12 de maio de 1999

A Europa e a política externa portuguesa


O tema que nos propomos abordar é o modo como a política externa portuguesa é hoje atravessada pela nossa presença na União Europeia e, em particular, tentar reflectir sobre a forma como este novo vínculo estruturante da nossa presença internacional se projecta, seja no nosso processo nacional de decisão com incidência externa, seja na própria definição das nossas opções políticas no contexto mundial.

Julgamos que este esforço de análise é particularmente oportuno no tempo acelerado de mudança que atravessamos no quadro europeu e que se repercute, de forma clara, na gestão da máquina diplomática portuguesa em que temos alguma conjuntural responsabilidade.

Com efeito, parece-nos importante que procuremos perceber se o lugar de Portugal no mundo se alterou significativamente com a pertença às instituições europeias ou se, pelo contrário, o nosso actual enquadramento no projecto de integração do continente representou, na prática, apenas o estabelecimento de um palco novo para os vectores centrais da nossa diplomacia, mas nada mudando, de essencial, no nosso projecto estratégico de afirmação como Estado.

Esta questão está longe de ser meramente académica, porque toca de perto com a rede de leituras da própria ideia que cada um faz do país e do seu destino, pelo que, muito frequentemente, tem inescapáveis ressaibos ideológicos que não facilitam uma análise serena. O que a seguir direi parte, naturalmente, da assunção desse risco e da plena consciência de que o que vou dizer está longe de ser neutral.

Como tese de partida, começaria por referir que entendo que a perda da dimensão colonial veio introduzir, nas últimas décadas, um elemento de ruptura decisiva no horizonte estratégico português, com implicações directas no quadro referencial da nossa política externa.

Praticamente com excepção do período da Segunda Guerra mundial - e, mesmo neste caso, a doutrina não é de todo pacífica -, e até ao termo do processo descolonizador, a dimensão colonial terá estado presente em todas as grandes opções diplomáticas portuguesas, desde há séculos, condicionando quase sempre a política de alianças do país, nomeadamente no plano europeu.

Porém, no presente século, devido à inegável fragilidade política e económica do nosso país no quadro internacional, fragilidade essa agravada pela circunstância de Portugal ter passado a estar em dessintonia com o caminho favorável à autodeterminação dos anos 50 e 60, eu arriscaria dizer que o elemento colonial acabou por nunca se assumir, na época contemporânea, como um factor dinâmico no plano da nossa afirmação internacional.

Quero com isto dizer que entendo, nomeadamente, que as colónias portuguesas em África raramente funcionaram como um instrumento activo da prática externa do país, nomeadamente no âmbito do próprio continente africano, mas, bem pelo contrário, acabaram por sobredeterminar toda a própria acção governativa do então Portugal europeu, obrigado a um reajustamento penoso no seu quadro bilateral.

Portugal viveu, assim, com o seu quadro estratégico marcado pela sombra constrangente da questão colonial e, por um conjunto de razões cumulativas, foi historicamente perdendo a possibilidade de impor a evolução dessas mesmas colónias como um instrumento decisivo da sua própria projecção internacional, como outros colonizadores souberam fazer em tempo oportuno.

Esta circunstância agravou-se, naturalmente, com a incapacidade revelada pelo regime anterior de se ligar a um processo de transição que, de alguma forma, salvaguardasse uma significativa influência de Portugal junto dos novos países saídos da sua tutela colonial. Os conflitos militares entretanto gerados, e a circunstância dos movimentos independentistas terem acabado por mobilizar em seu favor significativas faixas internacionais de opinião, que contribuíram para o crescente isolamento do país, trouxeram mesmo um custo político acrescido no plano bilateral e multilateral que condicionou decisivamente todo o quadro da actividade diplomática portuguesa.

