma das suas debilidades, acaba, curiosamente, por lhe conferir a possibilidade de se mobilizar com alguma rapidez para acções no terreno, desde que uma decisão política para tal seja tomada.

A experiência mostra que a OSCE desenvolve hoje algumas capacidades operativas com prestígio nos cenários em que actua, embora muitas vezes com a discrição própria das intervenções em matéria de diplomacia preventiva. A circunstância de ser uma organização com um espectro alargado de membros, originários e pertencentes a culturas políticas e geo-estratégicas muito diferenciadas, confere à sua actividade, um pouco à imagem das Nações Unidas, um carácter relativamente mais neutral, que se repercute positivamente na sua aceitabilidade, em contraste com o modo como as intervenções da NATO ou da União Europeia são, por vezes, vistas por terceiros. 

A maior fragilidade da OSCE residirá, porventura, no facto de, por si só, não ter mecanismos práticos, para além dos meios declaratórios, de constrangimento ou de “recompensa” perante quantos são objecto das suas acções ou das suas recomendações. Daí a crescente importância da organização continuar a estabelecer ligações estreitas a outras estruturas – como a União Europeia, o Conselho da Europa, o FMI, o Banco Mundial, o PNUD, o BERD –, das quais possa transparecer que, para esses actores internacionais, os pareceres da OSCE constituem sempre elementos condicionantes para as suas próprias decisões, das quais o quotidiano ou as expectativas de muitos países dependem. No êxito desta acção conjugada poderá estar muito do futuro das Missões que a OSCE tem actualmente no terreno.

 

Dimensões sem equilíbrio


Como é sabido, a intervenção da OSCE objectiva-se através das suas chamadas três Dimensões: Político-Militar, Económico-Ambiental e Humana. Trata-se, de certo modo, da institucionalização dos baskets em que o funcionamento da sua antecessora CSCE assentava.

Com o termo da Guerra Fria e com as vicissitudes que o Tratado CFE[3] entretanto sofreu, a Dimensão Político-Militar da OSCE entrou num regime de rotina operativa. As estruturas da OSCE que foram criadas neste domínio, se bem que numerosas e muito especializadas, não são, em geral, sede de regular conflitualidade entre os Estados participantes. O regime de normalidade a que se chegou nesta Dimensão deve ser lido, precisamente, como um atestado positivo sobre a sua própria eficácia.

A implementação das medidas criadoras de confiança nas áreas militares e de segurança[4] faz-se hoje com toda a regularidade e pode dizer-se que a OSCE tem a seu cargo a gestão de um modelo normativo e regulador que emerge de uma cultura de segurança que está já socializada no seu seio e que é um dos seus mais respeitáveis patrimónios. Alguns poderão objectar que a emergência dessa cultura mais não é que o produto da diluição das tensões no pós-Guerra Fria. A assim ser, há que responder que a CSCE tem também um crédito a reivindicar na origem da situação que hoje lhe cumpre controlar.

A principal Dimensão que hoje ocupa a OSCE é, sem dúvida, a Dimensão Humana – que engloba os mecanismos de observação do respeito pelos direitos humanos, pelo Estado de direito, pela liberdade de organização da sociedade civil, pela observância de práticas eleitorais correctas, direitos das minorias nacionais e liberdade dos meios de comunicação social. No âmbito desta Dimensão, avulta o trabalho do Escritório para as Instituições Democráticas e Direitos Humanos (ODIHR), sedeado em Varsóvia, que um papel activo na área da monitorização e supervisão eleitoral, na formação e promoção de direitos humanos, no desenvolvimento da sociedade civil, no reforço das instituições democráticas, na promoção das actividades das Organizações Não-Governamentais e da sociedade civil, na formação da comunicação social, em questões relacionadas com as comunidades ciganas (Roma/Sinti), etc.

Neste domínio, o dia-a-dia da OSCE aparece cada vez mais marcado por aquilo que alguns chamam as “duas OSCE” - os países “a Oeste de Viena” e os países “a Leste de Viena” - com os primeiros muitas vezes a assumir-se como zeladores pela observância pelos segundos das regras por todos subscritas. Mais adiante avaliaremos as consequências deste confronto no funcionamento e nas perspectivas de futuro da organização.

Note-se que foi o desenvolvimento da Dimensão Humana que, nos anos 90, levou à criação das Missões da OSCE no terreno e que, no essencial, ainda hoje justifica a respectiva manutenção. Por muito que se pretenda conferir um carácter apelativo, para os Estados em que se situam, ao trabalho das Missões OSCE, há que reconhecer que, sem excepção, elas continuam a ser vistas pelos países que as hospedam como uma espécie de “nódoa” perante a comunidade internacional. O que não deixa de ter alguma justificação, porquanto a sua própria manutenção reflecte o reconhecimento da existência de problemas importantes que o país tem a resolver e que os respectivos governos tendem frequentemente a não querer ver sublinhados. Essa é, aliás, a razão pela qual quase todos os Estados onde há Missões OSCE tentam evitar a sua eternização, através da procura da sua limitação no tempo, e tentam uma progressiva diluição do conteúdo substantivo dos respectivos mandatos.

Perante a rotina que hoje marca a Dimensão Político-Militar, e como forma de contrabalançar o peso desproporcionado da Dimensão Humana no âmbito da organização, tem havido tentativas para procurar desenvolver o restante “braço” de intervenção da OSCE – a Dimensão Económico-Ambiental. É importante perceber que a activação desta Dimensão deve assentar em projectos que, directa ou indirectamente, tenham a ver com as questões de segurança para as quais a organização está vocacionada, pelo que, frequentemente, é necessário adoptar uma interpretação muito extensiva de tal conceito para poder comportá-los nesse âmbito. A mobilização da cooperação regional ou sub-regional, que poderia favorecer o lançamento de projectos de natureza económico-ambiental com alguns ganhos de escala, é frequentemente dificultada pela persistência de conflitos ou tensões nesses mesmos quadros regionais. Além disso, o escasso orçamento da OSCE leva, frequentemente, a que tais projectos só possam ser executados com recurso a contribuições de natureza voluntária, bastante mais difíceis de mobilizar. Tudo isto conduz a que a Dimensão Económico-Ambiental seja hoje o “parente pobre” da OSCE e não se consiga assumir como uma expressão suficientemente equilibradora do carácter mais intrusivo da Dimensão Humana.

Este flagrante desequilíbrio entre as três Dimensões constitui uma dificuldade com que todas as Presidências têm que conviver. E a efectiva desigualdade de expressão das Dimensões dificulta, muitas vezes, a aceitação do trabalho das Missões no terreno. Começa a ser cada vez mais difícil conseguir persuadir certos Estados do argumento de que essas mesmas Missões podem funcionar como factores de credibilitação, aferidores da evolução dos respectivos sistemas políticos na sua aproximação ao padrões internacionalmente tidos como mais adequados. Essa avaliação pode ter repercussões favoráveis, se tal evolução for, de facto, positiva, em especial nas pretensões de alguns em virem a integrar estruturas euro-atlânticas e, noutros casos, em obterem facilidades junto de instituições financeiras internacionais, que mantêm alguns critérios de condicionalidade em matéria de direitos humanos e princípios democráticos. Mas pode ter um efeito inverso, se e quando tal evolução não se processar ou se a situação interna dos países regredir. É que as Missões OSCE lá estarão, em ambos os casos, a servir de amplificadores da realidade dos factos.

 

EUA e Rússia – a  paridade desigual

Como atrás ficou implícito, os EUA e a Rússia funcionam como uma espécie de “membros permanentes” de um “Conselho de Segurança” que, efectivamente, condiciona fortemente o dia-a-dia da OSCE. São eles que têm, na prática, um implícito direito de veto em todas as matérias da organização, mesmo a montante da respectiva apresentação formal, pelo que é necessário com eles testar sempre qualquer iniciativa que se pretenda propor. Que fique claro, porém, que esse estatuto de aparente equiparação não os transforma, necessariamente, em parceiros iguais na organização.

Se, durante a Guerra Fria, russos e americanos se equilibravam no seio da CSCE, constituindo-se como um verdadeiro duopólio, ainda que conflitual, a posterior evolução em sentidos opostos do poder relativo de cada país no plano mundial acabou por se repercutir, como não podia deixar de ser, no seu posicionamento relativo no quadro da própria organização. Embora se situe na OSCE, muito provavelmente, o terreno multilateral em que a ficção de um equilíbrio formal de poderes mais sobreviveu. O que, num juízo cínico, pode também ser lido como um reconhecimento implícito da falta de importância da própria OSCE, ao prolongar no tempo uma realidade que só os livros de História hoje acolhem.

