1 de julho de 2010

A diplomacia portuguesa e a Europa

Será interessante fazer-se, um dia, um estudo cuidado sobre o percurso da ideia europeia no seio da Administração Pública portuguesa e, muito em particular, no pensamento em matéria de política externa gerado no Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE). Enquanto tal não tem lugar, teremos de nos contentar com leituras algo impressionistas, muito tributárias de experiências pessoais, com todos os riscos inerentes à limitação que esse tipo de visões tem. É o que aqui hoje faço.

Entrei para a carreira diplomática portuguesa imediatamente após o 25 de Abril, num tempo em que o lema “A Europa está conosco” andava pelas paredes e em que o Portugal democrático se mobilizou, com empenhamento, para vir a ser aceite na então CEE. Nesse tempo, trabalhei na Noruega, onde o tema europeu, depois do referendo de rejeição da adesão, era altamente polémico. Mais tarde, tive a oportunidade de fazer parte da primeira estrutura que, no âmbito do MNE, foi criada para acompanhar a presença efetiva de Portugal nas instituições europeias. Nos anos seguintes, noutras funções, envolvi-me, de muito perto, nas políticas comunitárias de ajuda ao desenvolvimento, passando a ser um visitante frequente das instituições europeias. Em Londres, no Estado membro com uma posição idiossincrática mais marcada face à Europa, segui a primeira presidência europeia de Portugal e o intenso debate interno que culminou com o afastamento de Margareth Thatcher. Foi o interesse pela Europa que me fez depois regressar a Lisboa, para passar a assumir responsabilidades dirigentes na área dos assuntos europeus, inicialmente como diplomata, depois em funções políticas por mais de 5 anos. Desde então, a Europa “persegue-me”, de que é prova o que tenho publicado. No termo deste percurso, confesso-me hoje um convicto europeu.

Mas sê-lo-ia, no início da minha carreira? E era-o a diplomacia portuguesa, em geral?

A ditadura e a Europa

A ditadura portuguesa havia ficado à porta do processo integrador que, nos anos 50, se começou a desenhar no continente, no quadro da Guerra Fria e do renascimento sócio-económico subsequente à tragédia que devastara a Europa, mas que não afetara diretamente Portugal. As instituições europeias, para além de trazerem consigo um modelo atípico de relacionamento entre os Estados, tinham, para o poder político do Portugal de então, o “defeito” de exigirem a adoção de um padrão democrático. A NATO, por um pragmatismo tributário da realpolitik, não tivera esses rebuços e deixara conviver o autoritarismo salazarista com regimes de liberdade. Mas, para o que realmente contava em termos da progressiva integração do continente, Portugal e Espanha permaneciam como uma espécie de grande “aldeia de Asterix”, na periferia europeia.

A rigidez da política colonial portuguesa, que é, ao mesmo tempo, uma consequência da ditadura e um fator protetor da mesma, fez com que a nossa diplomacia tivesse de se adaptar àquilo que lhe era então pedido: defender e promover uma política internacionalmente impopular e inexequível a prazo. Os executores práticos da nossa política externa levaram a cabo essa função com uma qualidade técnica indesmentível, com um profissionalismo notável. Toda a carreira diplomática portuguesa soube colocar-se ao serviço da execução dessa política oficial. Mas nem todos os diplomatas pensavam dela exatamente o mesmo.

Dentro da diplomacia portuguesa, sem que tal correspondesse necessariamente a fronteiras ideológicas bem definidas, cedo ficou patente a emergência de um grupo de funcionários que começou a ver para além da cegueira ultramarinista e a perceber que, logo que diluído pela História o resto do sonho imperial, o terreno europeu seria aquele em que o futuro natural do país iria ser jogado.

