22 de dezembro de 2008

O Brasil e a Língua Portuguesa

O debate em torno das virtualidades do novo Acordo Ortográfico, que em Portugal mobilizou diversos sectores, teve uma expressão diferente na opinião pública brasileira. Para a maioria dentre os poucos que, no Brasil, se pronunciaram sobre o Acordo, o novo normativo linguístico é irrelevante, por entenderem que a língua que se fala do outro lado do Atlântico dificilmente se sentirá limitada na sua própria dinâmica.

Este sentimento coloca-nos o problema de saber se, ao enveredarmos por introduzir, na escrita em Portugal, as alterações decorrentes do Acordo, não estaremos a dar um passo desnecessário, dado que o Brasil pode rapidamente vir a colocar-se para além de tudo quanto agora possamos fazer para nos aproximarmos dele em matéria de grafia.

Julgo que ninguém terá uma resposta satisfatória para esta angústia, mas o debate só ganhará se reflectirmos um pouco mais sobre o modo como o Brasil olha hoje para a língua portuguesa e, em especial, sobre como ela se insere na sua matriz cultural.

A independência do Brasil, em 1822, não significou a descolonização das mentalidades do novo país. Os padrões e os gostos culturais europeus continuaram dominantes, a linguagem escrita e falada pelos sectores sociais elevados permaneceu muito próxima da de Portugal, com a sua adopção a manter-se como um factor de prestígio para quantos aspiravam à ascensão dentro da nova ordem nacional.

Este estado de coisas começou a mudar já no século XX. Em 1911, e no tocante à língua, Portugal introduziu unilateralmente uma reforma ortográfica, assumindo-se como liderança na evolução do padrão linguístico do Português. A partir dos anos 20, impulsionada pelo seu movimento modernista, começou a gerar-se no Brasil uma revolta contra a prevalência da cultura de origem europeia, numa acção favorável à identificação de uma “brasilidade” onde pudessem já estar representados sectores marginalizados da sociedade, cujas expressões culturais o Brasil-colónia tinha abafado desde sempre –negros, índios e populações rurais miscigenadas. Alguns intelectuais, em especial marcados pelo marxismo, deram substância ideológica a este esforço de “descolonização cultural”, a qual não raramente acabou por ter laivos de alguma lusofobia.

Neste ambiente de nacionalismo cultural, o Português falado no Brasil não passou impune. Alguma escrita literária abriu-se a um vocabulário que ia já muito para além do “Português de Coimbra”, para uma maior absorção escrita de expressões da oralidade, a uma mais alargada representação da diversidade linguística nacional, quer nativa, quer induzida pelas novas levas de imigração – que começavam a ter consequências bem audíveis na própria evolução fonética do Português brasileiro.

Nesse contexto, não será de estranhar que a sociedade política brasileira se sentisse motivada, já nos anos 40, a não dar sequência legal àquilo que os seus académicos tentaram então acordar com Lisboa, como forma de reaproximar o Português de ambos os lados do Atlântico. É que, para muitos brasileiros, o Português contemporâneo confunde-se com a língua que escrevem e falam, pelo que olham as variantes de Portugal e do resto do mundo lusófono como curiosas e bizarras derivas, seja no “sotaque português”, seja na “estranha” linguagem escrita que é utilizada fora do seu país. O padrão seguido pelo Museu da Língua Portuguesa, em S. Paulo, criado há poucos anos, é bem demonstrativo dessa completa apropriação do Português pela norma brasileira. Alguns, mais radicais, vão mesmo mais longe e propõem que se passe a utilizar a expressão “Brasileiro” para se qualificar o Português que 194 milhões de pessoas falam no Brasil.

É este o cenário de fundo que nunca pode ser perdido de vista quando ponderamos o interesse em se utilizar o Acordo Ortográfico como derradeiro instrumento estratégico para travar uma ainda maior divergência futura entre as normas do Português escrito contemporâneo. O novo Acordo pode não ser suficiente para evitar, em absoluto, esse afastamento, mas é conforme com a particular responsabilidade que compete a Portugal em evitar que ele se torne cada vez maior.

Publicado no nº 300 da revista "Tempo Livre", do INATEL

13 de dezembro de 2008

Um Brasil com Energia

A crise económica internacional parece poder vir a trazer um tempo novo no debate energético no Brasil, levando a uma revisitação do papel futuro dos seus vários componentes.

O processo de crescimento da economia brasileira, que até agora vinha ter uma linearidade que a maioria dos observadores considerava como óbvia, apontava para a importância do Brasil se dotar, até 2011, de uma matriz de fornecimento energético capaz de corresponder àquilo que se desenhava como uma procura potencial mínima. A questão está em saber se os efeitos da actual crise internacional no Brasil poderão agora, ou não, conduzir a reduções de crescimento que atrasem a data dessa pressão de procura.

No combinado brasileiro de fontes energéticas, o petróleo apareceu sempre com um papel central. As recentes e sucessivas descobertas de campos petrolíferos vinham a gerar um entusiasmo que, em certos meios, chegou a suscitar significativos reflexos nacionalistas. O Brasil parecia já à porta da OPEP e capaz de poder vir a utilizar os futuros recursos para induzir impactos em áreas internas vitais, como a educação ou a saúde. Para alguns observadores menos avisados, as vantagens potenciais das descobertas de petróleo no “pré-sal” (alta profundidade) pareceram feitas à luz das projecções decorrentes dos recentes preços que o crude estava a ter no mercado internacional. Dessas contas estiveram, muitas vezes, ausentes duas considerações fundamentais: a constatação de que o preço do mercado poderia vir a cair, como caiu, e uma realista avaliação dos maiores custos que uma exploração em profundidade sempre acarreta, com natural compressão de lucros abaixo de certo nível de preços, mas sempre com a necessidade de injecção de capitais que dificilmente podem ser gerados no próprio mercado financeiro brasileiro.

Esta avaliação oficial dos impactos das novas descobertas petrolíferas, no que toca à eventual nova engenharia institucional a manter ou a criar para os explorar, suscitou, entretanto, um interessante debate interno, para o qual foram convocados modelos de exploração e gestão com sucesso no campo internacional, como foi o caso da Noruega. A grande experiência e qualificação técnicas que o Brasil de há muito detém nesta área parecem garantir, sem sobressaltos maiores, decisões oficiais futuras muito ponderadas e responsáveis neste domínio.

No quadro de avaliação de necessidades energéticas tem vindo a tornar-se muito importante a questão do gás natural, que decisões com cerca de uma década tornaram um elemento central no apoio ao consumo em diversas áreas do país, de que o Estado de S. Paulo é o caso mais marcante. O conflito havido com a Bolívia sobre os preços do gás terá feito perceber ao Brasil, com uma brutalidade quase chocante, que se torna estrategicamente decisivo acelerar a exploração própria de gás, existente em abudância na bacia de Santos, evitando prolongar uma dependência arriscada. Mas, também aqui, serão também necessários tempo e recursos.

A geração hídrica permanece muito importante em todo o território brasileiro e não apenas pelos títulos que a questão de Itaipu suscita com regularidade, em face das renovadas reivindicações paraguaias. Com efeito, o fantástico mapa de recursos hídricos do Brasil oferece potencialidades de exploração que, praticamente, só parece poderem ser limitadas pelas fortes pressões dos lóbis ambientais. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – o ambicioso programa de infra-estruturas que o Governo brasileiro tem em curso, de forma a procurar sustentar o crescimento e apoiar a base produtiva futura – tem em grande atenção este sector.

Menos activo tem estado o debate em torno da opção nuclear, por ora parente pobre no esforço de geração brasileiro. Porém, se se lerem com atenção certas tomadas de posição oficiais, fica-se com a sensação de que novas e importantes decisões virão ter lugar neste domínio, a prazo não muito distante, e que o “politicamente correcto”, perante as pressões da procura, dificilmente continuará a passar por aqui.