Verdade seja que Washington tem sempre um cuidado muito particular em respeitar o estatuto especial da Rússia, mesmo em face de parceiros e aliados ocidentais com os quais tem uma proximidade de cultura política mais evidente. Os EUA pressentem que, estando a OSCE crescentemente centrada em áreas que fazem parte da herança estratégica da antiga URSS, não podem deixar de manter com a Rússia um diálogo preferencial no âmbito da organização, particularmente num momento em que as suas mais perigosas tensões no plano bilateral estão, de certo modo, atenuadas. Naturalmente que os acontecimentos de Setembro de 2001, com o subsequente maior envolvimento dos EUA na Ásia Central e no Cáucaso, veio potenciar esta necessidade de entendimento Washington-Moscovo num palco estratégico como a OSCE.

Importa agora reflectir um pouco sobre o modo como EUA e Rússia se comportam hoje perante a organização.

Na observância de uma filosofia de sempre, os EUA continuam a insistir numa linha tendente a manter a OSCE como organização “desestruturada”[5]. Tal reflexo vem do tempo em que a então URSS queria reforçar institucionalmente a CSCE, com vista a atribuir-lhe um estatuto internacional elevado, aproveitando então a considerável influência de que dispunha no Centro e Leste europeus. Para o interesse americano, a estrutura actual da OSCE continua a ser a mais conveniente: influencia a organização no seu quotidiano, através do trabalho junto das Presidências, garante uma presença estratégica por via da participação activa nas Missões no terreno, onde coloca pessoal de perfil diverso e controla e selecciona as actividades extra-orçamentais que mais lhe interessam. Desta forma, os EUA pretendem impedir que um excessivo reforço institucional da organização possa conduzir a que ela se converta num instrumento passível de escapar ao seu controlo. A nosso ver, as lições aprendidas noutros fora não estão ausentes da opção por esta linha de comportamento.

Não obstante esta insistência na precariedade institucional da OSCE, os EUA mantêm alguma atenção à actividade de uma organização que lhes continua a permitir legitimar um papel central, por via multilateral, numa área geográfica que tem a importância de ser, simultaneamente, a fronteira circundante da Rússia e uma área estratégica, política e economicamente, de que um poder global se não pode desinteressar, em especial depois dos desenvolvimentos ocorridos nos últimos anos e da liberdade de acção que entretanto conseguiram garantir nesse contexto.


Para a Rússia, esta ficção de poder equiparado também traz algumas vantagens. Por um lado, no tocante ao seu prestígio internacional - o que não deixa de ter consequências no modo como a liderança russa apresenta internamente a imagem do país, em especial como factor de apaziguamento de certas tendências nacionalistas que, ciclicamente, exploram o declínio efectivo do seu poderio. Num plano mais prático, a nova situação estratégica criada com o ambiente posterior a Setembro de 2001 como que atenuou alguma pressão crítica por parte dos EUA em termos de Direitos Humanos, que passaram a privilegiar o papel da Rússia como parceiro importante na luta anti-terrorista, numa opção de realpolitik que sobreleva certos pruridos ético-políticos. Neste domínio, Moscovo procurou habilmente retirar das conjunturais prioridades americanas algum abrandar temporário da pressão para o cumprimento dos “Compromissos de Istambul”[6]. Noutra vertente, a Rússia conseguiu, em 2002, dar por encerrada a missão da OSCE na Chechénia[7], sem ter com isso pago um preço político internacional de monta, que lhe teria sido difícil evitar noutras circunstâncias. Restará saber por quanto tempo esse ambiente se manterá e se a Rússia poderá preservar a liberdade de acção que o ambiente da luta anti-terrorista lhe proporcionou.

Em todo este complexo contexto, Moscovo parece alimentar hoje mais dúvidas do que certezas sobre o modo como se comportar perante a organização, sendo claro que muito do futuro desta passará também pelo resultado dessa mesma avaliação. Desaparecidas as vantagens realmente paritárias da CSCE, ultrapassado que foi o período de ilusória “lua-de-mel” Leste-Oeste, no período imediatamente pós-Guerra Fria, a Rússia confronta-se hoje com uma organização que já não domina, embora possa condicionar ou bloquear, e onde prevalece uma cultura política que entende afectar os seus interesses imediatos. Os alargamentos da União Europeia e da NATO, com tensões não resolvidas com alguns países bálticos, e as incursões petro-estratégicas dos EUA no seu espaço tradicional de influência – Cáucaso e Ásia Central - não podem deixar de causar perplexidade num poder que, historicamente, sempre confundiu estabilidade na sua vizinhança com controlo político-militar dos vizinhos, numa cultura obcecada de segurança. Neste contexto, a OSCE não resolve hoje nenhuma das preocupações de Moscovo, antes lhe acrescenta algumas mais.


Na estreita margem de manobra de que dispõe, a Rússia está, contudo, a tentar explorar na OSCE uma virtualidade estratégica marginal. Tendo em atenção a contínua atenção dos países ocidentais face às deficiências na evolução político-institucional dos países saídos do desmantelamento da URSS, a Rússia começa a detectar as vantagens de poder, regularmente, dar a mão no seio da OSCE às actuais lideranças de muitos desses países, ajudando-as a resistir às pressões ocidentais para cumprirem os compromissos de evolução político-institucional que subscreveram ao integrarem a organização. Por essa via, Moscovo procura recuperar alguma influência perdida, tenta restaurar feridas do passado recente e, o que não é despiciendo no caso de alguns países da Ásia Central, procura evitar alguma atracção desses mesmos Estados por parte da China[8]. 

Como se disse, a Rússia parece hoje hesitante sobre como actuar no seio da OSCE. Descontente com a liberdade que as “contribuições voluntárias” e os regimes de secondment de pessoal facultam aos países ocidentais, Moscovo deixou de pugnar por um reforço institucional que, seguramente, lhe viria a exigir responsabilidades orçamentais impossíveis de comportar, no que acaba por coincidir com os EUA, em detrimento da estruturação progressiva da organização. Nesta indecisão, a Rússia espera para ver e mantém uma atitude de muita prudência, pontuada por uma política de obstrução selectiva.

Finalmente, e numa apenas aparente contradição, a Rússia revela-se como o grande promotor do esforço de reflexão sobre a reforma da organização. Mas a sua agenda neste domínio é relativamente simples: Moscovo quer provocar um debate sobre a necessidade de uma maior transparência no funcionamento da OSCE, quer sublinhar a importância de um maior rigor na observância de regras e procedimentos, em suma, pretende controlar o uso mais eficaz que outros fazem hoje da organização. E procura utilizar tal debate para colocar sobre a mesa outra questão, para ela muito importante: a avaliação das consequências político-estratégicas dos alargamentos da NATO e da União Europeia nos equilíbrios internos dentro da OSCE.


A ausência da União Europeia


Se a Política Externa e de Segurança Comum existisse, a OSCE poderia vir a ser um importante instrumento a utilizar na afirmação estratégica da União Europeia, nomeadamente junto dos países saídos da implosão da URSS. Não sendo esse o caso, e talvez por isso mesmo, a presença da União no seio da OSCE aparece hoje como uma dispersão pouco coerente de iniciativas, as mais das vezes impulsionadas, de forma não totalmente coordenada, pelo Reino Unido, pela França ou pela Alemanha. A acção da União Europeia na OSCE é, quase sempre, reactiva e casuística, muitas vezes meramente declaratória e só episodicamente utilizando o seu potencial económico – nomeadamente a acção externa da Comissão Europeia – como instrumento efectivo de influência.

A União parece não se dar conta que, se se quer afirmar como um poder mundial, não pode descurar uma estratégia clara que atenue o potencial de tensões na sua nova fronteira a Leste (Bielorrússia, Ucrânia e Moldávia), que influencie activamente a resolução das crises no Cáucaso (Geórgia e Arménia/Azerbaijão) e possa projectar o seu peso na Ásia Central, passando a ser actor relevante nesse mercado estratégico-energético. A Europa, enquanto unidade política, parece não se ter ainda apercebido que essa área pode ser-lhe cada vez mais vital, particularmente se se tiver em conta a crescente expressão americana no Golfo e nas zonas adjacentes na Ásia Central e do Sul. Sem uma relação activa com os Estados dessas áreas, a União Europeia não conseguirá garantir, em tempo útil, uma influência relevante no processo de evolução do espaço euro-asiático da OSCE. Infelizmente, a União parece incapaz de entender que a OSCE poderia ser por ela utilizada de forma muito mais eficaz neste domínio.

Convém deixar claro que o problema da melhoria da eficácia da acção da União Europeia no seio da OSCE não se situa predominantemente em Viena. Nesta cidade apenas se sentem os efeitos secundários da leitura feita em Bruxelas, não apenas em termos da colocação dos temas OSCE na hierarquia de prioridades da acção externa da União, mas igualmente os bloqueamentos entre os Estados membros que resultam em certos impasses.

