16 de abril de 2010

A Europa e a política externa da Administração Obama

Intervenção do embaixador Francisco Seixas da Costa,
no Fórum Franklin D. Roosevelt, organizado pela Fundação Luso-Americana,
Ilha Terceira, Açores

Desejo começar por agradecer a gentileza deste convite da Fundação Luso-Americana e dizer que é com imenso prazer que participo nesta iniciativa. Há dias, dei por mim a pensar que os Açores, pela sua singularidade e importância estratégica, são talvez a única região portuguesa que verdadeiramente justifica que desenvolva uma análise própria e individualizada em termos geopolíticos, se descontarmos as especulações em torno do potencial, nem sempre confortável, de uma eventual relação africana da Madeira. Por essa razão, julgo que uma cada vez mais regular convocação, aqui nos Açores, de fóruns de reflexão estratégica se justificaria e deveria ser oficialmente incentivada. E essa é mais uma razão para felicitar a FLAD por esta iniciativa.

Estou aqui a título pessoal. O que vou dizer vincula-me apenas a mim. Mas, naturalmente, não esqueço o meu estatuto profissional e, na liberdade do que exprimo, tenho em devida conta as orientações oficiais da política externa portuguesa a que estou subordinado.

Durante estes dias, temos refletido sobre as relações transatlânticas e procurado projetá-las na dinâmica de uma ordem mundial em mutação acelerada. Este é um exercício com um elevado coeficiente de risco, porque os factos são sempre muito mais imaginativos que os homens e porque, como se sabe, é uma ilusão vã pretender retirar, do passado, ilações mecânicas para o futuro. Verdade seja que, se assim não procedêssemos, estaríamos a dar razão àquele conhecido visionário que dizia que só fazia prognósticos depois do jogo…

Se há uma temática que, ao longo dos anos, se tornou numa espécie de “policamente correto” para o trabalho dos “think tanks” portugueses essa tem sido a relação transatlântica e o papel de Portugal nesse contexto. Isto tem a ver com as Lajes, com os Açores, com a NATO e com a necessidade, quase obsessiva, que o nosso país tem de afirmar, ao longo dos anos, a especificidade das suas relações com os EUA – quer os EUA tomem disso conhecimento ou não…

Porque o desequilíbrio de interesses das duas partes é imenso, há que constatar, com realismo, que essa reflexão resultou, quase sempre, num mero olhar unilateral, num simples olhar português. Nada disto é espantar, se atendermos ao facto de que o outro lado do Atlântico, no plano oficial, sempre viu este tema, não sei se com indiferença, pelo menos com uma relativização de interesse muito forte. Talvez por isso, esse lado, o lado americano, pouco tem carreado de novo, de útil ou de imaginativo, para esse debate. Esta é a minha opinião.

No plano interno português, tenho a sensação de que essa recorrente e quase obsessiva abordagem da especificidade portuguesa no quadro atlântico parece funcionar, muitas das vezes, como uma cómoda escapatória para evitar abordar essa relação bem mais próxima, muito mais complexa e muito menos óbvia – a nossa relação intraeuropeia.

É que, no primeiro caso, estamos no “safe side”: salvo alguns auto-excluídos por viés ideológico, o compreensível apreço pelo laço transatlântico é um dado comum a uma larga faixa da opinião portuguesa que se interessa por este tipo de coisas. Já no segundo caso – a Europa –, as sensibilidades internas são diversas, comportam nuances e estão mais sujeitas a variações de humores de conjuntura. Além disso, outros terrenos em que poderíamos especular sobre a nossa projeção de interesses – África, Brasil, Mediterrâneo – incorporam variáveis tão incontroláveis que, em geral, acabam apenas por ser objeto da repetição de uma “langue de bois” que conforta os espíritos para quem a política externa se resume à reiteração do discurso diplomático tradicional.

Vamos, então, ao que hoje e aqui nos interessa: a América e nós.

Há dois anos, em Abril de 2008, ao tempo das “primárias” nos EUA, recordo-me de ter dito, numa entrevista televisiva em Portugal, o seguinte: “Uma parte da Europa acabará por se desiludir, qualquer que seja a opção dos americanos na escolha do novo presidente. O futuro presidente continuará a ser o presidente dos americanos e a defender os interesses americanos, não será o presidente dos não-americanos.”