Restam os biocombustíveis. O debate internacional sobre os respectivos impactos no mercado dos produtos alimentares revelou um Brasil forte nas garantias que pode dar de que, a nível nacional, o problema o não afectará. Mas, para além dessa polémica, aliás longe de encerrada, o Brasil vai ter de observar com cuidado se a crise internacional virá a afectar ou não o calendário de incorporação de biocombustíveis que o mundo desenvolvido tinha previsto. Isso não deixará de ter impactos concretos no seu agronegócio, que parece apresentar já sinais de algumas disfunções.

Uma nota final para referir que, num quadro onde a abundância de recursos energéticos parece confortável, se compreende que haja uma atenção menos concentrada noutras fontes de energia – eólica, fotovoltáica ou de ondas.

Em todo o contexto que referi, há alguns interesses portugueses a considerar, através de empresas nacionais já com participação interessante no mercado. Há que acompanhar estes casos de sucesso e procurar garantir que operações futuras de outros operadores, noutras áreas, ainda que de menor vulto, possam reforçar a nossa presença no mercado brasileiro da energia. É que, como hoje se torna evidente, muito do futuro do Brasil passará inevitavelmente por aí e nós queremos estar nele.

(Publicado no "Diário Económico", em 13.12.08)

9 de dezembro de 2008

Tanto mar?

Um fim de tarde de 1989, com o sol a pôr-se ao fundo da montanha, encontrou-me na praça central de Ouro Preto. Olhando em volta, entre a rua Direita e a do Ouvidor, apercebi-me, pela primeira vez, que uma parte de nós mesmos, dos portugueses, ficou para sempre por ali, por mais cantado que agora seja o sotaque, por muito distante que o nosso próprio mundo agora possa estar. Essa imagem ficou-me gravada na memória e atravessou comigo os anos. 

Passou-se mais de década e meia antes de eu regressar ao Brasil e antes de perceber – de novo no casario de Ouro Preto, mas também no silêncio nobre de Alcântara, no bulício africano do Pelourinho de Salvador ou nas esquinas apressadas do centro do Rio – que, verdadeiramente, só se pode entender bem o que Portugal é, e não apenas o que Portugal foi, depois de mergulhar no Brasil.

A comoção de entrar no forte Príncipe da Beira, de tropeçar nos nossos vestígios em Nova Mazagão, de lembrar os Açores em Ribeirão da Ilha, de ficar esmagado pela monumentalidade do Real Gabinete do Rio, de fixar a decadência serena da Beneficência Portuguesa em Belém, de sentir o cheiro forte das lojas de tudo, frente ao mercado de Manaus – tudo isso é preciso para que se prolongue em nós a interrogação, sem resposta, sobre o que é, afinal, ser português no mundo. Não se é português porque se nasceu em Portugal. É-se português pelo somatório das viagens que outros fizeram por nós, dos que foram e voltaram cheios de histórias mitificadas das Pasárgas que poderiam ter tido, mas também dos que não voltaram, dos que “queimaram as caravelas” e se entregaram aos novos mundos que fizeram seus.

O Brasil é o nosso álbum de memórias de um passado que é deles – não foram os nossos antepassados que colonizaram o Brasil, foram os antepassados dos brasileiros –, mas no qual não conseguimos deixar de nos sentir eternos figurantes no cenário de fundo. Às vezes, nessas encruzilhadas de paisagem que nos acordam um Portugal que, afinal, nunca conhecemos, foge-nos o pé patriótico para a tentação nostálgica da glorificação da gesta conquistadora, sem nos apercebermos que a face verdadeira da nossa glória, mais do que o saldo complexo da aventura colonial, está bem mais próxima de nós, está aqui nesta página, está nesta língua que nos une e cujas diferenças muito humanamente nos separam.

Ao longo de quase quatro anos no Brasil, coloquei sempre duas questões a mim mesmo: o que é hoje o Brasil para Portugal? E Portugal para o Brasil? Não sei se obtive ou obterei alguma vez a verdadeira resposta, mas ouso arriscar a minha.

No imaginário tradicional português, a independência do Brasil permanece como que se uma “jangada de pedra” se tivesse um dia afastado, num arroubo de um príncipe que transpirou a vontade de muitos, nela criando uma nação que éramos nós em sorridente, com mais música e alegria e com riqueza fácil à mão.

Os “brasis” foram sempre uma espécie de miragem para quem, em Portugal, sentia a aventura nas veias, para quantos, por ambição ou angústia, se decidiam a partir, muitas vezes sem o saber, para sempre. Para os portugueses, o Brasil era um destino muito diferente do de África, era mais acolhedor, menos perigoso e misterioso, algo mais próximo. Do outro lado do Atlântico, todos encontrariam um primo, uma afeição, uma hipótese para refazer a vida. Os que voltavam, traziam consigo como que um estranho vírus tropical de afectividade, um jeito informal e bizarro, uma forma de estar a que, por vezes, se associava uma ideia de inconstância ou de ligeireza. Mas o Brasil foi e permaneceu sempre, no sentimento profundo de muito portugueses, o último reduto da esperança, na busca por um melhor destino ou na luta pela liberdade. Ou um mero local de refúgio, a fronteira limite de uma mudança, como a casa de um familiar que nos acolhe numa crise de vida.

Pelo Brasil, durante largas décadas, muitos e muitos milhares de portugueses fizeram um trabalho árduo, geraram riquezas, às vezes para si próprios, quase sempre constituíram famílias que os “abrasileiraram”, foram leais a quem os acolheu bem, tornaram-se brasileiros de coração. Mas sempre cuidaram em guardar a memória dos vilarejos pobres de onde haviam partido e em alimentar, à sua maneira, o orgulho do país de que, sem o saberem, foram sempre os mais lídimos embaixadores. Por aqui ergueram instituições magníficas, deram lições de solidariedade e, na sua esmagadora maioria, tornaram a palavra seriedade como sinónimo de ser português no Brasil. E esse seu patriotismo sem baias levou a que, ironicamente, muitos acabassem por se identificar com o regime que, em Portugal, lhes não soube dar condições para poderem exercer esse direito natural que é cada um poder construir uma vida decente e próspera, sem ter, necessariamente, de sair do lugar onde nasceu.

Com o tempo, o Brasil mais verdadeiro, já não o Brasil virtual levado pelos “torna-viagem”, foi-se aproximando de Portugal e a sua imagem tornou-se-nos mais nítida: com a sua música eterna como fundo, servida por um “português com açúcar”, consumíamos as latas da goiabada e as resmas de “Cruzeiros” e “Manchetes” que os primos nos mandavam pelos natais. Nas suas páginas, como nos cantos do Juca Chaves e, mais tarde, do Chico Buarque, fomos aprendendo que, afinal, também por lá havia “amigos da onça”…

Amado, Veríssimo, Bandeira, Vinícius e tantos outros fizeram parte do mundo íntimo de muitos de nós. As novelas ensinaram-nos, com espanto, que o brasileiro também chorava – nem sempre sorria, nem tudo era carnaval e futebol. E percebemos melhor porquê, com a face patibular da ditadura militar a trazer-nos os exilados que encontrávamos por noites de Lisboa, onde vinham partilhar os cravos da festa do nosso contentamento. Com a liberdade já a passar por aqui, o Brasil foi-se definindo melhor aos nossos olhos – um país ambicioso, optimista, sempre “cordial” para quem lhe falava na língua quase comum. E, a cumular tudo isso, uma sociedade que procurou o caminho da reconciliação consigo própria, transformando-se numa democracia plena, que a atenuação das desigualdades reforça no dia-a-dia.

A prosperidade de uns tempos felizes trouxe os portugueses para as praias do Nordeste, onde aprenderam a apreciar a amenidade das gentes e se deliciaram com a descoberta de um “país sempre em férias”. Outros, mais engravatados nos negócios da modernidade, davam bom uso aqui aos capitais do novo ouro europeu, surpreendendo quem julgava que o português era prisioneiro eterno do bigode, do jeito fadista ou da postura seráfica, oscilando entre o bacalhau e a sardinha.

