23 de outubro de 1999

Homenagem a Severino Costa

Se acaso me fosse possível e legítimo interpretar o sentimento que o meu tio Severino Costa poderia estar a ter neste preciso momento, eu julgo que não estaria longe da verdade se dissesse que ele pediria que este seu sobrinho não se sentisse tentado a estragar, com uma intervenção longa e formal, a homenagem simples, mas de comovente sinceridade, que acaba de lhe ser prestada.

Por isso, eu sinto-me tentado a respeitar, tanto quanto possível, a sua presumível vontade, até para não correr o risco de suscitar no meu tio, embora em moldes virtuais, aquela imparável impaciência, que tantos de nós lhe conhecíamos, quando, à porta do Café Bar, era confrontado com a aproximação de “um grande chato” - como ele dizia -, o que lhe fornecia, aliás, logo um alibi para se esgueirar em direcção à Avenida, a pretexto de qualquer urgência súbita.

Porém, antes de me obrigar a ser breve, tenho contudo o dever de ser grato.

Assim, permitam-me que expresse aqui uma palavra de profundo reconhecimento por esta gentil iniciativa da Câmara Municipal de Viana do Castelo.

Na pessoa do Senhor Presidente da Câmara, Dr. Defensor Moura, bem como do Senhora Vereadora do pelouro da Cultura, Dra. Flora Silva, eu quero deixar um agradecimento muito sentido pelo empenhamento que tiveram neste gesto de grande simpatia para com a figura de Severino Costa.

Faço esta menção, naturalmente, em nome de toda a família - e, se me permitem, em particular do meu Pai e irmão de Severino Costa, que está aqui presente -, família que igualmente se sente muito honrada pela contribuição dos restantes oradores e com a presença de quantos quiseram ter a amabilidade de se associar a esta sessão.

Sem desmerecer qualquer das intervenções que ouvimos, eu permitir-me-ia, contudo, deixar aqui uma palavra muito particular ao Professor Doutor Artur Anselmo.

A circunstância de termos tido o privilégio de poder contar nesta homenagem com aquela que é, sem a menor sombra de dúvida, a figura mais marcante da historiografia de imprensa no nosso país, representa um privilégio para todos nós.

A prestação que aqui nos deixou - no fundo, a contextualização da obra e da vida jornalística de Severino Costa - foi uma lição que todos recordaremos.

Uma lição que fica para além da gratidão que nos merece o seu gesto, que também não deixa de ligar-se à simpatia que sempre uniu as nossas próprias famílias.

Se as coisas da vida não fossem tão cruéis como realmente são, o agradecimento ao Professor Doutor Artur Anselmo, e a todos quantos colaboraram nesta homenagem, estaria hoje aqui a ser feito pelo Carlos Eurico, filho do meu tio Severino.

O discurso seria seguramente bem mais rico e bem mais criativo, porque a arte da escrita surrealista nunca abandonou a mão de quem sempre soube colocar poesia na prosa mais simples que fazia.

Mas porque, como eu disse, as coisas são o que são e não aquilo que gostaríamos que fossem, dele, do Carlos Eurico, da minha Tia Maria do Carmo, dos meus primos também Severinos de seu nome - que tão bem hoje aqui se sentiriam - deles fica o título dum belo livro do próprio Carlos Eurico, deles fica apenas “A Fulminada Imagem”.

Mas voltando ao registo inicial, eu creio que o meu tio Severino - o tio Bino, como nós lhe chamávamos - era bem capaz de já estar a protestar interiormente com o tom desta minha intervenção, que, se bem o conhecia, ele achava estar já a ver derivar para um estilo um tanto ou quanto lamechas, que dificilmente aturaria.

É que, tal como eu o recordo, mesmo quando confrontado com as vicissitudes de uma vida que, para ele, não teve só momentos alegres, sempre foi capaz de “dar a volta por cima” das coisas, de desmontar, com uma ironia muito sábia, o peso dos momentos complexos e até dos momentos trágicos, rindo-se muitas vezes da solenidade acaciana que alguns sempre confundem com seriedade.

Daí que me pareça que lhe poderia agradar, e até teria nisso alguma curiosidade, se visse este seu sobrinho sair - ainda que em termos breves, iria ele prevenir-me ! - para algumas notas de cariz mais pessoal.

Assim, e tendo por pretexto este dia de centenário do seu nascimento, que uma placa comemora em Ponte de Lima, para os lados da Clara Penha, eu ousaria deixar-lhes três ou quatro apontamentos da imagem que conservo do meu tio, fruto de quase três décadas de uma convivência que, embora esporádica, dele me fixou um retrato de carácter que desde sempre me acompanhou.

Nesse meu papel de sobrinho de aparições cíclicas, que vinha a Viana no Agosto das Festas e aos Natais, eu habituei-me a ver o meu tio, desde miúdo, num registo simultaneamente lúdico e de ampla satisfação com o sentido da vida, mesmo no meio das partidas que ela lhe pregou.

E daí que, bem lá no fundo, a minha relação com ele fosse sempre de algum fascínio pelo personagem e de uma não menor ponta de inveja pelos seus sucessos nas áreas em que se empenhava.

E passo a explicar porquê.

Em primeiro lugar, pelo modo como ele conseguia conciliar uma profissão de rotina, que manifestamente o não mobilizava, com uma actividade de escrita jornalística que, ao longo do tempo, acabou por funcionar como uma espécie de filme da vida quotidiana de Viana.

Eu, aliás, lembro-me de como ficava estusiasmado - e até me sentia quase um jornalista - quando, aí com 12 ou 13 anos, ele me autorizava a passar pela Cruz Vermelha e pelo Hospital para tomar nota das ocorrências, que eu esperava ansiosamente ver publicadas no “Comércio do Porto” do dia seguinte.

Mas o mais fascinante da memória do meu tio desses tempos eram, sem dúvida, as detalhadas descrições das suas viagens de automóvel pela Europa - mal eu sabendo então que destino a mim próprio me esperaria por essas paragens.

Nesse tempo, a Europa variada que o tio Bino nos descrevia com pormenores e “fait divers”, nos serões familiares em casa da nossa avó, no Largo Vasco da Gama, essa Europa era para muitos de nós, e para mim em particular, uma espécie de mundo inacessível.

Era um universo vivo e atraente, por vezes até um pouco bizarro nos costumes que ele sabia contar com graça e de forma extremamente cativante.

Lembro-me, entre tantas outras, das descrições do Monte Cassino (que, aliás, me criaram uma curiosidade que praticamente me obrigou a lá ir!), das inúmeras peripécias de estrada e das ligações históricas e culturais que fazia dos lugares e das pessoas que encontrava.

Essa visão cosmopolita para o tempo, em face daquilo que era a vida rotineira lusitana, nessas noites ricas sem televisão, deixou-me uma marca e uma apetência pelas viagens que nunca mais me largou.

E como nele sempre houve - como muitos que aqui estão o sabem bem - um sentido crítico muito agudo e por vezes feroz, recordarei sempre o saboroso registo que fazia dos vários tipos humanos com que se cruzava, no estrangeiro ou em Portugal.

Raramente eram personagens cinzentas, antes pelo contrário, quase sempre eram lidas sob uma lupa crítica, e muitas vezes um pouco cruel, de quem tinha do mundo e da vida uma coragem de opinião e assumia o risco da caricatura.

Pode ser que eu me engane, mas creio que parte dessa perspectiva a preto-e-branco, das pessoas e das coisas, tinha a ver com um escritor que ele me ensinou a ler e a apreciar e que, na minha adolescência, e mesmo mais tarde, foi frequente motivo das nossas conversas.

De facto, eu creio que herdei do meu tio Bino o voraz prazer de Eça de Queiroz e recordo-me das citações que ambos fazíamos de tiradas dos seus cáusticos personagens e - agora já pode dizer-se - de como identificávamos alguns conhecidos ao Melchior ou ao Palma Cavalão, e cito apenas estes para me manter no domínio do jornalismo que marca esta cerimónia.

Aliás, do livro que ele próprio dedicou a Eça de Queiroz, numa análise rigorosa de um dos aspectos mais controversos da biografia do romancista, ressalta a saudável dependência queiroziana que eu continuo a partilhar em pleno.

Desses tempos, guardo também os passeios pelo Minho, por estradas de que, praticamente, me tornei repetente quase anual.

Recordo o apêgo que ele tinha por esta terra, o seu conhecimento das localidades e o modo singular como nelas nos identificava algumas personagens típicas, ao pararmos para um café.

O seu apurado sentido organizativo de pic-nics, à beira rio ou em pinhais, sempre me deixou deslumbrado pela meticulosidade do aparato com que se armava o dispositivo para comer o arroz e os bolos de bacalhau feitos pela Rosa, acompanhado pelo pão que antes obrigatoriamente se ia buscar ao Dantas.

Tenho que confessar que nunca me consegui reconciliar com a ideia de que sou e serei totalmente incapaz de tal organização.

Num desses pic-nics ficou célebre, como sinal da sua impaciência, o ter-se cansado de uma conversa, que ele achou estar a resvalar para o excessivamente intelectual, entre Álvaro Salema e Jorge Amado.

Farto de não conseguir introduzir alguma sensatez mais prosaica na discussão, largou o seu papel de anfitrião atento, estendeu-se a dormir na rede entre duas árvores e teve a assinalável coragem de deixar, por uma boas duas horas, os convidados num diálogo literário transatlântico para o qual se marimbou olimpicamente.

Mas o meu fascínio e a minha inveja pelo personagem não ficam por aqui.

Sabendo embora que me arrisco a pisar terreno de alguma delicadeza, eu sinto-me autorizado a dizer que nenhum de nós desconheceu o atento e desinteressado carinho que o meu tio Severino dispensava ao mais belo sector do género humano.

Digo isto, naturalmente, na perspectiva puramente platónica que foi sempre a dele, pois não há qualquer registo histórico que possa sustentar, da sua parte, um comportamento que alguma vez haja sido menos conforme com o cultivo da pura virtude neste domínio.

É claro que, na eventual e legítima leitura extensiva que ele fazia deste mesmo conceito, cabia, por exemplo, e ao que me recordo, o acompanhamento cuidadoso das digressões pelo mundo do grupo de lavradeiras de Santa Marta de Portuzelo, numa atenção que, aliás, sempre tive como apoiada exclusivamente num esforço de pesquisa folclórica mais aprofundada.

Mas, sejamos francos, não excluo que a doutrina possa, neste particular, não ser totalmente pacífica, mas este é um tema em que estou seguro que as vozes são, com certeza, muito mais que as próprias nozes...

É com esta nota alegre que quero terminar esta evocação pessoal do meu tio Severino.


Senhor Presidente da Câmara
Caros Amigos

Pretendi, no que disse, um tom tão solto como aquele que ele próprio estaria disposto a aturar por parte de um familiar, numa qualquer cerimónia - estou mesmo seguro que mesmo numa cerimónia que lhe fosse pessoalmente dedicada como é o caso desta.

Assumindo o risco de quem não lhe foi distante, eu diria que Severino Costa foi um homem que soube viver e reflectir o século que com ele praticamente nasceu. Foi sempre um liberal nas ideias, um homem aberto e atento ao mundo, que soube colocar nas palavras que deixou escritas a serenidade e o rigor de um pensamento que, por vezes, era menos conforme com alguma impaciência com a vida, que não raro se reflectia na sua relação com os outros.

