6 de setembro de 2000

A Europa em perspectiva

Venho falar-vos da Europa, do processo de integração europeia. Acho que o momento é particularmente interessante, porque a América Latina atravessa hoje, precisamente, um tempo novo de reflexão sobre a possibilidade de encontrar fórmulas de conjugação supranacional para articular as suas economias.

A nossa experiência europeia é apenas um modelo entre outros. A nossa experiência parte de realidades muito diversas e as suas virtualidades, como exemplo, são forçosamente limitadas.

Os modelos políticos, ainda que de natureza internacional, são dificilmente exportáveis, mas têm o interesse de poderem servir de referência, com os seus sucessos e com os seus erros.

É esse o interesse que a integração europeia pode ter para o vosso caso e é meu desejo - sem querer ser pedagógico - torná-la mais compreensível aos vossos olhos, numa perspectiva tão actual quanto possível.

O facto de Portugal ter tido, pela segunda vez, a responsabilidade de presidir à União Europeia, durante o primeiro semestre de 2000, dá-nos uma visão ainda mais viva dos aspectos principais que estão em debate e do estado actual dos grandes dossiers.

As presidências da União Europeia, cujo regime rotativo tem sido contestado por alguns, são um momento único de afirmação para os países que as exercem. A possibilidade de transmitir à acção comunitária a especial sensibilidade de um país que exerce a presidência dá uma oportunidade para pôr em prática as vantagens da diversidade de perspectivas existente entre os Estados membros da União. Cada um contribui com aquilo que melhor conhece, nomeadamente no âmbito do seu relacionamento externo, e sabe-se que é da síntese dessas contribuições que resulta a riqueza do conjunto.

Mas há mais. Para um Estado membro, em particular para os de pequena e média dimensão, é da maior importância utilizar o seu semestre à frente dos destinos da União como um factor de dinamização da sua própria administração pública, mobilizando-a para as questões europeias. Podem crer que é um momento único de afirmação nacional que tem a maior importância. E essa é a razão pela qual, muito maioritariamente, os Estados membros da actual União dão sinais de pretenderem continuar a ter o direito de exercer rotativamente a Presidência.

É, assim, desta “varanda” privilegiada que foi a nossa recente Presidência que eu me proponho fazer a leitura da paisagem da Europa de hoje. Não será uma leitura puramente afirmativa, mas muito mais interrogativa. Não tenho certezas para vender, mas tenho a ambição de poder adiantar respostas possíveis para algumas dúvidas que, creio, podem ser também as vossas.

O que é que um cidadão interessado e informado - mesmo um cidadão exterior à Europa - vê quando olha para o projecto europeu e para o seu estado actual ?

Em primeiro lugar, julgo que lhe chama a atenção o debate em curso sobre o modelo futuro da Europa. Será que a Europa acabará por optar pelo modelo federal, ou ficar-se-á por uma mera confederação ? Será que o confronto dos nacionalismos, o peso diferenciado da história nacional de cada Estado membro, acabará por limitar a vontade de encontrar soluções institucionais para caminhar em conjunto ? Ou haverá uma nova ruptura, uma espécie de refundação da Europa, que junte, de novo, apenas um pequeno grupo de Estados?

Depois colocam-se as interrogações sobre o sucesso, ou o insucesso, futuro da moeda única - do euro, essa bandeira-símbolo da unidade europeia. O que pode, no fundo, significar a sua, aparentemente inexorável, perda de poder relativo face ao dólar ? Em que medida isso pode apontar no sentido da ruína do processo integrador, dado que a União Económica e Monetária parece ser o eixo central pelo qual se vai medir o êxito da própria União ?

Uma terceira questão está ligada à anterior. Se a moeda reflecte o estado da economia, será que o valor actual do euro significa que o padrão económico europeu está em contra-ciclo com as exigências de modernidade num quadro de globalização ? Será que o tão famoso “modelo social europeu”, que garantiu bem-estar e segurança por tantas décadas aos cidadãos comunitários, chegou ao fim das suas virtualidades, necessitando de reforma urgente ? Para ser mais directo: será que as exigências de competitividade numa economia globalizada são compatíveis com a rigidez dos modelos sociais que se praticam na Europa, nomeadamente no tocante à protecção social dos trabalhadores e aos modelos de legislação laboral ?