Esta referência à dimensão colonial parece-me importante para explicar um pouco o que se lhe seguiu e o modo como o fim desse ciclo fixou novos elementos ao quadro de prioridades internacionais do nosso país. Na realidade, é como sucedâneo deste enquadramento nada favorável que, após a Revolução de 1974, vemos a acção externa portuguesa a sofrer uma rápida reconversão, muitas das vezes quase que inflectindo caricaturalmente o anterior estado de coisas - como se viu em algum afã nas relações com os países do Centro e Leste europeu, com os países africanos e com o mundo árabe, para além de um certo deslumbramento no plano multilateral, em especial no quadro das Nações Unidas.

Nesse primeiro tempo, Portugal procurou colmatar o tempo perdido junto de áreas do mundo de que se alienara com a imagem colonial mais recente. O êxito desse empreendimento foi, curiosamente, bastante maior junto do resto do mundo do que o que iria ter, durante alguns anos, junto das próprias antigas colónias, com algumas das quais a normalização no relacionamento se processou através de crises prolongadas, embora naturais.

Ao tempo, a diplomacia portuguesa tentou gizar uma nova rede de cooperação económica e de entendimento político, estimulada pela boa vontade internacional que o novo regime granjeara, em especial com a disponibilidade descolonizadora da Revolução. Algum voluntarismo ideológico procurou mesmo recentrar os eixos tradicionais de afirmação estratégica do país, numa linha “middle of the road” no quadro internacional, que, sem alienar formalmente os laços ocidentais, situasse o “novo” Portugal num terreno de entendimento, e mesmo de alguma cumplicidade operativa, com países situados fora desse enquadramento. Foi o tempo da deriva dita “terceiro-mundista” que marcou um período importante após 1974.

Sucedendo temporalmente a esse movimento, e como fruto da esperança posta pelo mundo ocidental na estabilização democrática do país e nas possibilidades da sua ancoragem a um modelo aberto de sociedade, veio a estabelecer-se uma crescente aproximação ou reaproximação aos Estados europeus, numa linha evolutiva que prolongou o percurso que já havia levado Portugal à EFTA e que, nas novas condições, pode entender-se como tendo estado na origem do subsequente processo de adesão à então CEE.

Para o que aqui nos interessa, a questão está em saber quais eram então, um pouco à luz desta nova conjuntura, aquelas que poderiam ser identificadas como as grandes linhas determinantes da acção externa do país.

Repare-se que, nesse tempo de 1986, estamos num momento de estabilização do nosso quadro de acção diplomática, que conjuga vertentes tradicionais, grande parte fruto de determinantes geopolíticas históricas de vária origem, com novas dimensões que resultam da evolução mais recente do país no cenário internacional.

Não quero entrar aqui em pormenor num terreno que, sendo aparentemente pacífico, tem mais alçapões do que à primeira vista pode parecer. Vou-me atrever, no entanto, a tentar isolar algumas dimensões que, ao tempo da nossa entrada para a então CEE, poderiam ser consideradas como caracterizadoras dos principais eixos da nossa acção externa.

Assim, referiria, embora sem qualquer preocupação de hierarquização, algumas áreas de referência:

A ligação crescente com as instituições de integração europeia, bem como o decorrente incremento do relacionamento bilateral com os países integrantes da então CEE;

O novo tipo de relacionamento com os países da África lusófona, com incidências claras no posicionamento multilateral no quadro da ajuda pública ao desenvolvimento, e a gestão do um inédito tecido de, também novas, relações bilaterais no restante contexto africano;

A assunção do apoio à luta pela auto-determinação do povo de Timor Leste como uma responsabilidade nacional portuguesa;

A fixação de modelos de protecção e promoção das Comunidades Portuguesas no exterior, em muitos dos casos ligados à gestão dos diferentes quadros de relações bilaterais;

A afirmação e a promoção da Língua e da Cultura portuguesas no mundo, nomeadamente através de uma articulação funcional e de uma progressiva acção institucional integrada com os países que têm o Português como idioma oficial;

A promoção dos interesses económicos portugueses no quadro externo, bem como a captação do investimento directo estrangeiro;