Para nós, que o conhecíamos de muito perto, tinha a afabilidade e o gesto de quem se enfrentava com a ternura num disfarce de alguma ironia.

Creio que ele gostaria de ser recordado como aqui realmente foi, sentindo que continuamos a senti-lo conosco, vendo que a Cidade e a profissão por que sempre lutou e se empenhou têm dele uma memória que é razão para que nos juntemos hoje aqui a lembrar o centenário do seu nascimento.

As palavras e o testemunhos que ficaram expressos configuram, desta forma, o sentido de uma passagem pelo mundo que, pelos vistos, tem a virtualidade de sobreviver ao desaparecimento físico.

Nem todos poderemos aspirar a isso.

Por essa razão, julgo que ninguém pode desejar mais do futuro do que a garantia, por parte dos que ficam, que o que se fez deixou uma marca que justifica a saudade.

Muito obrigado pela vossa atenção.

1 de setembro de 1999

Uma reforma indispensável?


O Conselho Europeu de Colónia, em Junho deste ano (1999), decidiu o lançamento de um processo de reforma das instituições comunitárias, a ser preparado durante a presidência finlandesa (2º semestre de 1999), a ser iniciado durante a presidência portuguesa (1º semestre de 2000) e a ser concluído durante a presidência francesa (2º semestre de 2000). Esta revisão limitar-se-á, no essencial, às questões da composição da Comissão Europeia, da reponderação dos votos no Conselho e à extensão do número de decisões a serem tomadas por maioria qualificada.

Foi, desta forma, dado cumprimento àquilo que havia ficado decidido no Protocolo anexo ao Tratado de Amesterdão (os chamados “leftovers”), a que se juntou a pretensão de alguns Estados membros de rever uma vez mais a lista dos temas hoje ainda sujeitos a unanimidade.

Como é sabido, havia sido aceite em Amesterdão que uma nova reforma institucional deveria ter lugar antes do próximo alargamento, a qual é, por alguns Estados, considerada condição sine qua non para a entrada dos novos países na União.

Encontramo-nos assim, nos próximos meses, com uma tarefa de grande exigência à nossa frente, tanto mais que se sabe existirem grandes divergências entre os Estados quanto ao sentido final deste exercício.

Valerá a pena ser claro e começar por dizer que o título deste texto não é casual. Portugal sempre foi dos países que manifestou o seu cepticismo quanto à necessidade de se proceder a uma rearranjo das instituições que pudesse, de alguma forma, provocar substanciais desequilíbrios no actual sistema de representação de interesses no quadro da União. Durante a última Conferência Intergovernamental (1996/97), deixámos evidenciadas as nossas dúvidas quanto à necessidade imperativa de se tocar nos actuais padrões de representação dos Estados - em especial no que respeita aos votos no Conselho e ao modelo da Comissão.

Não estivemos sozinhos nesta posição e o que saiu - ou o que não saiu - de Amesterdão é o resultado da vontade conjugada de alguns Estados, de pequena e média dimensão, no sentido de procurarem resistir a pressões para diminuir a sua representação nas instâncias decisórias. Por outro lado, há que reconhecer que Amesterdão foi uma óbvia derrota para os maiores Estados, que não conseguiram fazer vingar a sua ideia de alargar, em termos do processo de decisão, a sua distância em relação a parceiros de inferior dimensão demográfica. Nessa altura, foi por muitos de nós dito que, para além das questões de eficácia que alimentavam o argumentário dos maiores países, havia que ter em conta um problema de aceitabilidade das mudanças perante as nossas próprias opiniões públicas. A próxima questão estará, a meu ver, em saber se as condições que não existiram em Amesterdão, e que inviabilizaram então um acordo neste domínio, se alteraram tão substancialmente de forma a torná-lo agora possível.

Nessa altura, estavam em cima da mesa duas ideias essenciais: reduzir a Comissão Europeia e dar mais votos no Conselho aos Estados com mais população. Vejamos cada uma dessas ideias separadamente.

A Comissão

No caso da Comissão, a ideia que foi avançada como mais radical, que era de origem francesa, assentava no pressuposto de que não haveria, na prática, mais do que 10 ou 12 verdadeiros pelouros e que, por essa razão, esse deveria ser o número máximo de Comissários. A Comissão Santer ajudou, algumas vezes, a alimentar esta ideia, ao falar igualmente na inexistência de um espectro de atribuições em termos de pelouros que pudesse ocupar os seus 20 Comissários.

Obviamente que a resposta a esta teoria está hoje dada pela própria Comissão Prodi, ao ter encontrado espaço de trabalho para 20 comissários e, ao que parece, sem que haja dúvidas de que terão tarefas suficientes para se ocuparem. À época, porém, a questão foi mais complicada de gerir e, como posição de recuo, aceitou-se a ideia de que se poderia considerar algum reforço do poder voto dos maiores Estados, desde que estes prescindissem de indicar dois comissários, como hoje acontece com a Alemanha, a Espanha, a França, a Itália e o Reino Unido. Para sermos claros: garantir a equidade dentro da Comissão teria, como “preço”, dar mais alguns votos aos Estados mais populosos.

Porém, este sistema só funcionaria até ao limite de 20 Estados membros, que o mesmo é dizer, até ao limite de 20 comissários, devendo ter lugar uma nova reforma a partir do momento em que outra fosse a perspectiva de dimensão da União. Para muitos observadores, a Comissão Europeia, ao colocar no chamado “primeiro grupo” dos candidatos alargamento precisamente seis países quis, desde logo, “forçar” a revisão mais alargada.

Valerá aqui fazer um parêntesis para sublinhar a incongruência deste “trade off”, que é totalmente contraditório com a ideia formal de que a Comissão é uma instituição independente dos Estados membros e que os comissários exercem os seus cargos “esquecendo” o país de onde são originários. Ao trocar votos por comissários está-se, na realidade, a assumir que o jogo do poder passa por ambas as vertentes, o que contradiz a teoria e torna mais cínica a prática.

Voltando ao que está em jogo, importa deixar evidente que a proposta original francesa, dos 10/12 comissários, está hoje completamente ultrapassada e que já nem mesmo Paris a defende. Por outro lado, parece criada na generalidade dos Estados membros a ideia clara de que não será viável a qualquer Estado vir a prescindir, num horizonte visível, da possibilidade de vir a indicar um membro para a Comissão Europeia.

Sendo assim, o que irá ser decidido na nova Conferência Intergovernamental quanto à Comissão? Embora não possamos estar a limitar a liberdade do exercício - e Portugal, enquanto presidência, terá naturalmente uma atitude neutral, que se distinguirá da posição nacional que defenderemos - a verdade é que não vislumbramos muito espaço de manobra no que toca à Comissão.

Eu deixaria mesmo algumas questões: alguém acha plausível que os cinco Estados membros que há escassos meses nomearam, cada um deles, os seus dois comissários, por um período de cinco anos, estão dispostos, a meio desse período, a prescindir de um deles ? Alguém acha que qualquer desses comissários está disposto a ceder o seu lugar, tendo em atenção que a sua designação foi feita, com o acordo do Parlamento Europeu, para o período total do mandato ? Alguém está seriamente convencido que alguma coisa vai mudar até ao termo de exercício destes novos comissários, em Junho de 2004?

Nestas condições, talvez valha a pena que nos interroguemos sobre o que se pretende extrair, nesta reforma, dos Estados que hoje têm, e apenas querem conservar, o seu único comissário.  O que ganhariam em troca de votos concedidos aos Estados mais populosos?

A reponderação dos votos

A revisão do poder de voto no Conselho é hoje tida, por alguns grandes Estados, como um passo essencial para a recuperação da sua posição no processo decisório onde, sendo afirmam, a maioria qualificada necessária para fazer aprovar legislação se obtém hoje com uma representação cada vez mais diminuta de população europeia.

Salvo melhor opinião, este raciocínio parte de pressupostos falseados.

O primeiro tem a ver com a circunstância de que não há, hoje em dia, uma relação, ainda que tendencial, entre o poder dos Estados no Conselho e as suas respectivas populações. Ou melhor, essa relação existe, grosso modo, para os pequenos e médios Estados, mas já deixa de existir para os “grandes”. Dou dois exemplos: Portugal e a Áustria têm, respectivamente, 5 e 4 votos, tendo entre si uma diferença de população de 1,5 milhões; a Alemanha e a Itália têm 10 votos cada, embora entre esses países haja uma diferença de 23 milhões de habitantes. Se se quer introduzir medidas de equidade, porque não começar por aqui ?

O segundo pressuposto que me parece não colher tem a ver com aquilo que poderíamos designar com o “sentido de agregação” dos votos no Conselho. As votações no Conselho não se fazem nunca - todos o sabem! - numa lógica de “grandes” contra “pequenos”. Jamais na história comunitária, como se pode provar, se registou, nem por uma única vez, uma conjugação dessa natureza. E porquê? Porque a agregação dos votos no Conselho, nomeadamente em matéria legislativa, tem muito mais a ver com a identidade de interesses dos Estados do que com a sua dimensão. Essa identidade de interesses é feita, essencialmente, à luz do grau de desenvolvimento dos Estados, que se reflecte nas suas opções em matéria de definição de padrões comunitários.

Quando estamos perante uma directiva ambiental, para dar um exemplo, é óbvio que a identidade entre as posições de uma Alemanha e de uma Suécia é muito maior da que existe entre a Suécia e Portugal. Com efeito, o grau de desenvolvimento da Suécia, onde os padrões ambientais são elevados e em que terão sido tomadas já, no passado, uma série de medidas que a directiva se limita a estender a outros Estados, tenderá a afastar, na altura da votação, esse país de Portugal, onde o atraso nesse domínio implicará novos investimentos (a tecnologia até pode ser sueca...), com repercussões financeiras sobre, por exemplo, as unidades produtivas, com impactes óbvios na competitividade dos respectivos produtos. Neste caso, como é evidente, a Suécia votará ao lado da Alemanha, que tem um grau de desenvolvimento ambiental similar, e nunca com países “médios”, como Portugal, que tem um desenvolvimento muito inferior neste domínio. Alguém pensa que, no futuro de uma União alargada, um país como o Luxemburgo vai votar alguma vez ao lado da Lituânia, contra a França ou o Reino Unido, só porque se trata de Estados de pequena dimensão?

Mas neste caso, perguntar-se-á, qual é a razão pela qual os grandes Estados querem agravar o fosso decisório face aos menos populosos? E porque razão o querem fazer já, antes do primeiro dos próximos alargamentos?

Por um conjunto variado de razões, umas de natureza económica, outras de natureza política mais geral.

As razões de natureza económica prendem-se com a dualidade de desenvolvimento que atrás mencionei. A manter-se, no futuro, uma simples projecção automática do actual modelo de ponderação de votos, e trazendo o próximo alargamento para o seio da União um grupo de Estados que, por alguns anos, estarão abaixo dos padrões médios de desenvolvimento que nela prevalecem, poderia potencialmente vir a registar-se, nesse mesmo futuro, uma agregação de países da União com menor grau de desenvolvimento que - numa lógica de representação de interesses comuns -, pudesse vir a conseguir formar minorias de bloqueio. Se tal viesse a suceder, isso representaria que os grandes Estados mais desenvolvidos, em aliança objectiva com outros países pequenos e médios que com eles têm interesses convergentes, deixariam de poder continuar a garantir o domínio avassalador que hoje têm sobre o processo legislativo e sobre a gestão orçamental da União. A necessidade de evitar que futuros alargamentos limitem esta sua liberdade é uma das óbvias razões do interesse em alterar o processo decisório.