É que o imaginário do Brasil construiu-nos, pelos tempos, à semelhança de um imigrante-cliché, eternamente fixado na simplicidade do seu passado, rígido nos modos, linear na expressão, caricatura posta a jeito para a anedota fácil. Temos que saber entender que a “anedota do português”, quase sempre uma benigna erupção de alergia anti-colonial, é também, muitas vezes, um sintoma remanescente de alguma lusofobia, essa doença infantil da brasilidade que se espalhou por todo o século XIX e que parece ter deixado ainda uma marca residual em alguns sectores académicos e sociais contemporâneos. 

Com o seu mundo a mudar, o brasileiro mudou-se para o mundo e arribou a Portugal em doses maciças, desaguando num país do tamanho de Pernambuco e com a população do Paraná. A crise dos dentistas havia revelado que algum Brasil nos sentia ingratos. Sou dos que entendem que a onda recente de brasileiros, esse teste definitivo à nossa apregoada tolerância, pode dar sangue novo às nossas relações e contribuir para que, no Brasil, a imagem de Portugal se cole mais ao país que hoje realmente somos, um retrato eventualmente não tão inocente e bastante mais real, do que temos de bom e de mau. E com o turismo, que agora é também a partir de cá, a aproveitar a imensidão de voos da TAP, quero crer que os brasileiros vão, em poucos anos, entender o que nós já sabemos por aqui de há muito – que é possível estar no estrangeiro sem, verdadeiramente, deixar de nos sentirmos em casa.

Mas, também do nosso lado, Portugal vai ter de aprender alguma coisa mais. Vai ter de perceber, de uma vez por todas, que a sua relação com o Brasil tem uma assimetria inescapável e eterna. Para nós, o Brasil “é” português, é uma “criação” nossa e, por isso, crises à parte, ser pró-brasileiro em Portugal é a opção mais natural e óbvia, salvo na mediocridade xenófoba e minoritária de alguns “pixadores” anónimos dos muros da nossa própria imagem. 

Ora o Brasil é muito mais do que o que Portugal por aqui deixou, é uma sociedade onde africanos, alemães, japoneses, árabes, italianos e tantos outros se projectaram e ajudaram a construir um fantástico país, no qual livremente cultivam, sem qualquer pressão uniformizadora, as suas memórias e tradições. Por essa razão, porque não têm galos de Barcelos ou caravelas quinhentistas na sala, nada os obriga a reverenciar uma “terrinha” de onde não vieram os seus antepassados, de onde talvez só apreciem o bolinho de bacalhau ou o pastel de Belém, lugar de Lisboa que aliás não sabem muito bem onde fica – no que estão no seu pleníssimo direito. Por isso, quando a grande maioria de nós, portugueses, se junta a amigos brasileiros para apoiar, sem hesitação, o “escrete canarinho”, durante as “copas” por esse mundo fora, não devemos esperar uma retribuição idêntica. Temos de acordar para a realidade de que, em Blumenau, é a selecção alemã a escolhida ou que, na Móoca paulistana, a squadra azzura terá sempre preferência, pelo que a sorte do “time” português lhes será provavelmente indiferente, em especial depois da saída de Felipão.

Quem, em Portugal, não entender isto, não vai conseguir entender nunca o Brasil. O que não significa que nos não reste ainda muito em comum, a começar pela tolerância que permite esta sã convivência de culturas e pessoas – essa sim, uma das duas valiosas heranças que por aqui deixámos. A outra é a língua, soando diferente aos ouvidos, mas que liga ambos os países a outros continentes e que se procura agora evitar que se afaste na sua forma escrita, para melhor nos servir na nossa afirmação individual e colectiva pelo mundo.

Termino com duas constatações que são hoje as mais óbvias das ideias que formei no Brasil.

A primeira é que ter sido diplomata português no Brasil foi um privilégio que não trocaria por nenhuma outra experiência.

A segunda é que Chico Burque não tem razão: já não há 'tanto mar' a separar o Brasil de Portugal.

1 de dezembro de 2008

A independência de Portugal hoje

Há cerca de 40 anos, numa aula no então Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, cometi a ousadia de perguntar ao professor Adriano Moreira se, no prazo de algumas décadas, ele visualizava a possibilidade de Angola e Moçambique virem a ser países independentes. A pergunta estava longe de ser inocente e a almofada temporal que eu nela usava era apenas uma forma de adocicar uma questão que sabia ser altamente provocatória. O professor Adriano Moreira foi, como sempre, muito inteligente na resposta e disse-me que, se eu fosse capaz de definir o que o conceito de independência poderia significar, a essas décadas de distância, ele teria o maior dos gostos de me dar a sua opinião. Eu não sabia – ou não fui capaz de descortinar uma contra-resposta rápida – e a coisa ficou por aí.

O aspecto hábil da resposta escondia, contudo, um elemento muito verdadeiro – a questão do conteúdo da ideia de independência. E isso ajuda-me a introduzir o tema que gostaria de lhes trazer aqui hoje.
Faz hoje 368 anos, um grupo de nobres portugueses, cansados do modo como o corte madrilena tratava a aristocracia lusitana no quadro da nobreza ibérica, e aproveitando a atenção prioritária que Castela dedicava então a dissidências na Catalunha, desencadeou um golpe de Estado e colocou um dos seus no poder. Alguns historiadores pouco propensos à glorificação dos actos colocam ênfase menos no patriotismo e mais no sentido prático dos nobres envolvidos na conjura, que se sentiriam prejudicados nos seus interesses pela lógica de distribuição de poder por parte de Madrid. Quaisquer que tenham sido as motivações do acto, a verdade é que o momento terá sido muito bem medido, em termos de avaliação da relação de forças, o que é provado pelo facto de, não obstante tentativas posteriores de retomada de controlo por parte de Castela, ter sido possível assegurar, em permanência, a independência formal de Portugal a partir de então, pondo fim a um período de 60 anos de tutela espanhola.

Portugal era um país independente desde o século XII e esse é um facto que, associado à quase constância histórica das nossas fronteiras, nos traz um grande orgulho e que sempre afirmamos aos estrangeiros com alguma vaidade. Mas se olharmos para História com alguma atenção – e eu não sou um historiador, quero deixar bem claro –, torna-se evidente que a independência de que Portugal desfrutou teve características que variaram muito ao longo do tempo e das circunstâncias.

Independências

A independência que Afonso Henriques assegurou junto do Papa é muito diferente da independência que dom João tinha perante os ingleses, quando veio para o Brasil há 200 anos, como esta é diferente da que hoje possuímos no quadro da União Europeia.

Por isso, vale a pena interrogarmo-nos: a independência é um valor em si ou é um atributo meramente instrumental? O que é que liga, na História, estas diferentes independências? E, já agora, Portugal é hoje um país independente?

No plano dos princípios – ou mesmo da etimologia – ser independente é não ser dependente. Mas será que os Estados Unidos não são altamente dependentes do petróleo do Médio Oriente? No plano mais formal, poderemos dizer que é independente um país que tem possibilidade de afirmar a sua identidade política perante outros e que, para manutenção dessa identidade, não precisa da tutela alheia. Daí que talvez valha a pena perguntar: a República turca de Chipre Norte é um Estado independente, quando apenas a Turquia a reconhece? A Ossétia do Sul e a Abcásia são países independentes, quando necessitam da tutela de Moscovo para se manterem formalmente como tal? Aliás, por aquelas bandas, lembram-se certamente da famosa Comunidade de Estados Independentes (CEI), criada efemeramente após a implosão da União Soviética. A maioria desses Estados achou que tinha de ser mesmo independente e rapidamente esqueceu tal Comunidade. E pode ser-se independente dentro de uma Comunidade? Lá iremos…

Um interessante caso de transição é o Kosovo, que foi uma província da Sérvia até que a Comunidade internacional o colocou numa espécie de limbo, quase semelhante a outros Estados e regiões sob tutela que surgiram no século XX. O Kosovo declarou a sua independência e esta tem vindo a ser reconhecida, quase a conta-gotas, precisamente pela mesma Comunidade internacional que havia decidido que o seu estatuto futuro teria de ser decidido de outra forma.