Ao afirmar isso, não tinha a pretensão de estar a “descobrir a pólvora”, estava apenas a relembrar um realidade que sempre se verificou no passado e que, naturalmente, iria também ocorrer desta vez. Devo dizer, porém, que. meses depois de ter dito o que disse, dei comigo a pensar que o fenómeno Obama poderia talvez infirmar, de uma forma inédita, a valia dessa experiência. É que o entusiasmo com que a nova administração e o seu titular foram recebidos, em particular na Europa, parecia ir muito para além do que era normal e ter condições para garantir a fixação de uma atitude muito diferente e com muito maior sustentação no tempo. A atitude diferente confirmou-se. A sustentação no tempo está para verificar, mas não é evidente.

O que julgo que é uma evidência – dentro e fora dos Estados Unidos – é que grande parte da força da mensagem inicial de Barack Obama teve muito a ver com a procurada imagem de contraste com o seu antecessor no cargo. Para muitos dos aliados europeus, a política seguida por George W. Bush havia representado um imenso trauma. Não obstante, por razões geoestratégicas óbvias e compreensíveis, grande parte da Europa manteve-se “amiga” da América, “malgré Bush”, esperando por melhores dias.

Por isso, foi com um imenso alívio que a Europa viu afastar-se qualquer hipótese de uma sua sucessão em moldes que pudessem reproduzir o modelo dos oito anos anteriores. Mesmo John McCain era, no campo republicano, um óbvio candidato anti-Bush.

Faço aqui um parêntesis para notar que o conceito de “Europa” que utilizo é um tanto arbitrário e só tem sentido se lido como uma perspetiva maioritária, daquilo que acaba por ter um impacto claro nas tomadas de posição comuns dentro da União Europeia. É que, como adiante veremos, uma parte dessa Europa esteve sempre relativamente confortável com George W. Bush. Às vezes esquece-se isto.

O fenómeno Obama, para além da sua importante dimensão intra-americana, foi um curioso espelho daquilo que, aparentemente, grande parte do mundo estava carente. A ideia parecia simples: se os EUA haviam agido por algum tempo como uma hiperpotência unilateralista, capaz de nos impor políticas de que abertamente não gostávamos, então, esse mesmo poder, se viesse a estar ao serviço de uma “política do bem”, acabaria por ir ser a “salvação” para os nossos problemas. Parte da Europa pensou assim. A inédita receção que Obama teve em Berlim pareceu a consagração disso mesmo.

A genialidade do discurso de Obama, a sua capacidade de renovar certas reservas de esperança que pareciam já esgotadas nas novas gerações europeias, constituiu um elemento interessantíssimo que permanecerá no “acquis” imaginário europeu, por muito tempo – qualquer que venha a ser o futuro efectivo do seu projeto. É que, com Obama, grande parte do mundo reconciliou-se, embora se não saiba por quanto tempo, com a América. E, nesse mundo, estava grande parte da Europa.

Permitam-me que volte um pouco atrás. Como poder europeu que também é – e há muita gente que não gosta da verdade segundo a qual a América é um poder europeu –, os Estados Unidos impõem-se, de há muito, no cenário estratégico do continente. Os Estados Unidos foram decisivos para a condução do continente durante todo o século XX e sabem bem que o seu peso, entre nós, vai muito para além do que alguns europeus gostariam que fosse.

Os EUA provaram já que podem contribuir, quando querem e sempre que podem, seja para a nossa união, seja para a nossa dissensão ou a nossa “balcanização” política. Ao estar a falar hoje aqui, precisamente ao lado da base das Lajes, julgo redundante estar a chamar a colação alguns exemplos históricos. Para exercer essa influência, os Estados Unidos contam com a curiosa circunstância de que, praticamente, cada país europeu olha para o “amigo americano”, para utilizar uma expressão do filme de Wim Wenders, de uma forma diversa, em função da sua história própria, do seu processo de relação passada e presente com a América, da sua agenda estratégica nacional, até, mais irracionalmente, dos seus afetos ou dos seus ódios.

Assim, e pelo efeito decisivo dos tempos que lhe eram imediatamente anteriores, a América de Obama trazia consigo um potencial de sedução muito forte. Num mundo marcado por uma grande angústia em relação ao seu futuro, julgo não ser de estranhar que uma mensagem de esperança e de confiança que era vista como genuína, alicerçada na maior potência mundial, tenha feito o seu caminho, com alguma facilidade.

A certa altura, o quase messianismo que se espalhou em torno de Barack Obama quase que me assustou. Não porque essa esperança não fosse um fator psicológico positivo, mobilizante, um saudável choque ético com repercussões à escala mundial, após anos marcados por imensas tensões e a predominância de algum cinismo e oportunismo. A minha preocupação, porém, tinha essencialmente a ver com a consciência de que a realidade acabaria por ser, sempre, muito menos simpática do que a ilusão que fora criada. Assim, porque essa mesma ilusão nunca está à altura das expectativas, o “regresso à terra” torna-se muito mais penoso.