A segunda razão tem uma perspectiva mais política e prende-se com as novas dimensões da União - a PESC e a Justiça e os Assuntos Internos.

No primeiro destes casos, começa a desenhar-se um óbvio interesse dos maiores Estados, que coincidem, em geral, com os que dispõem de Forças Armadas e de dispositivos diplomáticos de maior dimensão, de garantir que o seu papel decisório naquilo que seja decidido em nome da Europa se faça predominantemente de acordo com a conjugação dos seus interesses. Esta afirmação de vontade tornar-se-á mais premente à medida que, no âmbito da PESC, se forem definindo mais “estratégias comuns”, isto é, linhas gerais de actuação, decididas por consenso em sede de Conselho Europeu, cuja implementação se fará depois por maioria qualificada. Sejamos realistas: as “estratégias comuns”, que o futuro tenderá a generalizar a todas as áreas geográficas e aos principais temas horizontais, são um mecanismo para permitir que a PESC seja decidida por maioria qualificada, embora com uma cláusula de “interesse nacional vital”, que países como Portugal conseguiram garantir em Amesterdão. Ora, num contexto em que a unanimidade deixa de se aplicar, é óbvio que os Estados mais fortes, que têm uma política externa e de segurança de grande visibilidade, entendem não poderem ser limitados em decisões que passam a comprometê-los perante o mundo externo. Daí, pois, o interesse - também na PESC - para um reforço da sua representação.

O segundo caso é, porventura, aquele em que, em tese, melhor se poderia compreender uma relação mais directa entre o poder de voto e o peso demográfico. Com efeito, na área da Justiça e dos Assuntos Internos estamos perante decisões que afectam diferentemente os países, em função da dimensão das respectivas populações. Há, porém, uma realidade que não pode deixar de ser considerada: esta é uma área onde tradicionalmente assenta o eixo da soberania dos Estados, onde se verificam culturas jurídicas mais diversas e, frequentemente, reservas nacionais de competência, nomeadamente de natureza parlamentar, difíceis de ultrapassar.

Tal como na PESC, a área da Justiça e dos Assuntos Internos toca, de muito perto, aquilo que constitui a expressão do poder nacional, por outras palavras, a área em que os Estados devem ser considerados tendencialmente iguais. Daí a dificuldade em avançar para uma desigualização ainda mais pronunciada do que a que hoje já existe no Conselho.

Dito isto, importa ponderar em que medida há espaço de manobra, na próxima CIG, para trabalhar na alteração ao actual modelo de ponderação de votos. Um terreno em que Portugal tem assentado a sua reflexão prende-se com a possibilidade de introdução do chamado sistema da “dupla maioria”. Neste sistema, procurar-se-ia, sem alterar o actual modelo de ponderação, fixar um mecanismo de representatividade demográfica mínima: nenhuma decisão por maioria qualificada seria válida se nela não estivesse representado um conjunto de países cujo somatório de população fosse inferior a uma certa percentagem da população total da União. O argumento demográfico atrás referido ficaria contemplado e, sob o ponto de vista democrático, dar-se-ia um salto em frente. Mas será que os “grandes” países, para além da Alemanha, estão dispostos a enveredar por um sistema que, pela primeira vez, os desigualiza face àquele país?

A extensão da maioria qualificada

Depois desta digressão pelas questões da Comissão e do poder de voto no Conselho, convirá abordar, finalmente, o terceiro vértice do “triângulo institucional” que vai estar em revisão: a extensão da maioria qualificada.

É para todos evidente que o funcionamento da União Europeia terá, cada vez mais, que ser gerido por votações não sujeitas à unanimidade, prática intergovernamental que se tem revelado frequentemente bloqueadora, servindo algumas vezes como instrumento e forma de pressão para garantir vantagens noutros tabuleiros. Há uma consciência crescente que a evolução futura terá de ir nesse sentido.

Importa registar que, contrariamente a uma leitura meramente formal que ainda subsiste em muitos sectores, a preservação da unanimidade – o chamado direito de veto – é frequentemente apenas uma falsa defesa para os pequenos e médios países. A vida interna da União Europeia é feita de equilíbrios muito frágeis e é praticamente impossível a um país de menor dimensão conseguir sustentar uma oposição isolada contra todos os restantes, a menos que esteja em causa um “interesse vital” muito evidente, sem que isso desencadeie pressões noutros domínios, quase sempre impossíveis de gerir.

Esta tendência para a utilização da maioria qualificada não pode, porém, ser desligada da circunstância de, também crescentemente - e com lógica democrática indiscutível -, as decisões que o Conselho toma por essa via deverem ser submetidas a co-decisão do Parlamento Europeu.

Ora aqui coloca-se uma outra questão. Como é sabido, o PE tem vindo a revelar, de ano para ano, uma tendência para que as suas decisões sejam tomadas numa lógica de representação de importantes interesses nacionais, independentemente das linhas ideológicas nele projectadas. Basta ver como votam os deputados portugueses ao Parlamento Europeu quando estão em causa importantes questões para o nosso país, como os têxteis ou os fundos estruturais. Mas, neste caso, importará pensar que, no Parlamento Europeu, a diferença de representação entre os Estados aparece muito mais ligada à sua dimensão demográfica. Repito um exemplo que costumo dar: Portugal tem 5 votos no Conselho para 10 da Alemanha, isto é, uma relação de 1 para 2; mas, quando chegamos ao Parlamento Europeu, Portugal tem 25 deputados e a Alemanha 99, isto é, praticamente uma relação de 1 para 4.

Com o que acabei de referir quero dizer, muito concretamente, que sempre que uma medida legislativa é submetida a co-decisão estamos, um tanto subliminarmente, a “reponderar” o peso dos maiores Estados, desta vez mais diferenciadamente que no Conselho. Ora se pensarmos que há uma tendência para a generalização da co-decisão a todas as medidas de natureza legislativa em que o Conselho decida por maioria qualificada isso significa que os maiores Estados “ganham poder” cada vez que tal se aplica. Nestas condições, será legítimo que ainda reforcem mais o seu poder ao nível do Conselho ?

Este raciocínio não nos deve, porém, colocar necessariamente numa posição de retracção face à extensão da maioria qualificada. Com efeito, a funcionalidade da União é também do nosso interesse e seria extremamente perigoso estar a adoptar uma linha de orientação que facilitasse bloqueios e prejudicasse as políticas comuns.

A extensão da maioria qualificada deve ser, assim, avaliada à luz do mérito de submissão a esse procedimento das várias medidas que possam estar em causa. Há terrenos, nomeadamente os que se ligam às grandes questões de natureza estruturante da União, em que a utilização dessa forma de voto é contraditória com o modelo de representação de Estados que a União Europeia de hoje prevê. Por outro lado, em tudo quanto as questões a decidir no âmbito da UE possam pôr em causa competências internas inalienáveis (como a ratificação de tratados) ou interesses cuja última decisão deva ser sempre de natureza nacional (fixação de orçamentos) é óbvio que a unanimidade deve ser preservada. Alguém já imaginou o resultado que um país como Portugal teria obtido na Agenda 2000 se a decisão final tivesse sido tomada por maioria qualificada?

O modelo híbrido actual

A maneira como se apresenta no debate europeu o conjunto de temas que atrás desenvolvemos representa, a meu ver, uma leitura um tanto redutora do modelo de revisão institucional. Diria mesmo que estamos perante uma perspectiva conservadora, que tem por detrás a ideia de que, sem tocar no essencial do actual modelo institucional, se procura apenas adaptá-lo a uma gestão mais confortável a quem já hoje o domina.

Nesta perspectiva, o modelo actual reveste-se de alguns perigos para os países de pequena e média dimensão e, em particular, para aqueles que, dentre eles, têm um padrão de desenvolvimento que se situa abaixo da média da União. É que não se situando um país como Portugal no centro do padrão de interesses que se projecta em Bruxelas, e ao não ter, cumulativamente, uma capacidade de intervenção muito elevada no processo de decisão, a sua colocação num modelo de solução maioritária deixa-o ao sabor da formação dessas maiorias, nas quais, em particular desde o último alargamento, raramente se sente confortavelmente representado. Dirão alguns que esta é uma questão que se resolve com o tempo e com o desenvolvimento que ele trará. O problema, porém, é gerir o quotidiano até ao momento em que se conseguir uma compatibilidade com o nível médio da União.

A progressiva perda da unanimidade, que caracterizava o modelo intergovernamental, não tem sido entretanto compensada pela instituição de mecanismos de natureza mais federal - através de uma instituição onde os diversos Estados tenham representação idêntica e através de fórmulas de federalismo fiscal, que permitam desencadear reequilíbrios distributivos automáticos de natureza financeira. Estamos, assim, a viver num modelo híbrido que, como é óbvio, é o terreno ideal para a consagração de “directórios”, que cada vez se sentem menos obrigados a proceder à disponibilização de mecanismos compensatórios e parece darem como adquirida a inevitabilidade da dualização de desenvolvimento, agora que já obtiveram as vantagens do mercado interno e a liberdade de expressão financeira e empresarial dos seus importantes interesses económicos.

Por outro lado, entendo que a Comissão Europeia não tem, manifestamente, cumprido bem o seu papel. A União Europeia não é uma mera organização internacional, onde a maioria ganha e a minoria perde. A União dispõe de uma instituição sui generis - a Comissão Europeia - que, por representar a União como um todo, deve, em cada uma das suas propostas, ter o interesse de todos os Estados em permanente conta - e não apenas o interesse pressentido da maioria que lhe vai aprovar essas mesmas propostas. Mesmo os interesses mais marginais e mais minoritários são interesses atendíveis, em especial quando expressos por Estados que têm em curso um esforço de desenvolvimento e de aproximação à média da União, que pode ficar em risco pela adopção de certas decisões

Ora verificamos que não tem sido esse, em anos recentes, o padrão de comportamento da Comissão. Bem pelo contrário, em muitos sectores a Comissão mais não fez do que projectar os interesses maioritários e, com essa orientação, contribuiu para afectar sectores importantes no quadro de desenvolvimento de alguns países. Algumas lamentáveis decisões tomadas na área das relações económicas externas aí estão a prová-lo de forma flagrante e um país como Portugal foi, nesse domínio, particularmente penalizado.

Uma outra reforma ?

Nesta perspectiva, e a haver vontade política para tal, talvez tivesse sido possível ir um pouco mais longe e colocar em discussão o actual modelo de equilíbrios interinstitucionais e partir daí para um repensar total da União do futuro.

Esse exercício que, convém dizê-lo desde já, não está na agenda da próxima revisão, poderia passar por uma reconsideração do papel dos Parlamentos Nacionais no contexto comunitário e por uma reflexão sobre o estatuto do próprio Parlamento Europeu, nos moldes em que funciona. Com efeito, e sem colocar em causa o reforço da dimensão democrática na União, creio que é preciso rompermos, de uma vez por todas, com o mito de que é pelo reforço do Parlamento Europeu que se colmata o “défice democrático” de que tanto se fala. É importante perceber e fazer entender que os Governos, ao actuar no Conselho, têm atrás de si a legitimidade que lhe é conferida pelo voto popular e que, ao contrário do Parlamento Europeu - que não pode ser dissolvido em nenhuma circunstância - estão sempre na iminência de cair por decisão dos parlamentos em que se apoiam. A questão essencial em termos de democracia está, a meu ver, muito mais ao nível das competências que “fogem” dos Parlamentos Nacionais para a esfera comunitária do que na descoberta, no seio desta, de mecanismos de compensação e controlo por afirmação de uma legitimidade europeia, manifestamente prematura para o grau de consciência comum que hoje marca os cidadãos dos Estados membros. Se não queremos que a União se transforme na realidade distante do cidadão que o abstencionismo nas recentes eleições para o Parlamento Europeu denuncia, torna-se indispensável gerar um modelo de representação dos Parlamentos Nacionais no processo interinstitucional. E porque não partir daqui para uma representação tipo senado europeu?