No passado, o reconhecimento da independência dos Estados começou por ser papal, depois passou, na prática, a ser feito pelos outros Estados, em especial pelos mais poderosos. Hoje, o reconhecimento deriva dessa entidade difusa que é a Comunidade internacional, o que significa um misto do reconhecimento pelos restantes Estados e pela estrutura que os congrega no plano multilateral – as Nações Unidas. Mas tendo sido embaixador junto das Nações Unidas, posso assegurar-lhes que por lá andam muitos países, com direito de voto na Assembleia Geral igual ao dos Estados Unidos ou da China, que de independentes só têm o nome…

E Portugal – para voltarmos ao âmago desta conversa – é hoje um país independente? Portugal perdeu independência quando perdeu o seu império colonial? Portugal é menos independente desde que é membro da União Europeia? E a França? E a Alemanha? São menos independentes desde que fazem parte da União Europeia?

O conceito de independência traz consigo a questão simbólica do reconhecimento do Estado. Sem querer enveredar pelo Direito Internacional, mas exclusivamente pela dimensão cultural e política da questão, eu diria que um Estado independente é aquele cuja população vive sob a mesma bandeira e numa mesma unidade política – internamente gerida da forma que quiser. Muitas vezes, como é o nosso caso, essa independência acarreta o peso de uma longa Historia, de uma identidade que favorece o auto-reconhecimento colectivo dos seus cidadãos, tendo uma língua e cultura comuns. Portugal está perfeito nesse retrato, como perfeita estaria a nação curda se a deixassem organizar como Estado – diga-se de passagem.

Somos independentes?

Mas somos, de facto, independentes? Algum país o será?

Economicamente, estamos longe de o ser. Dependemos do investimento estrangeiro, dos mercados externos para os nossos produtos, da energia estrangeira e dos produtos importados para o nosso consumo e equipamento. Estamos hoje na moeda única, não podemos fazer desvalorizações para promover exportações, não temos autonomia para decidir o nível das taxas de juros praticadas pelos nossos bancos. Mas o que teria acontecido a Portugal se, perante o recente deslizar das contas públicas para financiar o bem-estar, não estivéssemos protegidos pela protecção do “euro”?

Em matéria de defesa, se fôssemos alvo de um ataque externo, que hipóteses teríamos de reagir? As mesmas que tivemos na Índia. Isto é, nenhumas. E politicamente? Integrados no bloco ocidental, membros da NATO e da União Europeia, o que aconteceria a Portugal se acaso decidisse apoiar causas internacionais impopulares?

Mas, por outro lado, como teria sido possível promover a causa timorense, bloqueando, por anos, os acordos entre a União Europeia e a Asean, para isolar a Indonésia, se não estivéssemos nas Comunidades Europeias? E que hipóteses teríamos de ser os promotores da Parceria Estratégica entre a União Europeia e o Brasil e, dessa forma, mostrarmos o nosso peso na reorientação da política exterior europeia?

Confesso que, com o decorrer dos anos, e não obstante ter um grande orgulho histórico nas raízes da nossa independência – e esta ser, provavelmente, das poucas coisas pela qual me vejo a arriscar a vida – associo-a hoje a uma visão bastante mais pragmática. A independência é-nos útil para aculturar um projecto comum, assente em alguns pontos de consenso nacional e para garantir a preservação daquilo que, em cada momento, são os interesses que consensualmente entendemos dever defender.

Os interesses portugueses

Mas os interesses não são nem foram sempre os mesmos. Num passado não muito distante, esses interesses eram identificados com a preservação das colónias, das possessões ultramarinas ou do ultramar – só para utilizar três formulações que o regime caído em 25 de Abril de 1974 usou em momentos distintos. Ora o império foi-se com os ventos da História mas a nossa sabedoria – a sabedoria do nosso regime democrático português, sublinhe-se – foi capaz, depois de um longo e laborioso processo, de recuperar os traumas provocados por uma descolonização que só teve de ser apressada porque foi tardia. E é importante que se diga – porque alguns teimam em esquecê-lo – que a política colonial portuguesa, desde a Índia aos três teatros de guerra que tivemos em África no século XX, nos criou um ambiente de má-vontade internacional que demorou décadas a superar.

Hoje as coisas evoluíram, como evoluíram os protagonistas desses conflitos. Estamos com os países africanos que falam português a trabalhar no quadro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em temas em que o Brasil está cada vez mais presente. Mas alguém terá a coragem para dizer que houve alguma virtualidade em ter mantido uma guerra de 13 anos em Angola ou de 10 em Moçambique e na Guiné? A nossa independência passava por aí? Ou não passa muito mais pelo entendimento fraterno que hoje estamos a desenvolver e que poderia ter começado a gerar-se mais cedo, se uma solução negociada tivesse sido assumida como possível, desde a década de 50?

Sei que este é um terreno polémico, mas há que dizer que os interesses de Portugal, como nação independente, assentam hoje nesta magnífica capacidade de nos termos sabido reconciliar connosco mesmos, neste sentido de descoberta de um novo destino, que pode não ser tão glorioso e heróico à luz das epopeias históricas, mas que é singelamente útil a todos nós. Esse destino é saber aproveitar a democracia, a liberdade, o usufruto da nossa cultura e a nossa inata capacidade para nos relacionarmos com todos.

O mundo multilateral

Perguntar-se-ão alguns se, ao entregarmos alguma gestão do quotidiano aos braços das instituições internacionais em que participamos, não estará a nossa independência em risco. Em minha opinião, o actual quadro de inserção de Portugal na ordem internacional, podendo formalmente aparecer como beliscando um tradicional conceito de independência, e mesmo como gerador de novas dependências, é aquele que melhor serve os interesses do nosso país. Senão vejamos alguns exemplos.

Em matéria de defesa e segurança, e tendo em atenção a nossa insuperável debilidade, a pertença a uma organização de defesa colectiva – como é a NATO – que tem no seu cerne a preeminência dos interesses dos Estados que a compõem e uma cultura de entendimento em torno de valores comuns, é a nossa única protecção eficaz no mundo de hoje. Independência no seio da NATO impõe, contudo, que saibamos posicionar-nos de forma a preservar os paradigmas fundamentais que fizeram o sucesso da organização, adaptando-os às novas realidades em termos de ameaças, mas evitando tentações de extrapolação de objectivos que podem pôr em causa a sua própria identidade.

Numa outra área, como é a segurança pública, atento o carácter transversal da criminalidade e das novas ameaças, julgo evidente que só uma participação activa e cooperante num quadro internacional alargado tem condições de nos dar o mínimo de capacidade para a preservação dos nossos interesses. Mas ser independente no quadro dessa política é, da mesma forma, ter a coragem de carrear para o debate europeu as temáticas da luta contra a intolerância, o racismo e a xenofobia, a necessidade de respeito pelo Direitos Humanos, de atenção às minorias, de defesa de políticas migratórias sãs e solidárias.

Em matéria de integração política, económica e social, por determinantes geográficas e económicas, a pertença à União Europeia é a melhor garantia de que os nossos cidadãos têm o usufruto de um espaço comum para a sua realização, marcado por uma cultura democrática, de defesa de liberdades e como fonte de progresso e desenvolvimento. A Europa comunitária é um pólo de estabilidade no mundo mas, no seu seio, devemos sempre lutar pela adopção de uma visão aberta e cooperativa com áreas like-minded, como é geralmente o caso dos Estados Unidos e da América Latina.

Por razões óbvias, e para um país como Portugal, ter uma voz independente na definição da política externa da União Europeia significa também, por exemplo, lutar para definir uma estratégia solidária para a África e para a América Latina, ajudar a desenhar rotas para a paz e segurança nas várias regiões do mundo e garantir que a Europa se mantém na linha da frente dos processos multilaterais de ajuda ao desenvolvimento.

