1 de julho de 1998

Liberdade, segurança e justiça


O discurso político europeu, no período que sucedeu à assinatura do Tratado de Maastricht, foi muito marcado pela preocupação de reforçar a legitimidade da própria União Europeia, promovendo reformas que pudessem melhorar a respectiva aceitação junto dos cidadãos. A consciência de que não era possível continuar a construir uma integração à revelia desses mesmos cidadãos mas, bem pelo contrário, de que era progressivamente essencial garantir o seu apoio consciente para os futuros desenvolvimentos da União, ficou bem patente nos trabalhos preparatórios e na agenda da Conferência Intergovernamental que, a partir de 1996, preparou a revisão do Tratado da União Europeia.

Nesta linha, a Conferência procurou apontar caminhos para melhorar a eficácia de uma das áreas onde os resultados do funcionamento do Tratado de Maastricht haviam sido reconhecidamente escassos: a Justiça e os Assuntos Internos, área vulgarmente conhecida como o Terceiro Pilar do Tratado da União Europeia. Sob esta designação, agrupa-se um conjunto de questões directamente relacionadas com a liberdade de circulação de pessoas e com a segurança interna do espaço europeu.

Diversas explicações poderiam ser avançadas para os fracos resultados até então alcançados, embora, no essencial, tal pareça assentar no facto de se tratar de matérias que tocam de perto o núcleo da soberania nacional e a esfera de protecção dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. É óbvio que, em domínios tão sensíveis, a disponibilidade para uma harmonização é menor do que a que existe nas áreas de natureza económica, onde se centraram os primeiros esforços integradores europeus.

Mas, em contraponto, problemas como o aumento da criminalidade organizada, o terrorismo, o tráfico de drogas e outras práticas ilícitas de natureza internacional ocupam hoje a atenção dos cidadãos europeus e constituem-se em preocupações para as quais é exigida uma resposta a nível colectivo, pela óbvia impossibilidade de debelar tais problemas numa perspectiva puramente nacional. Por outro lado, as questões que se prendem com o acesso e fixação de cidadãos de países exteriores à União no seu território, quer por fluxos migratórios regulares, quer por motivos humanitários, são igualmente temas de crescente relevância, até porque, não raramente, têm incidências políticas nos vários Estados que não é possível ignorar.

Durante os trabalhos da Conferência Intergovernamental que decorreu em 1996 e 1997 ficou claro que, se a União pretendia aumentar a sua credibilidade perante os cidadãos, teria de demonstrar capacidade para enfrentar, de forma efectiva e criativa, o conjunto de problemas que estão hoje na origem de um crescente sentimento de insegurança pública em todas as sociedades europeias, embora manifestados em graus cuja diferenciação deriva das situações específicas que enfrentam.

Assim, se olharmos para o Tratado de Amesterdão e para os avanços no mesmo consagrados, verificaremos que foi precisamente a área da Justiça e dos Assuntos Internos que testemunhou saltos mais significativos em relação ao passado e em que foi possível desenhar, ainda que com períodos transitórios necessários para acomodar a aculturação dos diversos regimes nacionais, alguns procedimentos de aproximação de tratamento comum no futuro, com vista à criação de um espaço único onde venha a ser assegurada a livre circulação de pessoas, com segurança e com justiça.

Para explicar o que evoluiu com Amesterdão é difícil não recorrer a alguma tecnicidade de linguagem. Tentaremos, contudo, optar pela simplificação das ideias, sem fazer concessões ao rigor.

Convém notar, como princípio geral, que o novo Tratado se propõe assegurar a “manutenção e desenvolvimento da União enquanto espaço de liberdade, de segurança e de justiça, em que seja assegurada a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria de controlos na fronteira externa, asilo e imigração, bem como de prevenção e combate à criminalidade”.

Para dar corpo àquele princípio básico, o novo Tratado introduz um conjunto significativo de alterações àquilo que ficara fixado em Maastricht. Um desses meios, e aquele que, a nosso ver, consubstancia a mais expressiva das alterações ao Tratado de Maastricht, consiste na evolução do tratamento de certas matérias que antes eram abordadas no chamado Terceiro Pilar - em que as decisões são tomadas exclusivamente por unanimidade, até agora sem um papel relevante para a Comissão Europeia e em que o método de articulação intergovernamental é a regra.

Embora de forma limitada, e com um escalonamento prudente no tempo, Amesterdão aponta no sentido da progressiva “comunitarização” de certas matérias, isto é, da possibilidade da Comissão Europeia ter um direito de iniciativa através de propostas legislativas e, em determinadas circunstâncias e condições, poder haver o recurso às votações por maioria qualificada. É aquilo que se designa, em jargão europeu, a integração no Primeiro Pilar, o Pilar comunitário. Estão neste caso questões como as relativas à passagem das fronteiras externas da União, ao asilo, à imigração, à protecção dos direitos dos nacionais de países terceiros, à cooperação judiciária em matéria civil e à cooperação entre as administrações nacionais nesta área.

Para estas matérias, o Tratado de Amesterdão prevê que, uma vez findo um período transitório de cinco anos, o Conselho de Ministros possa vir a decidir, por unanimidade, que, no futuro, as decisões legislativas neste domínio passem a ser adoptadas por maioria qualificada. É um salto talvez modesto, até porque não há a certeza dos Estados membros virem a assumir uma abertura no termo do período de cinco anos, mas este foi o denominador comum que Amesterdão pôde consagrar.

O avanço para a comunitarização traz, porém, alguns desenvolvimentos imediatos, embora sempre sob o método da unanimidade. Com efeito, a Comissão Europeia passa, desde já, a dispor de um direito de iniciativa para apresentar propostas legislativas, em paralelo com os Estados-membros, e o Parlamento Europeu será consultado antes da tomada de decisão. Após decorrido o período transitório de cinco anos, e na lógica normal do funcionamento do método comunitário no chamado Primeiro Pilar, apenas a Comissão poderá apresentar propostas e o envolvimento do Parlamento Europeu poderá ainda vir a ser maior.

Por fim, e no sentido de garantir o controlo jurisdicional da actuação das instituições comunitárias, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias poderá ser chamado a pronunciar-se sobre a interpretação destas novas disposições, bem como sobre a validade ou interpretação dos actos adoptados em sua execução, sempre que essa questão seja suscitada num tribunal nacional cujas decisões sejam insusceptíveis de recurso. Para os direitos dos cidadãos este é um salto qualitativo muito importante, dada a necessidade de tutelar jurisdicionalmente qualquer tipo de medida que se situe na esfera comunitária.

Todas estas inovações vão no sentido de facilitar e acelerar o processo de adopção de medidas comuns em áreas como os vistos, o asilo, a imigração e várias outras políticas relativas à livre circulação de pessoas, contribuindo para um mais rápido estabelecimento de um espaço europeu sem fronteiras internas.

Registe-se que estas disposições não são, por ora, aplicáveis ao Reino Unido, à Irlanda e à Dinamarca que, por razões de ordem interna e após laboriosas negociações, conseguiram ver consagrada a sua “exclusão” em Protocolos anexos ao Tratado, ficando a sua eventual interligação nas novas disciplinas comunitárias dependente da sua vontade unilateral. Esta evidente fragilidade do Tratado, ao deixar de fora alguns países e, no fundo, ao consagrar uma “geometria variável” que não engrandece nem prestigia o sistema, tem porém uma contrapartida não despicienda. Com efeito, passando este património legislativo em evolução a constituir-se como um elemento central da União, ele estará inevitavelmente sobre a mesa das negociações dos próximos alargamentos da União, o que garante a necessidade dos futuros aderentes se ligarem à nossa cultura comum neste domínio, o que não deixa de constituir um elemento indutor de confiança e estabilidade em todo o espaço da União do futuro.  

Mas não é só na passagem progressiva do Terceiro para o Primeiro Pilar que se regista uma evolução. O que resta do Terceiro Pilar, onde ainda ficaram, nomeadamente, as medidas de prevenção e combate à criminalidade - que os Estados membros entenderam dever manter sob tratamento intergovernamental - acaba também por sofrer uma evolução no Tratado de Amesterdão.

Através deste renovado Terceiro Pilar, o novo Tratado propõe-se “facultar aos cidadãos um elevado nível de protecção num espaço de liberdade, segurança e justiça” nas áreas da prevenção e combate à criminalidade, em especial o terrorismo, o tráfico de seres humanos e os crimes contra as crianças, o tráfico ilícito de drogas e de armas, a corrupção e a fraude. Para tanto, será reforçada a cooperação entre os Estados-membros nos domínios policial e judiciário em matéria penal. No domínio da cooperação policial, é designadamente atribuída especial relevância à Europol (Serviço Europeu de Polícia), que viu as suas competências aumentadas.

Mas também em termos dos instrumentos jurídicos o Terceiro Pilar sofre uma evolução assinalável. De facto, e embora, como se disse, esta cooperação se mantenha num nível estritamente intergovernamental (o que, repete-se, implica que as decisões sejam  tomadas por unanimidade), foi desde já generalizado o direito de iniciativa da Comissão e foram criados novos instrumentos jurídicos mais vinculativos, como é, por exemplo, o caso das “decisões-quadro”, em tudo semelhantes às directivas comunitárias de harmonização. Além disso, estabelece-se um mecanismo de simplificação que, mediante algumas condições, permite a entrada em vigor antecipada das Convenções firmadas entre os Estados membros, por forma a ultrapassar os bloqueios que os longos processo de ratificação nacionais por vezes acabam por causar.

