10 de junho de 2009

A Europa não nos divide

Haverá que convir que o debate realizado em Portugal, em torno das eleições europeias, terá ficado à porta das grandes questões que se prendem com o futuro do nosso país no projecto integrador. Seria ingenuidade pensar que as coisas pudessem ter-se passado de modo diferente, atento o quadro de tensões políticas que antecedeu o sufrágio. Mas isso não impede que, ultrapassado este, se não tente reflectir, com serenidade, sobre o caminho que estamos a percorrer, situando-o no tempo europeu que actualmente se vive.


Gostaria de começar por notar que a Europa comunitária se tem revelado uma entidade mutante, que adquire novas formas à medida dos desafios que enfrenta e do modo como consegue, ou não, compatibilizar as vontades nacionais de que é composta. Com o tempo, vão-se alterando as expectativas de quem nela está inserido e de quem a olha de fora, seja como interlocutor, seja como potencial membro. Essa qualidade auto-transformadora do projecto europeu é, simultaneamente, a sua força e a sua fraqueza. Aliás, fica-se hoje com a sensação de que, se assim não fosse, a Europa comunitária teria estiolado.


A ambiguidade tem sido um dos principais motores da Europa. Os países e os povos estão neste projecto mobilizados por finalidades que nem sempre são exactamente as mesmas. Se se perguntasse a cada Estado qual o modelo final europeu para o qual desejaria ver evoluir a União Europeia, aqueles poucos que ousassem responder diriam coisas bem diversas – que iriam desde o formato federal à “Europa das nações”. Por isso, retomando a frase clássica de Kautsky para outra realidade, temos de concluir que, também na Europa, “o movimento é tudo, o fim é nada”.


No seu pouco linear processo de construção - dos ”seis” aos “vinte e sete” - a Europa passou por etapas diferentes, que corresponderam às pressões que foi colocando a si mesma, por opção própria ou por determinantes externas. Também por essa razão, convém que tenhamos plena consciência de que a Europa de amanhã vai ser outra coisa, distinta da que hoje existe e, naturalmente, já muito diferente daquela a que aderimos, nos Jerónimos, numa manhã de 1985.


Um mínimo de bom-senso deve levar-nos a concluir que, tendo em atenção o nível de consenso potencial hoje existente, o modelo federal europeu perdeu, definitivamente, a corrida. O federalismo europeu nasceu, historicamente, em torno dos países que deram início ao processo integrador, no pós-guerra. Essa pulsão, gerada pelo medo à repetição do conflito intra-europeu e às tensões da Guerra Fria, continuou a ser uma ideia muito centrada nesses mesmos Estados e, alguns deles, conseguiu mesmo suplantar os sentimentos nacionalistas. Pode dizer-se que o alargamento a Portugal e à Espanha foi o último momento desse tempo, que ainda apontava para que o modelo federal tivesse alguma plausibilidade.


Mas tudo mudou na Europa com o termo da Guerra Fria e, há que assumi-lo, toda a sedução que o modelo federal mantinha, mesmo em sectores dos países fundadores, acabou por esvair-se muito com a realidade dos últimos alargamentos. Interpretada como um imperativo político e estratégico, a entrada desse importante conjunto de novos Estados teve, como efeito colateral, a emergência de uma consciência de que a gestão da nova Europa tinha de fazer-se de outra forma. O Tratado de Nice foi a derradeira tentativa de compromisso com o modelo anterior. O Tratado de Lisboa é já a consagração da prevalência dessa outra leitura da Europa. Diga-se isto em voz alta, de uma vez por todas.


Portugal e a Europa


Mas voltemos um pouco atrás, ao caso português. O nosso país nasce para a integração europeia de uma forma muito diferente da dos países fundadores. A Europa serviu-nos como âncora para a democracia reconquistada e como apoio a um novo processo de desenvolvimento, encerrado que estava o ciclo colonial. Mas o sentimento soberanista, que é identitário na nossa política externa e que esteve bem patente nas duas primeiras décadas após o nosso acesso às Comunidades, tem em Portugal raízes bem profundas - e, há que dizê-lo, bem fundadas na nossa experiência histórica nacional. Por isso, a nossa atitude europeia começou por ser, em termos de projecto institucional, mais intergovernamental e muito pouco aberta às ideias federalistas. Com o tempo, um compromisso entre esses dois extremos acabou por fixar-se na matriz da nossa política externa.