Em termos da promoção de valores à escala global, e para além de trabalhar para a respectiva aculturação no quadro da União Europeia, importa destacar que Portugal dispõe hoje de uma posição altamente confortável no quadro das Nações Unidas. Aí somos vistos como um poder moderado e moderador, com importantes laços com África, com um registo muito positivo de diálogo com o mundo árabe, com um excelente relacionamento com a América Latina, com um património histórico de prestígio em muitos lugares do globo. Quando fui embaixador na ONU, pude testemunhar esse imenso capital de simpatia de que o Portugal democrático hoje dispõe no quadro internacional, não obstante termos meios económicos muito limitados para sustentar de forma significativa políticas activas de cooperação e ajuda ao desenvolvimento. Portugal é visto, no quadro mundial hoje, um soft power que – acreditem! – joga numa divisão acima daquela que o seu peso demográfico e económico justificariam, com uma capacidade de interlocução muito superior a países mais ricos da nossa dimensão.
Será que isto não reforça a nossa independência? Ou será que éramos mais independentes quando vivíamos acantonados pelo mundo nas organizações internacionais e “orgulhosamente sós” contra a História?

Por que razão isso acontece hoje? Isso é produto de estarmos fixados no imaginário do mundo como um país com uma longa história, com interesses materiais limitados, mas com uma projecção cultural muito interessante – que a expansão da língua portuguesa tenderá sempre a potenciar. O grande desafio que se nos coloca é sabermos utilizar este poder cultural e humano que fomos criando, não obstantes alguns recuos históricos, para, em conjunto com aqueles Estados e povos que nos acompanham nos mesmos terrenos, construir uma mais alargada identidade colectiva à escala global. E o Brasil é, sem a menor dúvida, o parceiro nº 1 para essa nova aventura. Essa é, nos dias de hoje, a chave para afirmar um voz portuguesa própria no cenário internacional. À luz dos interesses que, nos dias de hoje, nos compete defender, essa é a chave da nossa verdadeira independência.

Texto baseado na intervenção proferida no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, em 1 de dezembro de 2008

24 de novembro de 2008

Jogos Africanos

Foi com muito gosto que aceitei o convite que o Jaime Nogueira Pinto me fez para apresentar este seu livro.


Porém, antes de falar no livro, quero fazer duas breves declarações de interesses.


A primeira, e para quem se possa surpreender pela minha presença nesta ocasião, é para dizer que sou amigo do Jaime há quase 36 anos, desde os tempos em que ambos fizemos serviço militar juntos. E que, desde então, só tenho encontrado razões para o continuar a ser, cada vez mais.


A segunda é para reiterar o óbvio, porque, para certas pessoas, nem mesmo as coisas óbvias são sempre óbvias. O Jaime e eu somos, não só oriundos, mas também frequentadores empedernidos de famílias políticas muito diferentes. E, por essa razão, temos, em relação a muitas questões e pessoas, posições bem diversas. Porém, sempre soubemos, mesmo em momentos em que o ambiente exterior estava marcado por fortes tensões, preservar a nossa amizade e manter um relacionamento pessoal sem qualquer mácula.


O segredo disto é muito simples. É que, para além dessas divergências políticas, ambos estivemos sempre juntos em dois terrenos essenciais da vida. Por um lado, no terreno da ironia e do humor, no desprezo comum pelos que se arrastam por aí graves – “excessivement graves”, como diria o Steinbroken –, sem perceberem a graça de uma graça, encafuados nas trincheiras das suas ideologias. Por outro, porque ambos temos a certeza de que, cada um nós, a seu modo, sempre procurou e continua a procurar interpretar e defender o interesse de Portugal. Se a algumas pessoas isto não chega para justificar a minha presença aqui, o problema é apenas delas, não é nosso.


Mas basta de preâmbulos, e vamos aos “Jogos Africanos”, que é o que aqui nos traz hoje.

Para além do prazer que me deu o convite do Jaime, confesso que ele me surpreendeu. Não sou, decididamente, um especialista em política africana. Enfim, andei lá por África alguns anos, enterrei também por aí muitas ilusões, quer no período que passei em Luanda, nos tempos da guerra civil em Angola, quer nas muitas viagens que, mais tarde, fiz a vários países africanos. Mas estou muito longe de conhecer a África bem.


Olhei, assim, para este livro com um misto de perplexidade, ligado ao modo como o poderia abordar, mas também de grande curiosidade em tentar ver como o Jaime tinha posto no papel muito daquilo que, ao longo dos anos, me tinha falado sobre as suas aventuras africanas. E quero revelar desde já – e, neste caso, alerto para o facto de que a minha amizade não é para aqui chamada – que têm perante vós um livro magnífico, cheio de interesse histórico e que muito nos ajuda a perceber o que se passou e, também, o porquê do que não se passou e poderia ter passado.


Não sou um crítico, daqueles de colunazinha de jornal, com foto a três quartos, mas sei diferenciar um livro bem escrito de um “pastelão”. A escrita do Jaime é marcada por uma tensão que oscila entre a sedução por algum rendilhado cultural, com referências mais sentimentais do que pretendidamente eruditas, e um estilo enxuto, quase anglo-saxónico, “straight to the point”, que agarra o leitor pela objectividade. É essa dualidade, servida por um “Português de lei”, que torna os seus textos apelativos e de fácil apreensão.


Mas, como não sou crítico literário, como já disse, não excluo que essa possa ser a percepção de quem julga conhecer bem o Jaime, de quem acha que tem a chave do código de leitura dos seus textos, até porque já lhe ouvi muitas das histórias que ele agora pôs no papel. Uma coisa é clara: este é um livro que se lê de um fôlego. Tem momentos mais pausados, mais introspectivos, acelerando em outros tempos para um ritmo quase cinematográfico, que nos agarra e dá vontade, no final do capítulo, de ler o “à suivre”.


Nessas fases mais contemplativas, mais auto-definidoras, o Jaime projecta os seus sentimentos da época, enquadrados nas determinantes emocionais que motivaram as suas acções. Como forma de fugir a ter de enfrentar, na escrita, o dramatismo de algumas das situações que viveu, ele esconde-se em algumas notas com registo de humor, embora nós saibamos que, no momento dos factos, seria muito difícil ter essa abordagem tão “light” e que as coisas devem ter acabado por ser muito mais complicadas.


Curioso é o papel reservado à Maria José em todos os tempos em que é convocada no texto. Ela é uma espécie de âncora permanente, que não hesita nem vacila perante as situações. O Jaime e ela funcionam como uma entidade única, completa, mesmo nos períodos em que faziam, claramente, uma navegação à vista no seu percurso comum de vida. É muito bom ter assim alguém ao lado e transparece bem que o Jaime tem essa gratidão.


Como é sabido, temos pouca tradição em Portugal de bons livros de memórias. Às vezes, as memórias que por aí se publicam são meras tentativas de arredondar o lugar que se pretende ter na História, normalmente acabando apenas nos seus pés-de-página, quase sempre contando com a falta de memória dos outros.


O Jaime vai por outro caminho e rompe radicalmente com esse modelo de tentar edulcorar o passado. Ele expõe-se neste livro de uma forma que alguns poderão considerar quase excessiva, pelo facto de se colocar no centro de alguns jogos políticos que, à partida, estão muito longe de ser consensuais e que têm a polémica como uma resultante garantida. Como ele escreve no livro, com alguma indulgência mas também com alguma verdade, são memórias “mais difíceis e arriscadas de contar que de viver”.


O livro começa por uma espécie de explicação do envolvimento profundo do Jaime nas lides conservadoras. Aceitem-se ou não os pressupostos políticos desse envolvimento, é muito interessante ler a formação do espírito de um jovem nacionalista – com todos os seus mitos, as suas ingenuidades e a generosidade subjacente a quem foi levado a acreditar no “Portugal do Minho a Timor”.


Ao ler esta parte do livro vi, no espelho, muito do que se passava no outro lado, no lado onde eu me encontrava, artilhado com um arsenal de mitos radicalmente oposto.