Além disso, e com o intuito de garantir maior transparência e democraticidade à actuação da União nestes domínios, o Parlamento Europeu passa a estar associado ao processo de adopção dos actos em execução do Terceiro Pilar do Tratado, através de um processo de consulta prévia. Os Parlamentos nacionais também vêm a sua intervenção garantida, ao abrigo de um Protocolo anexo ao Tratado, o que consagra a sua desejável associação crescente a uma área em que os direitos dos cidadãos que representam necessitam de ser permanentemente protegidos, o que também justificou a atribuição de competências ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, que as não detinha no quadro do Tratado de Maastricht.

Finalmente, uma referência ao Acordo de Schengen, que o novo Tratado acolhe com o respectivo património legislativo, naquilo que constitui a evolução natural de um sistema que, desde 1985, os Estados signatários sempre assumiram como desejavelmente alargado a todos os países das então Comunidades Europeias.

Portugal teve uma activa participação e um grande empenhamento na definição do modelo que veio a ser consagrado no Protocolo e, muito em particular, estimulou, no quadro da sua Presidência de Schengen em 1997, o esforço que muitos países partilharam no sentido de garantir que o acervo de Schengen pudesse integrar o corpo legislativo da União. Doravante, os treze membros da União signatários de Schengen (o Reino Unido e a Irlanda dispõem de um direito selectivo de “inclusão” nas dimensões de Schengen em que entendam participar) ficam autorizados a instaurar entre si uma “cooperação reforçada” nos domínios abrangidos por aquele acordo, podendo prosseguir autonomamente o seu trabalho de aprofundamento, mas agora já no quadro jurídico e institucional da União Europeia. Também aqui se verifica a vantagem do que foi construído em Schengen poder integrar a negociação dos próximos alargamentos, com as vantagens atrás já referidas.

São estes, no essencial, os aspectos de evolução que o novo Tratado regista na área da Justiça e dos Assuntos Internos. Para alguns, serão tímidos e poucos ambiciosos passos, insusceptíveis de garantir, desde já, um quadro referencial mínimo para a verdadeira instituição de uma área europeia de liberdade, de segurança e de justiça. Para outros, entre os quais nos contamos, os avanços ora conseguidos, e aqueles que estão delineados como possíveis e desejáveis, constituem um interessante caminho num domínio reconhecidamente de grande sensibilidade e delicadeza.

Portugal, que é um Estado que não necessita de ter síndromas de risco nas partilhas de soberania que efectua, procurou e continuará a procurar avançar de forma integrada nestas áreas, preservando sempre um equilíbrio entre as dimensões de natureza securitária que lhes estão associadas e a permanente afirmação de uma cultura de protecção dos direitos dos cidadãos, na linha de uma ligação e desejo de participação no desenvolvimento de uma cultura europeia de liberdades.

(Publicado em “Europa – Novas Fronteiras” (nº 2, 1997), Centro Jacques Delors, Lisboa)

25 de junho de 1998

As contas da nova Europa


Todos começamos a ter consciência que o processo actual da negociação europeia e, em particular, a filosofia geral que se reflecte na integração dentro da União, são hoje substancialmente diferentes daqueles que vivemos no passado. O modelo integrador que estava no horizonte português em 1986, e que se projectou durante os dois primeiros quadros financeiros, está a mudar de características e de matriz. Tal tem a ver, essencialmente, com a circunstância de se ter criado uma nova realidade geopolítica na Europa contemporânea e com a necessidade de dar uma resposta, quer em termos económicos, quer em termos políticos, a essa nova realidade.

O alargamento da União Europeia e a exigência em solidificar as novas democracias emergentes no leste do continente provocam, naturalmente, uma mudança de prioridades. Todo o processo que tinha tido como eixo essencial a consecução de um esforço de coesão a Quinze, ou mesmo a Doze num primeiro momento, e que tinha como pilar central o princípio da Coesão Económica e Social, com o que isso representava na projecção dessa orientação básica sobre as políticas da União, foi não diríamos que subvertido mas matizado pela circunstância de haver uma nova prioridade que se cumula, ou mesmo se sobrepõe, às prioridades anteriores.

O problema que hoje se coloca na União Europeia é saber como é possível compatibilizar essa nova prioridade com a preservação dos equilíbrios essenciais que marcaram as virtualidades do sistema anterior.

Temos consciência - e é importante que a tenhamos - que a realidade que aí vem, no que toca à dimensão dos problemas e às alterações na densidade do tecido da União Europeia do futuro, será muito diferente daquela a tudo quanto nos habituámos no passado.

Portugal chegou à União Europeia no último momento certo. Provavelmente, teremos hoje que constatar que não terá havido tempo suficiente para maturar todo o processo da nossa integração, em termos que permitissem ao nosso país garantir, nestes anos que já passaram, todas as vantagens da sua inserção num projecto de progressiva aproximação ao nível dos restantes parceiros comunitários, em termos de desenvolvimento e de riqueza.

O novo desafio que entretanto apareceu - o alargamento da União Europeia - obrigava a uma atitude da nossa parte. E havia duas atitudes possíveis.

A primeira era uma atitude imobilista, uma atitude de reacção negativa face ao alargamento, procurando sublinhar a necessidade de garantir a coesão a Quinze antes de abrir portas ao tratamento desse novo desafio, apontando como que para um congelamento da resposta a essa nova realidade. Essa seria a afirmação, no plano europeu, daquilo que poderia ser considerada uma simples agenda nacional de interesses, numa perspectiva de curto prazo e destinada a falhar pela pressão dos factos e dos outros.

A segunda resposta, que nos pareceu mais pragmática e justa, e terá parecido também mais lógica à generalidade dos partidos políticos portugueses representados na Assembleia da República e, julgo, também nas Assembleias Regionais, foi de natureza integradora. Ao termos uma atitude política positiva face ao alargamento, manifestámos a nossa comunhão com as grandes preocupações que hoje atravessam as sociedades europeias, porque, é importante que se diga, o alargamento constitui hoje uma preocupação estratégica europeia. Essa opção foi tomada sem deixar de ter sempre bem presente a nossa agenda nacional de interesses e sem deixar de afirmar, em paralelo, a necessidade de apoio continuado a um conjunto básico de prioridades essenciais para o desenvolvimento do nosso país, aliás consonantes com os princípios básicos expressos no Tratado da União Europeia. Mas era importante que ficasse claro que, também nós, partilhamos da necessidade de responder a esse grande desafio que é enfrentar, pela positiva, a situação nova criada pela emergência de irrecusáveis processos de liberdade no Centro e Leste do continente.

Houve, assim, que compatibilizar essa nova realidade, que era o imperativo do alargamento, com uma aposta clara no sentido de ter uma filosofia de afirmação europeia tão aberta quanto possível. Uma filosofia que, no passado, justificou que Portugal estivesse permanentemente na primeira linha de todos os mecanismos de integração. Relembro a circunstância de aplicarmos o acordo de Schengen desde o início, a nossa empenhada participação na UEO, o nosso contributo activo para as acções a que a Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia nos chamou - como foi o caso da Bósnia. E, finalmente, recordo o empenho posto na participação, desde a primeira hora, na Moeda Única.

Portugal, precisamente pela sua situação de periferia geográfica e em termos de desenvolvimento, não se pode dar ao luxo de não aproveitar todas as oportunidades para assumir atitudes que consagrem a fuga à perifericidade a que parece destinado, em opções que evitem novos ciclos históricos em que essa perifericidade se possa espelhar, marginalizando o país do centro das mais importantes decisões.

Há talvez aqui algo de voluntarista, neste esforço para nos colocarmos na primeira linha da integração europeia. Mas é importante que se diga que esse vanguardismo não é, de todo, incompatível com a preservação dos interesses nacionais específicos, nomeadamente ao nível da projecção externa tradicional do país. Pelo contrário, a experiência demonstra que algumas das dimensões próprias e algumas das prioridades essenciais da acção externa portuguesa - e citaria o caso de Timor Leste, a África lusófona, o relacionamento com o Brasil, com o Mediterrâneo, etc. - inserem-se dentro do quadro de relações externas da União Europeia e permitem-nos mesmo garantir um valor acrescentado a essas dimensões que nos são específicas, que é resultante da nossa presença dentro da União Europeia. Ganhamos por estar com os nossos interesses projectados na União Europeia e ganhamos também por partilhar dos interesses globais que se expressam na própria União. Mas, ao partilhar esses interesses da União, é óbvio que temos de subscrever também alguns interesses que não são necessariamente os nossos ou que têm uma expressão diferenciada nos diversos países da Europa.

A Europa comunitária tem interesses que são reconhecidamente comuns, mas tem muitos outros interesses que traduzem as preocupações diferenciadas das várias opiniões públicas. É que, como é sabido, não há uma opinião pública europeia: há 15 opiniões públicas motivadas por 15 agendas nacionais diversas. Podemos, contudo, perceber que hoje todas essas opiniões públicas, se bem que de forma diferenciada, reflectem todas elas um conjunto de inseguranças colectivas entre as quais é possível encontrar alguma ligação. São inseguranças no plano social - aquelas que têm a ver com o emprego e com os riscos que corre o modelo social europeu -, no plano da ordem pública - com os riscos da criminalidade organizada, do tráfico de droga, da emigração descontrolada, etc. e as que resultam dos conflitos na ordem externa (de que a ex-Jugoslávia é o exemplo mais actual) - e aí está a dimensão da Política Externa e de Segurança Comum (PESC) como resposta.

