5 de agosto de 2013

Voltamos ao Kosovo?

Um dia, a propósito da dimensão económica da nossa diplomacia, afirmei ao "Jornal de Negócios" que o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) necessitava de “mais batatas e menos Kosovo". Com a caricatura, que causou engulhos em alguns meios, queria significar que era importante garantir que o tropismo em favor das temáticas da pura política internacional não deveria fazer esquecer que a rede diplomática tinha obrigação de justificar a sua existência por uma crescente adequação à promoção dos interesses económicos externos - na tripla vertente do incremento das exportações, da captação de investimento estrangeiro e da atração turística. A isso acrescia a importância de manter nas Necessidades uma sólida massa crítica que permitisse executar diligências político-económicas junto de outros Estados para apoio aos negócios, bem como para superar obstáculos não pautais ao comércio, negociar instrumentos jurídicos para a facilitação das trocas e do investimento e, em geral, garantir que o país mantinha uma capacidade de interlocução de elevado nível, à escala europeia e multilateral global, capaz de bem defender os seus interesses.
A referência feita às "batatas" não era casual. Nos anos 70, era assim que a então Direção-geral dos Negócios económicos (DGNE) do MNE era designada, de forma depreciativa, lá pelas Necessidades. Mas "as batatas" dispunham então de uma elevadíssima capacidade técnica, coordenando, com reconhecida autoridade, praticamente toda a negociação político-económica que o país conduzia no exterior.
Em 1985, a DGNE veio a ser fundida com o setor político, sendo criada a Direção-geral dos Negócios Político-económicos (DGNPE). Confirmando as previsões de alguns, a dimensão política quase anulou a vertente económica. A necessidade de uma estrutura económica específica levaria, anos mais tarde, à criação do Gabinete de Assuntos económicos (GAE), cujas insuficiências foram sempre flagrantes. Após a mudança do ciclo político, em 2007, viria a ser criada a Direção-geral dos Assuntos Técnicos e Económicos (DGATE), com uma articulação com a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP), fruto da fusão da Agência Portuguesa para o Investimento (API) com o Instituto do Comércio Externo de Portugal (ICEP). Finalmente, com a alteração governativa de 2011, a DGATE desapareceu e optou-se pela “integração” da AICEP no MNE.
Para além da migração de alguns funcionários do MNE para a AICEP, a colocação formal (pela enésima vez!) dos seus delegados sob a tutela dos embaixadores e a descapitalização funcional das Necessidades, tudo continuou basicamente na mesma. O que verdadeiramente se processou foi a colocação da AICEP sob a tutela pessoal do ministro dos Negócios Estrangeiros, modelo que, aliás, parecia não estar a funcionar mal de todo. Agora, com a saída do MNE do seu anterior titular, é anunciado que ele leva consigo a tutela da AICEP, colocando-a nas novas áreas que passa a coordenar. É a cíclica reedição do “agora é que é!”: a cada mini-ciclo correspondem novas estruturas, sendo estas a adaptar-se às pessoas e não o contrário.
Se o novo modelo que aí vem é bom ou mau só o futuro dirá. O que me parece evidente, até prova em contrário, é que o MNE vai ficar a perder, em termos da sua densidade em termos económicos, o que nomeadamente afetará a cultura de envolvimento da rede de embaixadas e consulados no esforço económico externo. Com toda a criatividade retórica de que o discurso político é sempre capaz, virá por aí uma justificação sossegante para tudo isto, embrulhada numa linguagem hábil sobre a nova articulação interdepartamental, falando de "sinergias", “tutelas partilhadas” e coisas assim. Mas, em termos mais comezinhos e porque “sei do que a casa gasta”, temo muito que a nossa diplomacia volte a ter mais "Kosovo" e menos "batatas".
 
(Artigo publicado no "Jornal de Negócios", em 5 de agosto de 2013)