Sem pretender, de forma alguma, desvalorizar o magnífico conjunto de iniciativas – em especial, na área internacional, que aqui me importa – que a administração Obama desencadeou, julgo que me acompanharão num juízo de razoabilidade que aponta para o facto de que a realidade está já, nos dias que correm, um tanto recuada face às expectativas da nova administração americana. A culpa – se, nestas coisas, se pode falar em “culpa” – reside na conjugação de uma multiplicidade de factores, que vão de elementos incontroláveis, em alguma “naiveté”, um excessivo voluntarismo e, muito provavelmente, numa auto-avaliação desproporcionada da própria capacidade operativa americana. Recuperar situações políticas e sócio-económicas, saber encontrar e pôr em prática com sustentabilidade soluções e modelos políticos duradouros, é uma tarefa muito mais difícil do que montar operações militares pontuais, atacar alvos, destruir inimigos. Os EUA estão habituados a ter notável sucesso nestas últimas mas, infelizmente, têm em “record” recente bem frágil nas primeiras. Julgo que seria penoso estar a elencar exemplos.

Para agravar este prelúdio de desilusão que, a meu ver, começa a tomar forma, existe um erro europeu de base. Em muitos setores europeus, há uma perceção equivocada sobre o modo como os EUA olham o continente e o mundo em geral.

Esse erro parte da ideia de que as diferenças entre um lado e o outro do Atlântico derivam apenas de agendas não coincidentes, de hierarquias de prioridade diferentes. Sem contestar que isso seja, por vezes, uma verdade, creio que o ponto essencial não está aí.

Os EUA olham a sua política externa sob um prisma moral, com uma dose de empenhamento nos seus objetivos que é quase religioso. Na sua perspetiva, os seus interesses, porque são interesses “do bem”, devem passar a ser lidos pelos seus aliados e amigos como interesses comuns. Tenho encontrado diplomatas de países europeus aliados dos EUA que ficam surpreendidos quando um interlocutor americano o pretende convencer de um caminho a seguir com o argumento de que esse é “o interesse americano”. Para um europeu, isso parece arrogância. Às vezes é, mas às vezes não. O interlocutor americano acha óbvio que, tratando-se de um interesse para o seu país, essa deve passar necessariamente a ser uma posição a ser defendida por um país aliado.

Para os europeus, todas as posições são mais relativas, mais matizadas, feitas de “realpolitik”, de acomodação, de uma mescla de interesses e princípios, frequentemente com assumida hipocrisia no tratamento destes últimos, com vista a acomodar os primeiros. Como a Europa não tem, necessariamente, a certeza messiânica de estar do lado “do bem”, acaba também por ter mais “jogo de cintura” para lidar com os que possam estar do outro lado. Às vezes, explicar isto a um americano é difícil.

É desse contraste de olhares que resulta, por vezes, a reação surpreendida da Europa face ao que considera poder ser alguma “naiveté” americana, cuja absolutização de finalidades traz frequentemente agregada uma matriz de imposição pela força dessa vontade, numa espécie de permanente “cruzada”.

Esta modulação de visões não abandonou a América, só porque Obama passou a ser presidente. A América não deixou de acreditar que, em princípio, tem razão nas opções que toma e procura impor, mas terá percebido que tem algum interesse em ter o mundo consigo.

Alguém me dizia ontem, numa conversa, que um dos maiores choques com que certos observadores internos da realidade americana se confrontaram foi com a noção de que, tendo os Estados quase todo o mundo a seu lado no dia seguinte ao 11 de Setembro, desperdiçaram, ingloriamente e em poucos anos, todo esse capital de simpatia e solidariedade, colocando contra si boa parte do mundo, graças ao modo arrogante como pretenderam condicionar tudo e todos. E essa atitude tem um nome: administração Bush.

A administração Obama deu sinais claros de ter percebido esse erro e, desde o início, procurou alterar a rota da atitude americana. O seu discurso foi claro e foi muito bem acolhido. De uma forma talvez mais pronunciada do que em qualquer momento de um passado recente, Washington decidiu levar a cabo um repensar completo de toda a sua filosofia de acção externa, avaliando opções tomadas no antecedente, em matéria militar, diplomática e até de instrumentos do direito internacional. Foi um exercício solitário, bastante mais longo do que seria expectável, o que só prova a sua seriedade.