No primeiro caso, constata-se que Bruxelas tem vindo, com alguma lentidão, a absorver as mensagens que a sua antena no seio da OSCE lhe envia. Essa mensagem é relativamente simples: torna-se necessário que a União Europeia, que tem hoje quase metade dos Estados OSCE, alguns deles com uma grande proximidade geográfica das questões mais conflituais que ocupam a organização, e que paga uma fatia considerável do orçamento, se concentre em acordar numa massa crítica de jurisprudência diplomática, não apenas face aos temas actualmente mais apelativos para a PESC, mas igualmente nas áreas do Cáucaso e Ásia Central, por onde passa muito do futuro dos interesses europeus. É forçoso, neste contexto, que a União se ponha de acordo – e, neste caso, a Alemanha, a França e o Reino Unido, em especial – se está ou não disposta a afirmar uma política autónoma para essas regiões, eventualmente arriscando pontuais conflitualidades com os EUA, quando a estratégia deste possa contrapor-se aos seus interesses. A sensação prevalecente é que a Europa dá a Washington o direito de estabelecer em tais áreas a linha prioritária de acção, ficando a actuar apenas nas margens desta e, por essa razão, aparecendo sempre como um poder subsidiário, o que afecta a sua própria relevância no diálogo com a Rússia.

Uma segunda linha de preocupações prende-se com algumas questões de princípio e com a evolução de certas dimensões da acção externa da União Europeia, no período subsequente ao último alargamento. Estamos a referir-nos aos temas ligados às tensões traumáticas que alguns dos novos aderentes, em especial os Estados bálticos, mantêm com Moscovo e ao modo como tal se repercute na formulação de algumas linhas de intervenção substantiva da União no seio da OSCE – de que o tratamento das minorias nacionais é o exemplo mais evidente. Mas isso é igualmente válido nas questões como o tratamento das matérias ligadas ao combate à intolerância e à autonomia a dar às diversas componentes de tal conceito. Se a União Europeia não conseguir ultrapassar, a muito curto prazo, o bloqueamento que obriga a solidariedades que se situam acima dos princípios que deve observar, não nos deveremos admirar que tal possa ter repercussões sérias, em especial no equilíbrio da nossa relação com a Rússia. No seio da OSCE, a União sempre deu a entender que tinha uma diplomacia de valores e que, muitas vezes, esse era o elemento distintivo face a certos jogos de realpolitik que enfraqueciam a credibilidade de outros parceiros. Se a dinâmica do seu processo interno de decisão vier a ficar congelada pela fragilidade na afirmação dessa dimensão ética, a Europa passará a ser vista dentro da OSCE como adoptando o mesmo cinismo táctico que, por vezes, identifica negativamente nos outros.

Mas importa dizer que magnificar a influência da União Europeia na OSCE não pode constituir um fim em si mesmo, mas apenas um meio para utilizar os instrumentos ao dispor da organização para as finalidades da PESC. Para tal, impõe-se que todos os actores relevantes na União – Estados membros, Comissão, Policy Unit PESC, PSC, COSCE - se articulem com vista a aproveitar as eventuais contribuições e meios da OSCE para objectivos comuns da União Europeia, em cada país ou sub-região, que não será possível, ou será muito mais difícil, desenvolver fora deste quadro multilateral. Será pela cumulação criativa dos diversos instrumentos que a União e os seus Estados membros têm na sua mão, em Bruxelas e nas capitais, que vai ser possível conferir credibilidade ao processo declaratório que se desenvolve em Viena. Meios financeiros, instrumentos de política comercial, política de sanções, influência junto de outras instituições multilaterais – estes são alguns de entre muitos instrumentos que a União Europeia (com a Comissão Europeia a ter um papel relevante) e os seus Estados membros têm ao seu dispor e que devem utilizar em pleno.

A ligação entre as delegações da Comissão Europeia e as Missões OSCE são, neste domínio, um elemento da maior importância. A União, além disso, tem de saber trabalhar muito melhor a montante da gestão quotidiana definida no quadro do Conselho Permanente, influenciando as agendas e as prioridades da OSCE, nomeadamente através do desenho do seu orçamento anual e da planificação capaz das suas decisões substantivas, com carácter estratégico, que são aprovadas nos Conselhos Ministeriais anuais. Finalmente, torna-se vital que os Estados Membros que têm agendas nacionais muito vincadas em alguns países da área OSCE, onde a União tem um défice de influência enquanto entidade colectiva, consigam trabalhar de forma coordenada e coerente, numa lógica interventiva europeia. Isto passa, nomeadamente, pelo diálogo no desenho dos projectos com financiamentos nacionais e pela política de candidaturas para os postos OSCE.

No imediato, o empate de vontades que se detecta na União Europeia conduz a que as suas intervenções na OSCE acabem por ser uma manancial de platitudes, a expressão de uma diplomacia de lugares comuns, que contrasta flagrantemente com a importância potencial de representar politicamente 25 Estados num contexto de 55[9]. Se assim continuarmos, não apenas enfraqueceremos a nossa imagem na OSCE como contribuiremos para enfraquecer a própria organização.

 


As dúvidas existenciais


Embora oficialmente assuma um discurso auto-congratulatório sobre a preservação das virtualidades da sua acção e sobre a subsistência de um espaço próprio no mercado das organizações de segurança, é patente que o ambiente que se vive na OSCE está longe de ser de extrema confiança quanto ao respectivo futuro. Muito pelo contrário, há uma constante interrogação sobre o modo como a organização se deve situar na arquitectura de segurança europeia, depois da evolução de outras entidades que, em certa medida, podem conflituar com a preservação do seu domínio específico de intervenção.

Na prática, a evolução da filosofia que hoje enforma a NATO, o vasto alargamento desta organização e, em especial, o modelo de articulação que ela já conseguiu com a Rússia, vieram renovar as dúvidas que existiam sobre o espaço de afirmação futura para a OSCE na área da segurança. Se a organização surgiu no passado como terreno privilegiado para gerir o diálogo com a URSS, a verdade é que a Rússia dispõe hoje de quadros próprios muito mais eficazes, não apenas para sustentar o seu entendimento com os EUA, mas igualmente para organizar o seu relacionamento directo com a NATO. Naturalmente que passam pela OSCE algumas questões residuais em matéria de controlo dos processo de desarmamento convencional, a que se ligam mecanismos de transparência para assegurar as medidas geradoras de confiança em matérias de segurança. Mas, como atrás se assinalou, estamos já muito mais no domínio da gestão das rotinas e, muito menos, num terreno que pressuponha um nível de intervenção negocial em que a OSCE venha a ser instrumental.

Por outro lado, o último alargamento da União Europeia também não resulta neutral para a OSCE, tendo particularmente em conta que vai de paralelo com o reforço de uma dimensão própria de segurança, a qual, assuma-se ou não, conflitua, de certo modo, com o terreno tradicionalmente ocupado pela organização. Um exemplo bem evidente é o papel crescente da União nos Balcãs, num modelo de intervenção que claramente se substitui – e vai mesmo muito para além – àquele que a OSCE está em condições de oferecer. Além disso, e uma vez mais, a Rússia não necessita da mediação da OSCE para dialogar com a União Europeia: fá-lo em quadros que configuram o caminho para uma parceria estratégica perfeitamente autónoma. Diríamos mesmo que importará à União no seio da OSCE evitar que os temas mais problemáticos na sua agenda acabem por prejudicar este mesmo entendimento, em lugar de o reforçar.

Embora ninguém o afirme abertamente, é também evidente existir uma subterrânea competição entre a OSCE e as estruturas do Conselho da Europa, nomeadamente nas áreas da Dimensão Humana, se bem que, neste último caso, a OSCE possa reivindicar ter no seu seio os países da Ásia Central que não fazem parte da instituição de Estrasburgo, para além de parceiros do outro lado do Atlântico com estatuto pleno. A questão estará em saber-se se, numa lógica de economias políticas de escala, a comunidade internacional pode continuar a dar-se ao luxo de manter separadas organizações que se cruzam no mesmo plano de actividades, apenas por uma espécie de luta pela sobrevivência assente em lógicas corporativas e de inércia reformista.

Voltando à OSCE, parece importante que seja feito um inventário sereno das suas virtualidades como organização, do seu acervo institucional e normativo, da utilidade dos instrumentos ao seu dispor e do valor acrescentado que a massa crítica que conseguiu gerar pode dar para os esforços internacionais de segurança. A estes pontos deve somar-se uma análise prospectiva sobre novas áreas temáticas a que poderá dedicar atenção.

Não está nos objectivos deste texto entrar em tal exercício, mas sempre diremos que a preservação integral dos instrumentos que consagram os compromissos assumidos pelos Estados participantes da OSCE deve estar no centro das preocupações de qualquer reflexão sobre o futuro da organização. Por outro lado, não vemos como dispensável o papel extremamente relevante que a rede das Missões OSCE hoje representa, como factor de monitorização e pressão para a evolução de certas sociedades em transição. Finalmente, cremos que questões como o combate ao Tráfico de Seres Humanos, a gestão de fronteiras e a formação de polícia, a par de outras dimensões de natureza horizontal, constituem hoje um espaço de crescimento potencial da organização.