A presidência portuguesa
e a Conferência Intergovernamental

As ideias que atrás expressei, e que são fruto de uma experiência que muito releva dos debates da última CIG, constituem algumas das preocupações que têm estado no centro da posição nacional em matéria institucional.

É perfeitamente natural que estas ideias possam evoluir, em confronto com outras perspectivas e com o curso das realidades em discussão durante a próxima CIG, que caberá a Portugal lançar.

No que toca à gestão desse exercício, é intenção do nosso país levá-lo a cabo com a maior abertura de espírito, tendo como eixo referencial o esforço em curso por parte da presidência finlandesa. A partir do que resultar desse trabalho, é nosso objectivo lançar linhas de reflexão que possam ser outras tantas pistas para a descoberta de consensos que permitam à presidência francesa, que nos sucederá, finalizar o processo com sucesso, a fim de fazer desaparecer o último dos problemas formais a serem ultrapassados antes do primeiro dos próximos alargamentos.

E porque a opinião desses novos Estados não pode ser indiferente a quem, como nós, está a definir o futuro institucional em que se processará a sua futura integração, entendemos importante garantir que esses países acompanham o evoluir da reforma institucional e sobre ela são ouvidos, numa base meramente consultiva e informativa, mas, mesmo assim, num modelo que pretende antecipar o espírito de parceria e solidariedade que está subjacente à sua própria inclusão no processo de integração europeia.

(Publicado em “Europa – Novas Fronteiras” (nº 5, 1999), Centro de Informação Jacques Delors, Lisboa)



Uma Europa solidária?


Com a entrada em vigor do novo Tratado da União Europeia, aprovado em Amesterdão, ficará concluída mais uma etapa no processo de adaptação dos instrumentos da União à conjuntura político-económica que resultou das alterações de natureza estratégica ocorridas no continente na última década.

Convém ter presente que a Europa se vê confrontada, em simultâneo, com a necessidade do alargamento a Leste e com o imperativo de garantir uma solidez económico-monetária que lhe permita uma posição confortável na batalha inadiável da mundialização, o que a obriga a um esforço urgente para preservar a sua competitividade no mercado global.

Paralelamente, a União continua à procura de um consenso sobre as estruturas que lhe permitam enquadrar toda essas dimensões com o possível aprofundamento da políticas e, ao mesmo tempo, assegurar a compatibilidade das diversas realidades nacionais que comporta no seu seio.

Porque o processo europeu tem, cada vez mais, de ser transparente, porque as diversas opiniões públicas começaram a interessar-se fortemente pela construção europeia e, por vezes, a questionar as cedências de soberania que ela encerra, os passos futuros no sentido integrador têm-se revelado progressivamente mais difíceis. Por um lado, porque o aprofundamento da União toca áreas cada vez mais próximas do cerne dessas mesmas soberanias; por outro, porque uma Europa muito diferenciada apresenta hoje agendas de preocupações muito variáveis e por vezes contraditórias, de país para país.


Que Europa queremos ?

Neste cenário em mutação acelerada, importa situar o Tratado de Amesterdão. Muitos concordarão facilmente - em Portugal e no resto da União - se se disser que Amesterdão foi uma etapa que, sendo necessária, terá ficado aquém dos passos suficientes para dar resposta a todas as questões com que a nova Europa se defronta. Esta aparente unanimidade no diagnóstico sobre os deméritos relativos do novo tratado esconde, contudo, profundas divisões na terapêutica. Poderá haver aqui um grande equívoco e não temos a certeza de que, neste aparente consenso, todos estejamos hoje a falar do mesmo.

Com efeito, é naquilo que falta fazer que as divergências são mais patentes, precisamente porque há um fosso de interpretações sobre o que deve ser feito e sobre a finalidade do trabalho europeu em comum. A questão está em saber o que queremos, se os outros também querem o mesmo e, no caso de coincidirmos, se todos estamos dispostos à cedência de meios e à mobilização de vontades para avançar no projecto europeu que desse consenso resultar. Esta é a questão central e não vale a pena sobre ela estar a alimentar eufemismos.

Alguns referem como prioridade a revisão dos actuais mecanismos de funcionamento da União, as novas mudanças a introduzir nos Tratados, a inevitabilidade de nova reforma institucional. Chega-se mesmo a adoptar, face a este tipo questões, uma espécie de europeísmo “bola-de-neve”, marcado por um urgente e militante revisionismo, que induz um discurso politicamente correcto de que começa a ser arriscado alguém afastar-se, sob pena de ser acusado, subliminar ou abertamente, de ser adepto de um nacionalismo estreito e de uma não partilha do “grande desígnio” que, no entanto, quase todos se esquivam a definir em concreto - na velha lógica de que “o movimento é tudo, o fim é nada”.

Vamos por partes. Talvez não fizesse mal ao projecto europeu que, em vez de estarmos, dia após dia, a auto-flagelarmo-nos com angústias existenciais, sofridas pela ineficácia da Política Externa e de Segurança Comum (PESC) e pela ausência de uma voz europeia em matéria de defesa e segurança, parássemos um pouco para pensar sobre se estamos ainda todos no mesmo barco ou se, na realidade, vamos já hoje por caminhos diferentes e, porventura, contraditórios. É que a Europa de hoje cada vez mais se assemelha àquelas velhas famílias que pretendem afirmar uma imagem unida perante a sociedade exterior quando, na realidade, não conseguem resolver os seus problemas internos, por aparentemente já lhes faltar algo que una todos os membros, por sobre os seus egoísmos individuais.

Vale a pena termos a coragem de chamar as coisas pelos seus nomes, em vez de andarmos numa aparente competição de europeísmo, numa espécie de PREC comunitário em que cada um se sente absolvido pelo maior radicalismo que assume.


Porquê a Europa ?

Estar no projecto europeu é interessante se e quando esse projecto corresponder aos anseios das comunidades nacionais que nele participam, nomeadamente se for possível gerar uma mais-valia que funcione como valor acrescentado para vantagem de todos. A União Europeia, na filosofia que está subjacente aos Tratados é, para Portugal e para os portugueses, um projecto que corresponde aos requisitos essenciais para o tornarem atractivo: consubstancia uma dimensão ética, cultural e estratégica em que nos revemos, funciona como instrumento de desenvolvimento e de melhoria das condições de vida da nossa população e, nas partilhas de soberania que encerra, não afecta os valores de identidade nacional que a presente geração portuguesa interpreta como devendo ser preservados nesta fase histórica. Correndo o risco de todas as simplificações, no essencial, a questão é mais ou menos esta.

Só que, como sucede com todas as instituições, nós temos a obrigação de aferir constantemente se o modelo enquadrador está, ou não, adequado ao diacronismo da realidade a que se aplica. E é aqui que uma pergunta se coloca: será que os termos de referência que temos hoje perante nós, quando falamos da União Europeia, estão a ser lidos identicamente por todos ? Mesmo descontando as diferenças de perspectiva, derivadas das conjunturais agendas nacionais de interesses, será que há hoje um “interesse comum” europeu, percebido unanimemente como tal ?

Um entusiasmo europeísta mais militante dirá, com certeza, que ensaiar um raciocínio destes deriva, apenas, de uma mera atitude de cepticismo, de descrença nas virtualidades da própria Europa. Mas é preciso que se diga que a ideia europeia não é uma crença, é uma aposta racional que, como tal, tem de se justificar permanentemente no quotidiano. E, por essa via, pode e deve ser questionada se e quando não corresponder aos anseios daqueles a quem se dirige - de todos ou de alguns. O europessimismo que as sondagens hoje confirmam em muitas sociedades europeias não é um “defeito” das populações, é o produto da inadequação da Europa que temos àquilo que as pessoas dela esperam. Daí que valha a pena que, antes de nos precipitarmos na discussão sobre a reforma dos instrumentos da actual Europa político-económica, façamos um debate sobre se todos entendemos o mesmo daquilo que se diz ser a União Europeia e as suas ambições.


A Europa que temos

A Europa comunitária, laboriosamente construída à sombra do exorcizar do conflito franco-alemão, a que se cumulou o cimento agregador da Guerra Fria, representou um projecto de integração que, assente na economia de mercado e num modelo social sui generis, procurou sedimentar o desenvolvimento deste lado do continente, sob um referencial institucional democrático e com uma cultura de valores tendencialmente comum.

O evidente sucesso deste projecto político-económico, apoiado num gradualismo que sempre consolidou os passos anteriores, e os legitimou através de uma progressiva socialização da própria ideia europeia, conduziu naturalmente a maiores ambições: a criação de um mercado único (e já não de uma mera zona de livre-câmbio), com a instituição da livre circulação de pessoas e de mercadorias e, no topo deste processo, a criação de uma moeda única.

Para gerir esta complexa construção, que teve de incorporar sucessivamente novas partilhas de soberania em áreas cada vez mais sensíveis, foi sendo afinado um modelo institucional de representação múltipla, com vectores tipicamente intergovernamentais (o Conselho), de natureza proto-federal (a Comissão) e de expressão democrática crescentemente envolvida no processo legislativo (o Parlamento Europeu). O equilíbrio entre estas instâncias sofreu, entretanto, alterações sensíveis a que tem vindo a ser dada consagração nos Tratados, mas sempre numa linha de tendencial integracionismo - que muitos interpretam como imperativamente federal.

A consciência de que uma voz económica só tem condições para se fazer ouvir quando apoiada numa vontade política, levou à progressiva criação de estruturas de representação externa que potenciassem os evidentes sinais de partilha de interesses no plano diplomático e de segurança internacional, fruto de uma comum cultura de valores éticos que resulta dos padrões médios que decorrem dos modelos políticos representados pelos Estados membros. Daí a lógica de se caminhar para uma PESC. Mas convém ter claro que é também das hesitações e das contradições objectivas entre as perspectivas estratégicas dos diversos Estados membros - que vão da tradição neutral ao ultra-atlanticismo, das lógicas de potência regional às apetências para partilhas federais - que acaba por nascer muita da frustração nesta área, com consequências visíveis em termos operativos, nos cenários de proximidade onde uma Europa activa se justificaria.

Por outro lado, foi-se verificando que a densificação dos laços económico-sociais dentro do espaço comunitário, fruto das interdependências induzidas pelo mercado interno e pela livre circulação de pessoas e bens, implicava ir mais longe no trabalho comum em outras políticas colaterais. Daí a necessidade de caminhar para a comunitarização de outras áreas de natureza económico-social e, noutra dimensão, de procurar vias progressivamente comuns no domínio da segurança e da regulação da circulação das pessoas na ordem intracomunitária.