Uma quarta questão tem a ver com a Europa e o mundo. Todos falam da Política Externa e de Segurança Comum - da PESC - mas todos pressentem também que ela está apenas a dar os seus primeiros passos. A questão coloca-se: é possível uma política externa “verdadeiramente” comum numa Europa que é composta por países que têm, muitos deles, formas muito antigas e completas de afirmação diplomática própria, alguns deles com assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas ? Como é possível combinar esta diversidade com as muito contrastantes políticas de defesa, que vão da detenção de armas nucleares ao puro neutralismo e mesmo a uma certa cultura desarmamentista ? Será que a PESC pode, algum dia, ser algo mais do que uma média aritmética dos interesses comuns europeus ? Ou, melhor ainda, poderá a PESC ir mais além do que representar aquilo que é comum aos maiores e mais influentes países da União ? E como interpretar, neste contexto, as dificuldades evidenciadas pela União Europeia face à situação nos Balcãs ou, noutro cenário, a sua posição confessadamente incómoda perante o processo de paz do Médio Oriente ?

Um quinto ponto prende-se com os valores, com os princípios que os países da União devem partilhar em conjunto e que constituem o eixo da própria matriz ética da União. Neste contexto, como interpretar os preocupantes surtos de crescente violência a que assistimos em alguns países europeus, de que são alvo, em especial, os estrangeiros e as minorias étnicas ? Em que medida é possível compatibilizar a livre circulação de pessoas que o futuro alargamento da União aos actuais candidatos vai, cedo ou tarde, acarretar com esses sentimentos que crescem em muitos sectores da população da União ? E como evitar que esses sentimentos acabem por ter expressão política a nível partidário, com responsabilidades de Governo a nível nacional, como sucedeu no caso da Áustria ?

Gostava de os sossegar. Para todo este conjunto de questões há respostas ou pistas de resposta, não necessariamente uniformes mas suficientemente comuns para que possamos encarar com optimismo o futuro. O que não queremos é seguir uma política de euforia sem sentido, uma espécie de “política de avestruz” que esconda as dificuldades. É vital expor os problemas de crescimento da União, não para que eles nos limitem a vontade de ir adiante, mas para garantir que do debate saiam as soluções para o futuro. Se as dificuldades pressentidas pelos fundadores da Europa os tivessem desmobilizado à partida, a Europa nunca se teria construído. Eu diria mesmo mais: o eurocepticismo que hoje atravessa importantes sectores de alguns Estados membros é um sentimento provocatório essencial para adubar a nossa vontade em construir um processo comum. E o sucesso incontestável do que fizemos até hoje é o factor essencial que nos leva a estar francamente mobilizados para o futuro.

Mas vamos por partes.

Não vou falar das razões que estiveram por detrás da União do continente europeu, que foi fruto dos equilíbrios e desequilíbrios resultantes da segunda Guerra Mundial. Nem vou referir que ambiente de “guerra fria” serviu de cenário propício ao crescimento do projecto de integração, pelas razões que são óbvias.

Numa perspectiva actual, eu diria que a União Europeia se caracteriza por ser um processo institucional dinâmico que, tendo partido de um modelo de cooperação económica internacional, gerou elementos de supranacionalidade que começam a tentar reproduzir-se em áreas diferentes daquelas em que foram criados e, por essa via, estão a tentar condicionar e a prevalecer sobre as várias dimensões nacionais. Não estamos aqui perante um “monstro” que supera o criador - embora essa ideia negativa exista nalguns Estados. Mas estamos perante um modelo cujos acréscimos de eficácia parece, a muitos, só poderem ser garantidos desde que sucessivamente completados com mais integração, com mais instituições comuns, isto é, com mais Europa. E, para muitos, tendo como destino óbvio e desejável o modelo federal.

