27 de maio de 2016

Portugal e a União Bancária


Ao contrário de uma convicção generalizada, a União Bancária, que a Europa tem atualmente em construção, não emergiu de uma evolução natural da União Monetária. Ela foi, muito simplesmente, a resultante da reação à crise financeira que, a partir de 2007, ameaçou fragmentar a Zona euro.
Essa reação derivou de uma decisão política, titulada pelos líderes alemão e francês, numa celebrada reunião em Deauville, em 19 de outubro de 2010, na qual foi decidido desligar o risco soberano do risco bancário, sem que previamente tivesse sido feita uma ponderação objetiva do impacto económico, social e político dessa medida sobre as diferentes economias do euro.
Foi desta forma – que veio a provar-se precipitada e reveladora do modelo decisório que hoje marca o seu processo de funcionamento – que a Europa avançou para a integração bancária, assente na centralização, a nível da Zona euro, das funções e responsabilidades de supervisão e de resolução de bancos em dificuldades, isto é, a venda de parte deles a outra instituição bancária sem os encargos mais pesados. Note-se que, na execução desta política, as instituições europeias não seguiram sempre procedimentos e critérios uniformes, nomeadamente no tocante aos  tempos para decisão concedidos às diversas autoridades nacionais.
Este passo foi ainda dado sem que, em simultâneo, se tivessem capitalizado e operacionalizado os fundos destinados a suportar as operações de resolução e de garantia dos depósitos. Na verdade, enquanto os Mecanismos únicos de Supervisão e de Resolução estão em vigor desde 1 de janeiro deste ano, os Fundos Europeus de Resolução e de Garantia de Depósitos apenas estarão operacionais a partir de 2024. Ao mesmo tempo, no âmbito do Mecanismo de Resolução, foi adotado um princípio que passou a envolver acionistas, credores obrigacionistas e mesmo depositantes não garantidos, em caso de necessidade de recapitalização dos Bancos em dificuldades – o chamado bail-in, ou seja, a conversão em capital de créditos e depósitos bancários a partir de certo montante, com óbvia perda para credores e depositantes.
É hoje uma evidência que o modo apressado como a Europa avançou para a União Bancária está a ameaçar, de forma crescente, a coesão dos mercados financeiros da Zona Euro. Esta evolução reveste-se de particular complexidade e risco para as economias menos eficientes, mais frágeis e mais endividadas, as quais, como é o caso da portuguesa, enfrentam bloqueamentos estruturais e desequilíbrios financeiros profundos, cuja superação não tem prazo visível, estando, simultaneamente, a braços com movimentos de reorganização e redimensionamento dos seus mercados bancários, também eles longe de concluídos. A lógica apontaria no sentido inverso, isto é, que aos setores mais débeis da banca europeia, ligados a Estados fortemente endividados e saídos de dolorosos processos de ajustamento, fosse concedida alguma “discriminação positiva”, com vista a facilitar e estimular a respetiva recuperação.
Aquele passo induziu, além disso, dois efeitos aparentemente irreversíveis na nova ordem bancária europeia. Por um lado, enfraqueceu a indispensável relação de confiança entre aforradores/investidores e os seus bancos, gerando um nefasto e persistente clima de volatilidade e incerteza. Por outro, centralizou a nível europeu as decisões relativas à resolução de bancos em dificuldades, sem, no entanto, deixar de manter nos países de origem dessas mesmas entidades os respetivos efeitos e custos – sejam eles financeiros, políticos, sociais e mesmo de confiança e credibilidade. A tudo isto se soma um incompreensível mecanismo de responsabilidade solidária nos sistemas bancários nacionais – porquê nacionais, se a ação bancária é transnacional europeia, como a própria concentração do essencial da supervisão no BCE o indica? – que põe em causa a solvabilidade dos bancos mais sólidos, com a sua eficiência “punida” por eventuais erros alheios.