Durante semanas, teve graça falar com as chancelarias europeias: estavam todas “à espera” da América… Os diálogos com os americanos eram surrealistas: Médio Oriente? “Estamos a rever as políticas” – e o Quarteto parava de tocar. Afeganistão: “Estamos a avaliar” - e a NATO esperava para decidir…

Uma pergunta que, por humor, cheguei a colocar foi: “ E nós, União Europeia, também estamos incluídos nesse empreendimento revisionista?” Muitos acharam que isso não tinha sentido: nós somos aliados, quase “taken for granted” perante grande parte das políticas de Washington, as relações conosco não precisam de revisão. E, no entanto, explícita ou implicitamente, alguma coisa mudou também para nós e isso terá a ver, com certeza, com o modo como esta nova América olha hoje a realidade europeia.

Embora possa vir a ter perante a Europa uma atitude diferente, há que constatar que nada indica que esta América a veja de forma muito diversa da administração Bush. Por uma razão muito simples: porque a Europa que a América tem perante si é, basicamente, a mesma. Ora os EUA, se bem que tenham perfeita consciência de terem, no espaço europeu, alguns aliados seguros para a consecução de muitos dos seus principais objetivos à escala global, têm hoje uma aproximação muito realista do que esses aliados representam, na prática. Sabem, por exemplo, que salvo situações conjunturais muito específicas, a União Europeia, enquanto tal e por um prazo de tempo que está por determinar, ainda é uma estrutura predominantemente declaratória. As coisas sérias, as que exigem compromissos militares, essas coisas fazem-se através da NATO.

Não se peça, assim, que sejam os Estados Unidos a acreditar numa política externa europeia comum, quando são os próprios europeus que, ainda hoje, alimentam por todo o lado muito sérias reticências sobre a capacidade da máquina que a senhora Ashton tem em construção. Seria estultícia pedir aos outros para acreditarem em nós, quando ainda temos mais dúvidas que certezas.

Ora os Estados Unidos são tudo menos cegos: quando observam a Europa, sabem que os seus principais Estados, numa escala global, são meros poderes médios, mas que, deste lado do Atlântico, se esforçam por fazer o papel de “grandes”. E notam que esses Estados, na sua ânsia de afirmação e de estatuto, pretendem garantir ou obter a sua consagração, individualizada e autónoma, no quadro das instituições globais, contradizendo, na prática, qualquer vocação de expressão política coletiva, através de uma União Europeia que dizem querer reforçar. Esses Estado estão muito longe de se contentarem em ser meros parceiros de valor e peso idêntico aos restantes. Para utilizar uma frase histórica, os EUA já perceberam que na Europa, há quem queira “to punch above its weight”. E que esses parceiros desejam poder contar com a ajuda de Washington para perpetuar esse estatuto.

Mas os Estados Unidos sabem também que uma outra parte da União Europeia olha para a própria organização como ela é, de facto, por ora é: como um mero “soft power”. Há países, desde lado do Atlântico, que, estribados nas duras lições que aprenderam na Guerra Fria, têm consciência que, se acaso novas tensões emergirem do lado russo, o único poder com capacidade decisória – e que “means business” – a que, pelo menos teoricamente, será possível apelarem são os EUA, nomeadamente através da NATO.

Esta importância que a Europa se dá a si própria, e que deseja ver reconhecida pelo EUA, confronta-se com realidades muito concretas.

Washington não necessita hoje da União Europeia para lidar com a Rússia. Se, ao tempo da Guerra Fria, Washington podia contar, quase sempre, com a Europa comunitária para acomodar as tropas diplomáticas e legitimar as suas iniciativas autónomas no confronto Leste-Oeste, desta vez, há por este lado do Atlântico “várias Europas” na maneira de olhar a Rússia. E isso como que desvaloriza o papel da Europa.

Os Estados Unidos terão igualmente interiorizado que as tensões da Guerra Fria, se não desapareceram por completo, mudaram hoje de qualidade. E, por isso, perceberam que dar a mão a uma afirmação de prestígio da Rússia lhes pode trazer fortes dividendos e que pode ajudar a reduzir potenciais tensões. Mas, ao “resolver” bilateralmente o seu possível problema russo, os EUA desencadeiam duas consequências.

Por um lado, tornam dispensável um esforço de mobilização dos seus outrora principais parceiros europeus. A União Europeia, porque não constitui, em si, qualquer problema para os EUA e porque não tem hoje qualquer utilidade operativa no quadro relacionamento americano com Moscovo, sente-se assim “orfã” do interesse de Washington.