Porque este projecto punha em confronto aberto sociedades e economias com níveis muito desiguais de desenvolvimento, foram encaradas medidas de compensação que procurassem reduzir as disparidades regionais de base, atentas naturalmente as especificidades próprias que sempre as marcariam e desigualizariam. Essas políticas serviriam de suporte a um crescimento colectivo mais harmonioso que, sendo simultaneamente um terreno para uma estabilidade socio-política do conjunto, pudesse fundamentar sociedades mais prósperas que induzissem um efeito global de enriquecimento em todo o espaço coberto pelo projecto. Estamos a falar do princípio da coesão económica e social, que os Tratados consagram.


A Europa do “directório”

Só que o óbvio sucesso do empreendimento europeu, e da aplicação das políticas em que se fundou, poderá, na perspectiva de alguns, ser a origem das dificuldades com que a actual UE se confronta. A Europa enfrenta hoje a dificuldade em manter viva a ideia que criou de si própria, que “vendeu” como a sua imagem de marca e que, no fundo, a tornou apelativa aos olhos daqueles que agora dela querem fazer parte.

Esse problema implica repensar o modelo dos futuros alargamentos. É hoje evidente que, na Europa dos Quinze, há uma forte corrente que aponta no sentido de que será difícil, a médio prazo, conseguir garantir um elevado grau de homogeneidade, ainda que tendencial, entre os actuais e todos os futuros Estados membros, que possibilite a sustentação de um modelo comum que tenha um nível de integração similar ao actual. A ideia das “cooperações reforçadas” é, aliás, a resposta institucional antecipada a esta questão.

A actual discussão em torno do quadro financeiro a médio prazo não é alheia a este problema. Por parte dos países mais ricos da União começa a haver a percepção de que estamos perante um corpo de políticas que, tendo tido êxito na sua aplicação, é demasiado “caro” para ser adoptado em pleno na União alargada que aí vem. A solução, por isso, passaria por baixar o envolvimento da União em algumas dessas políticas, por forma a que o alargamento, quando se fizer, venha a constituir um encargo bastante menor.

Nestas condições, a ideia central deste projecto seria assegurar o desiderato do alargamento, embora ligando-o a um corpo de políticas menos exigente que o actual, assumindo que a Europa do futuro terá forçosamente de aceitar uma dualidade em matéria de desenvolvimento dos seus membros. Importante, contudo, será garantir as vantagens do mercado interno e o sucesso da moeda única, funcionando ambos como eixo de uma super-União que constituiria o “núcleo duro” do sistema. No plano institucional, uma reforma a realizar antes da admissão dos novos países asseguraria que o conjunto de Estados actuais com um padrão mais elevado de desenvolvimento manteria as rédeas do processo orçamental e de produção legislativa, nomeadamente por um reforço da sua posição no processo decisório. Essa hegemonia passaria, nessa lógica, a ter expressão privilegiada ao nível da representação política externa, que seria, na prática, dirigida pelos Estados com uma maior capacidade de afirmação diplomática e militar, legitimada nomeadamente pela sua maior contribuição financeira para o projecto comum. Se tudo isto sugere a palavra “directório”, é disso mesmo que estamos a falar.
   

As instituições e a solidariedade

Perante este cenário, a questão está em saber se faz ainda qualquer sentido falar de um projecto europeu marcado por regras de solidariedade e, muito em especial, se há algum padrão que identifique aquilo que poderia ser uma certa leitura de Esquerda na Europa dos nossos dias. E testar, neste contexto, o comportamento a nível europeu dos Governos que se reivindicam do socialismo democrático.

Muitos dirão que essa perspectiva pode e deve ser encontrada na definição e na execução das políticas, não tendo necessariamente a ver com os modelos institucionais e com o processo decisório.

Correndo o risco de ir contra a maré, gostávamos, contudo, de deixar claro que entendemos que uma perspectiva progressista da Europa tem de se afirmar em todas as dimensões do projecto comunitário, a começar pelo modelo de relação entre os Estados. Não faz sentido afirmar políticas de solidariedade, com expressão na execução diária das medidas da União, se paralelamente caminharmos para o aprofundamento de uma desigualização entre os Estados, numa deriva que tende, no limite, a tornar dispensável a vontade de alguns na definição dos termos de referência do processo colectivo. É que estamos a falar de uma União, onde os interesses marginais ou periféricos têm de fazer parte da resultante final, não de uma organização internacional onde a maioria domina e a minoria apenas acata.

A Europa da solidariedade começa no modo como os Estados se respeitam entre si, qualquer que seja a sua dimensão, na forma como garantem aos países mais pobres e aos menos populosos os meios para fazerem ouvir a sua voz e a manifestarem, com efeitos concretos na decisão final, as suas preocupações específicas, por mais marginais que sejam. Não é contraditório com qualquer princípio democrático garantir aos Estados mais pequenos - e, dentre estes, aos menos prósperos - o direito a afirmarem a sua singularidade num projecto colectivo. Valerá a pena pensarmos que o projecto federal típico fornece muito mais garantias de equidade que o modelo híbrido em que vivemos, onde o domínio dos mais fortes apenas é atenuado por algumas seguranças dadas pelo actual modelo institucional que, talvez por isso, está actualmente sob fogo.

A solidariedade deveria, igualmente, expressar-se pelo reforço dos mecanismos de compensação interna das desigualdades entre Estados e regiões, pela incentivação dos apoios tendentes a um desenvolvimento mais harmonioso dentro do espaço comunitário. Não se está, neste domínio, a apelar a esquemas caritativos: está-se, muito simplesmente, a procurar fazer ver que o livre acesso a um mercado global sem fronteiras ou os benefícios retirados do retorno dos fundos justificam a manutenção de apoios compensatórios. Isto para não falarmos do diferenciado impacte dentro da União, em termos de concessões, que a sua política de relações económicas externas encerra, quase sempre em desfavor dos países tecnologicamente menos desenvolvidos e das agriculturas do Sul.


O teste do alargamento

Repare-se que este tipo de questão se liga, com facilidade, ao processo de alargamento. Ter connosco, num projecto comum, países que procuram solidificar os seus processos de desenvolvimento e de democracia, é, já em si, um gesto de solidariedade - sendo, obviamente, também um interesse objectivo dos próprios países actuais da União, que assim alargam o seu horizonte de estabilidade e garantem a conquista para o seu modelo produtivo de novos mercados. Mas, também aqui, nunca é demais repetir, os ganhos e os custos são diferenciados e será importante tê-los em atenção no balanço final.

O apoio político que o Governo português deu, desde o início, ao processo de alargamento baseia-se precisamente nessa perspectiva solidária de garantir aos que procuram integrar o espaço de progresso que é hoje a União a mesma oportunidade que a nós foi dada em 1986. Julgamos estar a ser coerentes, mesmo se esta coerência comporta, como é natural, alguns custos.

Mas não vemos que tal postura seja a que marca a leitura restritiva, em termos de encargos financeiros, que alguns países hoje assumem no delinear do planeamento da União para os próximos tempos. Com efeito, verificamos mesmo que alguns dos Estados que, com mais entusiasmo, se lançaram no movimento impulsionador do alargamento estão hoje na primeira linha dos mais reticentes em assegurar os meios necessários para a sua plena realização. E ao advogarem um corpo de políticas menos oneroso, logo, menos denso e eficaz na cobertura das necessidades dos que vão ingressar futuramente na União, esses Estados revelam um egoísmo que não pode deixar de ser denunciado.

A atitude favorável à diluição do quadro integrador, feita com alibis de subsidiariedade ou com simples pretextos de restrição de encargos, tem forçosamente que ser avaliada num contexto político. Não podemos deixar que, com total impunidade, se dissolva o tecido de políticas que a União foi criando e que é, particularmente para alguns Estados menos capazes de assegurarem a sua sustentação autónoma, um elemento estruturante da sua participação na União e uma garantia dada às respectivas populações para uma progressiva aproximação à media dos restantes parceiros.


O euro e a Europa social

Estamos, aliás, convictos que, muito rapidamente, teremos que dar resposta a questões de novo tipo criadas pela introdução da moeda única, talvez mesmo mais cedo do que muitos desejariam. A sustentação do projecto da União Económica e Monetária vai ter que se projectar num conjunto muito alargado de políticas colaterais, sem o que se criarão disfunções sectoriais que minarão a aplicação do sistema. Veremos, a propósito, como evoluem os mecanismos de harmonização das políticas fiscais, de emprego, de coordenação das políticas económicas e de aproximação em outras áreas essenciais para a coerência do projecto. Não é mesmo de excluir que, num prazo mais ou menos curto, a União tenha de organizar uma nova Conferência Intergovernamental sobre este tema e é vital que o debate destas questões se comece a processar desde já.

Mas vai ser importante verificar o modo como os Governos europeus actuais - uma “maioria de esquerda” que matematicamente se projecta na União - interpreta a própria dinâmica da moeda única, isto é, se deixa que ela seja o instrumento de tensão desigualizadora que o liberalismo dela procurará aproveitar, numa lógica extrema de competitividade, ou se opta por enquadrá-la de forma regulada num percurso de apoio ao crescimento que tenha permanentemente como referente a necessidade de proteger e melhorar o modelo social europeu.

Será interessante, por outro lado, verificar se essa Europa reunida à volta do euro consegue tornar consistente a sua presença conjunta nas instâncias financeiras internacionais, como forma de ultrapassar os egoísmos de afirmação de alguns protagonistas e garantir uma voz económica sólida que possibilite uma reacção rápida perante as crises.

A nível interno, a possibilidade de lançamento de políticas activas de criação de emprego, através de projectos europeus de incentivação das redes transeuropeias e de apoio às PME’s, poderia ser um interessante caminho para estimular o crescimento, como vem sendo sugerido por António Guterres no seu discurso europeu. O recurso ao endividamento comunitário, através de obrigações europeias (“eurobonds”), constituiria um sinal do empenhamento da União com soluções de natureza comunitária, num momento em que se verificam conhecidas restrições de natureza orçamental para prosseguir, a nível nacional, acréscimos nos investimentos públicos, nomeadamente aqueles que eventuais choques assimétricos provocados pelos impactes diferenciados do euro no tecido económico e social da União vierem a justificar.

Neste domínio, há ainda que não ceder perante as tentativas, que seguramente aparecerão, sob um pretexto de flexibilidade dos mercados de trabalho, à luz da absolutização da busca de competitividade, no sentido de atacar o corpo de direitos económicos e sociais que fazem parte das conquistas do modelo europeu. A Europa da moeda única não é a Europa do pensamento único e não há nenhum determinismo que obrigue a que o modelo europeu se formate sob as teses de um liberalismo extremo. A economia é um instrumento para a melhoria das condições de vida dos povos, não é um fim em si, nem para a realização de determinados objectivos macroeconómicos, por mais essenciais que eles nos pareçam numa determinada conjuntura. Não ter tabus em relação à aceitação da lógica de mercado implica também não partilhar mitos quanto à bondade intrínseca do modelo liberal.

É esse padrão de cultura política, que deve marcar os princípios e que guiar o comportamento, que se espera que a “maioria de esquerda” da União assuma na sua gestão da vida comunitária, seja nas áreas económicas e sociais ou em outros domínios de intervenção em que a acção da União se exerce.