O federalismo europeu em Portugal resulta de uma construção intelectual de algumas elites, na maior parte dos casos decorrente do seu convívio com algum outro pensamento internacionalista ou, pelo menos, com um cosmopolitismo cultural desprendido de defesas nacionalistas. Ser europeísta no sentido federal, em Portugal, foi uma atitude que resultou de um esforço de abstracção face à ideologia nacional dominante, uma tentativa de olhar além desses preconceitos, numa outra visão de longo prazo dos interesses portugueses num quadro global. Mas o federalismo pressupõe a partilha de uma "nacionalidade europeia", que os portugueses, pelo menos por ora, parecem longe de sentir.


O "europeísmo" em Portugal, convém sermos honestos, foi uma realidade diferente: situava-se nas vantagens económicas, nos bolsos ou na paisagem, somadas ao interesse na livre circulação, que garantia um estatuto a quantos já estavam na Europa comunitária antes do próprio país. Daí a insistência inicial na "ideologia da coesão", um teste à coerência do projecto europeu que traduzia, simultaneamente, a proposta de trocar a nossa abertura ao mercado interno pelo recebimento de ajudas compensatórias. Nada que outras países não obtivessem em paralelo, através de outras políticas europeias, note-se.


Já a indução do debate grandes países/pequenos países no discurso negocial europeu, foi um óbvio reflexo que teve algo de soberanista, embora sem ser, necessariamente, uma mera atitude anti-federal. O que esse movimento defensivo pretendeu ser foi a reacção contra um aproveitamento oportunista , por parte de alguns países que utilizavam a mutação do processo europeu como forma de imposição de um modelo de “directório”. Esses Estados, perdido que estava o modelo federal que apenas funcionava na anterior lógica de pequeno “clube”, rapidamente se reconverteram à ideia de reforço do seu próprio papel nacional, no seio do processo decisório europeu. A eficácia era e é a justificação maior que apresentavam. Nomes? Basta atentar nos países que sistematicamente atacam a Comissão Europeia, a única instituição cuja preeminência pode ainda garantir algum interesse comum e contrariar o peso de quem tem mais força.


As temáticas da coesão e do conflito pequenos/grandes foram, assim, as que estiveram mais presentes no debate europeu em Portugal, num caso por justificado interesse económico, noutro por considerável interesse político. Mas, curiosamente, temas tão próximos do eixo da soberania como são a moeda ou a segurança e defesa europeias passaram ao lado de qualquer polémica.


E agora?


Mas, perguntar-se-á o leitor, onde é que estamos hoje, quando a coesão política se sobrepõe à coesão económica e social? O modo responsável como Portugal se comportou face aos alargamentos da União provou que, nas elites políticas, foi possível criar a consciência de que o êxito do processo europeu tinha que ter um preço económico, com uma dimensão estratégica que não nos poderia ser indiferente. Foi uma opção consciente e politicamente motivada, destinada a evitar a emergência, ao tempo em que os últimos alargamentos estavam ainda em discussão, de uma espécie de "egoísmo da coesão". Julgo que, dessa forma, foi possível criar, na opinião pública portuguesa, um sentimento de naturalidade face à diversificação geográfica das ajudas, no quadro de uma Europa alargada. Nesse aspecto, Portugal foi e é um magnífico exemplo.


Agora, é preciso olhar o futuro, que não vai ser fácil. Perante nós estão dois grandes desafios.


O primeiro prende-se com a necessidade de assegurarmos, numa Europa que, para se realizar como entidade com escala a nível global, pode tender a dividir-se em núcleos para o aprofundamento de certas políticas, o nosso permanente lugar nesses mesmos modelos variáveis de integração. Não tenho a certeza de que o consigamos. Mas temos de lutar, com todas as forças, para evitar que o país mergulhe num novo ciclo de periferização.


O segundo desafio prende-se com o anterior. Para além de voluntarismo e de recursos financeiros para estarmos sempre nesses núcleos centrais, importa-nos manter como linha dominante na nossa política externa um sentido profundamente europeu, isto é, uma defesa extrema dos mecanismos comunitários e uma denúncia aberta dos modelos que favoreçam a fixação de “directórios”.


Nada que todos os governos do nosso país não tenham feito até hoje, diga-se. A Europa, em Portugal, não nos divide.