A especificidade do relacionamento com o Brasil e os laços tradicionais, de natureza histórica e cultural, com o resto da América Latina;

O contínuo empenhamento na dimensão transatlântica, nomeadamente no quadro da Aliança Atlântica e nas relações com os EUA e Canadá;

O novo posicionamento no quadro multilateral internacional, fruto da abertura pós-colonial e da assunção de uma linha de defesa dos valores democráticos, do respeito pelo Estado de Direito e da gestação progressiva de uma muito especial filosofia de promoção dos direitos humanos;

As relações, de matriz predominantemente histórica e cultural, com algumas áreas da Ásia e, dentro dela, a particular gestão do binómio Macau-China;

A aproximação com a então URSS e com os países do Centro e Leste europeu, com expressão prática mais imediata a nível económico;

O aprofundamento das relações bilaterais com os países árabes e a construção de uma, até aí inexistente, vertente mediterrânica da política externa portuguesa.

Embora com o carácter limitado e arbitrário de selecção que lhe está subjacente, tenho a consciência que se trata de temas que, independentemente de fazerem parte do discurso recorrente de todos os protagonistas da vida política portuguesa nos últimos anos, não têm para todos eles, convém assumi-lo, uma priorização consensual.

Com efeito, na ênfase dada a algumas destas vertentes, há um mundo de ambiguidades que seria falsa inocência esquecer. A política externa portuguesa está longe de ser o mundo consensual que, por vezes, se quer afirmar e, se procurarmos bem, ela é palco de interpretações muito mais diversas do que se pode julgar. Basta pensar na atitude assumida no auge de algumas crises, que ainda vivemos, para concluirmos que não estamos perante um terreno político pacificamente unívoco.

É, no entanto, no reforço de uma das dimensões que antes citei - o relacionamento com as instituições comunitárias - que a Europa passa a aparecer de forma mais visível a partir da década de 70 e, com mais óbvia incidência, a partir de 1986. O próprio retomar do tecido europeu de relações bilaterais que o tempo colonial recente havia afectado acaba por se ressentir positivamente deste novo quadro. Porque tem uma vocação estruturante muito própria, progressivamente reforçada no plano político-diplomático e na acção económica externa, a Europa comunitária começa a funcionar, a partir de então, como um cenário de projecção de todas as restantes dimensões sectoriais.

A grande, e provavelmente a mais original, característica do modelo de integração europeia, é exactamente essa virtualidade de se ter constituído como um processo federador da diversidade diplomática dos Estados membros, precisamente porque esta mesma diversidade assenta numa lógica comum de interesses e de valores, que, à partida, não deve excluir qualquer das dimensões da política externa dos Estados membros que com ela seja coerente e compatível.

Mas o processo europeu - que, como referi, é em si mesmo estruturante - é também ele próprio gerador de uma dinâmica política que se reflecte sobre todos os Estados membros que o compõem e acaba por se projectar sobre as várias políticas nacionais e fazer partilhar estas de um novo horizonte estratégico comum de interesses. Resta apenas saber se como valor acrescentado ou se como factor limitador.

E aqui a doutrina divide-se, tanto mais que é claro que os efeitos desta nova matriz se não distribuem uniformemente entre os vários Estados membros.

Para alguns, a política europeia, nomeadamente as decorrências da aplicação e funcionamento da Política Externa e de Segurança Comum (PESC), acaba por subalternizar algumas dimensões nacionais em presença, pela vocação hegemonizante de um discurso diplomático de cariz universalista e, a prazo mais ou menos longo, tende a introduzir uma matriz dominante que descaracteriza as linhas autónomas da diplomacia dos Estados membros. Este efeito é mais visível nos Estados mais débeis no campo de afirmação externa, seja por se limitarem a uma rede periférica de objectivos sem expressão na vontade comum europeia, seja por não possuírem uma estrutura autónoma de interesses suficientemente sólida para suportar a pressão da harmonização.