O teste das políticas

Um domínio importante é, como se reconhece, o das relações externas, que não pode ser sacrificado por uma qualquer visão redutora e auto-centrada do papel da União. Com efeito, a tradição de intervenção solidária no campo internacional, seja na ajuda ao desenvolvimento, seja na acção humanitária, seja na defesa dos direitos do homem, na preservação da democracia ou na promoção dos valores do Estado de Direito, não pode ser quebrada no futuro de políticas da União. A PESC terá que corresponder ao prolongamento de uma cultura de valores, à expressão diplomática da Europa das liberdades que a União construiu, em aliança com outros parceiros. Mas essa expressão externa terá sempre que estar subordinada, não a uma espécie de sobranceira razão ética auto-assumida, mas ao respeito pelo Direito Internacional e pelas instituições em cujo mandato se prevê a legitimação das acções no domínio exterior, mesmo que elas apareçam aparentemente justificadas por imperativos de justiça e paz.

Um teste igualmente interessante, e que nos ajudará a aferir da coerência de alguns, será no delicado domínio da Justiça e dos Assuntos Internos (JAI). Aqui, mais do que em qualquer outro campo, há que ponderar permanentemente os critérios de eficácia à luz dos padrões de liberdades públicas e da aceitação de rigorosas exigências em matéria dos direitos dos cidadãos, seja das populações da União, seja de cidadãos originários de países terceiros, aos quais deve ser aplicado um modelo de regulação da sua situação no território da União que compatibilize sempre o rigor com critérios de humanidade, na linha de uma tradição em que a Europa deve continuar a ser pioneira.

Finalmente, a cidadania. A Europa da equidade, que a Esquerda europeia tem procurado promover, encontra na letra dos Tratados da União, com reflexos na execução das políticas, um terreno de afirmação excelente. É importante que se consiga levar à prática políticas de igualdade entre homens e mulheres, de defesa das minorias e de criação de oportunidades para expressão autónoma, mas com audição institucional, de todas as áreas da sociedade. É pela potenciação da cidadania europeia, pela percepção cada vez mais alargada de que esse é um valor acrescentado à dimensão nacional, que se fará a Europa do futuro. É vital que os cidadãos europeus se tornem conscientes e exigentes nos seus direitos, condição essencial para se sentirem parte inteira do projecto comum.


O desafio conservador

São estes alguns temas que nos podem ajudar a reflectir sobre o futuro das políticas europeias e, muito em particular, sobre o que poderemos esperar da atitude de Governos que têm lemas ideológicos que se assemelham aos nossos. Como é tradicional, a Direita costuma ser o mais atento observador da coerência de quem se diz de Esquerda (o contrário nunca se passa...). E esse sector começou já a interrogar-se - e, diga-se, com alguma justiça - sobre o comportamento dos Governos socialistas ou social-democratas da Europa de hoje, inquirindo sobre se eles traduzem, na sua prática política, os princípios que teoricamente caracterizam a sua matriz ideológica.

Pensamos que este é um desafio a que não poderemos fugir e que vai ser interessante verificar o comportamento dos membros da família socialista europeia face ao grande conjunto de questões que hoje dividem a União. Deste teste poderemos vir a concluir se essa família política é apenas um grupo de amigos com interesses bem divergentes, expressos numa lógica nacional que escapa a qualquer tipificação de valores, ou se, pelo contrário, consegue definir uma identidade e um projecto autónomos que marquem uma visão própria da Europa e dos caminhos para o seu futuro. O desfecho da Agenda 2000, as linhas de fractura na questão institucional e a lógica subjacente à aplicação dos novos mecanismos da política externa europeia e da área da segurança interna vão dar-nos parte da resposta a este desafio. A outra parte da resposta sabemo-la nós.

( Publicado no “Portugal Socialista” (nº 219, 1999), sob o título “A Esquerda e a nova Europa”)



12 de maio de 1999

A Europa e a política externa portuguesa


O tema que nos propomos abordar é o modo como a política externa portuguesa é hoje atravessada pela nossa presença na União Europeia e, em particular, tentar reflectir sobre a forma como este novo vínculo estruturante da nossa presença internacional se projecta, seja no nosso processo nacional de decisão com incidência externa, seja na própria definição das nossas opções políticas no contexto mundial.

Julgamos que este esforço de análise é particularmente oportuno no tempo acelerado de mudança que atravessamos no quadro europeu e que se repercute, de forma clara, na gestão da máquina diplomática portuguesa em que temos alguma conjuntural responsabilidade.

Com efeito, parece-nos importante que procuremos perceber se o lugar de Portugal no mundo se alterou significativamente com a pertença às instituições europeias ou se, pelo contrário, o nosso actual enquadramento no projecto de integração do continente representou, na prática, apenas o estabelecimento de um palco novo para os vectores centrais da nossa diplomacia, mas nada mudando, de essencial, no nosso projecto estratégico de afirmação como Estado.

Esta questão está longe de ser meramente académica, porque toca de perto com a rede de leituras da própria ideia que cada um faz do país e do seu destino, pelo que, muito frequentemente, tem inescapáveis ressaibos ideológicos que não facilitam uma análise serena. O que a seguir direi parte, naturalmente, da assunção desse risco e da plena consciência de que o que vou dizer está longe de ser neutral.

Como tese de partida, começaria por referir que entendo que a perda da dimensão colonial veio introduzir, nas últimas décadas, um elemento de ruptura decisiva no horizonte estratégico português, com implicações directas no quadro referencial da nossa política externa.

Praticamente com excepção do período da Segunda Guerra mundial - e, mesmo neste caso, a doutrina não é de todo pacífica -, e até ao termo do processo descolonizador, a dimensão colonial terá estado presente em todas as grandes opções diplomáticas portuguesas, desde há séculos, condicionando quase sempre a política de alianças do país, nomeadamente no plano europeu.

Porém, no presente século, devido à inegável fragilidade política e económica do nosso país no quadro internacional, fragilidade essa agravada pela circunstância de Portugal ter passado a estar em dessintonia com o caminho favorável à autodeterminação dos anos 50 e 60, eu arriscaria dizer que o elemento colonial acabou por nunca se assumir, na época contemporânea, como um factor dinâmico no plano da nossa afirmação internacional.

Quero com isto dizer que entendo, nomeadamente, que as colónias portuguesas em África raramente funcionaram como um instrumento activo da prática externa do país, nomeadamente no âmbito do próprio continente africano, mas, bem pelo contrário, acabaram por sobredeterminar toda a própria acção governativa do então Portugal europeu, obrigado a um reajustamento penoso no seu quadro bilateral.

Portugal viveu, assim, com o seu quadro estratégico marcado pela sombra constrangente da questão colonial e, por um conjunto de razões cumulativas, foi historicamente perdendo a possibilidade de impor a evolução dessas mesmas colónias como um instrumento decisivo da sua própria projecção internacional, como outros colonizadores souberam fazer em tempo oportuno.

Esta circunstância agravou-se, naturalmente, com a incapacidade revelada pelo regime anterior de se ligar a um processo de transição que, de alguma forma, salvaguardasse uma significativa influência de Portugal junto dos novos países saídos da sua tutela colonial. Os conflitos militares entretanto gerados, e a circunstância dos movimentos independentistas terem acabado por mobilizar em seu favor significativas faixas internacionais de opinião, que contribuíram para o crescente isolamento do país, trouxeram mesmo um custo político acrescido no plano bilateral e multilateral que condicionou decisivamente todo o quadro da actividade diplomática portuguesa.

Esta referência à dimensão colonial parece-me importante para explicar um pouco o que se lhe seguiu e o modo como o fim desse ciclo fixou novos elementos ao quadro de prioridades internacionais do nosso país. Na realidade, é como sucedâneo deste enquadramento nada favorável que, após a Revolução de 1974, vemos a acção externa portuguesa a sofrer uma rápida reconversão, muitas das vezes quase que inflectindo caricaturalmente o anterior estado de coisas - como se viu em algum afã nas relações com os países do Centro e Leste europeu, com os países africanos e com o mundo árabe, para além de um certo deslumbramento no plano multilateral, em especial no quadro das Nações Unidas.

Nesse primeiro tempo, Portugal procurou colmatar o tempo perdido junto de áreas do mundo de que se alienara com a imagem colonial mais recente. O êxito desse empreendimento foi, curiosamente, bastante maior junto do resto do mundo do que o que iria ter, durante alguns anos, junto das próprias antigas colónias, com algumas das quais a normalização no relacionamento se processou através de crises prolongadas, embora naturais.

Ao tempo, a diplomacia portuguesa tentou gizar uma nova rede de cooperação económica e de entendimento político, estimulada pela boa vontade internacional que o novo regime granjeara, em especial com a disponibilidade descolonizadora da Revolução. Algum voluntarismo ideológico procurou mesmo recentrar os eixos tradicionais de afirmação estratégica do país, numa linha “middle of the road” no quadro internacional, que, sem alienar formalmente os laços ocidentais, situasse o “novo” Portugal num terreno de entendimento, e mesmo de alguma cumplicidade operativa, com países situados fora desse enquadramento. Foi o tempo da deriva dita “terceiro-mundista” que marcou um período importante após 1974.

Sucedendo temporalmente a esse movimento, e como fruto da esperança posta pelo mundo ocidental na estabilização democrática do país e nas possibilidades da sua ancoragem a um modelo aberto de sociedade, veio a estabelecer-se uma crescente aproximação ou reaproximação aos Estados europeus, numa linha evolutiva que prolongou o percurso que já havia levado Portugal à EFTA e que, nas novas condições, pode entender-se como tendo estado na origem do subsequente processo de adesão à então CEE.

Para o que aqui nos interessa, a questão está em saber quais eram então, um pouco à luz desta nova conjuntura, aquelas que poderiam ser identificadas como as grandes linhas determinantes da acção externa do país.

Repare-se que, nesse tempo de 1986, estamos num momento de estabilização do nosso quadro de acção diplomática, que conjuga vertentes tradicionais, grande parte fruto de determinantes geopolíticas históricas de vária origem, com novas dimensões que resultam da evolução mais recente do país no cenário internacional.

Não quero entrar aqui em pormenor num terreno que, sendo aparentemente pacífico, tem mais alçapões do que à primeira vista pode parecer. Vou-me atrever, no entanto, a tentar isolar algumas dimensões que, ao tempo da nossa entrada para a então CEE, poderiam ser consideradas como caracterizadoras dos principais eixos da nossa acção externa.

Assim, referiria, embora sem qualquer preocupação de hierarquização, algumas áreas de referência:

A ligação crescente com as instituições de integração europeia, bem como o decorrente incremento do relacionamento bilateral com os países integrantes da então CEE;

O novo tipo de relacionamento com os países da África lusófona, com incidências claras no posicionamento multilateral no quadro da ajuda pública ao desenvolvimento, e a gestão do um inédito tecido de, também novas, relações bilaterais no restante contexto africano;

A assunção do apoio à luta pela auto-determinação do povo de Timor Leste como uma responsabilidade nacional portuguesa;

A fixação de modelos de protecção e promoção das Comunidades Portuguesas no exterior, em muitos dos casos ligados à gestão dos diferentes quadros de relações bilaterais;

A afirmação e a promoção da Língua e da Cultura portuguesas no mundo, nomeadamente através de uma articulação funcional e de uma progressiva acção institucional integrada com os países que têm o Português como idioma oficial;

A promoção dos interesses económicos portugueses no quadro externo, bem como a captação do investimento directo estrangeiro;

A especificidade do relacionamento com o Brasil e os laços tradicionais, de natureza histórica e cultural, com o resto da América Latina;

O contínuo empenhamento na dimensão transatlântica, nomeadamente no quadro da Aliança Atlântica e nas relações com os EUA e Canadá;

O novo posicionamento no quadro multilateral internacional, fruto da abertura pós-colonial e da assunção de uma linha de defesa dos valores democráticos, do respeito pelo Estado de Direito e da gestação progressiva de uma muito especial filosofia de promoção dos direitos humanos;

As relações, de matriz predominantemente histórica e cultural, com algumas áreas da Ásia e, dentro dela, a particular gestão do binómio Macau-China;

A aproximação com a então URSS e com os países do Centro e Leste europeu, com expressão prática mais imediata a nível económico;

O aprofundamento das relações bilaterais com os países árabes e a construção de uma, até aí inexistente, vertente mediterrânica da política externa portuguesa.