(Artigo publicado no jornal diário português "i" em 10 de Junho de 2009)

A Europa não nos divide

Haverá que convir que o debate realizado em Portugal, em torno das recentes eleições europeias, terá ficado à porta das grandes questões que se prendem com o futuro do nosso país no projecto integrador. Seria ingenuidade pensar que as coisas pudessem ter-se passado de modo diferente, atento o quadro de tensões políticas que antecedeu o sufrágio. Mas isso não impede que, ultrapassado este, se não tente reflectir, com serenidade, sobre o caminho que estamos a percorrer, situando-o no tempo europeu que actualmente se vive.

Gostaria de começar por notar que a Europa comunitária se tem revelado uma entidade mutante, que adquire novas formas à medida dos desafios que enfrenta e do modo como consegue, ou não, compatibilizar as vontades nacionais de que é composta. Com o tempo, vão-se alterando as expectativas de quem nela está inserido e de quem a olha de fora, seja como interlocutor, seja como potencial membro. Essa qualidade auto-transformadora do projecto europeu é, simultaneamente, a sua força e a sua fraqueza. Aliás, fica-se hoje com a sensação de que, se assim não fosse, a Europa comunitária teria estiolado.

A ambiguidade tem sido um dos principais motores da Europa. Os países e os povos estão neste projecto mobilizados por finalidades que nem sempre são exactamente as mesmas. Se se perguntasse a cada Estado qual o modelo final europeu para o qual desejaria ver evoluir a União Europeia, aqueles poucos que ousassem responder diriam coisas bem diversas – que iriam desde o formato federal à “Europa das nações”. Por isso, retomando a frase clássica de Kautsky para outra realidade, temos de concluir que, também na Europa, “o movimento é tudo, o fim é nada”.

No seu pouco linear processo de construção – dos ”seis” aos “vinte e sete” – a Europa passou por etapas diferentes, que corresponderam às pressões que foi colocando a si mesma, por opção própria ou por determinantes externas. Também por essa razão, convém que tenhamos plena consciência de que a Europa de amanhã vai ser outra coisa, distinta da que hoje existe e, naturalmente, já muito diferente daquela a que aderimos, nos Jerónimos, numa manhã de 1985.

Um mínimo de bom-senso deve levar-nos a concluir que, tendo em atenção o nível de consenso potencial hoje existente, o modelo federal europeu perdeu, definitivamente, a corrida. O federalismo europeu nasceu, historicamente, em torno dos países que deram início ao processo integrador, no pós-guerra. Essa pulsão, gerada pelo medo à repetição do conflito intra-europeu e às tensões da Guerra Fria, continuou a ser uma ideia muito centrada nesses mesmos Estados e, alguns deles, conseguiu mesmo suplantar os sentimentos nacionalistas. Pode dizer-se que o alargamento a Portugal e à Espanha foi o último momento desse tempo, que ainda apontava para que o modelo federal tivesse alguma plausibilidade.

Mas tudo mudou na Europa com o termo da Guerra Fria e, há que assumi-lo, toda a sedução que o modelo federal mantinha, mesmo em sectores dos países fundadores, acabou por esvair-se muito com a realidade dos últimos alargamentos. Interpretada como um imperativo político e estratégico, a entrada desse importante conjunto de novos Estados teve, como efeito colateral, a emergência de uma consciência de que a gestão da nova Europa tinha de fazer-se de outra forma. O Tratado de Nice foi a derradeira tentativa de compromisso com o modelo anterior. O Tratado de Lisboa é já a consagração da prevalência dessa outra leitura da Europa. Diga-se isto em voz alta, de uma vez por todas.

Nós e a Europa

Mas voltemos um pouco atrás, ao caso português. O nosso país nasce para a integração europeia de uma forma muito diferente da dos países fundadores. A Europa serviu-nos como âncora para a democracia reconquistada e como apoio a um novo processo de desenvolvimento, encerrado que estava o ciclo colonial. Mas o sentimento soberanista, que é identitário na nossa política externa e que esteve bem patente nas duas primeiras décadas após o nosso acesso às Comunidades, tem em Portugal raízes bem profundas - e, há que dizê-lo, bem fundadas na nossa experiência histórica nacional. Por isso, a nossa atitude europeia começou por ser, em termos de projecto institucional, mais intergovernamental e muito pouco aberta às ideias federalistas. Com o tempo, um compromisso entre esses dois extremos acabou por fixar-se na matriz da nossa política externa.