Mas será que, na Europa comunitária, todos estamos conscientemente no mesmo barco ? Um federalista belga ou um nacionalista britânico o que é que têm de comum ? E, no entanto, como foi possível ir tão longe como se foi em termos de integração, se tivermos em conta a diversidade de perspectivas que continuam a existir na família europeia ?

A resposta pode parecer provocatória, mas é a simples realidade: a progressiva integração da Europa teve lugar graças à manutenção de um certo equívoco e de uma certa ambiguidade subjacente a muitas das opções tomadas ao longo destas dezenas de anos. A Europa construiu-se porque, com inteligência, raramente se discutiu o modelo final - o “fim da História” da Europa - e sempre se avançou de forma gradual, passo-a-passo, assegurando que cada medida integradora era entendida por todos como pontualmente necessária, independentemente de poder haver divergências sobre o destino final.

Não vale a pena ter dúvidas: a ambiguidade foi a mãe da integração europeia, foi a única forma de compatibilizar Estados muito diferentes na sua história, na sua experiência constitucional e, em especial, na sua capacidade potencial para partilharem internacionalmente elementos da sua soberania. E foi, por essa via, a possibilidade de se criar uma cultura progressivamente comum que hoje nos identifica como cidadãos da União, para além das divergências de pormenor que nos dividem.

Em face dessa experiência anterior, desse cultivo do equívoco que tão bons resultados deu, é que se pode tornar de certo modo perigoso e delicado encetar, como alguns pretendem agora, um debate de fundo, com ar definitivo, sobre o modelo institucional futuro para a Europa. Para além do aspecto simpático do exercício académico, e do “agitar de águas” que isso representa, eu pergunto-me se, com esse debate, não acabaremos por acordar mais fantasmas do que entusiasmos.

Desta forma, eu penso que o caminho mais prudente é tentarmos permanentemente sublinhar o que nos une, particularmente num tempo de algumas incertezas e de alguns desafios.

E o que nos une é claro: o desejo de garantir em todo o espaço do continente um ambiente de paz, de estabilidade, de desenvolvimento e de cooperativa boa-vizinhança, assente nos valores comuns da democracia, da promoção da cultura europeia de liberdades fundamentais, das garantias comuns sobre o Estado de Direito e de estrita observância dos Direitos do Homem.

No plano económico e social, há uma aposta comum nas virtualidades da economia de mercado, temperada por um conjunto de conquistas sociais que hoje fazem parte de um património de garantias - embora, como disse, este continue a ser um terreno não fechado de discussão.

No plano político, é óbvio existir a vontade de afirmar a Europa no cenário mundial, não apenas para a afirmação dos seus interesses estratégicos, comerciais ou outros, mas para a promoção externa dos valores que defende e que considera deverem ser preservados e difundidos, num quadro de relacionamento externo marcado pela solidariedade e pela cooperação.

Tendo estes princípios tendenciais na sua base, e correndo o risco fácil da simplificação, eu diria que a Europa de hoje se confronta essencialmente com quatro grandes desafios:

         - realizar o seu alargamento a novos países, sem pôr em risco o modelo de integração já atingido e sem, por essa via, introduzir factores de instabilidade ou tensão nas suas zonas de proximidade geopolítica;

         - reforçar, nesse mesmo contexto, o seu modelo económico-social, com vista a garantir a preservação e o reforço da sua competitividade num quadro de crescente globalização e liberalização, procurando preservar os elementos essenciais do modelo social europeu tão laboriosamente construído ao longo de décadas;

         - construir um grande espaço europeu de liberdade, de segurança e de justiça, que dê pleno sentido à livre circulação das pessoas, preservando ao mesmo tempo os direitos e a segurança de todos os cidadãos, europeus ou não, que se encontrem no espaço comunitário;

         - encontrar um ponto de estabilidade institucional que permita a compatibilidade das várias dimensões nacionais que constituem a União, quer no seu processo de estruturação para-constitucional interno, quer no quadro da definição da sua política externa, nomeadamente no tocante à política de defesa e segurança.

E começaria pelo alargamento.