Talvez uma reflexão alargada sobre a divisão internacional de trabalho em matéria de segurança internacional pudesse ser desenvolvida com alguma vantagem, mas temos dúvidas que tal se possa fazer apenas no contexto euro-atlântico-asiático, como aquele em que a OSCE se projecta. A nosso ver, só como resultante de uma evolução das Nações Unidas, com a atribuição de responsabilidades subsidiárias a organizações de natureza regional ou sub-regional, é que o futuro da OSCE poderia ser assegurado em plenitude. Mas esse é outro debate que não cabe neste texto.

Finalmente, a ideia de alguns Estados no sentido de, a prazo curto, ser promovida uma Cimeira de chefes de Estado e de Governo dos países OSCE continua a ser tema de análise recorrente na organização[10]. Confessamos o nosso cepticismo sobre o interesse e oportunidade de levar a cabo, no imediato, tal exercício. Não apenas porque tememos que ele possa ser escassamente mobilizador, espelhando ainda mais o desinteresse actual que os Estados participantes mantêm pela organização, mas igualmente porque ele poderia contribuir para o relevar de algumas clivagens, por ser impensável que alguns sectores dentro da organização se não sentissem tentados a expressar as suas preocupações fundamentais num debate a nível tão elevado. E, neste caso, o exercício acabaria por ser contraproducente e reforçar as perplexidades que, em princípio, tinha como objectivo superar.

 


A Presidência Portuguesa

A Presidência portuguesa da OSCE[11] foi, desde o primeiro momento, assumida como “uma oportunidade única para que Portugal possa continuar a dar expressão ao seu apego a uma política de direitos humanos, de enraizamento da democracia e da promoção da paz, da estabilidade e da prosperidade no mundo e em particular no continente europeu”[12]. O objectivo era utilizar o palco da OSCE para reforçar a nova visibilidade externa que se pretendia para o país, nomeadamente através de uma activa participação no quadro europeu e na crescente afirmação de uma diplomacia de valores.

Para tal, Portugal definiu, durante 2001, um completo programa de trabalho onde ressaltava alguma ambição de tocar, com eficácia e sentido prospectivo, nos principais vectores operacionais da OSCE, nomeadamente através de um maior equilíbrio das respectivas Dimensões, de um impulsionar de linhas internas de reforma e de uma procura de sinergias com outras organizações internacionais e regionais, no quadro do conceito da Plataforma para uma Segurança Cooperativa[13], lançado na Cimeira de Lisboa, em 1996, e consagrado em Istambul, três anos mais tarde.

De registar que os três temas de natureza regional, ligados aos chamados frozen conflicts que subsistem no seio da OSCE, também mereceram a atenção da Presidência portuguesa: Transnístria, Nagorno-Karabakh e Ossétia do Sul.

Valerá fazer referência breve a cada um deles, pois constituem o cerne das preocupações da organização e, na realidade, configuram situações de tensão, restos da Guerra Fria, que não podem deixar de colocar ameaças constantes à estabilidade.

Na região moldava da Transnístria, na fronteira com a Ucrânia, mantém-se uma administração separatista que não aceita o governo central moldavo, expressando uma vontade política que hesita entre o secessionismo e modelos de grande autonomia. Embora não haja um reconhecimento formal de tal administração por parte de qualquer país, a circunstância das autoridades transnístrias de facto dificultarem a destruição e remoção de armas e munições de uma antiga base russa aí localizada traz consequências sérias para o cumprimento por Moscovo de parte dos já referidos “Compromissos de Istambul”. O problema transnístrio apresenta, assim, duas vertentes, que regularmente se conjugam no plano político: o desmantelamento do arsenal militar russo e o processo negocial para o estabelecimento de um acordo político-constitucional com as autoridades legítimas da Moldova. O ano de 2002 trouxe alguns avanços nas duas frentes, embora sem uma solução necessariamente à vista em ambas. Em 2003, a Rússia tentou promover um plano próprio para a resolução do diferendo, que contou com a oposição do governo moldavo e um idêntico cepticismo por parte da comunidade internacional ocidental.

A OSCE, através do chamado “Grupo de Minsk” (co-presidido pelos EUA, Rússia e França), tem, na última década, tentado mediar o conflito provocado pela ocupação pela Arménia de cerca de 16% do território do Azerbaijão, a região do Nagorno-Karabakh, onde reside uma população de etnia arménia. Desde o cessar-fogo obtido em 1994, que culminou um sangrento conflito iniciado em 1988, que a situação se tem mantido sob elevada tensão, com incidentes regulares, embora com uma intensidade baixa de conflito nos últimos anos. Os esforços das diversas Presidências OSCE para promover um diálogo com efeitos práticos na definição do estatuto futuro daquele território têm sido totalmente infrutíferos.

Finalmente, o território da Ossétia do Sul mantém um conflito com as autoridades da Geórgia, que recusam conceder o estatuto de ligação à Rússia que reclama. Trata-se de um problema que a OSCE trata desde há vários anos, com sucesso muito limitado, mas com regular promoção de diálogo entre as partes. De paralelo com a questão do território da Abcásia, que está a cargo das Nações Unidas, a questão da Ossétia do Sul constitui uma das heranças da presença russa na Geórgia.

Porém, todos os esforços de Portugal nestes domínios, se bem que reconhecidos e saudados no seio da organização, tiveram um sucesso semelhante aos que haviam sido levados a cabo por anteriores Presidências. A prevalência de tensões locais muito fortes e a incapacidade ou indisponibilidade de outros actores internacionais de forçarem soluções levou, em todos os casos, a um prolongamento prático do status quo. Vale a pena registar que as Presidências posteriores foram, até ao momento, igualmente incapazes de dar qualquer salto qualitativo nestas mesmas questões.


Terrorismo – desafio e oportunidade

Numa perspectiva mais geral, é importante notar que, sem ter perdido de vista alguns dos principais objectivos do seu programa, a Presidência portuguesa se viu forçada, desde o primeiro momento, a proceder a uma readequação parcelar do mesmo à luz das exigências da nova situação criada pelos acontecimentos de Setembro de 2001. Assim, constituiu preocupação central do nosso exercício potenciar a visibilidade e a utilidade efectiva da organização no esforço colectivo, liderado pela ONU, e assumido como linha comum por toda a comunidade internacional, de luta contra o terrorismo. Tratava-se, neste caso, de prosseguir e complementar o inteligente e oportuno esforço feito pela anterior Presidência romena nos seus últimos meses, onde havia consagrado, neste domínio específico, o Plano de Acção de Bucareste e o Programa de Acção de Bisqueque – que passaram a constituir-se eixos importantes no esforço de visibilidade da OSCE no campo da luta anti-terrorista.

Se bem que ninguém duvidasse da importância de que se revestia uma organização de segurança como a OSCE afirmar a sua disponibilidade para colaborar na luta internacional anti-terrorista, muitos se interrogaram, desde o início, sobre qual seria o valor acrescentado que ela poderia dar a tal esforço. O que ficara definido em Bucareste e Bisqueque era, sem dúvida, importante, mas estava por demonstrar o papel operativo particular que a OSCE poderia vir a desempenhar neste âmbito. Alguns viram mesmo, nesse movimento de colagem à agenda de oportunidade, um ensejo para consolidar o futuro da organização – certos cínicos afirmaram então que talvez o terrorismo pudesse vir a fazer mais pelo futuro da OSCE do que a OSCE pelo combate ao terrorismo…

A Presidência portuguesa procurou, desde o primeiro momento, assumir uma posição realista. Sem tentar magnificar as potencialidades da organização neste domínio, colocou-se a si própria três objectivos paralelos.

O primeiro consistia em dar sequência aos esforços muito positivos da Presidência romena, garantindo que, durante 2002, seriam avaliados os progressos e as boas práticas entretanto desenvolvidas pelos Estados no combate ao terrorismo, estruturando algumas linhas para exercícios similares no futuro, a aprovar no Conselho Ministerial do Porto, em Dezembro desse ano.

O segundo seria a possibilidade de elevar a visibilidade da acção da organização no contexto internacional, utilizando para tal os instrumentos da Plataforma para uma Segurança Cooperativa. Desde o início da nossa Presidência, havia sido planeada a realização, em Lisboa, de uma reunião com os Secretários-Gerais e/ou altos representantes da ONU e das organizações regionais relevantes, que viria a ter lugar em Junho de 2002.

Finalmente, um terceiro objectivo, a que cedo atribuímos grande importância, foi o de procurar fixar, num único instrumento escrito, as bases de uma aproximação política comum dos Estados OSCE no quadro da luta anti-terrorista. A ideia de conferir a tal documento o título de “Carta” foi recorrentemente mencionada como um dos objectivos para o Conselho Ministerial do Porto.

O risco deste último objectivo – e que acabaria por ser a nossa mais original contribuição neste domínio – era reconhecidamente elevado. A crescente simplificação de tratamento do tema, pela situação traumática que o relançara e pelo pragmatismo das acções que a ONU concentrava, deixava escasso espaço para um esforço de abordagem mais conceptual. Esse esforço tanto se poderia perder em generalidades inconsequentes como cair no terreno perigoso de definições muito elaboradas ou restritivas, as quais, neste último caso, iriam em contra-ciclo com a maré política do tempo. Acrescia que a diversidade de culturas políticas que compõem a OSCE facilmente faria resvalar tal tarefa para uma colagem às clivagens tradicionais no seio da organização, como já se começara a verificar em Bucareste.