Para esta leitura, para além da PESC ser uma espécie de baixo denominador comum diplomático, que acaba frequentemente por ser um exercício de retórica declaratória, o dia-a-dia demonstra que as grandes prioridades dos Estados membros mais poderosos tendem frequentemente a impor-se aos restantes e isso só não acontece mais pelo facto de, não raramente, se verificarem contradições bloqueantes entre esses mesmos Estados. A deriva para o “directório” seria, assim, cada vez mais inevitável e a introdução das votações por maioria qualificada, no quadro das novas “estratégias comuns” da PESC, tenderia ainda a agravar este cenário. Retomando um clássico que não está na moda, eu diria que essa visão tende a considerar que a União funciona como o conselho de administração dos interesses comuns dos países dominantes na Europa.

Uma segunda escola entende, contudo, que é precisamente o contrário que sucede. A circunstância de ficar ligado a um elemento propulsor de maior solidez e coerência, suportado por uma força política e económica em crescente afirmação como é a União Europeia, é um factor que vai em reforço da visibilidade das dimensões externas específicas daqueles países que, autonomamente, não teriam essa força e, se compagináveis com essa doutrina comum, as perspectivas nacionais próprias encontram, assim, um elemento de apoio suplementar e uma garantia de amplificação dos respectivos interesses. Além disso, para Estados membros que, pela sua agenda histórica de interesses, não têm tradicionalmente uma vocação de afirmação diplomática de dimensão mundial, a participação na PESC acaba por constituir, bem pelo contrário, a abertura de horizontes novos na sua acção externa e um factor de dinamização da sua própria administração diplomática nacional.

Onde é que está a verdade em tudo isto ?

Como sempre, não está necessariamente apenas num dos lados, e refiro-o em função da nossa própria experiência, embora me incline a pensar que grande parte dessa mesma verdade estará nesta última escola de pensamento.

De facto, e se olharmos para o caso português, eu penso que é óbvio que aquilo que podemos designar como as grandes linhas caracterizadoras da política externa antes de 1986 ficaram, no essencial, protegidas pelo processo de integração e conseguiram mesmo, por seu intermédio, uma importância e uma expressão que dificilmente teriam condições de obter autonomamente.

Talvez valha a pena fazer uma ronda por alguns desses temas, na ordem anteriormente referida, para tornar isto numa evidência.

Começando pelo quadro bilateral europeu, eu diria que este sofreu, com o ingresso de Portugal nas instâncias comunitárias, uma evolução muito particular. Sem prejuízo de algumas relações especiais por razões de natureza geopolítica, cultural ou derivada da presença de comunidades portuguesas, pode dizer-se que a matriz comunitária passou a regular muito do que, no passado, era tratado nesse relacionamento Estado a Estado. Isso poderá conduzir, aliás, a termos de repensar, mais cedo ou mais tarde, o próprio tecido diplomático português no espaço que é hoje a União Europeia e que, a meu ver, deve forçosamente ir no sentido de um esforço de algum “downsizing”, que sei ser pouco popular nas Necessidades.

Mas é óbvio que algum espaço específico continua a existir ainda no quadro bilateral europeu. Sem menosprezar a importância de outros relacionamentos bilaterais, eu julgo ser de destacar, por significativo, o caso espanhol. A memória dos povos é normalmente muito curta, mas, se todos fizermos um breve exercício de reflexão, talvez se torne evidente que o relacionamento entre Portugal e a Espanha, com todo o seu histórico de encontros e desencontros, passou decisivamente a um tempo novo desde a nossa comum entrada para a CEE.

Na perspectiva “aljubarroteana” de alguns, isso foi péssimo, porque terá descurado as defesas tradicionais daquilo que elegiam como a matriz identificadora do país na ordem externa próxima. O mundo, porém, não pode continuar a ser modelado por fantasmas e aqueles que entendem imprescindíveis trincheiras materiais e culturais para preservar a nossa especificidade no contexto peninsular mais não fazem do que revelar a sua descrença na existência de uma sólida singularidade específica que nos identifica como povo, desde há oito séculos, e que, desde sempre, só se reforça quando posto à prova do confronto aberto.