Embora com o carácter limitado e arbitrário de selecção que lhe está subjacente, tenho a consciência que se trata de temas que, independentemente de fazerem parte do discurso recorrente de todos os protagonistas da vida política portuguesa nos últimos anos, não têm para todos eles, convém assumi-lo, uma priorização consensual.

Com efeito, na ênfase dada a algumas destas vertentes, há um mundo de ambiguidades que seria falsa inocência esquecer. A política externa portuguesa está longe de ser o mundo consensual que, por vezes, se quer afirmar e, se procurarmos bem, ela é palco de interpretações muito mais diversas do que se pode julgar. Basta pensar na atitude assumida no auge de algumas crises, que ainda vivemos, para concluirmos que não estamos perante um terreno político pacificamente unívoco.

É, no entanto, no reforço de uma das dimensões que antes citei - o relacionamento com as instituições comunitárias - que a Europa passa a aparecer de forma mais visível a partir da década de 70 e, com mais óbvia incidência, a partir de 1986. O próprio retomar do tecido europeu de relações bilaterais que o tempo colonial recente havia afectado acaba por se ressentir positivamente deste novo quadro. Porque tem uma vocação estruturante muito própria, progressivamente reforçada no plano político-diplomático e na acção económica externa, a Europa comunitária começa a funcionar, a partir de então, como um cenário de projecção de todas as restantes dimensões sectoriais.

A grande, e provavelmente a mais original, característica do modelo de integração europeia, é exactamente essa virtualidade de se ter constituído como um processo federador da diversidade diplomática dos Estados membros, precisamente porque esta mesma diversidade assenta numa lógica comum de interesses e de valores, que, à partida, não deve excluir qualquer das dimensões da política externa dos Estados membros que com ela seja coerente e compatível.

Mas o processo europeu - que, como referi, é em si mesmo estruturante - é também ele próprio gerador de uma dinâmica política que se reflecte sobre todos os Estados membros que o compõem e acaba por se projectar sobre as várias políticas nacionais e fazer partilhar estas de um novo horizonte estratégico comum de interesses. Resta apenas saber se como valor acrescentado ou se como factor limitador.

E aqui a doutrina divide-se, tanto mais que é claro que os efeitos desta nova matriz se não distribuem uniformemente entre os vários Estados membros.

Para alguns, a política europeia, nomeadamente as decorrências da aplicação e funcionamento da Política Externa e de Segurança Comum (PESC), acaba por subalternizar algumas dimensões nacionais em presença, pela vocação hegemonizante de um discurso diplomático de cariz universalista e, a prazo mais ou menos longo, tende a introduzir uma matriz dominante que descaracteriza as linhas autónomas da diplomacia dos Estados membros. Este efeito é mais visível nos Estados mais débeis no campo de afirmação externa, seja por se limitarem a uma rede periférica de objectivos sem expressão na vontade comum europeia, seja por não possuírem uma estrutura autónoma de interesses suficientemente sólida para suportar a pressão da harmonização.

Para esta leitura, para além da PESC ser uma espécie de baixo denominador comum diplomático, que acaba frequentemente por ser um exercício de retórica declaratória, o dia-a-dia demonstra que as grandes prioridades dos Estados membros mais poderosos tendem frequentemente a impor-se aos restantes e isso só não acontece mais pelo facto de, não raramente, se verificarem contradições bloqueantes entre esses mesmos Estados. A deriva para o “directório” seria, assim, cada vez mais inevitável e a introdução das votações por maioria qualificada, no quadro das novas “estratégias comuns” da PESC, tenderia ainda a agravar este cenário. Retomando um clássico que não está na moda, eu diria que essa visão tende a considerar que a União funciona como o conselho de administração dos interesses comuns dos países dominantes na Europa.

Uma segunda escola entende, contudo, que é precisamente o contrário que sucede. A circunstância de ficar ligado a um elemento propulsor de maior solidez e coerência, suportado por uma força política e económica em crescente afirmação como é a União Europeia, é um factor que vai em reforço da visibilidade das dimensões externas específicas daqueles países que, autonomamente, não teriam essa força e, se compagináveis com essa doutrina comum, as perspectivas nacionais próprias encontram, assim, um elemento de apoio suplementar e uma garantia de amplificação dos respectivos interesses. Além disso, para Estados membros que, pela sua agenda histórica de interesses, não têm tradicionalmente uma vocação de afirmação diplomática de dimensão mundial, a participação na PESC acaba por constituir, bem pelo contrário, a abertura de horizontes novos na sua acção externa e um factor de dinamização da sua própria administração diplomática nacional.

Onde é que está a verdade em tudo isto ?

Como sempre, não está necessariamente apenas num dos lados, e refiro-o em função da nossa própria experiência, embora me incline a pensar que grande parte dessa mesma verdade estará nesta última escola de pensamento.

De facto, e se olharmos para o caso português, eu penso que é óbvio que aquilo que podemos designar como as grandes linhas caracterizadoras da política externa antes de 1986 ficaram, no essencial, protegidas pelo processo de integração e conseguiram mesmo, por seu intermédio, uma importância e uma expressão que dificilmente teriam condições de obter autonomamente.

Talvez valha a pena fazer uma ronda por alguns desses temas, na ordem anteriormente referida, para tornar isto numa evidência.

Começando pelo quadro bilateral europeu, eu diria que este sofreu, com o ingresso de Portugal nas instâncias comunitárias, uma evolução muito particular. Sem prejuízo de algumas relações especiais por razões de natureza geopolítica, cultural ou derivada da presença de comunidades portuguesas, pode dizer-se que a matriz comunitária passou a regular muito do que, no passado, era tratado nesse relacionamento Estado a Estado. Isso poderá conduzir, aliás, a termos de repensar, mais cedo ou mais tarde, o próprio tecido diplomático português no espaço que é hoje a União Europeia e que, a meu ver, deve forçosamente ir no sentido de um esforço de algum “downsizing”, que sei ser pouco popular nas Necessidades.

Mas é óbvio que algum espaço específico continua a existir ainda no quadro bilateral europeu. Sem menosprezar a importância de outros relacionamentos bilaterais, eu julgo ser de destacar, por significativo, o caso espanhol. A memória dos povos é normalmente muito curta, mas, se todos fizermos um breve exercício de reflexão, talvez se torne evidente que o relacionamento entre Portugal e a Espanha, com todo o seu histórico de encontros e desencontros, passou decisivamente a um tempo novo desde a nossa comum entrada para a CEE.

Na perspectiva “aljubarroteana” de alguns, isso foi péssimo, porque terá descurado as defesas tradicionais daquilo que elegiam como a matriz identificadora do país na ordem externa próxima. O mundo, porém, não pode continuar a ser modelado por fantasmas e aqueles que entendem imprescindíveis trincheiras materiais e culturais para preservar a nossa especificidade no contexto peninsular mais não fazem do que revelar a sua descrença na existência de uma sólida singularidade específica que nos identifica como povo, desde há oito séculos, e que, desde sempre, só se reforça quando posto à prova do confronto aberto.

Lisboa e Madrid vivem hoje num estado de entendimento que protege os seus interesses mútuos, nomeadamente no plano europeu, numa saudável vida competitiva no seio de um mercado interno que contribui para estimular os seus factores de afirmação económica e, o que não é menos importante, dispõem agora de um terreno de sereno debate das pontuais e inevitáveis dificuldades bilaterais, sob um quadro referencial de matriz europeia mutuamente aceite. Não hesito em afirmar que, se tivesse que identificar o domínio da nossa política externa que mais beneficiou com a integração europeia, a minha escolha seria o relacionamento entre Portugal e a Espanha.

Também com África as coisas são bastante diferentes desde a integração comunitária, e isto não obstante ter havido, como disse, a necessidade de proceder, nuns casos com maior dificuldade que noutros, a um diluir de alguns traumas que a ruptura colonial originou. Portugal tem sido um constante e activo defensor dos interesses dos “países menos avançados”, de que fazem parte todos os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), no quadro da Convenção de Lomé e de outras instâncias de natureza multilateral, garantindo-se nomeadamente aos Estados emergentes das suas antigas colónias como um permanente advogado dos seus interesses em Bruxelas e na projecção da ajuda comunitária nos contextos regionais em que se inserem. Aliás, a nossa própria ajuda ao desenvolvimento bilateral, nomeadamente aquela que se expressa através das Organizações Não Governamentais, tem, como se sabe, beneficiado de forma clara do enquadramento comunitário.

Eu diria que, não fora a circunstância de se viver um momento de alguma indecisão quanto a caminhos futuros, no seio da comunidade internacional, no tocante às orientação da política de ajuda ao desenvolvimento, o impulso comunitário poderia dar a Portugal uma dimensão europeia na acção junto dos diversos PALOP ainda bastante mais pronunciada.

E passaria a Timor. A evolução recentemente havida neste caso não pode fazer esquecer ter sido o XIII Governo constitucional que conseguiu assegurar a aprovação da primeira Posição Comum europeia no quadro da PESC, da qual decorreram uma série de consequências de natureza prática, que muito têm ajudado a garantir uma apreciável disciplina de comportamento de todos os Estados membros face às relações com a Indonésia e a uma modulação, politicamente significativa dos formatos de interligação institucional entre a União e os países do ASEAN. Penso que é uma evidência, que ninguém contestará, que seria impensável a um país como Portugal poder sustentar, com um mínimo de visibilidade e de eficácia, todo o conjunto de iniciativas diplomáticas constrangentes que tem vindo a forçar face a um país com a importância da Indonésia, se não estivesse integrado num contexto como o comunitário.

No que toca à protecção das Comunidades portuguesas no exterior, assinalarei que as conquistas da cidadania europeia são hoje, como é reconhecido, um inestimável valor acrescentado de que os Portugueses podem beneficiar em todo o território da União. Fora desta, o peso político e o quadro de protecção diplomática que a União Europeia proporciona - e lembraria a colaboração entre Estados membros em crises recentes em África - tem vindo a revelar-se um valor da maior importância para a defesa dos direitos dos nossos nacionais.

Referiria, a título de exemplo, o caso concreto das negociações com a Suíça, concluídas em 1998, sobre livre circulação de trabalhadores, onde os interesses portugueses foram preservados graças à circunstância de essa mesma negociação estar conjugada com um quadro mais alargado, onde a voz de Portugal teve a possibilidade de se fazer sentir de forma determinante, sendo esse forte quadro negocial impensável se estivéssemos reduzidos a um contexto meramente bilateral.

A promoção da Língua e da Cultura portuguesas no estrangeiro têm, naturalmente, beneficiado da circunstância do Português ser hoje uma língua oficial da União Europeia, com crescente formação de intérpretes e tradutores que actuam nas instâncias comunitárias e nos quadros de relacionamento externo da União, com particular destaque para a Convenção de Lomé. Além disso, o sistema comunitário tem servido de suporte, financeiro ou outro, para diversas acções de divulgação da nossa actividade cultural nacional e muito tem contribuído para um melhor conhecimento do nosso país no plano internacional.