É nesse contexto que o alargamento aparece, porque também ele é uma preocupação comum que devemos partilhar. O alargamento é uma oportunidade única de sedimentar numa zona do continente europeu marcada por um passado recente conturbado um espaço de paz e de estabilidade, que nos fará criar novas condições de desenvolvimento colectivo, dentro de todo o território europeu, muito mais seguras. Sem querer ir muito longe, eu diria que nesta nossa adesão à importância geoestratégica do alargamento está todo o conjunto de razões que nos levaram a empenharmo-nos, no passado, relativamente à NATO.

Por outro lado, o alargamento também tem a ver com a criação de sociedades mais desenvolvidas numa área geográfica que dará origem a novos mercados, o que contribuirá para o desenvolvimento global europeu, com impactos necessários numa economia aberta e dependente do desenvolvimento desse mesmo espaço, como é a nossa. O alargamento, e por seu intermédio a criação de condições para uma estabilidade e uma situação de paz naquela zona do continente, poderá contribuir para que alguns dos nossos parceiros, tradicionalmente mais concentrados em termos de preocupações com o Leste europeu, desde que sintam essa área com condições de segurança política e económica, possam recentrar de novo os seus interesses no projecto europeu, em modelos de solidariedade colectiva que se estão actualmente a perder.

Mas é evidente que o alargamento traz riscos e que esses riscos são claramente diferenciados dentro da União Europeia.

Alguns são de carácter comercial, embora hoje, através dos chamados Acordos Europeus, muitas das dimensões de carácter comercial e alguns dos seus reflexos mais preocupantes estejam já ultrapassados ou actuantes.

No entanto, há outras dimensões ainda a estudar. Uma delas tem a ver com a Política Agrícola Comum (PAC), outras com determinados produtos industriais e outras ainda com a hipótese que esses países têm, em função de alguma capacidade potencial em termos de formação de uma mão-de-obra mais educada, para se reconverterem mais rapidamente do que nós.

Teremos, com certeza, também algumas dificuldades a nível da diversificação de investimentos. Obviamente que esses países poderão ser mercados mais atractivos para o investimento directo estrangeiro, seja por condições sócio-laborais mais apelativas, seja pelos custos de outros factores produção.

A isto se liga também a questão da deslocalização de empresas. É evidente que a diversificação de investimentos e a deslocalização são riscos que teremos de controlar. Mas esses tropismos já hoje se fazem, ainda antes do alargamento ter lugar, simplesmente porque são elementos inerentes ao processo de globalização. A resposta não está em barreiras artificiais, está na melhoria da nossa produtividade, está na criação de factores competitivos próprios de vária ordem.

Por outro lado - e esta é uma preocupação que, não sendo prioritária para Portugal, o é para outros países europeus, e constituirá um dos elementos centrais da fase final das negociações -, há alguns riscos a ponderar em matéria de livre circulação de pessoas e dos efeitos que isso possa ter no mercado comunitário, com repercussões potenciais a nível de tensões sociais e políticas.

E há, finalmente, um outro risco, que é o da deslocação da aplicação dos fundos comunitários, nomeadamente daqueles que se destinam a apoiar as regiões menos desenvolvidas dentro da União Europeia.

Mas o alargamento é uma realidade inevitável. Aliás, nós já tivemos aquilo que poderíamos qualificar como um primeiro alargamento: referimo-nos à absorção da República Democrática Alemã pela República Federal Alemã, e já experimentamos o impacto desse primeiro alargamento, nomeadamente a nível das taxas de juro que se reflectiram sobre toda a Europa.

Gostava ainda de deixar claro que não temos, face ao alargamento, e contrariamente a muitos países da actual União, sobretudo aqueles que estão mais próximos dos candidatos, como que países preferenciais dentro do processo. E, por essa razão, Portugal tem vindo a colocar-se, face aos diversos candidatos, de uma forma extremamente independente e com um tratamento em tudo equitativo. Isto porque consideramos que o alargamento não deve ser feito de forma discriminatória, não criando nem estimulando a criação de grupos de países mais ou menos avançados, porque isso poderia provocar tensões difíceis de gerir no futuro. Portanto, não temos favoritos relativamente ao alargamento e isso faz com que Portugal possa hoje estar com grande à-vontade numa posição de ajudar os países do alargamento, em três dimensões principais: explicando-lhes um pouco a nossa experiência da adesão, dando-lhes conta dos impactos dessa mesma adesão ao nível da gestão das políticas e, no plano organizativo, fornecendo-lhes informações que possam auxiliá-los na sua própria estruturação interna no caminho para a integração.

Cremos que é esta a contribuição possível que nos compete dar. Portugal, que não é um país rico dentro da União Europeia, tem pelo menos o valor da sua experiência e toda a disponibilidade para pôr esse conhecimento ao dispor dos países candidatos.

De acordo com as previsões da Comissão Europeia, o primeiro alargamento deverá ter lugar no período das próximas Perspectivas Financeiras, isto é, entre 2000 e 2006. Foi para esse período que a Comissão desenhou a Agenda 2000.

Mas o que é a Agenda 2000 ? Esse projecto de planificação financeira para o septénio que vai de 2000 até ao final de 2006 é, como já dissemos algures, a verdadeira radiografia da actual ambição europeia. E essa radiografia mostra que há alguma doença na Europa, porque, na realidade, se nota que as previsões feitas na Agenda 2000 não correspondem às necessidades mínimas para a prossecução sustentada das políticas que têm sido o êxito do projecto europeu. A nosso ver, estamos perante uma baixa ambição, uma ambição que parece ser como que um exercício limitado de gestão corrente e que não é uma boa resposta aos problemas com que a Europa se defronta.

Quase que se poderia dizer que alguns contribuintes líquidos, adquirido que está o Mercado Único e o princípio do alargamento que lhes convém, decidiram dar uma resposta orçamental para o suporte da União do futuro pela medida mais baixa. Se optássemos por uma leitura cínica do modo como a Agenda 2000 foi construída, poderíamos concluir que essa proposta é feita, exclusivamente, numa lógica de poupanças.

À Comissão Europeia terá sido dada, expressa ou implicitamente, a indicação para não produzir um quadro financeiro para os primeiros sete anos do novo milénio que ultrapassasse o limite de 1,27% do produto da União, nível já previsto para 1999 no quadro anterior. Dentro deste quadro financeiro, espartilhado pela falta de ambições e pelo rigor orçamental, a Comissão Europeia teve que optar pela redefinição ou pela reforma drástica em baixa das próprias políticas comunitárias, na medida em que rapidamente entendeu que não podia avançar no respectivo aprofundamento, porque deixaria de ter, no futuro. recursos para tal.

Nesse quadro, havia três opções.

Uma delas era trabalhar na reforma profunda da PAC, essa “vaca sagrada” da União Europeia que consome de 50% do orçamento comunitário, que beneficia apenas 5,5% da população activa da UE e contribui com menos de 3% para o PIB da União. No entanto, e na proposta original da Comissão, a PAC não só é preservada, como até sofre algum aumento !

Por outro lado, poderia ter-se trabalhado também, embora quantitativamente de forma menos significativa, no domínio das políticas internas. Neste terreno, convém notar que 60% do orçamento das políticas internas é dedicado à Investigação e Desenvolvimento (I&D), que funciona como uma espécie de Fundo de Coesão para os países mais ricos. Por aqui se perceberá porque também não foram tocadas as políticas internas...

Portanto, a parcela do orçamento comunitário através da qual se optou por fazer poupanças, aquela que a Comissão Europeia entendeu como a que poderia ser reduzida em favor dos novos países candidatos, foi a política estrutural - isto é, a política regional, a política de Coesão Económica e Social e as Iniciativas Comunitárias.

Foi precisamente a política estrutural, aquela que dentro da União Europeia se destina ao apoio às regiões mais pobres, que, na lógica do mecanismo definido na Agenda 2000, foi seleccionada para pagar o futuro alargamento da União Europeia. Ou seja: às regiões mais pobres dos Quinze competirá suportar os custos do alargamento, o qual, curiosamente, terá sobre essas mesmas regiões um impacto negativo mais pronunciado.

É esta contradição profunda, esta incongruência, esta ilógica que nós sistematicamente nos temos esforçado por explicar, quer à Comissão Europeia, quer aos nossos parceiros dentro da União. A todos explicamos também uma outra realidade gritante, que é a circunstância de Portugal, neste contexto específico, ser provavelmente o país mais prejudicado na proposta apresentada pela Comissão. E porquê? Porque, contrariamente a todos os outros países da Coesão, ou seja, a todos os outros países mais pobres da União, Portugal é o único que praticamente nada recebe da PAC. Foi a própria Comissão a reconhecer-nos como “contribuinte líquido” da PAC no seu Relatório sobre a Coesão de 1997. Ora recebendo menos da PAC do que aquilo que para ela contribuímos, beneficiando muito pouco das políticas internas (e indo receber no futuro ainda menos, pela circunstância de a I&D passar a maioria qualificada, de acordo com o Tratado de Amesterdão), somos precisamente os mais vitimados pela circunstância da política estrutural ser aquela que vai “pagar” o alargamento.