Lisboa e Madrid vivem hoje num estado de entendimento que protege os seus interesses mútuos, nomeadamente no plano europeu, numa saudável vida competitiva no seio de um mercado interno que contribui para estimular os seus factores de afirmação económica e, o que não é menos importante, dispõem agora de um terreno de sereno debate das pontuais e inevitáveis dificuldades bilaterais, sob um quadro referencial de matriz europeia mutuamente aceite. Não hesito em afirmar que, se tivesse que identificar o domínio da nossa política externa que mais beneficiou com a integração europeia, a minha escolha seria o relacionamento entre Portugal e a Espanha.

Também com África as coisas são bastante diferentes desde a integração comunitária, e isto não obstante ter havido, como disse, a necessidade de proceder, nuns casos com maior dificuldade que noutros, a um diluir de alguns traumas que a ruptura colonial originou. Portugal tem sido um constante e activo defensor dos interesses dos “países menos avançados”, de que fazem parte todos os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), no quadro da Convenção de Lomé e de outras instâncias de natureza multilateral, garantindo-se nomeadamente aos Estados emergentes das suas antigas colónias como um permanente advogado dos seus interesses em Bruxelas e na projecção da ajuda comunitária nos contextos regionais em que se inserem. Aliás, a nossa própria ajuda ao desenvolvimento bilateral, nomeadamente aquela que se expressa através das Organizações Não Governamentais, tem, como se sabe, beneficiado de forma clara do enquadramento comunitário.

Eu diria que, não fora a circunstância de se viver um momento de alguma indecisão quanto a caminhos futuros, no seio da comunidade internacional, no tocante às orientação da política de ajuda ao desenvolvimento, o impulso comunitário poderia dar a Portugal uma dimensão europeia na acção junto dos diversos PALOP ainda bastante mais pronunciada.

E passaria a Timor. A evolução recentemente havida neste caso não pode fazer esquecer ter sido o XIII Governo constitucional que conseguiu assegurar a aprovação da primeira Posição Comum europeia no quadro da PESC, da qual decorreram uma série de consequências de natureza prática, que muito têm ajudado a garantir uma apreciável disciplina de comportamento de todos os Estados membros face às relações com a Indonésia e a uma modulação, politicamente significativa dos formatos de interligação institucional entre a União e os países do ASEAN. Penso que é uma evidência, que ninguém contestará, que seria impensável a um país como Portugal poder sustentar, com um mínimo de visibilidade e de eficácia, todo o conjunto de iniciativas diplomáticas constrangentes que tem vindo a forçar face a um país com a importância da Indonésia, se não estivesse integrado num contexto como o comunitário.

No que toca à protecção das Comunidades portuguesas no exterior, assinalarei que as conquistas da cidadania europeia são hoje, como é reconhecido, um inestimável valor acrescentado de que os Portugueses podem beneficiar em todo o território da União. Fora desta, o peso político e o quadro de protecção diplomática que a União Europeia proporciona - e lembraria a colaboração entre Estados membros em crises recentes em África - tem vindo a revelar-se um valor da maior importância para a defesa dos direitos dos nossos nacionais.

Referiria, a título de exemplo, o caso concreto das negociações com a Suíça, concluídas em 1998, sobre livre circulação de trabalhadores, onde os interesses portugueses foram preservados graças à circunstância de essa mesma negociação estar conjugada com um quadro mais alargado, onde a voz de Portugal teve a possibilidade de se fazer sentir de forma determinante, sendo esse forte quadro negocial impensável se estivéssemos reduzidos a um contexto meramente bilateral.