O Jaime sai rápido dessa parte das suas memórias e eu, confesso, lamento que ele não tenha desenvolvido mais esse período. Percebo que ele quisesse entrar, tão breve quanto possível, nos tais “Jogos Africanos”, que são o “core” do livro, mas fica-nos a saber a pouco a ausência de referências aos anos subsequentes, aos períodos no Brasil, em Madrid e em todas suas paragens de exílio, de luta contra o MFA – o meu MFA - e contra a Revolução de Abril – que, com imenso gosto, ajudei a fazer. Espero por essas memórias, um dia!


Mas a Revolução dos Cravos, claro, não poderia passar impune no livro… Basta atentar para esta definição lapidar do período revolucionário: “um experimentalismo sistémico apoiado no pretorianismo acéfalo”. Não concordo nada, claro, mas acho imensa graça.


Mas eu diria que, mesmo assim, houve alguma evolução na revelação de percepções entre um anterior livro do Jaime, o “Portugal – os anos do fim”, e agora este, os “Jogos Africanos”.


O “Portugal – os anos do fim”, que muitos aqui devem ter lido, é um livro desencantado mas que eu me sinto no dever de revelar que, a muita gente de esquerda, à época, deu o imenso gozo, por, talvez involuntariamente, nos trazer também uma desmontagem do nosso próprio adversário político – da direita - feita por alguém que vinha desse mesmo mundo. No livro, o forte ataque à esquerda era já esperado, mas a desconstrução do regime e, em especial, do marcelismo foi, confesso, magnífica. Era um livro de alguém que teve então a coragem de olhar esse universo conservador lusitano por um prisma crítico bastante mais à direita que o “mainstream” desse mesmo mundo.


Neste livro que hoje aqui nos trás, os “Jogos Africanos”, o mundo conservador português é, apesar de tudo, um pouco melhor tratado, de forma bastante mais complacente, embora nele apareçam as tradicionais críticas que o Jaime faz a Sá Carneiro, pelas suas posições face à descolonização, e nele permaneçam resíduos de um certo desprezo pelo comportamento da burguesia e das classes médias. É que o Jaime, como resulta claro, não se libertou nunca de um nacionalismo revolucionário que é a sua marca de origem. Mas lá que se notam laivos de uma maior acomodação com a burguesia lusa, lá isso é verdade!


Mas o livro rapidamente nos reconduz a África. Primeiro é a África da experiência pessoal do Jaime, da ida para Angola, de tentar salvar as sobras do império, nesses dias de um fim anunciado. Depois é a saída para a Namíbia, para a África do Sul, o retrato das cumplicidades e dos portugueses em transe, nesses dias muito complicados para toda a gente. Repito, para toda a gente!


O texto leva-nos depois por uma análise muito detalhada sobre o fracasso que foram as operações sobre a Luanda onde estava o MPLA, vindas quer do Norte, quer do Sul, com testemunhos de figuras actuantes nos três palcos. Já conhecia relatos escritos dessas aventuras, alguns bem parciais, mas a forma como as coisas nos são apresentadas no livro dão-lhes harmonia e, em especial, contextualizam internacionalmente os factos de uma forma exemplar. Sabemos hoje o que veio a acontecer em Luanda, depois desses tempos. Mas talvez não nos fizesse mal interrogarmo-nos sobre o que poderia ter acontecido se Jonas Savimbi e Holden Roberto, acolitados como estavam, tivessem acabado por entrar juntos em Luanda. Deixo isto à imaginação de cada um.


É por aqui que entra um dos aspectos mais fascinantes deste livro, que é a ligação dos casos angolano e moçambicano ao “Great Game” do fim da Guerra Fria. O livro faz-nos o desenho da simplicidade estratégica, embora com grande eficácia, que marca a política da administração Reagan, na sua leitura do mundo, do papel da América nesse mundo e da instrumentalização de África para os seus interesses. A descrição que o Jaime faz do papel central de William Casey neste cenário é extraordinariamente revelador e, de certo modo, até nos ajuda a perceber melhor o que terá sido a célebre e contestada conversa que Casey teve com Bob Woodward, às vésperas da sua morte.


Neste livro, o conservadorismo americano revela-se no seu esplendor pragmático, na sua linearidade quase simplista – a qual, verdade seja, é sempre mais fácil de ter sucesso quando tem a servi-lo um poder político, económico e militar daquela dimensão. Eu, que não comungo minimamente do fascínio pela figura de Reagan, que muito boa gente alimenta, mesmo em certa esquerda, percebo que o conservadorismo e, em especial, o anti-comunismo tenham encontrado nele uma âncora prática para o objectivo estratégico de derrotar Moscovo e impor um certo Ocidente no mundo.


Mas o que é curioso, e que transparece do livro, é, apesar de tudo, a existência de um certo “fair play” de oportunidade entre Washington e Moscovo, favorecido naturalmente pela fragilidade criada pela já então anunciada implosão soviética. Fica-se com a sensação de que foi então possível encontrar um terreno de entendimento, ainda que forçado, que se projectou sobre os contendores no terreno, fossem eles os governos envolvidos, os movimentos que se lhes opunham ou mesmo a própria África do Sul.


No tocante a Pretória, o texto traz-nos uma muito curiosa análise da estratégia da África do Sul em alimentar uma instabilidade controlada na sua vizinhança, como forma de se sugerir, quase explicitamente, aos poderes ocidentais, como o pólo de estabilidade a apoiar. À África do Sul interessaria manter, por essas áreas, regimes hostis mas que lhe não fizessem correr riscos excessivos, contestados internamente por opositores pró-ocidentais que ela própria ia alimentando, mas cujas hipóteses de chegada ao poder pretendia remotas e geríveis. É que, se acaso esses grupos acabassem por ser governos pró-ocidentais em tais Estados, a reconhecida, e muito difícil de manter, singularidade do regime de Pretória iria perder utilidade, aos olhos do próprio mundo ocidental, e, por essa via, iria reduzir as hipóteses de garantir os apoios necessários à sua sobrevivência.


Neste mundo do conservadorismo militante e pensante, surge-nos então, no livro, a figura do “Cercle”, um clube conservador internacional onde, à volta de reuniões e jantares simpáticos, se vai discutindo o mundo através da janela direita da História.


Posso revelar-vos hoje que tive a triste sina de ser convidado de uma das reuniões do “Cercle”, onde acabei por ir substituir Jaime Gama num debate sobre a Presidência portuguesa da União Europeia, em 2000, muito centrado no famigerado caso do isolamento de Áustria, por virtude da entrada no respectivo Governo de um certo partido. Nem queiram saber o que foi ter de “levar na cabeça”, durante mais de uma hora de perguntas e respostas, com uma sala atulhada de conservadores, acusando-me das piores malfeitorias face aos “pobres” austríacos! Fiquei a conhecer bem o “Cercle”…


Nesse mesmo contexto, o Jaime surge-nos como uma espécie de charneira que ligou os mundos do conservadorismo europeu ao americano, ambos federados por um anti-comunismo que tentava salvar esse tal Ocidente. Com a modéstia de quem não pretende ser um especialista em antropologia do mundo conservador, eu seria tentado a dizer que, da análise que o Jaime faz a esses dois núcleos de ideias existentes dos dois lados do Atlântico, parece poder concluir-se que a vertente americana é muito mais objectiva e pragmática do que a sua congénere europeia. Esta última parece sempre vogar numa dimensão mais teórica e inofensiva, quase aristocrática.


Talvez por isso – mas esta é uma conclusão que reconheço como muito pessoal – a vertente americana, deixada à solta pelos novos equilíbrios mundiais e, até agora, titulada por um espécie de “genérico” de segunda classe da velha administração Reagan, nos tenha conduzido a todos, nos últimos anos, a algumas tragédias.