O final “guerra fria” colocou um dilema à Europa comunitária. Não era possível deixar sem resposta países que, acabados de sair de ditaduras comunistas, procuravam reforçar as suas jovens democracias, o seu desenvolvimento e, porque não dizê-lo, garantir a sua segurança pela sua ligação ao projecto de integração europeia. Não seria politicamente responsável - e seria estrategicamente trágico - não atender ao desejo destes países, aos quais, durante décadas, a Europa ocidental mostrara com orgulho, e como exemplo, o seu modelo de liberdade e de progresso.

O alargamento aparece, assim, como incontornável. Mas a que preço? Provavelmente com algum preço, nomeadamente no tocante à possibilidade de projectar todas as políticas numa União a 27 ou 28 membros, partindo dos 15 actuais. Sejamos realistas: salvo se os países mais ricos da União estiverem dispostos a fazer um aumento substancial das suas contribuições para o orçamento - que hoje ainda representa menos de 1,27% do seu PNB -, a União alargada terá que ser muito menos coesa que a actual. E atendendo ao ambiente financeiro muito restritivo que se vive na União, não creio serem de esperar grandes generosidades. Pelo que sou forçado a concluir que a União do futuro, para subsistir como unidade política onde todos possam participar, tem de ser menos solidária. Será isto a “Europa a duas velocidades”, de que tanto se fala ? Mas essa Europa já existe hoje. A vantagem de estar inserido na União Europeia é a possibilidade de todos poderem contar com alguns apoios para atenuar esses diferenciais de nível de vida e de bem-estar, não os agravando a partir de certo limite.

Independentemente desta realidade, estou contudo bem seguro de que a vantagem da integração para os novos membros será imensa, não apenas no plano político, mas igualmente nas áreas económicas e sociais. É um processo que tem alguns custos, alguns traumas, que tem sectores que terão impactos negativos, mas que tem vantagens a prazo muito evidentes. E se algum país pode ser disso testemunha viva, esse é o caso de Portugal.

E passaria à competitividade.

O grande debate que atravessa a Europa actual diz respeito à adequação do seu modelo económico-social, mesmo num contexto de moeda única, com o exigente ambiente de competitividade que se vive no plano mundial. Reconhecemos que a Europa criou, por boas razões, alguma rigidez nos seus mercados laborais, algumas “almofadas” nos seus sistemas de protecção social que, para muitos, explicam as suas dificuldades em se adaptar a uma economia mundial muito mais aberta e competitiva. Todas as vantagens que resultam da criação do grande Mercado Interno podem ficar em causa se não conseguirmos ganhar a batalha da competitividade externa. Eu diria mesmo mais: a Europa tem de perceber que a sua competitividade só se mede verdadeiramente quando sai desse Mercado Interno, o qual pode acabar por funcionar como um factor que mascara a sua efectiva perda de modernidade competitiva.

Além disso, mecanismos como a Política Agrícola Comum e certas práticas comerciais restritivas colocam, por vezes, a Europa do lado mais frágil no quadro internacional de comércio. Não gostaria de ir muito longe nesta última dimensão do debate, que se prende com a Organização Internacional do Comércio. É que para falarmos de liberalização nós teríamos de falar também de “dumping” social, de “dumping” ambiental, das condições socio-laborais de produção e isso levar-nos-ia muito longe, para muito longe da Europa... Mas refiro isto apenas para deixar uma nota das grandes questões a que não poderemos fugir no futuro - e este plural não é “magestático”: nenhum de nós poderá fugir a elas no novo ciclo da OMC que aí virá.

Fora deste quadro, eu gostaria ainda de chamar a atenção para o facto da Europa pressentir hoje que, para além das dimensões de liberalização que tem de considerar, há outros aspectos que precisa de tratar com urgência. A cimeira que, durante a nossa Presidência, realizámos em Lisboa evidenciou a vontade comum em caminhar para aquilo que poderíamos designar como a democratização urgente da sociedade de informação em todo o espaço europeu. Parece hoje claro que muito daquilo que é o diferencial de competitividade entre a economia europeia e a dos seus competidores, em especial os EUA, resulta dessa distância que ainda se verifica na intensidade de utilização das novas tecnologias, quer no tocante ao ensino e formação profissional, quer no uso que delas é feito pelos meios económicos, nomeadamente pelas pequenas e médias empresas. Um calendário de medidas comuns foi acordado em Lisboa, para as acções a nível da União e para objectivos a realizar pelos diversos Estados membros. A União, com este conjunto de medidas, propõe-se, no prazo de 10 anos, tentar reduzir esse seu atraso. Veremos se tal é possível.