Não temos dúvidas que esta cumulação de efeitos negativos é feita, pura e simplesmente, em função da assunção de determinados critérios nos quais Portugal, por uma característica muito específica que tem a ver com o seu próprio nível de desenvolvimento e com o modo como se fez a sua entrada na União Europeia, nomeadamente em relação à PAC, acaba por ser afectado de uma forma muito particular. Não seguimos teorias conspirativas, mas constatamos ser as vítimas de uma estranha cumulação de efeitos negativos.

Além disso, há que sublinhar mais uma incongruência deste processo da Agenda 2000. Com efeito, é notório que, tanto o Tratado de Maastricht como o próprio Tratado de Amesterdão, trouxeram novas responsabilidades para a União, quer ao nível das políticas tradicionalmente comunitárias - as chamadas políticas do Primeiro Pilar -, quer ao nível das políticas de Justiça e dos Assuntos Internos (JAI). Mas, curiosamente, mesmo havendo novas políticas sob a responsabilidade da União, a Agenda 2000 não incorpora nenhum esforço financeiro acrescido para lhes fazer face.

E convirá também lembrar que, no passado, quando houve alargamento a países que se situavam numa faixa inferior ao nível médio da União, houve sempre lugar ao reforço dos compromissos financeiros. No caso do alargamento a Portugal e Espanha, houve lugar à criação de programas especiais de apoio aos países que poderiam sofrer efeitos particulares desse mesmo alargamento, os chamados Programas Integrados Mediterrâneos (PIM).

Desta vez, verificamos que, não só não há programas específicos, como passa a haver, da parte dos contribuintes líquidos, a assunção de uma atitude restritiva, no sentido de fazerem poupanças e de porem em causa, inclusivé, a sua participação relativa no actual sistema de recursos próprios da União.

Acresce que, no segundo semestre deste ano, irmos ter uma outra difícil negociação no âmbito da União Europeia, que só aparentemente não nos diz respeito, e que se refere ao problema do equilíbrio entre os próprios países contribuintes líquidos nas suas participações para o orçamento comunitário. Não poderemos excluir que alguns países mais ricos da União possam ser tentados a ultrapassar o problema existente a nível das receitas através de uma diferente distribuição a nível das despesas. Nesta perspectiva, alguns dos contribuintes líquidos poderiam vir a ser compensados através de uma maior atribuição de fundos estruturais, o que iria agravar ainda mais o cenário que já hoje existe, relativamente ao próprio quadro de distribuição de despesas previsto na Agenda 2000.

O caso de Portugal, como se disse, configura um quadro complexo que cumula vários efeitos de sentido negativo, pelo que tem de ser visto de forma específica. Temos vindo a fazer um esforço de convicção junto dos Governos europeus para esta questão, porque esta é uma dimensão essencialmente política, não é uma dimensão exclusivamente técnica. Temos vindo a ter um diálogo intenso, activo e bastante profícuo, com a Comissão Europeia, nomeadamente com a Comissária encarregada da política regional, explicando em detalhe as nossas preocupações e avançando diversos caminhos técnicos para as ultrapassar.

Neste contexto, vale a pena singularizar alguns pontos específicos que fazem parte da nossa agenda de preocupações.

Em primeiro lugar, a questão da região de Lisboa e Vale do Tejo que, pelo seu desenvolvimento, ultrapassa já o limiar do chamado Objectivo 1, ou seja, tem mais de 75% do PIB médio comunitário. Esse facto, que parece tecnicamente desqualificar essa região para a manutenção da maior concentração das ajudas, não pode, porém, deixar de ser ponderado à luz do facto do território português, no seu todo, mesmo incluindo Lisboa e Vale do Tejo, se situar bastante abaixo dos 75% da média comunitária. Portugal é o único país que, estando globalmente abaixo daquele limiar, tem uma região a sair do Objectivo 1. Com efeito, todos os outros países que têm regiões a sair do Objectivo 1 são muito mais ricos que o nosso. A região de Lisboa e Vale do Tejo concentra e produz cerca de 42% do PIB português, tem mais de 1/3 da população portuguesa e tem efeitos redistributivos reconhecidos. Além disso, é uma região apenas ligeiramente mais rica, embora muito abaixo da média comunitária, num país que é, globalmente, o segundo país mais pobre da União. E percebe-se que é completamente diferente ser a região menos pobre num país pobre do que uma região mais pobre num país rico. Por isso, pretendemos discutir a singularidade do caso de Lisboa e Vale do Tejo no quadro da negociação comunitária. Pretendemos que esta especificidade seja reconhecida e tida em conta de uma forma prática, e que não se lhe apliquem critérios de natureza puramente estatística, alguns dos quais, além do mais, estão ainda sujeitos a algumas dúvidas de natureza técnica.

Por outro lado, há uma outra questão que tem a ver com a introdução do critério do desemprego como um critério de atribuição dos fundos comunitários. Esse critério não deixava de ser tido em conta no anterior Quadro Comunitário de Apoio (QCA), mas desta vez a sua consideração é mais relevante e a taxa de desemprego funciona com uma diferente ponderação. Ora é importante relembrar que há outras tipologias de emprego, que têm a ver com os níveis de formação profissional e com a circunstância de alguma mão-de-obra que hoje está empregada em Portugal não ter condições de reempregabilidade no caso de vir a perder os seus postos de trabalho, nomeadamente na hipótese de poderem vir a projectar-se no nosso país os efeitos da globalização e do próximo processo de liberalização da Organização Mundial de Comércio (OMC).

Por isso, Portugal tem privilegiado nesta negociação a consideração do conceito de “empregabilidade”. Convém, no entanto, ter em conta que este conceito pode, também ele, ser visto de duas maneiras.

Normalmente, nós utilizamos o conceito de “empregabilidade” no sentido de critério para a alocação de fundos em termos de envelope nacional. Porém, algumas leituras criativas no seio da Comissão Europeia, e mesmo no seio de alguns Estados membros, utilizam o conceito de “empregabilidade” com vista à gestão posterior dos fundos dentro dos vários QCA, como elemento orientador para o papel que a Comissão terá no respectivo controlo. Há aqui óbvia contradição que é forçoso esclarecer. Além disso, convém lembrar que algumas das situações de desemprego que hoje existem ao nível da União Europeia têm a ver com opções políticas deliberadas seguidas nesses países no tocante aos seus processos de desenvolvimento, e, não necessariamente, com desempregos de natureza estrutural, como é manifestamente o nosso caso. Não podemos ser punidos só pelo facto de termos seguido políticas de reconversão que conduziram a uma taxa de desemprego mais baixa, nomeadamente com vista a limitar as consequências sociais correspondentes.

A Comissão Europeia tem, além disso, a estrita obrigação de fazer um estudo sobre os impactos diferenciados do alargamento no tecido económico e social da União, retirando daí as necessárias conclusões. É importante que haja estudos concretos sobre o modo como o alargamento se vai repercutir, quer no plano negativo, quer no plano positivo entre os Estados membros, até para saber a quem pedir mais ou menos sacrifícios para suportar os respectivos custos. Sabemos que há países que têm hoje mais condições para aproveitarem as vantagens do alargamento do que países como o nosso, e seria profundamente injusto se isso não fosse tomado em linha de conta na resultante final do debate sobre o financiamento da União.

Existe ainda o problema da PAC. É uma evidência que é difícil tocar na PAC, sabemos que há uma resistência muito grande em desequilibrar aquilo que favorece os grandes “lobbies” que se movimentam em torno dessa política, que se apoia num status quo que alguns pretendem prolongar eternamente, à revelia da racionalidade económica. A discussão a que se assiste hoje neste âmbito é complexa e temos nela procurado introduzir dois vectores essenciais assentes nalguma razoabilidade reformadora.

O primeiro tem a ver com a procura de um maior equilíbrio entre regiões, entre produtos e entre produtores, e nos apoios a dar a essas diferentes dimensões. É uma discussão complexa, que não está a ser fácil pelo facto de alguns países pretendem resolver esses desequilíbrios ao seu nível nacional, desde que lhes seja preservada a fatia orçamental de que historicamente beneficiam. Esse estratagema de falsa subsidiariedade é inaceitável.

O segundo tem a ver com a possibilidade, aventada já pela Comissão Europeia na própria Agenda 2000, mas que necessita de ser explorada mais profundamente, de conseguir fazer pagar algumas despesas de natureza estrutural ligadas ao Desenvolvimento Rural através da Rubrica 1 do orçamento comunitário, isto é, através da PAC, em lugar de as manter suportadas pela política estrutural, como até agora tem sucedido. É uma questão que nos parece de meridiana lógica e estamos a apresentar propostas muito concretas nesse domínio.

Finalmente, há ainda a considerar o problema das Regiões Ultraperiféricas. Tendo-nos competido lutar na última CIG pela introdução no Tratado de Amesterdão do novo artigo sobre as Regiões Ultraperiféricas, que traduziu num salto qualitativo muito importante para os interesses das Regiões Autónomas portuguesas, é com grande esperança que encaramos agora o desenvolvimento prático desse tratamento discriminatório positivo que o TUE prevê, na execução futura das políticas da União. Na Agenda 2000, esse salto qualitativo deve ter já algum efeito prático. Ora aquilo que, actualmente, a proposta da Agenda 2000 prevê, em relação às Regiões Ultraperiféricas, é, pura e simplesmente, a sua consideração dentro do Objectivo 1, elemento que apenas favorece as Canárias e não favorece mais nenhuma das restantes Regiões. Com efeito, pelo seu grau de desenvolvimento, elas situar-se-iam sempre dentro desse Objectivo. Este é mais um elemento menos positivo da Agenda 2000 e, também aqui, ela não vai tão longe quanto seria necessário.