No plano económico, a rede de acordos criada pelas relações económicas externas da União Europeia, seja no espaço europeu candidato à adesão, seja em outras áreas do mundo com as quais estão estabelecidos convénios tendentes ao incremento das relações comerciais e de cooperação, constitui um campo da maior importância para a promoção dos interesses económicos nacionais no estrangeiro. O próprio espaço comunitário, aberto pelo mercado único, tem hoje um acesso facilitado aos agentes económicos portugueses, sob um quadro legal de grandes garantias. Poder-se-á dizer, porventura, que os efeitos nesta área se compensam com a abertura do próprio mercado português, mas há que reconhecer que esse eventual elemento desfavorável deriva, muito simplesmente, da circunstância de não sabermos ou não podermos aproveitar as oportunidades criadas, fruto do nosso nível de desenvolvimento e da circunstância do nosso sistema produtivo estar em eventual contra-ciclo com a restante União. Neste domínio, porém, o elemento mais interessante, e com maiores consequências futuras no nosso desenvolvimento, é, com certeza, a nossa pertença ao espaço do euro e as vantagens daí decorrentes em termos de estabilidade económica. A circunstância de pertencermos à moeda única europeia representa um salto qualitativo sem precedentes e, só por si, qualificaria decisivamente a nossa própria opção europeia.

Uma outra vertente importante a que a Europa nos ajuda a dar relevo diz respeito à relação entre Portugal e o Brasil. Tratando-se de um quadro bilateral por definição privilegiado, a verdade é que sempre foi muito difícil dar substância à retórica e esta marcou muita da inércia de décadas. Hoje, porém, as coisas são claramente diferentes - e isto não é retórica, são números. Em 1998, Portugal foi o 5º investidor no Brasil, o intercâmbio nunca foi tão forte e activo, o relacionamento político e de cooperação entre a União e o Mercosul estão a abrir portas novas entre ambos os países e, no quadro bilateral e nas dimensões internacionais em que Portugal e o Brasil se projectam, há uma regular conjugação de interesses, que se espera ainda poder potenciar mais através da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Como disse, o quadro do relacionamento entre a União e o Mercosul é, para nós, um terreno de decisiva importância. Trata-se de um domínio em que Portugal actua, no âmbito da União, como um dos principais impulsionadores, na linha da leitura estratégica que faz do interesse global europeu, que aliás abrange outros países da América do Sul com os quais temos, historicamente, um excelente entendimento, nomeadamente pela presença em alguns deles de importantes comunidades nacionais. Com o quadro Mercosul e com o Chile, com as relações especiais forjadas no Grupo de S. José e no Grupo do Rio, com a relação contratual muito específica com o México, temos perante nós um panorama privilegiado para garantir que a imagem que na América Latina se cultiva de Portugal possa ser um terreno para uma maior expressão política, económica e cultural futura.

No tocante à dimensão transatlântica, creio óbvio que a circunstância do enquadramento de defesa e segurança estabelecido na NATO, e ao qual Portugal sempre se ligou de modo empenhado, ter conseguido uma total compatibilidade no seio da União Europeia, nomeadamente através de um modelo de dinamização da UEO, constituiu um passo muito positivo. O papel central que a União Europeia passa a desempenhar no contexto da NATO, decorrente da cimeira de Washington, apenas vem confirmar esta realidade. Tal modelo de articulação preserva em absoluto o quadro de relacionamento privilegiado que sempre defendemos com os EUA e com o Canadá, com incidências no plano bilateral e pelo qual passa, convém não o esquecer, muita da especificidade da nossa própria inserção na própria Aliança Atlântica.

Embora possa frequentemente ser menos patente, a intervenção conjugada dos países europeus nas instâncias internacionais não deixa de valorizar e reforçar a posição do nosso país. Se, no nosso caminho para a presença no Conselho de Segurança, não pudemos contar com a solidariedade de todos os Estados da União Europeia, já todo o trabalho que desenvolvemos nesse contexto, no biénio que há pouco terminou, foi marcado por uma elevada e eficaz conjugação de esforços com os nossos parceiros. Para além disso, julgo que convém recordar que os países europeus mantêm hoje um elevado grau de coordenação de posições no quadro da grande maioria das instâncias internacionais, frequentemente com a colaboração da Comissão Europeia, o que conduz a uma prática regular de apoios mútuos da maior importância.

Recordaria, a título de exemplo, o terreno da defesa dos direitos humanos no quadro das Nações Unidas, com implicações práticas muito significativas no caso timorense, onde temos vindo a conseguir garantir uma acção mais consequente precisamente pelo facto de não estarmos sozinhos.

E creio que, noutro contexto, não há exemplo mais flagrante do que a negociação final do Uruguay Round do GATT, onde só a nossa pertença à União nos permitiu assegurar resultados, em termos de discriminação positiva para enfrentar os efeitos da liberalização, que eram inimagináveis por outra via. Com a crescente globalização, e com o previsível alargamento da competência comunitária no quadro da Organização Mundial do Comércio, estes efeitos tenderão, ainda, a ser mais potenciados.

A recente crise económica e os novos afloramentos  políticos que se vivem na Ásia vieram relevar a necessidade de uma constante atenção à evolução dos países daquela zona, atendendo ao respectivo impacto, não apenas no contexto da economia europeia, mas igualmente quanto à potencial indução de factores de instabilidade com repercussões globais na ordem internacional.

Aqui se inserem, também, questões como as do futuro de Macau, em que Portugal tem vindo a garantir que a União se mantenha atenta quanto à necessidade de preservação, após Dezembro de 1999, do novo quadro legal estabelecido com a China, a exemplo do que faz com Hong Kong, sublinhada embora a diferença dos contextos.

Como antes referi, a integração na União e na sua dimensão política externa têm igualmente contribuído para garantir a Portugal uma maior presença em áreas que, não se constituindo no passado como centrais do seu quadro de prioridades, representam, não obstante, dimensões significativas e de crescente relevância.

O excelente relacionamento que temos vindo a construir com os países do Centro e do Leste Europeu, nomeadamente com a Rússia e com a Ucrânia, bem como com os Estados candidatos à adesão à União Europeia, aí está para demonstrá-lo. Tendo acompanhado com atenção e simpatia os respectivos processos de transição, Portugal tem, em especial no contexto do alargamento, e aproveitando o respectivo quadro de instrumentos, trabalhado intimamente com todos esses países, dando-lhes conta da nossa própria experiência no processo integrador e pondo ao seu dispor algumas das nossas capacidades nesse domínio, ao mesmo tempo que efectua um esforço de aproximação económica com elevado sucesso. Além disso, a atitude de grande responsabilidade política que o nosso país tem tido face ao processo de alargamento das instituições europeias e euro-atlânticas, sem introduzir quaisquer elementos de condicionalidade de cariz egoísta, tem vindo a conquistar-nos um lugar interessante no quadro das relações externas desses países, que procuraremos aprofundar no futuro.

Finalmente, um outro caso evidente é o espaço mediterrânico e as relações com os Países árabes.

Com uma activa intervenção no Fórum do Mediterrâneo e no Processo de Barcelona, iniciativas em cujo lançamento teve um papel impulsionador, Portugal tem vindo a afirmar-se como um parceiro europeu de grande credibilidade para os nossos vizinhos da zona sul do Mediterrâneo, muito em particular junto do mundo árabe. Esta circunstância, aliada a uma cuidadosa potenciação de alguns quadros bilaterais nesta área - em que o caso de Marrocos é porventura o mais significativo - tem conferido ao nosso país um papel muito interessante em todo o diálogo político, económico e cultural que atravessa esta dimensão sul das relações externas da União.

Em conclusão de tudo quanto foi dito, eu creio pacífico que a avaliação dos impactos da integração na União sobre as diversas dimensões da nossa acção diplomática aponta, à evidência, para a conclusão de que estamos perante um factor determinante no potenciar da voz do nosso país no contexto externo. Se fosse necessária uma confirmação mais, sublinharia a importância da presidência portuguesa da União Europeia, no primeiro semestre de 2000, num quadro de exigência e muito maior face ao exercício de 1992, conferindo a Portugal um espaço excepcional de visibilidade política e diplomática, e, simultaneamente, um factor de afirmação e de prestígio.

Mas há ainda um aspecto geral, de natureza mais interna, sobre o qual não posso deixar de chamar a atenção. Ele refere-se àquilo que eu poderia designar como que o efeito da presença na União sobre a coerência global da cultura diplomática portuguesa.

Durante anos, Portugal viveu, no plano externo, da conjugação de algumas dimensões multilaterais de desigual importância, com dossiers bilaterais muito específicos e díspares, que conduziram a um quadro diplomático pouco equilibrado e marcado por um reflexo fortemente defensivo. Nas décadas deste século que antecederam 1974, a gestão desses dossiers foi sempre feita, por razões compreensíveis, numa perspectiva muitas das vezes marcada mesmo por alguma dependência diplomática, que hoje nos parece menos simpática para a própria imagem do país. No Ministério dos Negócios Estrangeiros essa limitação de perspectivas teve os seus efeitos. Parte importante das grandes questões de política internacional tinha então entre nós, há que reconhecer, um tratamento impressionista e frequentemente de cariz quase jornalístico, por se situar fora da nossa capacidade de influência e, por essa via, estar afastada das nossas preocupações imediatas.

O maniqueísmo da guerra fria veio ainda facilitar mais a definição desse posicionamento, ao estimular uma espécie de comodismo diplomático, em tudo quanto não relevasse dos nossos interesses directos. É essa realidade que a integração na Cooperação Política Europeia primeiro e, mais tarde, na Política Externa e de Segurança Comum vem mudar de forma clara.

Embora no início remetida a uma postura predominantemente reactiva, a diplomacia portuguesa foi ganhando uma dinâmica de apreciação própria, foi gizando uma matriz coerente de abordagem que alia a assunção de uma filosofia específica à articulação com o que poderíamos designar como a “jurisprudência” diplomática europeia, que se foi destilando no seio da União nos últimos anos, ambas sempre aferidas à luz do interesse nacional que, como é evidente, tem sempre sobredeterminado todas as nossas opções. Hoje é reconfortante verificar que o Ministério dos Negócios Estrangeiros português saiu da postura anterior, adquiriu uma solidez doutrinária que lhe facilita a instituição e o permanente aperfeiçoamento de uma grelha de leitura das situações no plano internacional, num modo de actuação interveniente e ofensivo, de uma forma que lhe permite comparar-se sem problemas com a grande maioria dos países da União. E isso tem constituído - é vital que todos o saibam - um elemento da maior importância para o prestígio diplomático de Portugal.

É que embora a Europa, ou a intervenção que levarmos a cabo por seu intermédio, não esgote, de forma alguma, o nosso espectro de acção internacional, parece-nos evidente que a nossa presença nas respectivas instâncias acabou por se revelar um valor acrescentado inegável para reforço daquilo que entendemos ser o interesse português. E convém termos claro que, dentro desse interesse português, está já hoje o próprio interesse europeu, porque as nossas finalidades como país estão, cada vez mais, ligadas ao nosso destino como europeus.

(Iintervenção no colóquio “A Democracia e a política externa portuguesa”, realizado em Lisboa, em 12 de Maio de 1999, pela Fundação Luso-Americana e pela “Política Internacional.)