Uma situação absurda
Veio assim a criar-se uma situação absurda: é exigido às entidades nacionais que continuem a ser responsáveis pela estabilidade financeira interna dos seus países mas, ao mesmo tempo, retiram-se-lhes os recursos e os instrumentos indispensáveis para a poder assegurar. Como consequência, os bancos das economias devedoras mais frágeis, que têm sido forçados a absorver o forte impacto negativo dos programas de ajustamento, passaram, de imediato, a ser mais vulneráveis a situações de instabilidade, que podem originar saídas de capitais.
Desta forma, tem vindo a consumar-se uma fragmentação dos mercados bancários da Zona euro, que o BCE tem procurado combater, com consequências desfavoráveis sobre o custo do capital bancário e do financiamento destas economias. Estas questões ganharão uma extrema importância quando o BCE quiser um dia inverter a sua política monetária – nos dias de hoje assente em taxas de juro artificialmente baixas e numa injeção maciça de liquidez. Nessa nova conjuntura, a reação natural dos mercados, com a subida imediata das taxas de juro, penalizará as economias mais vulneráveis.
É neste contexto que devem ser avaliadas as implicações para a nossa economia da forma como a Europa do euro está hoje a constituir a União Bancária.
Deixámos de poder controlar o movimento de reorganização e de redimensionamento dos nossos bancos e do nosso mercado bancário, embora tenhamos de assumir os custos do processo de ajustamento.
Mantemos a responsabilidade de assegurar a estabilidade do nosso sistema financeiro – incluindo o mercado bancário – sem que dispunhamos dos instrumentos jurídico-regulamentares e operacionais necessários para intervir, tudo isto num contexto de fortíssimas restrições orçamentais.

O caso Banif
As condições em que se verificou a venda do Banif ao grupo espanhol Santander ilustram isto de forma exemplar. De acordo com todas as informações conhecidas, tanto a Comissão europeia – através da Direção-geral da Concorrência – como o BCE interferiram e terão influenciado decisivamente a solução que veio a ser adotada.
No plano formal, isto é inadmissível, sem sustentação na letra dos tratados. No plano dos princípios, trata-se de um gesto que comporta um grau de intrusão nos equilíbrios internos de um Estado que nada pode justificar.
O custo desta operação para o país atingiu um valor que continua a ser incompreensível, à luz da dimensão do próprio Banif. De facto, os fundos públicos injetados neste Banco atingiram os 3,3 biliões de euros – 1,1 biliões no primeiro aumento de capital + 2,2 biliões a anteceder a venda ao Santander. Se, para além disso, considerarmos as garantias de 750 milhões de euros concedidas ao Santander e relativas a parte da carteira de crédito, descontando os escassos 150 milhões pagos pelo comprador, atingimos o extraordinário valor líquido de 3,9 biliões de euros de custo desta operação para o Estado português. A projeção destes valores num cenário orçamental como o nosso traduz uma violência sem precedentes e um descaso com os equilíbrios macro-económicos de um país que ainda está a acomodar os graves efeitos de um duríssimo ajustamento.
Igualmente surpreendente foi o “hair-cut” de cerca de 65%, imposto pela Direção-geral da Concorrência aos ativos do Banif transferidos para o “veículo” criado e que forçou as referidas injeções de capital.
Tal como foi concretizada, a venda do Banif deixa uma grave interrogação, nunca respondida, sobre que razão levou as instâncias europeias a forçar uma solução que sabia resultar numa fortíssima penalização dos contribuintes portugueses. O sentido dessa intervenção revela-se, aliás, em evidente contradição com o objetivo essencial do Mecanismo de Resolução, que foi criado para cortar a ligação entre o risco bancário e o risco soberano e, deste modo, tem como objetivo proteger os contribuintes.
O que se passou legitima suspeitas graves. Houve, de facto, a intenção de ajudar a desenhar uma centralização bancária a nível ibérico, remetendo o mercado financeiro português para uma situação de subalternidade? E de o fazer à custa dos contribuintes portugueses?