Temos ainda um problema fundamental que tem a ver com a pretendida manutenção da regra da reorçamentação automática e com a definição dos gastos em matéria de política estrutural como objectivo de despesa, e não como tecto ou limite de despesa, como a Comissão propôs.

E, finalmente, temos a questão do Fundo de Coesão. Convém que isto fique claro, de uma vez por todas: esta é uma questão que, para nós, não é negociável. O Fundo de Coesão deve – e vai – continuar a aplicar-se a Portugal no quadro das próximas Perspectivas Financeiras. Para além de o país estar claramente abaixo dos 90% do PNB comunitário exigidos, o que nos qualifica automaticamente para o Fundo, para além de não haver qualquer justificação jurídica que nos exclua por virtude de virmos a entrar para a Moeda Única, é óbvio que Portugal tem atrasos ao nível das infra-estruturas de transporte e de ambiente gritantes face ao conjunto da União. Só a nível de atrasos ambientais, calculam-se em cerca de 950 milhões de contos as necessidades para os próximos anos em termos de infraestruturas, simplesmente para cumprir as directivas comunitárias nesse domínio. Se pensarmos que a nossa despesa pública, nomeadamente em termos de investimento, está hoje, mais do que nunca, limitada por virtude do Pacto de Estabilidade e Crescimento, é óbvio que, sem o Fundo de Coesão, não teríamos possibilidade de levar a cabo os trabalhos de modernização infraestrutural essenciais para que as nossas empresas possam aproveitar em pleno as vantagens do Mercado Interno.

Estes são alguns dos muitos aspectos que temos em discussão no âmbito da Agenda 2000, que temos esperança de poder concluir no primeiro semestre de 1999. Este calendário seria importante que fosse mantido, até para evitar a tentação que existe em alguns espíritos de poder ainda ligar este pacote financeiro ao dossier das reformas institucionais, tidas como necessárias antes do alargamento e que deverão fazer parte da nova CIG. Temos alguma dificuldade em aceitar a cumulação destes dois dossiers, para evitar óbvios efeitos de ligação perversa entre os mesmos. Pensamos que a Agenda 2000 tem de se justificar a si própria, os desequilíbrios da proposta originária têm que ser repostos e terá que haver uma redefinição de vantagens e custos que seja mais equitativa entre todos.

Estas são as grandes questões que para o nosso país se colocam no quadro daquela que é, muito provavelmente, a mais difícil negociação que Portugal teve de enfrentar no seio da União. Tudo indica existir uma grande unidade no tratamento externo desta matéria por parte das diversas forças políticas portuguesas. Parece, assim, que estão criadas as condições para ter uma unidade interna sólida que se projecte externamente de uma forma também unida. Recentemente, quando a Comissária Wulf-Mathies esteve em Lisboa, tivemos oportunidade de organizar uma reunião em que estiveram presentes personalidades de vários partidos, de várias orientações políticas e de vários sectores económicos e sociais. A Senhora Comissária terá ficado com a consciência de que esta é, para nós, uma questão nacional, uma questão que nos mobiliza a todos e que é, acima de tudo, de simples justiça e face à qual estamos dispostos a ir tão longe quanto o necessário para defender aquilo que consideramos justo para Portugal.

(Baseado na intervenção no colóquio “Agenda 2000 – Fundos Estruturais e Alargamento a Leste”, realizado no Funchal, em 25 de Junho de 1998)


13 de maio de 1998

A reforma das instituições

As questões que se prendem com o modelo das instituições da União Europeia e com o seu processo de reforma tanto podem ser vistas numa perspectiva vasta, numa leitura radical de mudanças estruturantes a introduzir no seu formato jurídico, como numa perspectiva menos ambiciosa, de adaptação gradualista dos actuais mecanismos àquilo que se prevê virem a ser as exigências funcionais próximas.

A primeira destas leituras tem, naturalmente, uma importância vital para o desenho da União Europeia do futuro e, em particular, para suscitar nos meios de reflexão política, e através deles nas próprias opiniões públicas, o debate permanente sobre os modelos desejáveis de ordenamento institucional, à luz das várias concepções teóricas que, agora como no passado, foram sempre a semente da ambição europeia. É uma tarefa reconhecidamente de longo prazo, mas que se torna essencial desenvolver, nomeadamente em Portugal, onde o défice de aprofundamento dos temas europeus é uma incontestável evidência e onde, frequentemente, se assenta a reflexão teórica em alguns mitos bloqueantes da livre formulação política. Essa é, por exemplo, a tarefa que o Movimento Europeu tem vindo a levar a cabo e que parece importante estimular e promover.

Mas o objectivo deste texto é confessadamente menos ambicioso. O seu propósito é traçar, à luz da experiência portuguesa recente e da projecção possível das necessidades do futuro imediato, algumas linhas sobre as adaptações que a União Europeia que hoje temos tem que encarar, para acrescer a sua funcionalidade e a sua democraticidade, particularmente num momento em que a Europa comunitária decidiu expandir-se com uma dimensão inédita, quer quantitativa, quer qualitativamente.

Todos temos consciência que o debate de natureza institucional sempre constituiu um permanente elemento de tensão dentro da União. Uma tensão que parte das várias perspectivas sobre o conceito de legitimidade das instituições, sobre as leituras diversas do equilíbrio interinstitucional desejável, mas que, igualmente, reflecte as ópticas que coexistem sobre o modo como a diferenciada realidade que são os Estados Membros deve projectar-se no processo de decisão e controlo da máquina da União.

Se os equilíbrios saídos de Maastricht foram já de difícil aceitação em alguns Estados Membros, como os debates internos e os processos referendários vieram a provar, é evidente que as exigências decorrentes da perspectiva de uma União alargada a mais de 20 Estados traz, com certeza, algumas necessidades acrescidas a ponderar.

É importante que sejamos claros desde o início e que não neguemos a realidade que se nos impõe: uma União Europeia que assuma a sua constante expansão tem de conduzir um sucessivo repensar das suas instituições e, a nosso ver, essa reflexão deverá, ela própria, ter uma dinâmica que acompanhe o próprio percurso de exigências que a União é chamada a enfrentar em cada momento.

Isto significa que não temos, num dado momento, que desenhar uma União para sempre, nem criar necessariamente uma espécie de fórmula evolutiva fixa que se aplique a todas as mutações futuras. Uma das ideias comuns que se nos afigura mais peregrina e sem sentido, mesmo com um certo grau de arrogância histórica, liga-se à concepção de que parece competir a esta geração europeia a responsabilidade de definir para sempre o modelo da Europa do futuro, de prever todos os mecanismos para uma União com 30 ou mais membros, como se não fosse mais do que provável que futuras Conferências Intergovernamentais venham a repensar, a curto ou a médio prazo, todo o modelo que, num certo tempo, se tenha julgado adequado à realidade de então.

Daí que haja uma primeira prevenção a fazer: não se queira aproveitar o próximo alargamento como argumento, e instrumento de oportunidade, para subverter alguns dos equilíbrios que vinham sendo mantidos. Convém que alguns Estados membros, muito em particular os de maior dimensão, não procurem utilizar o alargamento como pretexto para reforçarem o seu poder relativo no mecanismo decisório, o que é muito diferente do legítimo interesse de não verem diluída a fatia de poder de que hoje gozam. Ora o que parece estar a preparar-se é uma espécie de rectificação de contas “a posteriori”: apoiados na ideia de que os últimos alargamentos foram degradando o seu poder relativo, delapidando a posição de que alguns beneficiavam desde o Tratado de Roma, parece agora estar a gizar-se como que uma acção de retomada desse poder perdido, à luz de uma invocação de legitimidade que assenta maioritariamente no argumento demográfico. Se o debate for por aí, vamos com toda a certeza a caminho de uma crise política séria no seio da União.

Mas talvez valha a pena analisarmos estas questões por partes. Quais são os problemas, ditos de natureza institucional, com que a União se confronta nos dias de hoje ? Que tipo de disfunções é possível identificar ? Que desafios novos não é viável enfrentar com as actuais instituições e com o modo como elas actuam ?

A lista não é de todo pacífica, tanto mais que temos que somar as dificuldades actuais com os novos problemas previsíveis num futuro quadro de alargamento, embora, pelas razões apontadas, seja conveniente ter uma noção moderada da dimensão dessa abertura da União, isto é, a ideia de que não será expectável que haja, num cenário de 12/15 anos, mais do que 20 ou 21 Estados membros. Mas tentemos abordar tais questões uma-a-uma.

Começaria por dizer que há hoje um largo reconhecimento que o recurso às votações por maioria qualificada no âmbito do Conselho é um imperativo essencial de eficácia funcional da União. Com efeito, já na União a 15, e, por maioria de razão, numa União alargada, o processo decisório não pode continuar a estar refém da atitude de um qualquer país, atitude essa que pode nada ter a ver com a matéria que estiver em discussão mas, muito simplesmente, com a necessidade táctica de tornar a União prisioneira da vontade unânime, a fim de garantir lucros negociais noutro contexto (o comportamento britânico no caso da BSE é um exemplo flagrante). Isto sem discutir, por ora, a questão do chamado “interesse vital” e sem elucubrar sobre se o chamado compromisso do Luxemburgo permanece ou não em vigor.