Mas regressemos ao texto e analisemos nele aquilo que nos surge como a diferença que sempre separa um livro académico de história contemporânea de uma verdadeira história vivida. Como na sociologia tradicional, o Jaime acaba por aparecer-nos como uma espécie de observador-participante de novo tipo, ao integrar um modelo de “diplomacia privada” que, só por si, mereceria um estudo académico próprio. O que ele e o Sean Cleary – o seu amigo sul-africano desta aventura – acabaram por fazer foi um trabalho rendilhado, marcado por uma imensa sabedoria. Mas o Jaime não se pretendia nenhum Ahtissari, a tentar fazer uma paz com uma honra, necessariamente equiparada, para os dois lados. Aliás, numa única e sintética frase, o Jaime explica de forma muito clara a razão da sua “biased” intervenção:


“As motivações tinham a ver com uma genérica causa anticomunista e também com a ideia de que, tendo estes povos caído sob o governo de regimes marxistas pela sua ligação a Lisboa na sequência das obras do PREC, do MFA e da esquerda unida, fazia sentido ajudá-los a libertarem-se.”


Nesta ajuda, como fica evidente, o Jaime toma claramente partido, tem interesses ideológicos próprios a salvaguardar, os quais, aliás, não esconde. Todos os actores dos processos devem ter percebido claramente isso, praticamente desde o princípio.


E aqui surge a surpresa. O curioso, mas também revelador do que a África é em termos de complexidade e da saudável ausência nela do simplismo redutor que um olhar europeu tenderia a privilegiar, foi o facto dessa mesma “diplomacia privada”, feita, declaradamente, em favor de um dos lados lado, ter começado a ganhar um espaço crescente no outro lado, abrindo ao Jaime e ao Sean Cleary uma capacidade de interlocução global que, à partida, era de todo impensável.


É neste exercício que o Jaime nos faz um retrato muito pessoal, mas sempre apoiado em factos sólidos e testemunhos relevantes, da evolução das diversas contribuições (alguns diriam, das ingerências) nos processos negociais ou para-negociais gizados com vista a obter a paz, quer em Angola quer em Moçambique. Do mesmo modo, o Jaime recorta muito bem os diversos actores locais com quem interage, governamentais ou não, situando-nos no quadro dos interesses ou das pressões que os motivam, dos papéis que mostram ser capazes de representar e, por vezes, dos cenários que eles mesmos desenham para qualificar a sua própria “performance”.


Porque estamos perante mundos nem sempre claros, onde se agitam serviços de “intelligence”, interesses económicos e motivações ideológicas, os vários figurantes locais não são facilmente tipificáveis. Eles oscilam, frequentemente, entre o exercício do papel que lhes compete na hierarquia das causas em que colaboram e a sedução, às vezes irresistível, pelos mundos exteriores que os solicitam. E o Jaime e o Sean Cleary utilizam isso com grande sofisticação, usando com maestria essas personalidades, curiosamente, como referi, situadas em ambos os lados do espectro político.


É um jogo fascinante, que o Jaime descreve de uma forma literariamente tão sedutora que, por vezes, somos tentados a esquecer que estamos perante jogos de morte a sério, que somos levados a relativizar, porque chamados a colocá-los num quadro estratégico de interesses globais, que parecem sempre sobredeterminantes e justificativos.


Um dos pontos mais curiosos de livro é o tratamento das figuras dos líderes da oposição angolana e moçambicana – Jonas Savimbi e Afonso Dhlakama.


Savimbi, a Unita e o teatro da Jamba, com o sinaleiro e tudo (que será feito do sinaleiro da Jamba?), aparecem, sem a menor dúvida, como as figuras centrais neste livro. O Jaime trabalha, de uma forma como eu nunca antes vi, o retrato psicológico do fenómeno UNITA, não escondendo o próprio jogo de ilusões em que ele próprio foi envolvido, a queda consciente numa espécie de assumido maniqueísmo, em que só se quer ver aquilo em que se acredita – numa lógica de “crer para ver”.


Ao atentar em muitas dessas descrições, em especial as dos “Jamba Tours” – e vejo por aqui alguns dos viajantes desses tempos –, senti-me um pouco do lado de lá do espelho, a pensar como, na esquerda, se funcionava da mesma forma, apagando, nos nossos destinos de “charme”, tudo quanto não ajudava ao quadro que já levávamos preparado de casa, recusando confrontar-nos com essa coisa incómoda que, por vezes, são os factos e atribuindo a sua contestável existência a meras deturpações de visão, seguramente induzidas pela perfídia do “outro lado”.


Um outro aspecto magnífico do livro é o modo como a figura de Jonas Savimbi se vai revelando perante nós, à medida que o Jaime nos fornece os sucessivos relatos e testemunhos sobre a pessoa. A sensação com que se fica é a de que o próprio autor, ao colocar esses dados à disponibilidade do leitor, como que quer revelar, implicitamente, que ele próprio evoluiu na leitura íntima que vai fazendo do líder da UNITA. E, a partir de certa altura, sem se afastar totalmente de Savimbi, e sem nos dar a ideia de que Savimbi se alheia também daquilo que ele próprio representa, sente-se que o Jaime sugere subtilmente estar a trilhar um caminho que conduz ao alargamento progressivo de uma distância entre os dois.


A explicação para isso aparece bem marcada temporalmente no livro, no episódio da morte de Tito Chingunji, em capítulo que tem o significativo título de “The magic was gone”. Ouçam isto:


“Este caso fez muito mal à UNITA e, para mim, marcou simbolicamente o fim de um certo charme, de uma cruzada alegre contra «os maus». A partir dali, a magia desaparecera e dera lugar a uma crua e dura realidade de luta pelo poder, mas onde, apesar de tudo, ainda éramos nós e eles. Por isso ficámos.”


Note-se que, na última frase desta citação, regressa, apesar de tudo, o Jaime da “realpolitik”, exactamente da mesma forma que sempre nos acontecia a nós, à esquerda.


Ao lado de Savimbi, Dhlakama não parece suscitar o mesmo entusiasmo, embora o tratamento simpático da sua personalidade revele algum carinho, que, no entanto, o situa num patamar muito diverso do do líder da oposição angolana . O Jaime esforça-se, aliás, por utilizar este livro para tentar afastar a imagem sinistra a que a acção militar da Renamo ficou ligada no imaginário de muitos, entre os quais eu próprio me incluo. Confesso que tenho as maiores dúvidas sobre a eficácia desta sua tentativa.


E, pronto, é isto que vos queria dizer, falando de alguns dos aspectos deste livro, dentre os muitos que me tocaram, mas que o tempo já não dá para desenvolver. Por isso, aqui termino, transmitindo ao Jaime o meu agradecimento pela ideia que teve de me convidar para apresentar este seu excelente livro e com o voto de que todos os aqui estão possam apreciar estes “Jogos Africanos”, pelo menos com tanto prazer como aquele que eu tive ao lê-los.


Texto lido na apresentação do livro "Jogos Africanos", de Jaime Nogueira Pinto, em Lisboa, em 24.11.08

3 de setembro de 2008

Águas passadas no DOC

O entusiasmo com que partira a caminho do DOC foi de tal forma afectado pelo choque da informação recebida que abrandei a velocidade e quase parei o carro. Um jantar no DOC, sem vinho?!

Pois era essa a proposta, nem mais nem menos: uma refeição de degustação, só com águas e total ausência de alcoóis. Confesso que a hipótese de desistir chegou a passar-me pela cabeça e que só o facto de haver um compromisso fixado com antecedência, e não querendo ofender o autor do alvitre – um arquitecto de “primeira água” –, fez com que a minha relutância fosse atenuada.

A imagem que eu mantinha do DOC era muito positiva, pela boa memória de uma visita passada. Críticas lidas ao longo do ano haviam-me alimentado o desejo de regressar e rever a cozinha de Rui Paula, que me diziam estar cada vez mais imaginativa, com uma rara sustentação de qualidade. Mas, tenho de confessar, desse desejo também fazia parte integrante a possibilidade de acompanhar a comida com algum ou alguns dos excelentes Douros que integram a magnífica lista de vinhos que o restaurante sempre apresenta.