Dúvidas e questões
Para além das questões de soberania com que, à revelia e nalguns casos em oposição ao espírito e mesmo à letra dos Tratados, os países mais vulneráveis – porque menos eficientes e mais endividados - estão a ser confrontados, a evolução da União Bancária está a colocar a nossa economia perante dois tipos de interrogações.
A nível externo, que decisões devemos adotar e que alianças devemos procurar, de modo a reduzir a nossa atual vulnerabilidade ou mesmo impotência, perante decisões tomadas a nível da Zona euro que condicionam o nosso futuro económico e social? O condicionamento, quase preconceituoso, do tecido de relações de setores da banca nacional com países terceiros coloca em causa a natural liberdade de procura de espaços de crescimento de negócio que aproveitem as vantagens comparativas decorrentes de quadros históricos de relações externas.  
A nível interno, que devemos fazer para estabilizar o nosso mercado bancário de modo a, simultaneamente, restaurar a confiança dos aforradores e dos investidores e assegurar níveis adequados de financiamento da atividade económica?
Se a zona euro se arroga o direito de intervir na reorganização do nosso sistema financeiro, então são-lhe exigíveis soluções para estas questões.
A primeira delas diz respeito ao futuro do projeto de integração da Europa e do papel que nele está reservado para as economias mais frágeis e endividadas, que, como a nossa, se encontram a braços com bloqueamentos estruturais e com desequilíbrios financeiros agudos.
Não é exagerado afirmar que a forma como a União Bancária está a ser construída aumenta essa mesma fragilidade, não revela efeitos potenciadores do crescimento e, sem a menor dúvida, contraria o propalado objetivo histórico europeu no sentido de um crescimento harmonioso do tecido económico da União. Ora a Europa não foi construída para agravar os problemas, mas sim para ajudar a resolvê-los. Porém, a sua evolução, nos últimos 15 anos parece ir em direção oposta.
Está hoje claro que o salto para uma maior integração financeira através da União Bancária, sem que fossem adotadas políticas dirigidas aos dois problemas centrais com que aquelas economias se debatem – endividamento excessivo e baixo crescimento potencial – está a ser feito à custa da fragmentação dos mercados financeiros. Só as intervenções do BCE têm permitido controlar, ainda que apenas parcialmente, os efeitos desta evolução sobre o financiamento global da economia e sobre as condições de exploração da generalidade dos intermediários financeiros e, em particular, dos bancos. No entanto, fica evidente que ninguém, a começar pelo próprio BCE e pela Comissão, parece ser capaz de avaliar, com objetividade, as consequências que podem resultar do abandono ou mesmo apenas do enfraquecimento da atual política monetária sobre a estabilidade dos mercados financeiros da Zona euro.
A segunda questão refere-se às respostas a dar, quer aos problemas que estão a afetar o nosso mercado bancário, quer ao reflexo destes sobre o financiamento da atividade económica e, em particular, das empresas. Qual o papel que deve ser atribuído ao grupo financeiro público? Como assegurar a sobrevivência das empresas que, embora economicamente viáveis, se encontram excessivamente endividadas, de modo a evitar um agravamento do desemprego? Como impulsionar o desenvolvimento gradual de fontes e instrumentos de financiamento de empresas, alternativos ao crédito bancário tradicional? Qual o papel que deve ser neste processo reservado aos “veículos” especializados na reorganização financeira de empresas, como os fundos? Como deve ser reorientado o regime fiscal aplicado às empresas, de modo a apoiar o fortalecimento dos seus fundos próprios e robustecer as suas estruturas financeiras?
                                           
A clarificação exigível
O país deve obter, por parte das instituições comunitárias relevantes, nomeadamente do Tribunal de Justiça europeu, a necessária aclaração sobre as margens de ação soberana do Estado português na gestão da sua posição económico-financeira no quadro da Zona euro, não sendo aceitável que esta posição seja permanentemente sujeita - de forma casuística, discricionária e aparentemente inapelável - aos critérios dos anónimos e não responsabilizáveis aparelhos burocráticos de Bruxelas e Frankfurt.
Uma última nota. Não vivemos em tempo de “gestão corrente”. A gravidade do momento e a importância crítica destas e de outras questões, indiscutivelmente relevantes e decisivas para o futuro do país, deveria apontar no sentido de uma clarificação estratégica que, a prazo, balizasse as suas posições no decisivo tecido de alianças que tem de começar a forjar no quadro das mutações que todo o tecido europeu parece estar em vias de sofrer. Não pode haver fronteiras ideológicas intransponíveis, ou prevalecerem obstinações doutrinárias absurdas, quando, dia após dia, assistimos a um crescente delapidar da nossa capacidade para poder ter palavra nacional mínima sobre a gestão de um dos vetores centrais da nossa soberania.
Fernando Bello
Francisco Seixas da Costa
João Costa Pinto
João Ferreira do Amaral
João Salgueiro
José Manuel Félix Ribeiro
Júlio Castro Caldas
Miguel Lobo ANtunes
(texto coletivo publicado no jornal "Público" em 27.5.16)