Mas aceite o princípio de que a maioria qualificada deve ser a regra, a questão estará agora em saber-se que tipo de decisões devem ficar sujeitas à unanimidade, quer por um juízo positivo de subsidiariedade, quer por imperativos constitucionais de ordem nacional que continuem a impor-se. Convém, contudo, que tenhamos claro que o âmbito das decisões que se mantêm por unanimidade é hoje já muito restrito, particularmente se pensarmos que está previsto um quadro evolutivo no âmbito do Justiça e dos Assuntos Internos, o qual, a prazo, pode aumentar significativamente a lista de temas a sujeitar à maioria qualificada.

Mesmo assim, reconhece-se que temos que ir mais longe. Tudo indica que a União não será operacional se não procedermos, no futuro, a uma maior extensão da maioria qualificada. Tendo, porém, em atenção a relutância de alguns Estados em prescindirem da unanimidade em certos domínios, julga-se que deveria ser melhor explorado o sistema do estabelecimento de calendários de transição, segundo os quais algumas decisões continuariam a ser tomadas por unanimidade até determinada data, passando a partir daí a maioria qualificada, com ou sem cláusulas excepcionais de salvaguarda. É um método algo voluntarista, que introduz o factor tempo e possibilita uma adaptação gradativa.

É evidente que, neste domínio, restará sempre por resolver a questão das decisões de natureza institucional mais estruturante, aquilo que alguns designam mesmo como as questões para-constitucionais da União. O espaço de manobra é, aqui, muito mais limitado porque, como antes se disse, estamos por vezes perante matérias que, dentro dos Estados, constituem reservas de competência parlamentar própria e, em outros casos, se prendem a idiossincrasias difíceis de ultrapassar.

A nosso ver, este é o tipo de questões que só pode ser superado através de um processo de reforma institucional muito mais profundo, ligado a uma substancial alteração qualitativa do formato da União, que não cabe no modelo de reforma gradualista em que se baseia o quadro de negociação que tem vindo a ser seguido. Só um acto refundador da União, envolvendo não apenas os Governos, mais igualmente os Parlamentos Nacionais, poderia criar condições políticas para uma mutação institucional que permitisse tocar estas questões mais sensíveis. Mas, realisticamente, haverá actualmente condições para lançar este tipo de debate entre os Quinze, com um mínimo de exequibilidade ?

Ligado a esta questão da maioria qualificada está, naturalmente, o problema da co-decisão com o Parlamento Europeu. É hoje um dado adquirido que o Parlamento deverá poder pronunciar-se, em regime de co-decisão, em todos os casos de natureza legislativa em que o Conselho haja decidido por maioria qualificada. O Tratado de Amesterdão deu já, neste domínio, alguns passos significativos, ao conceder ao Parlamento a possibilidade de poder passar a pronunciar-se sobre um conjunto muito mais vasto de matérias.  Somos de opinião que esta tendência é praticamente indiscutível e, por esta via, o âmbito de poderes do Parlamento Europeu ver-se-á, no futuro, ainda mais substancialmente reforçado. Convém, além disso, referir que a articulação Conselho-Parlamento ficou, nesta última Conferência Intergovernamental, muito mais simplificada, ao eliminar-se o chamado procedimento de consulta e ao reduzir-se o procedimento de cooperação apenas à área da União Económica e Monetária e, neste caso específico, pela razão formal de a Conferência ter assumido o compromisso de não tocar nas respectivas regras. Além disso, cremos que tem sido menos mencionada a evolução que se registou no próprio funcionamento da co-decisão, tornando-a mais fácil e operativa, dando ao Parlamento um maior poder ao garantir que, sempre que o Comité de Conciliação não aprove um projecto comum, a proposta de acto legislativo será considerada rejeitada.

Estas referências mais de pormenor destinam-se a evidenciar que os poderes do Parlamento Europeu foram, no quadro do Tratado de Amesterdão, bastante reforçados, o que nos parece ir na linha correcta de uma maior legitimação democrática das decisões. O caminho para a generalização da co-decisão é o caminho certo, embora muito provavelmente tenham, no futuro, de ser encaradas novas iniciativas em matéria de simplificação desse mesmo processo, que impeçam que o peso burocrático dos mecanismos acabe por afectar o fluir operativo da articulação entre as duas instituições.

Mas se as questões da maioria qualificada, e da correspondente co-decisão, são importantes, parece ser útil trabalharmos aqui um tema que lhes está a montante e que sempre se revelou de uma grande sensibilidade - o problema da ponderação de votos no Conselho.

Trata-se de uma questão que combina elementos de natureza operativa e dimensões que tocam de perto aspectos de simbologia predominantemente nacional. Teoricamente, os Estados são iguais no plano internacional, as soberanias equiparam-se e essa é a regra a respeitar. Mas é óbvio que, desde o início das instituições comunitárias, o poder dos diversos Estados membros no quadro decisional do Conselho foi diferenciado, num equilíbrio difícil de definir mas que, basicamente, reflectiu como que uma ponderação mais ou menos objectiva do seu poder - lido este numa perspectiva múltipla, que incorpora elementos demográficos, de peso económico e outros porventura não assumidos, entre os quais os contributivos não são os mais despiciendos.

Com os sucessivos alargamentos, o peso relativo dos maiores Estados no processo decisório acabou por sofrer alguma erosão e a possibilidade de esses Estados verem a sua gestão do orçamento e do processo legislativo bloqueada por minorias foi sendo agravada. Isto teve naturalmente a ver com a circunstância de se ter registado a entrada de países de menor dimensão que, não obstante não disporem de um poder de voto comparável ao dos grandes Estados, acabam, no plano teórico, por poderem conseguir dificultar, se conjugados, a formação de maiorias qualificadas susceptíveis de fazerem aprovar decisões.

Esta “pressa” que subitamente parece ter contagiado alguns Estados, no sentido de avançar na reforma institucional, tem, a nosso ver, uma justificação de oportunidade. Agora que a União se prepara para um alargamento sem precedentes, verifica-se que os maiores Estados da União sentem alguma urgência em proceder a uma reforma institucional prévia que evite que, através de uma simples extensão do modelo anterior, se acentue a tendência que tem prevalecido em seu desfavor.

Esta é a realidade formal que temos que enfrentar, ainda antes do próximo alargamento, como está previsto no próprio Tratado de Amesterdão. Aparentemente, a situação é compreensível e não há razão para que não nos mostremos abertos a considerá-la.

Mas vamos por partes e atentemos em algumas realidades.

Desde o Tratado de Roma que ficou fixado que os “grandes Estados” têm o mesmo número de votos. Tratou-se de um compromisso que foi prevalecendo, mas que nada obriga a que se mantenha. Por que razão se há-de hoje diferenciar Portugal da Suécia - Portugal com 5 votos, a Suécia com 4 votos - que têm entre si uma diferença de população de 1,5 milhões, e se há-se manter com igual número de votos a Alemanha e a Itália, que têm uma diferença de população de 24 milhões ? Se se disser que o argumento não é apenas demográfico, mas também de potencial económico e contributivo, então mais razões haveria para a Suécia estar mais próxima de Portugal. E, por maioria de razão, mais longe deveria a Itália ficar da Alemanha. Estas são algumas contradições que o actual sistema tem e que tornam difícil a sua abordagem em termos objectivos.

Uma segunda questão prende-se com o objecto das decisões. Todos nós podemos entender que haja uma diferenciada ponderação no processo decisório quando tratamos de matérias de natureza estritamente económico-social. A quantidade de população de um país como a Alemanha tem, muito naturalmente, que ser tomada em especial conta quando estamos a definir um qualquer regime que se aplica à generalidade dos cidadãos europeus e, num caso destes, é mais do que óbvio que o peso da vontade portuguesa na decisão final seja menor. Mas valerá a pena questionarmo-nos sobre se essa mesma desigualdade decisória, de raiz predominantemente demográfica, se justifica tão fortemente quando estão em causa temas de outra natureza, como as questões de Política Externa e de Segurança Comum ou de Justiça e Assuntos Internos. Note-se que, nestes casos, trata-se de áreas que sempre foram tidas como atributos essenciais da soberania do Estados e dos seus sistemas tradicionais de decisão autónoma e cuja partilha decisória, em termos europeus, não pode deixar de ter presente essa realidade essencial. Será legítimo que, numa votação sobre um qualquer tema de política internacional, o voto de Portugal e o de, por exemplo, a Espanha devam ser substancialmente diferenciados? E quem diz de Portugal e da Espanha, diz naturalmente de Portugal e da Finlândia.

O processo de ponderação de votos no Conselho, e as diferentes tendências que à volta dele existem, também não podem ser entendidos se não se perceber a natureza do que se está a tratar e o diferenciado posicionamento dos países nesse contexto. Vou tentar explicar o que me parece evidente, à luz do caso português.

Como é sabido, o processo de utilização do orçamento e da definição das grandes linhas de natureza legislativa parte da conjugação maioritária de interesses, as mais das vezes reflectindo o grau de desenvolvimento dos Estados. Assim, as prioridades de mobilização de fundos ou os requisitos que envolvem um determinado instrumento jurídico definem-se, numa lógica que é indiscutivelmente democrática, em torno de um padrão maioritário de interesses que, como disse, tem muito a ver com o grau médio de desenvolvimento económico, social e mesmo científico-tecnológico de cada país. Com o último alargamento - à Áustria, à Finlândia e à Suécia - o bloco mais desenvolvido dentro da União reforçou-se substancialmente e foi notório um deslocamento do padrão médio de interesses dentro da União. O novo padrão entretanto criado tem vindo a ser reflectido, nos últimos anos, de forma crescente nas propostas da Comissão Europeia e, de modo ainda mais claro, nas tendências de voto prevalecentes no seio do Conselho. Repare-se que não falamos necessariamente de um contraste entre grandes e pequenos países: há países de pequena ou média dimensão que estão perfeitamente protegidos nesse padrão maioritário e há países de maiores dimensões - como é frequentemente o caso da Espanha - que se situam no outro grupo.