Neste quadro, a “special relationship” com o Reino Unido deixou de ser vista, pelo menos por ora, como o braço necessário de controlo americano do processo europeu. A sempre esforçada singularidade da posição francesa parece hoje tornar indiferente a América, ironicamente num tempo em que Paris tentou uma simbólica mudança de atitude, através do regresso à estrutura militar integrada da NATO. Finalmente, a Alemanha, fruto de toda esta conjuntura mas igualmente de uma sua recente e drástica evolução interna, deixou de ser um aliado com a importância tradicional que teve.

A outra consequência tem a ver com a “nova Europa”, para utilizar um conceito que nos coube da pesada herança do sr. Rumsfelt. Essa Europa, que tanto deve à persistência histórica da América a sua libertação da tutela de Moscovo, cuja entrada na União Europeia foi por si saudada, cuja entrada na NATO foi por si promovida – essa Europa sente-se hoje algo desiludida e perplexa. Essa é uma Europa que vive muito uma antiga e quase idiosincrátrica obsessão anti-russa, que assistiu ao que se passou na Geórgia, que viu Obama desistir facilmente do escudo anti-míssil que Bush lhe tinha prometido, que sentiu a diluição da pressão para um futuro alargamento da NATO à Geórgia e à Ucrânia. Como se lhe não bastasse estar a sofrer um escasso entusiasmo, e até irritação, por parte de muitos dos seus parceiros da UE, em face das sua preocupações de segurança e de afirmação identitária relativamente a Moscovo, essa Europa começa a sentir-se como que “traída” com a condescendência da nova administração americana para com os seus contrapartes russos.

Em todo este contexto, note-se que a Europa tem sempre presentes duas evidências.

A primeira é que não tem qualquer hipótese de, no âmbito da sua ação externa, poder impor internacionalmente, com um mínimo de eficácia, a sua agenda ética de valores, que se esforça por consensualizar laboriosamente no seu seio, se não puder contar, a seu lado, com uns Estados Unidos abertamente empenhados na promoção desse mesmo conjunto de valores.

A segunda, que é cumulativa com a anterior, é a constatação de que, para levar a cabo linhas consequentes de acção à escala global, nas condições de legitimidade operativa que a si própria se impõe, necessita de poder servir-se da utilização de instrumentos de natureza multilateral – leia-se, Nações Unidas, onde a boa-vontade americana se torna, em absoluto, essencial.

Quero com isto dizer que a Europa está, goste ou não se goste de assumi-lo, refém dos EUA na sua expressão no quadro global. E que, neste quadro, projeta uma imagem que talvez não seja a mais prestigiante. É que se a Europa, para utilizar a expressão de Hubert Védrine, olhava em tempos para os Estados Unidos como a “hiperpotência”, acho que Washington, de forma bem realista, olha para a União Europeia de hoje como uma verdadeira “hiper-impotência”. A sensação com que se fica é que, na perspetiva americana, a União Europeia, enquanto expressão externa de poder, mais não é senão a média aritmética, caso a caso, de uma eventual posição comum das principais diplomacias europeias, a que os restantes membros do clube, na maioria das vezes, não podem fugir, por tropismo grupal ou por ausência de interesses próprios que justifique um ato de dessolidarização.

Ora aquilo de que os EUA necessitam dos seus aliados europeus situa-se noutra escala de preocupações estratégicas: está na participação em operações à escalas global, com vista a afrontar os desafios de segurança que a sua cadeia nacional de valores impõe como prioritária, como é o caso do Afeganistão. E isso faz-se através da participação de cada Estado, no âmbito da NATO. Quero com isto dizer muito claramente, para Washington, a União Europeia não é, por ora, um parceiro operativo, credível e em cuja capacidade de decisão vislumbre um mínimo de eficácia.

Noto que, com exceção do caso russo e do Afeganistão, quase não referi outras temáticas de interesse internacional onde os interesses europeus e americanos podem cruzar-se ou separar-se: Irão, Turquia, Balcãs, Médio Oriente e, em áreas temáticas, a não-proliferação nuclear, as questões ambientais, o comércio internacional, etc. E alguns outros poderiam ser citados.

Com variações, constatamos que, nestas como em outras áreas há frequentemente sinais de divergências, formas diferenciadas de acentuação, prioridades não homólogas, modos de atuar menos homogéneos. Com toda a franqueza, devo dizer que não me parece, contudo, que estejamos perante dossiês que se constituam como perigosamente conflituantes. Os Estados Unidos são o mais velho amigo da Europa. Os seus valores e os seus princípio cruzam-se e, as mais das vezes, somam-se. Na minha perspectiva, a existência de uma Administração Obama é um fator positivo para que isso continue a acontecer.