Depois, vem a questão da livre circulação.

Tenho a sensação que, no seio das diversas sociedades europeias, só agora começa a ser clara a real dimensão deste problema. Os afloramentos racistas e xenófobos que se multiplicam em certos países europeus são reveladores de uma tensão potencial que pode ter o seu momento de explosão por alturas da concretização dos próximos alargamentos. Alguns estranharam a reacção dos “14” face à Áustria. Eu gostava que pensassem no que significa a expansão, a nível de Governos europeus, de linhas políticas marcadas por aquele tipo de sentimentos. Em particular, é importante prever o que poderá ser a criação de correntes, politicamente institucionalizadas a nível europeu, que limitem a livre circulação de pessoas e que assentem culturas de ódio nessa orientação.

A União tem de trabalhar muito rapidamente neste domínio, garantindo um quadro de medidas comunitárias que facilitem, não apenas a protecção de direitos, mas igualmente a criação de mecanismo de segurança que reforcem a confiança dos cidadãos. Torna-se importante uma estratégia coordenada de combate à criminalidade organizada, ao tráfico de droga, à corrupção, uma eficaz cooperação policial e uma transparente cooperação judicial em matéria civil, sem a qual a livre circulação não tem garantias. Este é um dos grandes desafios da União nos próximos anos, podem crer.

Finalmente, a questão institucional.

Como sabem, estamos neste momento envolvidos numa nova reforma do Tratado da União Europeia.

Gostava de chamar a vossa atenção para a circunstância de haver vários processos de reforma ou debate institucional em paralelo.

Na Conferência Intergovernamental (CIG), em que represento Portugal, estamos a discutir a divisão do poder dentro da União, o funcionamento dos mecanismo de votação e a estrutura de algumas instituições, como a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu e os Tribunais de Justiça europeus. É um debate que esperamos terminar em Dezembro, por forma a preparar a União para o alargamento.

Mas, como disse, há outras discussões em paralelo.

Uma é sobre uma Carta Europeia dos Direitos Fundamentais. Trata-se de uma iniciativa que tem um aspecto quase para-constitucional e que se destina a dar maior substância ao conceito de cidadania europeia. Com efeito, se a União começa a intervir cada vez mais na esfera de vida dos cidadãos, esses mesmos cidadãos têm que ter garantidos direitos vários, que devem ser respeitados pelas instituições da União e, em especial, pela sua produção legislativa. Isto é válido não apenas para os direitos fundamentais - nomeadamente os que decorrem da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - mas igualmente para os direitos económicos e sociais conquistados ao longo dos anos, bem como os chamados direitos de “terceira geração”, como os ligados ao ambiente, à bioética, etc.

Trata-se de um debate muito interessante, em que ainda se confrontam perspectivas diversas: os que pretendem dar valor jurídico fortemente vinculativo a esta Carta, introduzindo-a no Tratado; os que querem que ela tenha apenas efeitos declaratórios, deixando às constituições nacionais e às actuais convenções internacionais a tarefa de regular estas questões.

Um outro importante debate tem a ver com a política de segurança e de defesa.

Como sabem, coexistem na União Europeia diferentes tradições e filosofias neste domínio, desde os países que são membros da NATO, os que o são com algumas limitações, bem como os países de tradição neutralista, alguns dos quais com forças armadas fortes, outros meramente incipientes.