O federalismo europeu em Portugal resulta de uma construção intelectual de algumas elites, na maior parte dos casos decorrente do seu convívio com algum outro pensamento internacionalista ou, pelo menos, com um cosmopolitismo cultural desprendido de defesas nacionalistas. Ser europeísta no sentido federal, em Portugal, foi uma atitude que resultou de um esforço de abstracção face à ideologia nacional dominante, uma tentativa de olhar além desses preconceitos, numa outra visão de longo prazo dos interesses portugueses num quadro global. Mas o federalismo pressupõe a partilha de uma "nacionalidade europeia", que os portugueses, pelo menos por ora, parecem longe de sentir.

O "europeísmo" em Portugal, convém sermos honestos, foi uma realidade diferente: situava-se nas vantagens económicas, nos bolsos ou na paisagem, somadas ao interesse na livre circulação, que garantia um estatuto a quantos já estavam na Europa comunitária antes do próprio país. Daí a insistência inicial na "ideologia da coesão", um teste à coerência do projecto europeu que traduzia, simultaneamente, a proposta de trocar a nossa abertura ao mercado interno pelo recebimento de ajudas compensatórias. Nada que outras países não obtivessem em paralelo, através de outras políticas europeias, note-se.

Já a indução do debate grandes países/pequenos países no discurso negocial europeu, foi um óbvio reflexo que teve algo de soberanista, embora sem ser, necessariamente, uma mera atitude anti-federal. O que esse movimento defensivo pretendeu ser foi a reacção contra um aproveitamento oportunista, por parte de alguns países que utilizavam a mutação do processo europeu como forma de imposição de um modelo de “directório”. Esses Estados, perdido que estava o modelo federal que apenas funcionava na anterior lógica de pequeno “clube”, rapidamente se reconverteram à ideia de reforço do seu próprio papel nacional, no seio do processo decisório europeu. A eficácia era e é a justificação maior que apresentavam. Nomes? Basta atentar nos países que sistematicamente atacam a Comissão Europeia, a única instituição cuja preeminência pode ainda garantir algum interesse comum e contrariar o peso de quem tem mais força.

As temáticas da coesão e do conflito pequenos/grandes foram, assim, as que estiveram mais presentes no debate europeu em Portugal, num caso por justificado interesse económico, noutro por considerável interesse político. Mas, curiosamente, temas tão próximos do eixo da soberania como são a moeda ou a segurança e defesa europeias passaram ao lado de qualquer polémica.

E agora?

Mas, perguntar-se-á o leitor, onde é que estamos hoje, quando a coesão política se sobrepõe à coesão económica e social? O modo responsável como Portugal se comportou face aos alargamentos da União provou que, nas elites políticas, foi possível criar a consciência de que o êxito do processo europeu tinha que ter um preço económico, com uma dimensão estratégica que não nos poderia ser indiferente. Foi uma opção consciente e politicamente motivada, destinada a evitar a emergência, ao tempo em que os últimos alargamentos estavam ainda em discussão, de uma espécie de "egoísmo da coesão". Julgo que, dessa forma, foi possível criar, na opinião pública portuguesa, um sentimento de naturalidade face à diversificação geográfica das ajudas, no quadro de uma Europa alargada. Nesse aspecto, Portugal foi e é um magnífico exemplo.

Agora, é preciso olhar o futuro, que não vai ser fácil. Perante nós estão dois grandes desafios.

O primeiro prende-se com a necessidade de assegurarmos, numa Europa que, para se realizar como entidade com escala a nível global, pode tender a dividir-se em núcleos para o aprofundamento de certas políticas, o nosso permanente lugar nesses mesmos modelos variáveis de integração. Não tenho a certeza de que o consigamos. Mas temos de lutar, com todas as forças, para evitar que o país mergulhe num novo ciclo de periferização.

O segundo desafio prende-se com o anterior. Para além de voluntarismo e de recursos financeiros para estarmos sempre nesses núcleos centrais, importa-nos manter como linha dominante na nossa política externa um sentido profundamente europeu, isto é, uma defesa extrema dos mecanismos comunitários e uma denúncia aberta dos modelos que favoreçam a fixação de “directórios”.

Nada que todos os governos do nosso país não tenham feito até hoje, diga-se. A Europa, em Portugal, não nos divide.

(Artigo publicado no jornal "i", em 10.6.2009)