A promoção da Língua e da Cultura portuguesas no estrangeiro têm, naturalmente, beneficiado da circunstância do Português ser hoje uma língua oficial da União Europeia, com crescente formação de intérpretes e tradutores que actuam nas instâncias comunitárias e nos quadros de relacionamento externo da União, com particular destaque para a Convenção de Lomé. Além disso, o sistema comunitário tem servido de suporte, financeiro ou outro, para diversas acções de divulgação da nossa actividade cultural nacional e muito tem contribuído para um melhor conhecimento do nosso país no plano internacional.

No plano económico, a rede de acordos criada pelas relações económicas externas da União Europeia, seja no espaço europeu candidato à adesão, seja em outras áreas do mundo com as quais estão estabelecidos convénios tendentes ao incremento das relações comerciais e de cooperação, constitui um campo da maior importância para a promoção dos interesses económicos nacionais no estrangeiro. O próprio espaço comunitário, aberto pelo mercado único, tem hoje um acesso facilitado aos agentes económicos portugueses, sob um quadro legal de grandes garantias. Poder-se-á dizer, porventura, que os efeitos nesta área se compensam com a abertura do próprio mercado português, mas há que reconhecer que esse eventual elemento desfavorável deriva, muito simplesmente, da circunstância de não sabermos ou não podermos aproveitar as oportunidades criadas, fruto do nosso nível de desenvolvimento e da circunstância do nosso sistema produtivo estar em eventual contra-ciclo com a restante União. Neste domínio, porém, o elemento mais interessante, e com maiores consequências futuras no nosso desenvolvimento, é, com certeza, a nossa pertença ao espaço do euro e as vantagens daí decorrentes em termos de estabilidade económica. A circunstância de pertencermos à moeda única europeia representa um salto qualitativo sem precedentes e, só por si, qualificaria decisivamente a nossa própria opção europeia.

Uma outra vertente importante a que a Europa nos ajuda a dar relevo diz respeito à relação entre Portugal e o Brasil. Tratando-se de um quadro bilateral por definição privilegiado, a verdade é que sempre foi muito difícil dar substância à retórica e esta marcou muita da inércia de décadas. Hoje, porém, as coisas são claramente diferentes - e isto não é retórica, são números. Em 1998, Portugal foi o 5º investidor no Brasil, o intercâmbio nunca foi tão forte e activo, o relacionamento político e de cooperação entre a União e o Mercosul estão a abrir portas novas entre ambos os países e, no quadro bilateral e nas dimensões internacionais em que Portugal e o Brasil se projectam, há uma regular conjugação de interesses, que se espera ainda poder potenciar mais através da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Como disse, o quadro do relacionamento entre a União e o Mercosul é, para nós, um terreno de decisiva importância. Trata-se de um domínio em que Portugal actua, no âmbito da União, como um dos principais impulsionadores, na linha da leitura estratégica que faz do interesse global europeu, que aliás abrange outros países da América do Sul com os quais temos, historicamente, um excelente entendimento, nomeadamente pela presença em alguns deles de importantes comunidades nacionais. Com o quadro Mercosul e com o Chile, com as relações especiais forjadas no Grupo de S. José e no Grupo do Rio, com a relação contratual muito específica com o México, temos perante nós um panorama privilegiado para garantir que a imagem que na América Latina se cultiva de Portugal possa ser um terreno para uma maior expressão política, económica e cultural futura.

No tocante à dimensão transatlântica, creio óbvio que a circunstância do enquadramento de defesa e segurança estabelecido na NATO, e ao qual Portugal sempre se ligou de modo empenhado, ter conseguido uma total compatibilidade no seio da União Europeia, nomeadamente através de um modelo de dinamização da UEO, constituiu um passo muito positivo. O papel central que a União Europeia passa a desempenhar no contexto da NATO, decorrente da cimeira de Washington, apenas vem confirmar esta realidade. Tal modelo de articulação preserva em absoluto o quadro de relacionamento privilegiado que sempre defendemos com os EUA e com o Canadá, com incidências no plano bilateral e pelo qual passa, convém não o esquecer, muita da especificidade da nossa própria inserção na própria Aliança Atlântica.