A questão está em saber se é possível dar força concreta a uma dimensão externa da Europa sem termos uma política comum de defesa. De momento, e para ser simples, convém registar que não há ainda uma vontade colectiva dentro da União para pôr em comum as forças armadas de todos os países da União, salvo para acções de cariz não defensivo, isto é, para acções humanitárias e de manutenção de paz. Mas a criação de estruturas militares interinas no âmbito da União Europeia, que se instalaram durante a nossa Presidência, pode constituir o primeiro passo para um caminho mais integrado em comum, o qual, no entanto - e convém que se diga -, não colocará nunca em risco os compromissos em matéria de política de defesa de cada Estado membro, nomeadamente os que são membros da NATO. A questão está em saber se é possível que todos sigamos esse caminho ou se não teremos de optar por um modelo que conjugue apenas alguns Estados da União, ficando os restantes com modelos diversos de articulação. É aquilo a que temos chamado, em linguagem da União, as “cooperações reforçadas” e que se está a discutir sobre se não será a única possibilidade de compatibilizar o aprofundamento da integração com uma cada vez maior diversidade da União, nomeadamente após o alargamento.

E passaria, brevemente, à grande discussão de fundo que por aí anda - e que, provavelmente, se prolongará por alguns anos. Será que a Europa caminha para um modelo federal, com um governo europeu e um Parlamento Europeu com os poderes legislativos tradicionais ? Ou será que o carácter intergovernamental vai prevalecer e, eventualmente, reforçar-se, por pressão dos parlamentos nacionais, que cada vez se vêem mais desapossados de poder ?

Gostaria de deixar-lhes, em traços muito breves, a minha opinião. Eu creio que o modelo europeu ficará sempre muito longe das tipologias federalistas tradicionais que, na sua maioria, vêm mesmo já do século passado. Julgo poder prever que nunca teremos uns “Estados Unidos da Europa”. A Europa terá de encontrar um modelo institucional atípico, onde os elementos supranacionais irão ter um papel cada vez mais relevante (a moeda única, a Comissão Europeia, os Tribunais Europeus), mas onde as componentes intergovernamentais terão sempre de estar presentes. Com efeito, não antevejo que em áreas como as políticas de defesa ou em domínios muito sensíveis da Política Externa e de Segurança Comum, ou de Cooperação Judiciária em matéria penal, possamos conceber uma comunitarização do processo de decisão. Além disso, estou convicto que os parlamentos nacionais, que nos últimos anos têm vindo a perder poderes para as instituições da União Europeia, vão, em breve, ter um papel de intervenção muito mais importante no contexto comunitário. Mas isto é uma previsão, que vale o que vale...

Julgo, contudo, que este debate vai acelerar-se e, em particular, pode ter um momento muito vivo se acaso a negociação em curso na actual revisão do Tratado chegar a momentos de alguma tensão, como eu espero que aconteça. Nessa altura, alguns poderão ameaçar optar por refundar um novo modelo europeu, mais homogéneo, onde se encontrem os que aparentemente partilham da mesma perspectiva e que não desejam ficar limitados pela vontade de outros de não ir mais adiante. É uma aposta arriscada, um projecto que pode ter como consequência quebrar a confiança dentro da Europa. E julgo que todos teríamos vantagens em evitá-lo. Na minha opinião, há ainda espaço para compromisso.

Deixei-lhes aqui, em traços muito largos, muitas interrogações e apenas algumas propostas de resposta para os dilemas com que se debate a União Europeia. Foi uma visão deliberadamente fria, que pretendi apenas que fosse realista. A Europa está manifestamente numa crise de crescimento, o que provoca sempre dúvidas e incertezas. Mas se perdemos tanto tempo com esta questão, se o resultado deste debate é tão importante para nós, isso é apenas a prova da relevância deste projecto que tão laboriosamente foi construído ao longo de décadas e cujas vantagens nenhum de nós quer perder. A União Europeia continua a ser hoje o lugar geométrico onde se conjuga a vontade comum de grande parte da população do continente no caminho do progresso e da estabilidade. E nós pretendemos que a Europa do futuro continue a ser para todos o outro nome da liberdade e da esperança.

(Versão portuguesa do texto “Perspectivas de evolución del proyecto de integración europea”, publicado na revista “Diplomacia” (nº 84, 2000), da Academia Diplomática de Chile. Reproduz uma conferência proferida do Instituto de Ciência Política da Universidade do Chile, Santiago do Chile, em 6 de Setembro de 2000.)