Cedo se verificou que todas estas preocupações tinham fundamento. Depois de um ensaio do exercício, antes do Verão de 2002, em moldes que a comunidade OSCE não acolheu com grande entusiasmo, viríamos, nos últimos meses, a reverter em Viena o processo através de um modelo que se revelou mais consensual, embora curiosamente mais imaginativo e criativo. Dele viria a resultar, por aproximações sucessivas, a Carta de Prevenção e Combate ao Terrorismo, que seria aprovada no Conselho Ministerial do Porto, em Dezembro de 2002. As discussões em Viena foram muito difíceis, a própria utilidade do exercício chegou a estar em dúvida, o conceito de “Carta” só muito tardiamente foi aceite por todos e, mesmo assim, apenas depois de um delicado trabalho de convicção individualizada dos Estados mais relutantes, com o recurso a complexos trade-off com outros dossiês. Pelo percurso ficaram dificuldades de wording ligadas a problemas específicos de alguns países e um esforço para uma orientação pragmática e, tanto quanto possível, isenta de ambiguidade.

No Porto viríamos também a aprovar uma Decisão, sob impulso dos EUA, relativa aos compromissos e actividades da OSCE no combate ao terrorismo – precisamente na linha de fixação do quadro de monitorização futura que sempre pretendêramos. A assunção, por parte da Presidência, desta ideia americana, que sempre procurámos que não afectasse substantivamente a integridade e a própria identidade conceptual da Carta, acabaria por ser garantida como contrapartida do apoio activo de Washington, nomeadamente junto de terceiros Estados, a outros documentos que pretendíamos incluir no “pacote” que viria a ser aprovado no termo do Conselho Ministerial do Porto.

Neste domínio politicamente tenso e propenso à simplificação caricatural que é o combate ao terrorismo, a Presidência portuguesa terá conseguido, através de um empenhamento e determinação constante, assegurar um dos principais sucessos do seu exercício, o que foi por todos reconhecido[14].


Algumas iniciativas singulares

Não tendo este trabalho uma vocação de inventário de resultados, entendemos, contudo, importante apontar algumas iniciativas que marcaram muito positivamente a nossa Presidência e deixaram uma marca substantiva que, estamos certos, se reflectirá no futuro da organização.

A Declaração sobre Tráfico de Seres Humanos[15] aprovada no Porto é, neste domínio, um caso exemplar. Pela primeira vez a OSCE conseguiu assumir colectivamente um conjunto de princípios num tema que tem crescente actualidade em toda a área geográfica da organização, suscitando dada vez maior atenção e preocupação da opinião pública e dos responsáveis políticos. Fê-lo através da difícil fixação de linhas de abordagem que vão para além, não apenas da retórica declarativa, mas igualmente de perspectivas teóricas tradicionais, por envolverem simultaneamente os países de origem e as fontes de procura que originam e estimulam o tráfico. Com esta Declaração, a OSCE abriu caminho a um papel central num domínio que hoje é reconhecido como da maior importância no contexto europeu. A estrutura específica que, em 2004, acabou por ser criada no organograma da OSCE para a questão do Tráfico de Seres Humanos é o resultado concreto deste esforço português e a prova da sua pertinência.

Ainda no capítulo da Dimensão Humana, julgamos de interesse relevar a Decisão aprovada sobre Tolerância e Não Discriminação. Fruto de uma negociação complexa e laboriosa, que evidenciou as conflitualidades de interesses que o tema acolhe, foram lançadas importantes bases para um domínio que se revela central nas modernas questões de segurança. A realização, em 2003 e 2004, de duas importantes iniciativas neste âmbito, que decorrem directamente desta Decisão, comprova a importância do que no Porto aprovámos. Diga-se que, quando este tema surgiu na mesa negocial da nossa presidência, muitos poucos estavam convencidos da possibilidade de aprovação de algo de substantivo.

Finalmente, sublinharíamos duas Decisões que podem ter um impacto decisivo sobre o futuro da organização.

A primeira tem uma natureza conceptual e prende-se, indissoluvelmente, com o próprio futuro da OSCE enquanto instituição. Tratou-se do lançamento da ideia do estabelecimento de uma comprehensive Estratégia da OSCE para enfrentar as Ameaças à Segurança e à Estabilidade no Século XXI, nomeadamente analisando a respectiva mudança de natureza e principais causas, o papel e a adaptação de toda a rede institucional e operativa da organização em função dessas mesmas ameaças, a avaliação de eventuais novos meios de acção e a ligação prática às acções nacionais e de estruturas regionais ou internacionais relevantes. Na sequência da Declaração ministerial acordada em Bucareste, a Presidência portuguesa em Viena tomou a iniciativa de solicitar aos EUA e à Rússia, no primeiro semestre de 2002, uma contribuição conjunta neste domínio. Com base nela, foi feita uma fixação detalhada deste ambicioso programa de acção, o qual constitui, porventura, uma das contribuições mais relevantes e originais que a Presidência portuguesa prestou à OSCE, “obrigando-a” a repensar-se à luz de uma abordagem muito extensa do novo ambiente de segurança em que se move[16].

Uma segunda Decisão, que julgamos dever também notar, dotada de uma natureza operativa muito evidente, tinha a ver com a proposta de realização de uma “Conferência Anual de Revisão da Segurança”, que se pretendia o fórum para uma avaliação, conjunta e coordenada, do trabalho anual da organização em todas as dimensões da segurança, desde a resposta às novas ameaças, à verificação da implementação das medidas de combate ao terrorismo, aos aspectos político-militares da segurança, às actividades de alerta precoce, prevenção de conflitos, gestão de crises e reabilitação pós-conflito, às questões de polícia, à acção das instituições e das Missões no terreno, etc. Trata-se de uma iniciativa de grande alcance, que se colocou de imediato no centro das prioridades da Presidência que nos sucedeu, e que representa um modelo integrado sem precedentes na história da OSCE[17].

A actividade de uma Presidência não se esgota nos textos aprovados no seu termo, mas estes revelam muito do trabalho desenvolvido. O facto da Presidência holandesa que nos sucedeu ter como programa, praticamente, o desenvolvimento do tasking que fizemos aprovar no Porto dá uma ideia da relevância do nosso contributo.

Mas é evidente que o trabalho de uma Presidência é constituído, também, pela gestão diária de uma complexa organização como é a OSCE, pela capacidade de promover a orientação regular à actividade do Secretariado, de procurar dar coerência à acção das diversas instituições e, muito em especial, pelo modo como se afirma na coordenação diária do trabalho das Missões no terreno, nomeadamente com vista a ajudá-las a superar os seus problemas, de natureza substantiva ou operacional.

Essa acção de rotina está maioritariamente assente na Representação Permanente da Presidência em Viena e é julgada, no dia-a-dia, pelo conjunto da organização, dela resultando a imagem que a Presidência cria e que é a sua marca distintiva.

Neste contexto apreciativo, sobressai também a forma, mais ou menos eficaz, como as Presidências conseguem articular o binómio capital/Viena. A complementaridade ou as tensões que sempre marcam esta dualidade resultam perfeitamente visíveis aos olhos dos observadores, a começar nos Estados participantes e a acabar no Secretariado. No caso da Presidência portuguesa da OSCE, em 2002, valerá a pena afirmar que o modelo de funcionamento do binómio capital/Viena foi um factor muito notório na nossa actividade, durante grande parte do ano, salientando-se em termos públicos em moldes que permanecem muito vivos na memória da organização.


As crises de percurso


A Presidência portuguesa teve de enfrentar, nos primeiros meses da sua gestão da organização, a difícil situação decorrente de não ter sido aprovado, até ao termo de 2001, o orçamento da OSCE para o ano seguinte. Um trabalho aturado de diálogo e persuasão foi levado a cabo com uma eficácia técnica que assegurou o primeiro sucesso da nossa Presidência, garantindo tempestivamente os meios para o funcionamento regular da organização. Valerá a pena notar que, no termo da sua própria Presidência, Portugal conseguiu deixar finalizado, a tempo e horas, o orçamento para 2003.

Uma segunda crise de percurso foi gerada pela decisão da Bielorússia de, progressivamente, deixar de renovar a acreditação diplomática dos membros estrangeiros da Missão OSCE em Minsk, como protesto pelo alegado comportamento da chefia dessa mesma Missão face à situação interna no país, em especial aquando das eleições presidenciais de 2001. O trabalho do pessoal da OSCE foi visto pelas autoridades bielorussas como tendo favorecido abertamente as forças da oposição. Como reacção às dificuldades criadas à Missão em Minsk, a Assembleia Parlamentar da OSCE viria a suspender, em Julho de 2002, a participação de deputados bielorussos nos seus trabalhos. Em resultado da atitude bielorussa, a Missão da OSCE em Minsk deixou, no final de Outubro de 2002, de poder contar com qualquer funcionário internacional e, na prática, cessou todas as suas actividades, já muito reduzidas desde há vários meses.