Embora possa frequentemente ser menos patente, a intervenção conjugada dos países europeus nas instâncias internacionais não deixa de valorizar e reforçar a posição do nosso país. Se, no nosso caminho para a presença no Conselho de Segurança, não pudemos contar com a solidariedade de todos os Estados da União Europeia, já todo o trabalho que desenvolvemos nesse contexto, no biénio que há pouco terminou, foi marcado por uma elevada e eficaz conjugação de esforços com os nossos parceiros. Para além disso, julgo que convém recordar que os países europeus mantêm hoje um elevado grau de coordenação de posições no quadro da grande maioria das instâncias internacionais, frequentemente com a colaboração da Comissão Europeia, o que conduz a uma prática regular de apoios mútuos da maior importância.

Recordaria, a título de exemplo, o terreno da defesa dos direitos humanos no quadro das Nações Unidas, com implicações práticas muito significativas no caso timorense, onde temos vindo a conseguir garantir uma acção mais consequente precisamente pelo facto de não estarmos sozinhos.

E creio que, noutro contexto, não há exemplo mais flagrante do que a negociação final do Uruguay Round do GATT, onde só a nossa pertença à União nos permitiu assegurar resultados, em termos de discriminação positiva para enfrentar os efeitos da liberalização, que eram inimagináveis por outra via. Com a crescente globalização, e com o previsível alargamento da competência comunitária no quadro da Organização Mundial do Comércio, estes efeitos tenderão, ainda, a ser mais potenciados.

A recente crise económica e os novos afloramentos  políticos que se vivem na Ásia vieram relevar a necessidade de uma constante atenção à evolução dos países daquela zona, atendendo ao respectivo impacto, não apenas no contexto da economia europeia, mas igualmente quanto à potencial indução de factores de instabilidade com repercussões globais na ordem internacional.

Aqui se inserem, também, questões como as do futuro de Macau, em que Portugal tem vindo a garantir que a União se mantenha atenta quanto à necessidade de preservação, após Dezembro de 1999, do novo quadro legal estabelecido com a China, a exemplo do que faz com Hong Kong, sublinhada embora a diferença dos contextos.

Como antes referi, a integração na União e na sua dimensão política externa têm igualmente contribuído para garantir a Portugal uma maior presença em áreas que, não se constituindo no passado como centrais do seu quadro de prioridades, representam, não obstante, dimensões significativas e de crescente relevância.

O excelente relacionamento que temos vindo a construir com os países do Centro e do Leste Europeu, nomeadamente com a Rússia e com a Ucrânia, bem como com os Estados candidatos à adesão à União Europeia, aí está para demonstrá-lo. Tendo acompanhado com atenção e simpatia os respectivos processos de transição, Portugal tem, em especial no contexto do alargamento, e aproveitando o respectivo quadro de instrumentos, trabalhado intimamente com todos esses países, dando-lhes conta da nossa própria experiência no processo integrador e pondo ao seu dispor algumas das nossas capacidades nesse domínio, ao mesmo tempo que efectua um esforço de aproximação económica com elevado sucesso. Além disso, a atitude de grande responsabilidade política que o nosso país tem tido face ao processo de alargamento das instituições europeias e euro-atlânticas, sem introduzir quaisquer elementos de condicionalidade de cariz egoísta, tem vindo a conquistar-nos um lugar interessante no quadro das relações externas desses países, que procuraremos aprofundar no futuro.

Finalmente, um outro caso evidente é o espaço mediterrânico e as relações com os Países árabes.

Com uma activa intervenção no Fórum do Mediterrâneo e no Processo de Barcelona, iniciativas em cujo lançamento teve um papel impulsionador, Portugal tem vindo a afirmar-se como um parceiro europeu de grande credibilidade para os nossos vizinhos da zona sul do Mediterrâneo, muito em particular junto do mundo árabe. Esta circunstância, aliada a uma cuidadosa potenciação de alguns quadros bilaterais nesta área - em que o caso de Marrocos é porventura o mais significativo - tem conferido ao nosso país um papel muito interessante em todo o diálogo político, económico e cultural que atravessa esta dimensão sul das relações externas da União.