O DOC tem uma situação privilegiada, na margem esquerda do Rio Douro, a meio desse percurso mágico que é a sinuosa estrada entre a Régua e o Pinhão, bordejada de vinhas e nomes de quintas, algumas a fazerem-nos recordar rótulos de belas produções vinícolas. O local é magnífico, em dia ameno pode-se utilizar o deck exterior. Dentro, telas de plasma na sala permitem seguir os trabalhos na cozinha, um exercício de transparência que nos aumenta a confiança. Uma área para amenizar a espera foi entretanto criada, com um piano a sugerir interessantes potencialidades e a assegurar que nunca o espaço virá a ser perturbado por uma qualquer “musak” ambiental. E, sobre tudo isso, a certeza de podermos beneficiar de um cenário deslumbrante, no centro de uma paisagem de uma serenidade única.

Tudo bem, tudo isso era verdade, mas a minha perplexidade mantinha-se. A ideia continuava a ser verdadeiramente bizarra: um jantar degustação, sem vinhos, só com águas?! Não sou fundamentalista, não sou um ansioso de vinho, passo imensos dias sem provar uma gota de álcool. Mas no DOC, no coração do Douro, um jantar sem vinho soava-me como que ofensivo a esses “montes pintados” que Araújo Correia nos descreveu.

Foi num misto de perplexidade e curiosidade, com a primeira a superar em muito a segunda, que entrei no restaurante. Ainda lancei, sem sucesso, a ideia de, pelo menos, “abrir” com um gin tónico, como que a criar lastro etílico para sustentar o que aí viria. Fui logo desiludido por vozes suavemente reprovadoras, que me alertaram para os riscos de afectação da pureza gustativa, a qual deveria ser mantida numa espécie de virgindade profiláctica, indispensável ao acolhimento dos gozos que se seguiriam.

E, pronto, lá fomos para a mesa, uma dúzia de convivas, a maioria desconhecidos, uns aparentemente mais convictos das virtualidades do exercício que outros – comigo, francamente, bem ancorado no campo dos últimos.

Tudo começou por um período inicial de carência psicológica, em que um ou outro lá ia recordando a falta do vinho à mesa. A sólida constatação de que o único líquido permitido seria a água provocou então graçolas nervosas, com os mais imaginativos a aventarem o recurso limite a uma “aguardente” ou a uma “água-pé”.

É que, de facto, eram as águas as rainhas da noite. Águas diferentes, umas lisas outras gasosas, umas mais “planas” outras mais “profundas”, algumas algo “agressivas”. Tivemos até o privilégio de provar umas nórdicas de belo design, mais frescas umas que outras. Sempre águas, claro! Apenas uma água era portuguesa e, para mim, totalmente desconhecida.

Durante o repasto, as águas sucediam-se, em copos diferentes, cada uma a acompanhar as (creio!) oito propostas gastronómicas, que não estavam sequer listadas à partida. Um simpático “expert” – reputado conhecedor de vinhos, imaginem! – procurava ajudar-nos a identificar, não apenas a singularidade de cada uma das águas experimentadas (sobre cujas qualidades comparadas alguns dos convivas já ousavam, a medo, “mandar bitaites”), mas igualmente a razão pela qual essa mesma água fora seleccionada para acompanhar tal prato, em função do seu potencial para combinar, por contraste ou complemento, o produto cozinhado.

E foi então que se foi passando essa coisa extraordinária que foi o facto de, sem disso termos real consciência, a ausência do vinho ter deixado praticamente de constituir tema da conversa, muito menos de qualquer angústia. A refeição, regada a águas, ia-se impondo naturalmente, perante o deslumbre dos sentidos, a variedade das escolhas propostas, a riqueza das combinações que nos eram oferecidas.

Duas evidências ficaram claras, na minha perspectiva.

A primeira foi o facto da ausência do vinho nos ter tornado, a todos, muito mais atentos aos sabores do que nos ia sendo apresentado, não nos “distraindo” da essência dos paladares, obrigando a que nos concentrássemos, de forma mais profunda, em cada componente do que nos era sugerido. Por mim, pude constatar que o vinho, em toda a sua imorredoura glória de factor criativo e de qualificador global do gosto, pode ter o “defeito” colateral de nos afastar do esforço de procura de construção/desconstrução do que estamos a saborear, da especificidade de um molho, da ténue diferença gustativa de um vegetal, da “nuance”, quase imperceptível, de um produto sujeito a um tratamento muito sofisticado. Digo isto porque, talvez pela primeira vez desde há muito, consegui descortinar e isolar, combinando-os depois muito melhor, os componentes que o Chefe ia indicando como constituintes das propostas gastronómicas que surgiam.

Quererei dizer, com isto, bem no coração deste nosso Douro, que o vinho passou a ser algo dispensável? Longe disso: o vinho é, cada vez mais, o grande “sublinhador” criativo dos paladares, o provocador de efeitos que se acrescentam aos alimentos e deles consegue extrair novos e decisivos matizes. E tem, além disso, uma importante carga eufórica, que excita as almas e alegra os tempos, particularmente se for de qualidade e se tomado com conta, peso e medida – e, claro, se as garrafas forem abertas com antecedência adequada e se servido à temperatura requerida.

Mas esta interessante experiência teve a virtualidade de nos mostrar que, numa refeição, há mais vida para além do vinho, se bem que a vida e a refeição sejam sempre muito boas com ele à frente.

Uma segunda constatação também se impõe: a virtualidade desta prova, sem o recurso ao complemento do vinho, só teve o sucesso que teve pelo facto de ter sido apoiada na qualidade excepcional de todos os pratos apresentados, que a ausência do álcool permitiu que ganhassem autonomia própria, deixando-os “brilhar” por si mesmos. E foi a circunstância dessa qualidade nunca ter decaído ao longo do jantar, de prato para prato, que conseguiu garantir um apego contínuo e sustentado do nosso paladar àquilo que íamos degustando, sem fazer ressaltar a “saudade” do travo adjectivo do vinho. Com uma refeição banal, por melhores que fossem as águas, tudo não teria passado de uma grande “seca”… E eu, tenho de admitir, fui menos capaz do que outros companheiros desta agradável jornada de ser sensível a algumas características específicas que eram atribuídas e identificadas em cada uma das águas provadas.

Dito isto, vamos ao principal: Rui Paula provou-me definitivamente, nesta memorável noite, que é hoje um dos chefes portugueses com maior criatividade, que consegue aliar a sofisticação de uma cozinha contemporânea de grande nível e excelente apresentação com algumas notas de rodapé gustativo, em que faz orgulhosa questão de trazer-nos à lembrança sabores regionais, na maioria dos casos tipicamente nortenhos, umas vezes de forma subliminar, outras de modo plenamente assumido. Rui Paula consegue assim demonstrar-nos – e entendo que outros deveriam aprender com isso – que o cosmopolitismo sofisticado de uma cozinha não é incompatível com o recurso a citações sensoriais ligadas às raízes geográficas de onde se opera. Pelo contrário, a originalidade do que nos propõe no DOC só ganha com a chamada à mesa desses mesmos elementos.

Num circo, trabalhar sem rede é um risco que enobrece a arte. Num restaurante, ousar um menu sem o recurso ao complemento de vinhos será talvez a prova mais provada de que a grande gastronomia também se constrói na autoconfiança e na certeza de que a qualidade se imporá sempre por si própria. Quando exista no trabalho de um grande Chefe, como é o caso de Rui Paula.

A boa disposição com que saí deste exercício – que, a bem dizer, deveria ter o “mecenato” da Brigada de Trânsito da GNR – leva-me a ecoar a já célebre frase de um velho oficial de Marinha, pouco navegado nas especificidades da gramática, que a nossa História acolheu como uma patética anedota política, quando um dia quis qualificar uma sua qualquer alegria pública: “só tenho um ‘adjectivo’ para expressar o que hoje aqui senti: gostei!”.