Perante a degradação crescente dos laços entre a Bielorrússia e a OSCE, a Presidência portuguesa procurou, desde muito cedo, encetar um diálogo com as respectivas autoridades, para estudar em conjunto o modo como a presença futura da organização no território poderia vir a ser mantida. As autoridades bielorussas furtaram-se a esse diálogo até à cessação, de facto, do trabalho da Missão em Minsk. Entretanto, no seio da União Europeia, e na sequência da recusa checa em permitir a deslocação do Presidente bielorusso à Cimeira da NATO em Praga, em Novembro, gerou-se e acabou por prevalecer uma linha maioritária no sentido de impor medidas restritivas em matéria de vistos de viagem a oito dirigentes bielorussos, incluindo o Presidente e o Ministro dos Negócios Estrangeiros. Portugal entendeu não dever associar-se a esta medida restritiva e isso permitiu que o MNE bielorusso se deslocasse à reunião ministerial do Porto, o que, na prática, facilitou o início do regresso da Bielorússia à mesa de negociações. Mais de duas semanas de intensas negociações em Viena, sob a exclusiva e autónoma responsabilidade da Presidência portuguesa do Conselho Permanente, permitiram fixar as bases de um novo mandato, que viria a assegurar a reabertura formal de um novo escritório da OSCE em Minsk, a partir de 1 de Janeiro de 2003.

Este significativo êxito da Presidência portuguesa, no tocante à preservação da presença da OSCE em Minsk, não teve paralelo na questão da continuidade da presença da Missão da OSCE na Chechénia a partir de 31 de Dezembro de 2002. Os dois processos têm, contudo, contornos bastante diferentes. Aquando da renovação do mandato daquela Missão, no termo de 2001, a Rússia deixara já entender que 2002 seria o último ano em que a presença da OSCE em Grozny se manteria aberta, à luz do mandato existente. Após o Conselho Ministerial do Porto, em Dezembro de 2002, a Rússia apresentou à Presidência portuguesa um projecto de novo mandato para 2003, que permitia a continuação de uma Missão no terreno. Porém, tal texto diluía grande parte da substância política do anterior mandato e, na prática, transformava um futura presença da OSCE numa mera estrutura de cooperação técnica com as autoridades russas, sem real consistência com os objectivos que a organização pretendia desenvolver no território, nomeadamente na área dos direitos humanos. Intensas rondas de contactos com os parceiros em Viena vieram a resultar na rejeição liminar da proposta russa. Sucessivos projectos alternativos de texto para o futuro mandato, preparados e propostos pela Presidência portuguesa, tendentes a fazer a ponte entre os interesses russos e as pretensões dos principais parceiros ocidentais, nunca conseguiram gerar um mínimo de consenso entre as partes, até ao final do ano, data limite de vigência do anterior mandato e em que a Missão encerrou as suas actividades.

Que razões terão conduzido a este impasse? A nosso ver, a Rússia cedo terá percebido que o preço político a pagar pela decisão de forçar o encerramento da Missão OSCE em Grozny acabaria por não ser muito elevado, num tempo subsequente ao atentado checheno no teatro de Moscovo e em que a prevalência de um ambiente securitário no plano internacional funcionava em seu favor. A Rússia, de facto, não estava enganada.

Uma outra crise que muito marcou a Presidência portuguesa da OSCE respeitou à substituição do director do Escritório para as Instituições Democráticas e Direitos Humanos (ODIHR), a importante instituição da OSCE sedeada em Varsóvia, dedicada à observância dos direitos humanos. O processo de selecção de candidatos teve início antes do Verão e viria a ficar marcado por vários incidentes de percurso, com tensões entre candidaturas e questões de natureza processual em que – há que assumi-lo – a gestão da Presidência poderá ser vista como não estando totalmente isenta de culpas. Perante o evidente bloqueio criado entre as candidaturas apresentadas até ao Verão, a Presidência portuguesa em Viena viria a lançar, em Setembro, um novo processo, desta vez apoiado num grupo de wise persons, que acabou por apontar para uma solução em torno de um único nome. O nome proposto pela Presidência portuguesa em Viena, com base nesse novo modelo selecção, viria a merecer o consenso dos 55. Mas tal só acabou por ocorrer em início de Janeiro de 2003, já sob Presidência holandesa, pela peculiar insistência de um Estado participante nosso vizinho em não desistir da sua candidatura enquanto a Presidência portuguesa estivesse em funções, descontente da forma como Lisboa gerira a questão. Cosas de la vida…

Outro domínio em que se verificaram alguns problemas foi o da nomeação de personalidades para a chefia ou lugares de relevo em Missões da OSCE, decisões que dependiam essencialmente da Presidência portuguesa e que eram da exclusiva responsabilidade da chefia política em Lisboa. Esta é uma área em que, tradicionalmente, surgem questões e tensões, em especial porque toca de perto as ambições de certos Estados participantes na assunção ou preservação da titularidade de alguns postos. É também um domínio em que o Estado que exerce a Presidência procura garantir alguma autonomia decisória, às vezes para gerir equilíbrios no seu quadro de relações bilaterais, e onde também frequentemente se confronta com a opinião do Estado receptor. Em perspectiva, diríamos que Portugal fez uma gestão deste dossiês que ganharia em ter sido muito mais transparente, célere e, em alguns casos, mais apoiada em critérios de competência objectiva. Assim teria sido evitada a fixação de uma desnecessária imagem de hesitação e de desleixo temporal.

Finalmente, uma nota sobre as relações entre o Conselho Permanente e a Assembleia Parlamentar da OSCE[18]. Depois de um período inicial da nossa Presidência em que, a exemplo de anos anteriores, se tentou trabalhar no estabelecimento de um “Memorando de Entendimento”, com vista a fixar a articulação funcional entre as duas estruturas, que cedo se verificou ter difíceis condições de aceitabilidade entre os 55 Estados participantes, entrou-se, na segunda metade do ano, num período de alguma tensão interinstitucional, com a Assembleia a apresentar pretensões que a Presidência em Viena verificou que não tinha condições de fazer aceitar pelos parceiros. Através de um diálogo directo entre o Presidente do Conselho Permanente e o Presidente da Assembleia Parlamentar, Portugal acabou por definir, por decisão tomada em Viena, um modelo pragmático de ligação entre a nova representação da Assembleia e as diversas instâncias do Conselho Permanente, para o que contou com a útil colaboração da futura Presidência holandesa, com vista a assegurar a sobrevivência no tempo de tal gentlemen’s agreement. Desta forma, as tensões diluíram-se e foi possível entrar em 2003 com uma fórmula de intervenção da Assembleia Parlamentar nos trabalhos do Conselho Permanente que já não suscita susceptibilidades de maior. Julgamos ser justo creditar também este resultado no saldo da nossa Presidência.

Os problemas fazem parte da vida das organizações e a OSCE, bem como as respectivas Presidências, não fogem a esta regra. Olhando para trás, sem complexos, para as dificuldades enfrentadas e para os erros cometidos, vemos que outras soluções poderiam ter sido seguidas e que disso teria beneficiado a imagem da nossa Presidência. Numa análise temporalmente distanciada, o autor deste texto assume que, atentas certas condicionantes e aspectos conjunturais menos favoráveis, nos planos interno e externo, Portugal pode dar-se por muito satisfeito com o saldo geral do seu exercício de 2002. Esta perspectiva ganha mais evidência se pensarmos no que poderia ter acontecido se os funcionários do Estado português, nomeadamente os que estiveram colocados em Viena, se tivessem deixado absorver por situações e atitudes que, no limite, os poderiam ter desincentivado de prosseguirem com entusiasmo o seu trabalho. Felizmente assim não aconteceu porque sempre prevaleceu, do seu lado, a vontade em salvaguardar os interesses do país.

 

Pistas de reflexão


Chegados a este ponto, parece-nos útil procurar tirar algumas breves conclusões sobre o futuro da organização, nomeadamente no tocante às possíveis adaptações a introduzir na sua estrutura, como forma de melhor responder ao seu novo posicionamento no contexto da arquitectura de segurança europeia, num momento de acelerada instabilidade internacional, cuja resultante final não é por ora visível. Do mesmo modo, importa também reflectir sobre qual poderá ser o papel de Portugal no futuro da organização e o modo como a poderá utilizar no quadro da sua acção externa.

Como se assinalou, a OSCE vive num impasse difícil de superar, no que toca às suas estruturas. Por um lado, é óbvio que a organização retiraria vantagens de um reforço institucional, de uma maior operacionalidade e autonomia funcional do trabalho do Secretariado e, em especial, da possibilidade do Secretário-Geral dispor de algum poder político de iniciativa, nomeadamente na área da prevenção de conflitos e da gestão de crises.