Para os países menos desenvolvidos dentro da União, para aqueles que frequentemente se não revêem nesse novo padrão médio de interesses, o quadro decisório que daí deriva acaba por funcionar como um elemento de marginalização. Ao não ver acolhidas as suas preocupações naquilo que a União define como orientação, a tendência para a periferização acentua-se e a sua excentricidade agrava-se. No passado, o funcionamento da unanimidade, em muitos sectores, protegia esses Estados membros desse mesmo risco, obrigando à sistemática formação de compromissos no seio do Conselho e, a montante deste, à consideração pela Comissão dessas posições minoritárias na preparação das suas propostas. Com o alargamento das decisões por maioria qualificada esse cenário torna-se, como é compreensível, cada vez mais gravoso para os Estados que se situam à margem desses interesses centrais.

Acresce aqui um pormenor de que pouco se fala, mas que é importante ter em consideração. Como atrás se disse, a tendência prevalecente vai no sentido de submeter a co-decisão pelo Parlamento Europeu todas as decisões de natureza legislativa em que o Conselho decida por maioria qualificada. Sem que isto pareça uma provocação, gostávamos de deixar claro que esta maior intervenção do Parlamento Europeu funciona, na prática, como uma reponderação subliminar do poder decisório dos países. Para sermos mais claros: se uma determinada decisão é submetida ao Conselho, aí o peso de Portugal é de 5 votos e o de um país, como por exemplo a Alemanha, é de 10 votos. Trata-se de uma relação de 1 para 2. Mas logo que essa medida é submetida a co-decisão, estão presentes 25 deputados portugueses e 99 deputados alemães, logo uma relação de cerca de 1 para 4. Dir-se-á que nem sempre os deputados de cada país votam uniformemente. Isso, de facto, pode ocorrer, mas a tendência geral, naquilo que verdadeiramente importa, vai no sentido inverso: com o aumento de poderes do Parlamento Europeu, o trabalho dos “lobbies” nacionais é cada vez mais evidente e a lógica de funcionamento dos grupos políticos, que, no passado, marcou muita da prática do Parlamento, é hoje muito menos patente e decisiva.

É neste quadro de dificuldade de representação que deve ser entendida a relutância de um país como Portugal em se associar a mudanças no quadro da ponderação de votos que possam revelar-se dramáticas para a preservação dos seus interesses. É que há um limiar de representação no quadro do Conselho abaixo do qual é totalmente inoperativo funcionar, isto é, em que não há a possibilidade potencial de garantir que os tais interesses periféricos ou marginais podem ter uma tradução institucional suficientemente sólida para garantir a possibilidade de gerar uma minoria de bloqueio ou para forçar um compromisso que a evite. Esta é uma questão-chave para um país como Portugal.

Embora por razões opostas, é também neste contexto que deve ser entendida a importância atribuída por outros Estados à reforma da ponderação de votos antes do alargamento. Esses Estados, representados hoje confortavelmente no tal padrão médio de interesses que hegemoniza o orçamento e a produção legislativa, temem que o aparecimento de um grupo de Estados com um nível de desenvolvimento mais baixo - logo, também marginais face ao tal padrão médio de interesses - possa vir a revelar-se como um conjunto que, aliado aos países menos desenvolvidos da actual União a Quinze, venha a provocar minorias de bloqueio no processo decisório que hoje dominam. 

As coisas são tão simples como isto - e não vale a pena ter quaisquer ilusões. Esta questão não releva de qualquer perversidade mas, pura e simplesmente, da natural projecção de interesses no seio da União. É que por vezes as pessoas esquecem que a União Europeia é uma união de representação de interesses nacionais que, pelo simples facto de estarem institucionalmente conjugados, representam em conjunto mais do que a soma das partes. É por isso que alguns afirmam, e bem, que na União Europeia, dois mais dois são bastante mais que quatro.

Mas porque essa representação de interesses nacionais é legítima, é natural que para ela tenhamos que encontrar uma acomodação institucional consensual. Julgamos que essa acomodação é possível, por uma de duas vias alternativas.

A primeira é um quadro de nova ponderação de votos que, com algumas rectificações, satisfaça minimamente o desejo de não degradação excessiva das posições dos maiores Estados. Essa reponderação deve, no entanto, partir do princípio básico de que qualquer alargamento traz naturalmente uma diminuição generalizada de poder de decisão e, na nossa perspectiva, tem de conformar-se à ideia de que não é possível aos maiores Estados recuperarem o seu poder originário.

A segunda alternativa tem uma raiz mais demográfica e é vulgarmente designada por dupla maioria. Nessa perspectiva, a distribuição de votos far-se-ia por uma projecção simples do modelo actual, passando no entanto qualquer maioria qualificada futura a necessitar de ser confirmada pela presença nessa maioria qualificada de um conjunto de Estados representando uma percentagem mínima de população da União.

Durante a última Conferência Intergovernamental mostrámo-nos abertos à consideração de qualquer destas hipóteses, dependendo naturalmente a nossa opção da forma real dos modelos que viessem a estar em discussão.

Como é sabido, o Tratado de Amesterdão prevê a possibilidade desta questão da ponderação votos ser articulada, antes do alargamento, com a questão da dimensão da Comissão Europeia, caso o primeiro dos próximos alargamentos não incorpore mais do que cinco países. Nesse caso, os cinco Estados membros que hoje designam dois Comissários passariam a indicar apenas um mas, em contrapartida, ver-se-iam reforçados na ponderação de votos no Conselho.

Embora este compromisso não seja um bom sinal para a independência da Comissão - o “trade-off” entre o Conselho e a Comissão revela, à evidência, a importância da “representação” nesta dos Estados membros - é, pelo menos, uma via para a recuperação da equidade da presença de nacionais dos Estados dentro da Comissão, o que parece ir no bom sentido, pelo menos enquanto a Comissão Europeia tiver a sua actual natureza.

Esta questão, no entanto, se bem que adie o problema da dimensão da Comissão, não resolve o problema central desta instituição que, em nossa opinião, tem uma dupla natureza: de responsabilidade e de legitimidade. Ambas as dimensões são um factor que diminui seriamente a perspectiva de atribuição de poderes acrescidos à Comissão - e este é, a nosso ver, um aspecto central de toda a questão do funcionamento da União.

A responsabilização da Comissão, após a sua designação, é hoje meramente formal. Aquando da crise da BSE, verificou-se que os mecanismos susceptíveis de serem utilizados para sancionar a Comissão eram demasiado radicais para serem exequíveis e hoje há que interrogarmo-nos sobre se, mais cedo ou mais tarde, não teremos que encarar a questão da responsabilização individual dos Comissários. Esta é uma questão muito sensível, por poder ter como consequência uma deriva no sentido de uma maior docilidade dos Comissários perante quem eles individualmente venham a responder, seja o Presidente da Comissão, seja o Parlamento Europeu - já que não é concebível que o sejam perante o Conselho. Mas é um problema a estudar com alguma urgência.

Este problema liga-se igualmente ao papel do Presidente da Comissão. Este foi reforçado ligeiramente no Tratado de Amesterdão e essa decisão talvez tenha derivado da leitura negativa que hoje se faz do funcionamento da actual Comissão, onde, presumivelmente pela ausência de um poder formal de firme coordenação atribuído ao respectivo Presidente, se verifica como que a existência de políticas autónomas e pessoais por parte de alguns Comissários. Esta é uma situação intolerável e que, em lugar de reforçar a Comissão, a fragiliza ainda mais perante as opiniões públicas dos Estados membros, motivando os respectivos Governos a serem restritivos quanto à atribuição de mais poderes a uma instituição que parece não responder perante ninguém.

E aqui entronca uma questão de legitimidade. Repare-se que, ao contrário da perspectiva mais vulgar, ao olhar para a Comissão devemos ver para além das árvores, que o mesmo é dizer, para além dos Comissários. Por detrás destes está toda uma estrutura em que a representação de origem nacional está rigorosamente estabelecida por quotas informais, com desequilíbrios bem pronunciados em favor, não apenas dos grandes Estados, mas igualmente de países centrais da União. Esta é um situação de facto, com que temos que viver, e na qual é necessário inserir a nossa acção quotidiana. No caso português, acresce que a filosofia que presidiu a opções concretas tomadas imediatamente após a adesão - e cuja bondade de intenções não cabe agora julgar - conduziu a resultados, em termos de distribuição de pessoal, que hoje não temos dúvidas em afirmar que dificultam seriamente a defesa de alguns dos nossos interesses essenciais. Mas isso é uma história para contar noutra altura.