Esse é o tempo em que emergem, no MNE, mas igualmente no Ministério das Finanças e outros departamento económicos, também ligados à Presidência do Conselho de Ministros, alguns técnicos que olham já as coisas europeias como fazendo parte do nosso inevitável destino. A adesão e participação na EFTA é o movimento que impulsiona essa nova cultura, no seio da qual alguns sonham com uma vinculação, mais cedo ou mais tarde, às políticas de integração.

A “escola europeia” dentro do MNE foi, até 1974, ultraminoritária e, por vezes, vista com alguma desconfiança pelos setores tradicionais da “carreira” – muito marcados, como referi, pelo modelo de defesa da política colonial, então preponderante. Mas a verdade é que não houve nunca um confronto aberto entre estas duas tendências, que conviveram de forma relativamente pacífica, sempre com os europeístas a encontrar conforto em personalidades, de raíz política ou técnica, que emergiam em alguns ministérios sectoriais, mais reforçados no tempo “marcelista” da ditadura.

Depois de abril

É o 25 de abril que altera radicalmente a relação de forças dentro do MNE. Anulada que ficou, pelo peso dos factos, a “escola ultramarinista”, a Europa surge como o espaço óbvio de afirmação externa do novo regime democrático, onde foram buscados os principais apoios práticos para a sua solidificação e muitos dos princípios que estruturavam o seu discurso. Como é óbvio, isso trouxe um alento novo a quantos, dentro do MNE, consideravam importante garantir condições para, a prazo, conseguir consagrar a nossa futura adesão às instituições europeias. Por essa razão, é perfeitamente natural que esse núcleo de funcionários tenha adquido uma preponderância no quadro de chefias em que o novo poder político se passou a apoiar preferencialmente. De um momento para o outro, a “Europa” passou a ser vista, dentro da carreira, como um dos espaços profissionais de futuro.

Nesse novo contexto, tem lugar um fenómeno de cooptação que pode ajudar a explicar muito do que acabou por ser a nossa presença inicial nas instituições comunitárias, bem como a primeira formulação doutrinária europeia dentro do MNE. Os “euroentusiastas”, cuja formação técnica era então muito voluntarista e algo impressionista, alcandorados na hierarquia, iniciaram um processo de seleção de colaboradores que, naturalmente, privilegiou jovens e qualificados diplomatas, seduzidos pela nova área diplomática que se desenhava como prioritária. Também estes, porém, na sua esmagadora maioria, eram tributários de uma ideia da Europa de raiz apenas intelectual, em que o pensamento soberanista prevalecia, em absoluto, sobre qualquer filosofia integradora de natureza federalista ou outra. Seriam alguns desses diplomatas que viriam a assumir posições hierárquicas de responsabilidades na nossa política europeia nas duas décadas seguintes. E isso não deixaria de ter algumas consequências, nem sempre as melhores.

Durante muito tempo, em especial durante o longo processo de adesão, a política europeia mantinha ainda os seus “dois pés” tradicionais na Administração Pública portuguesa: o MNE e o Ministério das Finanças. O processo de adesão foi negociado sob essa tutela dual, embora de uma forma nem sempre harmónica, por vezes arbitrada na instância governamental superior. Esses dois mundos só se vêm a conjugar institucionalmente na nova estrutura criada em finais de 1985, que viria a comportar também quadros técnicos oriundos de outros ministérios que haviam estado envolvidos nas negociações da adesão. Essa nova estrutura – a então Secretaria de Estado da Integração Europeia (SEIE) -, que deu ao MNE um forte papel coordenador, seria a primeira instância de convivência de todas as valências que iriam ser relevantes na política europeia do país.

Diplomatas e técnicos

Para o que aqui nos importa – os diplomatas e a política europeia – vale a pena dizer, em abono da verdade, que os funcionários oriundos da carreira diplomática se mantiveram quase sempre “acantonados”, no seio dessa SEIE, em departamentos mais próximos daquilo que era a matriz tradicional da sua ação – questões institucionais e relações bilaterais intraeuropeias.