Tendo em atenção o actual momento de algum bloqueio que atravessa a organização, julgamos irrealista poder apontar para que seja possível fazer aprovar uma reforma institucional profunda, que reformule todo o actual organograma, dando-lhe maior coerência e alterando a relação funcional e hierárquica prevalecente. No imediato, somos da opinião de que só um esforço reformista de adaptação, de natureza política, pilotado pelas próximas Presidências[19], poderá ter condições de sucesso. Esse esforço poderia passar por uma progressiva delegação de competências de representação política no Secretário-Geral, o qual, para ter condições para exercer em pleno tais funções complementares, deveria passar a ser coadjuvado por um Secretário-Geral Adjunto, que teria a seu cargo as questões de natureza administrativa[20]. Assim, as próximas Presidências deveriam ser persuadidas a fazer um esforço de auto-limitação da sua própria autoridade, em favor do Secretário-Geral, aproveitando a circunstância de uma nova figura dever vir a ser designada para este cargo em 2005. Tratar-se-ia de uma progressiva responsabilização dos factores de continuidade, dentro de uma organização que vive sem uma sólida memória que faça a ligação entre as Presidências e permita garantir uma coerente evolução do acervo político da sua intervenção. Esta evolução não deveria, em nenhuma circunstância, subverter a relação de subordinação política entre a Presidência e o Secretário-Geral, tal como actualmente existe, mas apenas reforçaria a capacidade de representação política deste último, em nome da Presidência, na ordem externa e na sua capacidade de gestão interna.

Neste último domínio, seria do maior interesse poder dar ao Secretário-Geral a possibilidade de ser o principal veículo de orientação das Missões no terreno. Tal pressuporia um reforço do actual Centro de Prevenção de Conflitos (CPC), que deveria ser dotado de uma “célula de análise e prospectiva” e de uma “unidade de planeamento de intervenção”, esta última englobando as actuais actividades na área da gestão de fronteiras e acções de polícia e a progressiva criação de uma massa crítica própria em matéria de peacekeeping e acções pós-conflito, em articulação com outros actores internacionais.

Ao Secretariado, e dentro dele ao CPC, deveria ser conferida uma autoridade exclusiva na gestão das Missões no terreno, hoje objecto de instruções directas da Presidência, de orientações que dimanam dos debates no Conselho Permanente, das intervenções ad hoc dos Enviados ou Representantes da Presidência e da acção autónoma das diversas instituições. O CPC deveria passar a ser o único veículo de transmissão de orientações políticas e operacionais às missões no terreno, garantindo a coerência global da acção destas, nomeadamente nas actuações de natureza regional. Repete-se: tal não implicaria que o Secretário-Geral ficasse isento de responder perante a Presidência.

Ainda no tocante às Missões, o cenário ideal apontaria para o aumento dos postos de pessoal contratado, em progressiva substituição do actual regime de secondment, que tem fortes desvantagens pela dependência que cria face aos países que designam o pessoal e pela rotação excessiva que introduz, com instabilização constante das estruturas. Não sendo possível, realisticamente, enveredar por essa via no actual quadro de disponibilidades orçamentais, importaria, contudo, que as Presidências pudessem vir a conferir ao Secretariado um papel decisivo na selecção desses mesmos quadros. Esta questão prende-se, em especial, com as chefias e as subchefias das Missões, que deveriam passar a ser feitas através de uma comissão independente, dirigida pela Presidência e integrada pelo Secretariado, este com direito de veto, e por personalidades indicadas pelo Conselho Permanente. Assim se garantiria uma maior transparência a tais processos de selecção, que deveriam ser marcados por critérios de gestão profissional, com provas rigorosas de selecção. Alguns desastres cometidos neste tipo de selecção, inclusive durante a nossa Presidência, aí estão para demonstrar a fragilidade do actual método, baseado em avaliações impressionistas e meras apresentações curriculares.

Não ignoramos que a eventual adopção deste novo modelo contrariaria as vantagens que alguns países retiram da prática actual. Para além das Presidências irem perder, nesse caso, parte da influência autónoma de que hoje dispõem, também os países que hoje providenciam pessoal em regime de secondment ficariam afectados no poder de efectivo controlo que hoje têm – o qual, curiosamente, também se objectiva em detrimento do poder da Presidência. Do que não duvidamos é que tal resultaria em favor de um acrescido reforço da organização.

Em termos gerais, a experiência aponta para a necessidade absoluta de garantir um reforço das estruturas de continuidade no seio da OSCE – o que só pode significar um reforço do papel do Secretariado. A menos que houvesse uma improvável vontade política para caminhar no sentido de uma ambiciosa reforma global – o que poderia ser dinamizado por um “Grupo de Sábios” mandatado a nível ministerial, como o fez há anos o Conselho da Europa –, quaisquer passos eficazes e realistas naquele sentido só podem ter sucesso se houver uma disponibilidade de delegação de poder por parte das futuras Presidências.

 

Portugal e a OSCE – o futuro


A Cimeira de Lisboa de 1996 deu a Portugal uma imagem de um país capaz de mobilizar meios e vontades para ajudar a redireccionar o rumo da OSCE, num momento decisivo do respectivo percurso. A Cimeira de Lisboa continua a ser considerada um evento da maior importância na história da organização, pelo aprofundamento aí feito do papel chave da OSCE no processo de segurança e estabilidade, através das suas três Dimensões. Foi em Lisboa que se lançaram os fundamentos daquilo que viria a constituir a Carta para a Segurança Europeia, que viria a ser aprovada em Istambul, em 1999. Mais tarde, o modo sério e responsável como planeámos e definimos as linhas orientadoras para a presidência 2002, a acção relevante que desenvolvemos na Troika durante 2001 (nomeadamente na gestão da questão transnístria) e a capacidade com que soubemos adequar o nosso programa de acção às novas realidades subsequentes a Setembro de 2001 – tudo isso nos garantiu o crédito de confiança com que iniciámos o exercício da Presidência.

Já atrás fizemos o balanço possível da Presidência de 2002. Resta sublinhar que nela veio a somar-se o efeito conjugado de dois factores: um externo e um interno.

O primeiro prende-se com as próprias interrogações existenciais que hoje em dia marcam a organização, neste tempo novo de transição no cenário geo-estratégico mundial. Os consequentes bloqueios das estruturas da OSCE, bem como o deslocar das agendas de prioridades de alguns parceiros para outros quadros institucionais tidos por mais operativos perante os desafios da conjuntura, conduziram àquilo que foi a média de vontades entre [i]os Estados participantes que serviu de pano de fundo à implementação do nosso programa.

O segundo liga-se às inevitáveis consequências induzidas pelas alterações de titularidade ocorridas durante o curso da Presidência, no tocante aos três actores principais envolvidos na respectiva gestão – Presidente em Exercício, Presidente do Conselho Permanente e Coordenador OSCE em Lisboa. Note-se que nenhuma outra presidência anterior sofreu uma tão profunda convulsão no seu curso de trabalho. Qualquer que seja a leitura que se faça da resultante prática de cada uma dessas mudanças para o curso da nossa Presidência, há que convir que apenas por um grande acaso, que não se verificou, essas alterações poderiam resultar neutrais para os equilíbrios de que dependia o êxito do exercício. E, independentemente do auto-retrato que procuremos dele fixar, a imagem que ficou nos outros prevalecerá como aquilo que fizemos, ou deixámos de fazer, na OSCE durante 2002. Cada um de nós.

Dito isto, onde está hoje, e onde deve estar no futuro, Portugal na OSCE ?

Fora de contextos muito particulares (cimeiras, presidências, Troikas) que se não repetirão, a relevância de Portugal na OSCE acompanha o normal padrão da afirmação da nossa política externa no plano mundial. O que significa que, se quisermos ir para além desse padrão, temos de estar dispostos a adoptar políticas voluntaristas, algumas das quais passam pela elevação do perfil com que encaramos algumas das nossas responsabilidades no plano externo. Atentas as limitações financeiras que vulgarmente aparecem associadas a tais esforços, facilmente se concluirá que o nosso país só tem condições para apoiar tal acção através do reforço de uma diplomacia de valores.

A situação do nosso país numa organização em que os principais problemas se situam em áreas geográficas muito distantes das nossas fronteiras políticas – que não das nossas fronteiras de segurança - dá-nos um óptimo ensejo para nos afastarmos, no quadro da OSCE, de juízos de alguma realpolitik, quase sempre inibidores de uma total coerência. Isso permite-nos uma maior isenção face a determinados cenários, que outros vivem sob reflexos de maior proximidade geopolítica ou de cargas históricas muito particulares.