Dito isto, retirar-se-á uma conclusão que a muitos parecerá contraditória. Em nossa opinião - uma opinião que apenas compromete o autor deste texto - não é possível dar uma perspectiva de futuro à União, que incorpore uma acrescida integração, sem se caminhar no sentido de um reforço dos poderes da Comissão. Esse reforço só poderá, contudo, ter lugar se e quando a Comissão vier a ser sujeita a um modelo de responsabilização firme, rigoroso e eficaz. Não vale a pena ter no Tratado “bombas atómicas”, como a demissão total do conjunto dos Comissários, quando todos sabemos que a possibilidade de tal ter lugar é meramente teórica. Há que criar sanções de dimensão mais moderada e que, por essa via, possam ser mais eficazes.

Tal como a questão da ponderação de votos, também o problema da designação dos Comissários tem uma dimensão simbólica que não é possível contornar, pelo menos nesta fase da vida da União. Com efeito, a experiência da última Conferência Intergovernamental provou que nenhum dos Governos de Estados de pequena ou média dimensão, por maior que fosse a sua abertura nomeadamente a modelos federais, tinha condições de poder prescindir, ainda que temporariamente, do direito de designar um elemento para o colégio de Comissários. Entre nós, todos estarão lembrados da famigerada história da rotação dos Comissários e do modo como alguns sectores reagiram à simples evocação dessa possibilidade.

Mas porque essa sensibilidade permanece, afigura-se irrealista e inexequível a aventada proposta de criar uma Comissão de 10 ou 12 Comissários, teoricamente desligados dos países de origem. Prosseguir agora na sua discussão não tem qualquer sentido, o que não significa que não tenhamos que pensar, numa perspectiva de médio prazo, em limites para o alargamento da Comissão. Aliás, o que ficou estabelecido em Amesterdão vai já nessa linha, ao fixar um quadro de 20 comissários como o único compromisso aceitável neste estádio da discussão.

Referimos as três instituições centrais: o Conselho, o Parlamento e a Comissão.  Não referimos o Tribunal de Justiça, nem órgãos como o Tribunal de Contas, o Comité das Regiões ou o Comité Económico e Social. Isso deve-se à circunstância, constatada durante a última Conferência Intergovernamental, de que as questões de natureza institucional que verdadeiramente importam pouco têm a ver com estas estruturas e que nada de essencial está em causa, quer no respectivo modelo de funcionamento actual, quer no seu posicionamento no quadro interinstitucional. Isso não exclui que futuras Conferências Intergovernamentais não venham a abordar, de novo, o respectivo quadro de competências e a debruçarem-se sobre algumas propostas para a respectiva reforma.

Alinhar-se-ão de seguida cinco notas breves, sobre outras tantas questões de natureza institucional. São pistas de reflexão, assentes em inventários de problemas, mais do que em respostas concretas. Mas é esse o espírito de um texto que se destina a provocar a reflexão.

A primeira nota diz respeito a um tema que não tem a ver com alterações ao Tratado, mas que é de importância central na funcionalidade da União. Refiro-me ao caótico estado organizativo da coordenação feita pelos Conselhos “Assuntos Gerais” e pelo Conselho “Mercado Interno”. Estes dois Conselhos de Ministros, de natureza horizontal, estão hoje mergulhados em agendas sem sentido, desmotivadoras da presença dos ministros, o que acaba por os transformar, no primeiro caso, em pouco mais do que um Conselho PESC (em que o que é importante se discute exclusivamente durante o almoço e quase sempre sem sentido decisório) e, no segundo caso, numa espécie de fórum acompanhador das medidas de simplificação do mercado único. O papel coordenador horizontal destes Conselhos parece ter-se perdido por completo e vive-se hoje um tempo de actuação desgarrada dos vários formatos sectoriais do Conselho.

A segunda questão prende-se com o papel dos Parlamentos Nacionais. O novo Tratado comporta um Protocolo sobre esta matéria, mas com um âmbito que fica muito aquém daquilo que se me afigura ser o modelo necessário para uma possível organização, à escala comunitária, dos diversos parlamentos nacionais. É óbvio que a diferenciada tradição de projecção externa dessas assembleias não favorece a descoberta de um formato comum de representação, o que é provado pela dificuldade que a própria COSAC tem em definir tal modelo de intervenção. Mas não é menos verdade que a crescente atenção que, a nível nacional, se concede às matérias europeias e o contínuo debate em torno dos limites da subsidiariedade vão, com toda a certeza, despertar cada vez mais a atenção destes parlamentos e aumentar a vontade para uma projecção comum. Resta saber de que modo é possível realizar tal projecção sem, por um lado, tornar mais pesado e sinuoso o mecanismo de decisão comunitário e, por outro lado, sem criar um conflito de competências com a esfera própria do Parlamento Europeu.

A terceira questão prende-se com a possibilidade de começarmos a reflectir sobre os modelos futuros cooperação reforçada, isto é, os mecanismos de natureza institucional susceptíveis de enquadrarem uma adesão diferenciada às políticas da União. Alguns dirão que é cedo, que se trata de um terreno perigoso e que pode ser disruptor do próprio tecido da União estar a estimular um domínio que, em princípio, pode romper a sua própria homogeneidade. Não pensamos que esse seja, necessariamente, um debate inconveniente. Temos uma leitura da cooperação reforçada que não é necessariamente negativa, tanto mais que, naquilo que ficou consensualizado em Amesterdão, ficaram fixadas cláusulas de salvaguarda que nos parece suficientes, e para a definição das quais o nosso país julga ter dado uma contribuição decisiva. A mensagem que aqui deixamos é simples: se bem aproveitada, a cooperação reforçada poderá revelar-se um modelo interessante para resolver alguns dos problemas que todos teremos de enfrentar no próximo alargamento.

A quarta questão é algo que se nos impõe, mas para que também não temos ainda resposta. Referimo-nos às consequências de natureza institucional que derivarão da passagem à terceira fase da União Económica e Monetária. Cremos que não se poderá deixar fluir esta questão ao sabor dos ventos do futuro, encarando as soluções à medida que os problemas surjam. Temos que nos saber antecipar e começar a lançar, desde já, um debate sereno sobre todas as implicações que se presume possam ocorrer por virtude da introdução do Euro, da maior coordenação das políticas económicas e de emprego, para não falar de outras colaterais que o bom senso aponta como inevitáveis. Começar a discutir estas questões, nomeadamente a nível nacional, é condição para desdramatizar desde o início este debate, o que nos parece imperativo, se não queremos ser confrontados mais tarde com uma pressão externa para a qual temos que fazer um esforço nacional de convicção muito difícil e apressado.

A quinta e última questão pode ser lida num registo simultaneamente egoísta e provocatório. Sem negar qualquer deles, acrescentar-lhes-íamos também um registo de realismo. Referimo-nos, em geral, à questão da posição dos novos aderentes da União face à reforma institucional de que atrás falámos. Todos sabemos que a decisão sobre os modelos institucionais futuros terá que ser tomada a Quinze, isto é, as regras que enquadrarão o alargamento do “clube” competirá sempre aos actuais sócios. Por outro lado, os novos países aderentes têm, por ora, outras prioridades: garantir avanços nos seus processos negociais de adesão, fixar os regimes transitórios ou derrogatórios que se lhes aplicarão e, finalmente, obterem a garantia política de uma data para a adesão efectiva. O que nos interrogamos é se, chegado o momento em que essa adesão esteja garantida e calendarizada, e se esse momento coincidir com a discussão prevista para a nova reforma institucional, não poderá haver nesses países a tentação, em tudo legítima, de procurar fazer ouvir a sua voz no processo de revisão das instituições que decorre em paralelo, no âmbito dos seus futuros parceiros . Ou serão as opiniões públicas desses países indiferentes à ponderação de votos que lhes vai ser por nós atribuída e às regras sobre a representação na Comissão que irão ser-lhes, também por nós, impostas ? Não é esse processo de revisão institucional justificado precisamente pela sua própria entrada para a União ? Não será mais do que legítimo que a sua opinião, ainda que não vinculativa, seja ouvida ? Não foram Portugal e a Espanha associados à discussão sobre o Acto Único, ainda antes da sua adesão efectiva ?  Perguntamo-nos se, respeitando um espírito de parceria, será legítimo mudar as regras de um jogo sem, ao menos, ouvir uma das equipas que está para entrar em campo. E porque não utilizar a Conferência Europeia para o alargamento para esse exercício ? São questões que ficam para um debate que, no entanto, sabemos que é tudo menos popular dentro da União a Quinze.

Para terminar, pensamos dever formular um voto de que seja possível relançar em Portugal, sem temores mas também sem equívocos, uma séria e muito aberta reflexão sobre os modelos institucionais da União do futuro. Um debate em que se devem também afastar os fantasmas, em que há que não ter medo às palavras - a palavras como integração, como comunitarização, como aprofundamento e, mesmo, como federalismo. Temos a obrigação de fazer entender aos Portugueses que só têm a ganhar com o avanço para modelos cada vez mais integrados, provavelmente muito diferentes daqueles que o passado testou noutros cenários, mas modelos que fujam ao carácter híbrido daquele em que actualmente vivemos - esse sim, como tentámos provar, gerador de fórmulas de “directório” em que os mais fracos, como infelizmente nós somos, nada têm a ganhar. Dizia alguém, noutro contexto, que os proletários só tinham a perder as suas próprias cadeias. Nós diríamos que os países mais pobres só têm a perder, no projecto europeu, a sua própria fraqueza.


(Publicado na “Política Internacional” (nº 17, 1998). Baseado na comunicação apresentada ao seminário internacional “Reforma institucional e Democratização da União Europeia”, organizado pela Fundação Mário Soares e pela Fundação Friedrich Ebert, Lisboa, em 13 de Maio de 1998)