A SEIE foi, contudo, o grande espaço de aculturação do trabalho comum de técnicos de diversas extrações com diplomatas com diferentes formações. Ao olhar para trás, tenho hoje o sentimento de que esse processo de ação conjunta não foi conduzido da melhor forma e, em especial, não se conseguiu que ele tivesse sido um fator de aperfeiçoamento funcional de que todos pudessem beneficiar e em que o MNE pudesse ganhar uma escala e sinergia à altura do desafio com que estava confrontado. Concedo, contudo, que essa possa não ser a visão de muitos.

Na cultura tradicional do MNE, a “política” – tida esta pela elaboração teórica em temas internacionais mais tradicionais – teve sempre uma prevalência óbvia na hierarquia temática interna, onde as áreas ligadas às questões económicas padeceram sempre de uma certa desvalorização na psicologia coletiva. Não obstante uma recorrente retórica no sentido da promoção da “diplomacia económica”, que passou a integrar o “politicamente correto” dos diversos governos, a verdade é que foi sempre muito difícil convencer a maioria dos diplomatas a interessarem-se pela negociação de posições pautais agrícolas ou pelo Mercado Interno, em detrimento de temas “nobres”, como o Kosovo ou a questão timorense. Em perspetiva, entendo hoje que foi essa atitude, para além doutros fatores conjunturais, que contribuiu para a progressiva perca de importância do MNE no trabalho interministerial de coordenação dos temas europeus.

A formação dos diplomatas

Com a nossa adesão à então CEE, os assuntos europeus passaram a estar no centro dos requisitos dos novos diplomatas admitidos no MNE. Isso foi facilitado pelo facto do ensino universitário, embora muitas vezes numa perspetiva excessivamente teórica, ter enveredado por uma maior atenção às questões da Europa. Também no quotidiano do trabalho do MNE, a “decifração” das questões europeias tornou-se essencial e facilitou progressivamente a generalização de um conhecimento global sobre os principais dossiês, em especial os de matriz política mais acentuada.

Uma observação empírica reforça-me, contudo, a convicção de que a aculturação dos diplomatas portugueses à matriz europeia se fez, essencialmente, pela via da Política Externa e de Segurança Comum, através da partilha de uma espécie de “jurisprudência” diplomática que conduziu as Necessidades a um olhar sobre temas e áreas geográficas que, durante muito tempo, não faziam parte das linhas de interesse prioritário da política externa portuguesa. Assim, o facto de muitas das grandes questões de política internacional passarem por um debate em Bruxelas fez com que os nossos diplomatas começassem, com naturalidade, a sentir a necessidade de incorporar a dimensão comunitária sempre que tais temas eram abordados, o que chegou mesmo a ser válido para alguns assuntos que, anteriormente, estavam sujeitos, prioritariamente, à pura lógica bilateral – de que o caso das relações luso-espanholas é talvez o mais evidente.

Também a necessidade da “coordenação comunitária”, em todas as instâncias multilaterais onde a diplomacia portuguesa passou a atuar, acabou por criar, não apenas um modelo de trabalho diverso, mas igualmente uma tendencial cultura comum de comportamento e reação. Aos diplomatas portugueses não passou, necessariamente, a aplicar-se uma espécie de “template” europeu, mas passou a ser sempre exigível uma visão europeia dos temas abordados no seu quotidiano. E isso, queiramos ou não, alterou o olhar português sobre muitas questões, para além de o despertar para outras.

Deixo uma nota final para sublinhar o papel extremamente positivo que representa a presença conjunta de técnicos e diplomatas na Representação Permanente (Reper) que Portugal mantém em Bruxelas. Foi nela que muitos diplomatas ganharam um conhecimento prático das grandes questões técnicas europeias, que enriqueceu a sua formação e que tem sido de extrema utilidade para o desempenho do MNE neste domínio.

(A pedido do autor, este artigo segue as regras do novo Acordo Ortográfico)