A OSCE deve ser, assim, para nós, um terreno de afirmação dos princípios com que fomos aculturando a nossa expressão externa nas últimas décadas, nomeadamente no tocante à estrita observância das regras democráticas, à preservação dos valores do Estado de direito, bem como a uma política activa de promoção dos Direitos Humanos, nas suas várias dimensões. Daí decorre o interesse em aproveitarmos o subgrupo da União Europeia como espaço privilegiado para consagrarmos, no dia-a-dia da OSCE, essa mesma linha de orientação. Torna-se importante que continuemos a dar de Portugal, também no contexto específico da OSCE, a imagem de um país “previsível” e responsável nos seus reflexos externos, elemento essencial à nossa credibilidade como actor internacional, que ainda dispõe de uma apreciável projecção em vários cenários geopolíticos.

Complementarmente, a OSCE pode ser, também, um espaço interessante para alimentarmos e completarmos o nosso tecido de relações bilaterais, nomeadamente em áreas do mundo não cobertas por uma presença física permanente da nossa rede diplomática e consular, como é o caso do Cáucaso e da Ásia Central. A nossa Presidência da organização poderia ter constituído, aliás, um momento importante para esse trabalho de fixação e cultivo de uma imagem de um país com uma política externa não subordinada a agendas de oportunidade e com uma vocação tradicional para manter a concertação como prática determinante em todas as situações, em especial no quadro de crises de conjuntura.

O trabalho junto dos países “a Leste de Viena” é, neste domínio, um caminho interessante que entendemos que o nosso país deveria dedicar-se a explorar no quadro OSCE, se nele soubermos projectar, simultaneamente, uma imagem de rigor e exigência na observância dos princípios e uma predisposição constante para o diálogo. Em especial, Portugal deve situar-se na primeira linha dos países que, no seio da OSCE, entendem essencial não deixar deteriorar o acervo da parceria estratégica construída entre a União Europeia e a Rússia, elemento vital para a estabilidade e segurança na Europa. Sem o menor prejuízo para as nossas alianças preferenciais e para as nossas afinidades naturais, deveremos ter a sabedoria, e a coragem política, de não nos deixarmos enlear em alguns jogos conjunturais, susceptíveis de virem a contribuir para minar o valor essencial em que assenta a OSCE: a confiança.



[1] Fazem actualmente parte da OSCE todos os países europeus, os EUA, o Canadá e a totalidade dos Estados, mesmo os asiáticos, que emergiram da divisão da antiga URSS.
[2] Em 2004, o Secretariado e as três instituições da OSCE dispunham de menos de 400 funcionários permanentes. Nas Missões no terreno havia cerca de 1000 funcionários internacionais, a maioria dos quais destacados (seconded) pelos Estados participantes, a que se somavam cerca de 2500 funcionários recrutados localmente.
[3] O Tratado sobre as Forças Convencionais na Europa (CFE) foi assinado na Cimeira de Paris, em 1990, tendo entrado em vigor em 1992. Sempre considerado como um dos documentos mais importantes negociados no seio da organização – porque juridicamente vinculativo –, o Tratado CFE permitiu a destruição de mais de 60 mil peças de armamento, na sua grande maioria provenientes da antiga URSS e dos países do antigo Pacto de Varsóvia. Dada a necessidade da sua actualização, viria a ser assinado na Cimeira de Istambul, em 1999, o chamado Tratado CFE Adaptado, que até hoje não entrou em vigor por divergências de diversa ordem.
[4] CSBM - Confidence and Security Building Measures. Sobre este assunto, ver Francisco Seixas da Costa, “The OSCE Confidence and Security Building Measures”, in Aplicability of OSCE CSBM’s in Northeast Asia Revisited, ed. Institute of Foreign Affairs and National Security, Seoul, 2003
[5] Os EUA são o único Estado participante que recusa a conceder à OSCE personalidade jurídica plena no plano internacional.
[6] Na cimeira de Istambul, em 1999, a Rússia comprometeu-se a retirar de algumas bases militares que dispunha no território da Geórgia e a destruir armamento e munições que mantinha na região transnístria da Moldávia, até ao fim de 2002. Com argumentos diferentes, tais “Compromissos” não foram, na sua grande maioria, cumpridos e uma nova data – até ao final de 2003 – ficou estabelecida na reunião ministerial do Porto, em 2002. Embora verificada a persistência do incumprimento dos “Compromissos” no termo do novo prazo, durante o Conselho Ministerial da OSCE em Maastricht, em Dezembro de 2003, a Rússia recusou então aceitar uma renovação daqueles mesmos “Compromissos”, em termos que os países ocidentais, em especial os EUA, pretendiam mais constrangentes do que os acordados no Porto, no ano anterior. De certo modo, a Rússia quer significar que não tem obrigação de cumprir tais “Compromissos” – que entende como um mero acordo político - antes que os países ocidentais ratifiquem o Tratado CFE Adaptado e, em particular, que a ele adiram os países bálticos. Os países da NATO, por seu turno, entendem que compete à Rússia cumprir os “Compromissos de Istambul” antes de se iniciar a ratificação do Tratado CFE Adaptado, por considerarem ligados, política e institucionalmente, esses dois tempos. Foi esta contraposição de leituras que levou à impossibilidade de acordo em todos os documentos finais do Conselho Ministerial de Maastricht, em Dezembro de 2003.
[7] A Rússia não autorizou a renovação do mandato da missão que a OSCE mantinha na Chechénia desde 1997, que assim foi encerrada em final de 2002.
[8] A China tem vindo a dar alguns sinais de interesse numa aproximação à OSCE, que vem complementar o seu crescente relacionamento económico com países como o Casaquistão e o Quirguistão. Numa lógica similar, a maior aproximação à OSCE que tem vindo a ser evidente também por parte do Japão pode ser vista na perspectiva de alguma competição com a influência da China junto de países da Ásia Central.
[9] As declarações da União Europeia passaram a ser subscritas regularmente, a partir de 2004, pela Bulgária, Roménia, Turquia e Croácia, dado o seu processo de aproximação à União.
[10] A OSCE tinha a intenção original de promover, cada dois anos, a realização de uma Cimeira a nível de chefes de Estado e de Governo. A crescente e generalizada “fadiga” internacional relativamente a este tipo de eventos veio a espaçar a respectiva realização.
[11] O autor desempenhou as funções de presidente do Conselho Permanente da OSCE, a partir de Setembro de 2002.
[12] Gama, Jaime, “A Presidência Portuguesa da OSCE”, in Negócios Estrangeiros, nº 2, MNE, Lisboa, Setembro 2001
[13] A Plataforma para uma Segurança Cooperativa tem como objectivo a promoção da cooperação, sem hierarquias, entre as organizações internacionais e regionais que compõem a chamada “arquitectura de segurança europeia” (ONU, NATO, UE, Conselho da Europa e OSCE).
[14] Sobre a leitura portuguesa do trabalhos da OSCE em matéria de combate ao terrorismo, ver Francisco Seixas da Costa, “OSCE and the fight against Terrorism”, in The Search for Effective Conflict Prevention in the New Security Circumstances, Ministry of Foreign Affairs of Japan, Tokyo, 2004
[15] Esta Declaração resultou de uma oportuna iniciativa tomada em Viena pelo embaixador João de Lima Pimentel, que antecedeu o autor na presidência do Conselho Permanente da OSCE.
[16] A Estratégia veio a ser aprovada na reunião ministerial de Maastricht, em Dezembro de 2003, e é hoje um eixo programático central da actividade da OSCE.
[17] A partir de 2003, passaram a ter anualmente lugar em Viena estas Conferências, nascidas da iniciativa portuguesa.
[18] A Assembleia Parlamentar, cujo Secretariado está sedeado em Copenhaga, é constituída por mais de 300 deputados dos parlamentos nacionais dos Estados participantes e tem por objectivo promover o envolvimento parlamentar nas actividades da organização, debatendo as suas principais questões e adoptando resoluções e recomendações, desenvolvendo também acções de monitorização eleitoral. A sua sessão principal é em Julho de cada ano, reunindo em Viena em Fevereiro, realizando ainda várias outras reuniões, visitas e seminários. Contrariamente ao que acontece com a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, o órgão similar da OSCE não tem qualquer intervenção na selecção do Secretário-Geral da organização, funcionando apenas como uma instância de formulação de posições políticas, às quais, contudo, nem a Presidência nem o Conselho Permanente se sentem necessariamente vinculados.
[19] Em 2005, 2006, 2007 e 2008 e a Presidência será assegurada, sucessivamente, pela Eslovénia, pela Bélgica, pela Espanha e pela Finlândia. Existe uma candidatura do Casaquistão para 2009.
[20] Como já referido, na actual estrutura, o Secretário-Geral é o chief administrative officer da OSCE. Não tem substituto directo, sendo representado, nas suas ausências, pelo director que, caso a caso, venha a designar. Na eventualidade de vir a criar-se um lugar de Secretário-Geral Adjunto, este posto poderia vir a ser atribuído a um país “a Leste de Viena”, o que apaziguaria os Estados que entendem que o actual Secretariado, nos lugares essenciais, continua a ser um feudo dos países ocidentais.


Publicado sob o título "A OSCE e a Segurança Europeia, in “Negócios Estrangeiros”, nº 7, Lisboa, 2004