Em conclusão de tudo quanto foi dito, eu creio pacífico que a avaliação dos impactos da integração na União sobre as diversas dimensões da nossa acção diplomática aponta, à evidência, para a conclusão de que estamos perante um factor determinante no potenciar da voz do nosso país no contexto externo. Se fosse necessária uma confirmação mais, sublinharia a importância da presidência portuguesa da União Europeia, no primeiro semestre de 2000, num quadro de exigência e muito maior face ao exercício de 1992, conferindo a Portugal um espaço excepcional de visibilidade política e diplomática, e, simultaneamente, um factor de afirmação e de prestígio.

Mas há ainda um aspecto geral, de natureza mais interna, sobre o qual não posso deixar de chamar a atenção. Ele refere-se àquilo que eu poderia designar como que o efeito da presença na União sobre a coerência global da cultura diplomática portuguesa.

Durante anos, Portugal viveu, no plano externo, da conjugação de algumas dimensões multilaterais de desigual importância, com dossiers bilaterais muito específicos e díspares, que conduziram a um quadro diplomático pouco equilibrado e marcado por um reflexo fortemente defensivo. Nas décadas deste século que antecederam 1974, a gestão desses dossiers foi sempre feita, por razões compreensíveis, numa perspectiva muitas das vezes marcada mesmo por alguma dependência diplomática, que hoje nos parece menos simpática para a própria imagem do país. No Ministério dos Negócios Estrangeiros essa limitação de perspectivas teve os seus efeitos. Parte importante das grandes questões de política internacional tinha então entre nós, há que reconhecer, um tratamento impressionista e frequentemente de cariz quase jornalístico, por se situar fora da nossa capacidade de influência e, por essa via, estar afastada das nossas preocupações imediatas.

O maniqueísmo da guerra fria veio ainda facilitar mais a definição desse posicionamento, ao estimular uma espécie de comodismo diplomático, em tudo quanto não relevasse dos nossos interesses directos. É essa realidade que a integração na Cooperação Política Europeia primeiro e, mais tarde, na Política Externa e de Segurança Comum vem mudar de forma clara.

Embora no início remetida a uma postura predominantemente reactiva, a diplomacia portuguesa foi ganhando uma dinâmica de apreciação própria, foi gizando uma matriz coerente de abordagem que alia a assunção de uma filosofia específica à articulação com o que poderíamos designar como a “jurisprudência” diplomática europeia, que se foi destilando no seio da União nos últimos anos, ambas sempre aferidas à luz do interesse nacional que, como é evidente, tem sempre sobredeterminado todas as nossas opções. Hoje é reconfortante verificar que o Ministério dos Negócios Estrangeiros português saiu da postura anterior, adquiriu uma solidez doutrinária que lhe facilita a instituição e o permanente aperfeiçoamento de uma grelha de leitura das situações no plano internacional, num modo de actuação interveniente e ofensivo, de uma forma que lhe permite comparar-se sem problemas com a grande maioria dos países da União. E isso tem constituído - é vital que todos o saibam - um elemento da maior importância para o prestígio diplomático de Portugal.

É que embora a Europa, ou a intervenção que levarmos a cabo por seu intermédio, não esgote, de forma alguma, o nosso espectro de acção internacional, parece-nos evidente que a nossa presença nas respectivas instâncias acabou por se revelar um valor acrescentado inegável para reforço daquilo que entendemos ser o interesse português. E convém termos claro que, dentro desse interesse português, está já hoje o próprio interesse europeu, porque as nossas finalidades como país estão, cada vez mais, ligadas ao nosso destino como europeus.

(Iintervenção no colóquio “A Democracia e a política externa portuguesa”, realizado em Lisboa, em 12 de Maio de 1999, pela Fundação Luso-Americana e pela “Política Internacional.)